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Processo n.º 10/05
1.ª Secção Relator: Conselheiro Rui Moura Ramos
I – A Causa
1. A., preso preventivamente à ordem do processo comum/colectivo nº 364/03.4 JACB, da 2ª Secção da Vara Mista de Coimbra, no qual foi condenado, por Acórdão de 15/07/2004, na pena de seis anos de prisão (em co-autoria material de um crime de tráfico de estupefacientes – artigo 21º, nº 1 do Decreto-Lei nº 15/93, de 22 de Janeiro), condenação da qual recorreu para o Tribunal da Relação de Coimbra, veio requerer, em 7/12/2004, providência de habeas corpus.
Para tal efeito alegou que, tendo sido reavaliada em 4/08/2004 a subsistência dos pressupostos da sua sujeição à medida de prisão preventiva, mantendo-a, deveria, em obediência ao disposto no artigo 213º, nº 1 do Código de Processo Penal (doravante, CPP), ter-se procedido a novo reexame desses pressupostos, o mais tardar até 4/11/2004, sendo que a falta de tal iniciativa processual determinaria, daí em diante, a ilegalidade da persistência da privação da liberdade do requerente e fundaria a dedução de providência de habeas corpus.
Com efeito, segundo defende A., no requerimento através do qual suscitou a providência em causa:
“[o artigo 27º, nº 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP)] estabelece que a prisão preventiva só poderá manter-se «pelo tempo e nas condições que a lei determinar», condições essas que são concretizadas pelo legislador ordinário, nomeadamente no artigo 213º do CPP que prevê a reapreciação trimestral. Assim, qualquer privação da liberdade que ocorra em incumprimento da lei processual penal terá inevitavelmente que se qualificar como ilegal.
[Constituindo] circunstância que se integra no âmbito do habeas corpus, contrariamente ao que tem sido propugnado por alguma jurisprudência.
[E o entendimento contrário violaria] o disposto no artigo 32º nº 1 da Constituição [...]”.
Daí que o requerente, ao pedir a concessão da providência ao abrigo do disposto no artigo 222º, nº 2, alínea c) do CPP, tenha adiantado o seguinte argumento:
“A interpretação do artigo 222º, nºs 1 e 2, alínea c) do CPP, no sentido de que o «facto de não ter sido estritamente respeitado o prazo a que alude o artigo
213º do CPP, para reexame dos pressupostos da prisão preventiva, não constitui de per si fundamento para a providência de habeas corpus» é materialmente inconstitucional, por violação dos artigos 27º, nº 1; 28º, nº 2; 31º, nº 1 e
32º, nºs. 1 e 2 da CRP.”
Instruída a providência no Tribunal da Relação de Coimbra, onde se encontrava pendente o processo em causa (v. fls. 6 e vº), proferiu o Supremo Tribunal de Justiça (STJ), em 15/12/2004, decisão, consubstanciada no Acórdão aqui recorrido (fls. 47/54), indeferindo, “por falta de fundamento”, o pedido de habeas corpus. Estribando o decidido, escreveu-se neste aresto:
“[...] O que o Requerente sustenta é que a omissão do reexame oficioso trimestral da subsistência dos pressupostos da prisão preventiva, imposto pelo artº 213º do CPP, por determinar ilegalidade, constitui fundamento da providência, subsumível à previsão da invocada alínea c), sob pena de inconstitucionalidade material da respectiva norma, por violação dos arts. 27º, nº1, 28º, nº 2 , 31º, nºs. 1 e 2 da CRP. A argumentação, todavia, não procede. Já vimos a natureza que a providência assume na jurisprudência tradicional do STJ que, no essencial, tem sido perfilhada pelo Tribunal Constitucional (Cfr. Acórdão nº 423/2003, Pº nº 571/2003, de 24.09.03, no DR, II Série, de 15.04.04, pág. 5887 e segs.). Essa natureza de remédio urgente e expedito contra a ilegalidade da prisão concretizadora de abuso de poder, exige, como vimos, que deparemos com uma situação de «violação directa e substancial, em contrariedade imediata e patente da lei», estando consequentemente arredados do seu objecto «os juízos, verdadeiramente de julgamento de direito e de facto, quanto à interpretação e verificação dos pressupostos e condições da privação da liberdade» Ora, é o próprio Requerente a reconhecer que aquela omissão não cabe directamente na previsão da citada alínea c). Por isso, todo o esforço interpretativo feito no sentido de abalar a posição tradicional do STJ sobre essa concreta questão, fixada, entre outros, nos arestos que cita e que aqui sufragamos por inteiro – a de que essa omissão não determina a extinção da medida nem, por si, integra fundamento de habeas corpus –, com apelo à proclamada inconstitucionalidade material, no sentido de nela a encaixar, quando não mesmo de criar uma norma nova que a contemple. Mas um exercício desse tipo ultrapassa, repete-se, o âmbito e as possibilidades da providência, sem que com isso se afronte a Constituição, designadamente o núcleo essencial do direito à liberdade e à segurança ou se diminuam, minimamente que seja, as garantias de defesa consagradas pelo artº 32º, nº 1 da CRP. Basta ver, por um lado, que a falta daquele reexame oficioso de modo algum compromete irremediavelmente o direito à liberdade e segurança, como assevera o Requerente, porque não constitui, decididamente, o único meio de acautelar situações de prisão preventiva injustificadas. A omissão do juiz, com efeito, pode ser perfeitamente colmatada, sem dano irreparável ou intolerável para nenhum daqueles direitos e garantias, por requerimento do próprio arguido ou do Ministério Público e o despacho que sobre eles recair (como o despacho de reapreciação oficiosa, naturalmente) ser objecto de recurso, também ele a decidir em espaço de tempo muito curto (cfr. arts. 212º e 219º do CPP). Por outro lado, se é verdade que o artº 27º, nº 3, alínea b) da CRP estipula que cabe à lei ordinária estabelecer os prazos e as condições da prisão preventiva, já vimos que a matriz dessa regulamentação está também ela consagrada no artº
28º seguinte, onde não vemos indícios da condição alegadamente estabelecida no artº 213º do CPP. E de facto, a imposição do reexame periódico não tem a ver directamente com as condições em que a prisão preventiva pode ser decretada e muito menos com as condições em que a medida se extingue, as quais estão arroladas, taxativamente, como não podia deixar de ser, nos arts. 202º e 204º, por um lado, e 214º e
215º, por outro, todos do CPP. Constitui antes mero reflexo da natureza excepcional e subsidiária da prisão preventiva, sem dúvida para que a medida seja revogada ou substituída por outra menos gravosa, sempre que deixem de subsistir ou se alterarem os pressupostos substantivos que a determinaram. Não
é, pois, remédio para o decurso do prazo máximo da sua duração, acautelado como se disse, pelo artº 215º, cuja violação, esta sim, se torna imediatamente visível. A violação do nº 2 do artº 32º pela não consideração da omissão do reexame daqueles pressupostos como fundamento de per si da providência é conclusão que sinceramente não alcançamos, pois não vemos em que é que o entendimento contrário pode colidir com os princípios da celeridade processual e da presunção de inocência do arguido ou traduzir-se em «... antecipação de verdadeiras penas a título de medidas cautelares». Não se discute, nem tem de se discutir aqui, a natureza do prazo fixado no artº 213º do CPP e muito menos que a prisão preventiva não deva estar sujeita a reavaliação oficiosa periódica. A lei obriga a essa reavaliação e a sua infracção constitui obviamente ilegalidade. É questão que temos por assente. Mas, repete-se, nem toda a ilegalidade do regime da prisão preventiva legitima o recurso ao habeas corpus. Só, como atrás se disse, a que traduz ofensa grave e grosseira à liberdade e concretize o abuso de poder. E, quanto a este pressuposto nuclear, o Requerente não intentou sequer demonstrá-lo. Como quer que seja, a subsistência ou a cessação das circunstâncias que justificaram a prisão preventiva ou a atenuação das exigências cautelares que estiveram na sua base, pela densidade dos juízos de facto e de direito que o seu julgamento pressupõe, de modo algum se coadunam com o caracter expedito do habeas corpus, tal como vem de ser caracterizado.[...]”
1.1. Veio então o requerente interpor o presente recurso de constitucionalidade, ao abrigo do artigo 70º, nº 1, alínea b), da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro
(LTC), referindo ter esta decisão do STJ interpretado a norma do artigo 222º, nºs. 1 e 2, alínea c), do CPP, “no sentido de que a omissão do reexame trimestral, previsto no artigo 213º, nº 1 do CPP, não determina a extinção da prisão preventiva, nem integra, por si, fundamento de habeas corpus”. Este entendimento desse trecho do artigo 222º, violaria – na visão do requerente e aqui recorrente – os artigos 27º, nº 1; 28º, nº 2; 31º, nº1 e 32º, nºs. 1 e 2 da CRP.
Admitido o recurso no STJ, os autos foram remetidos a este Tribunal onde o recorrente produziu as respectivas alegações, rematando-as com as seguintes conclusões:
“[...]
1. O art. 213º, nº 1 do CPP impõe ao juiz a obrigação de proceder oficiosamente, de três em três meses, ao reexame da subsistência dos pressupostos que determinaram a aplicação da prisão preventiva.
2. A ausência dessa reapreciação viola aquela disposição legal, pelo que a manutenção da prisão preventiva configura uma situação de prisão ilegal.
3. Tal ilegalidade, por se traduzir numa ofensa grave e grosseira à liberdade, e concretizar uma situação de abuso de poder, integra os fundamentos taxativamente enunciados no nº 2 do art. 222º CPP.
4. Assim, trata-se de uma situação que, de per si, é fundamento para a concessão da providência de habeas corpus.
5. Entendimento diverso, está ferido de inconstitucionalidade material, porquanto viola o disposto nos arts. 27º, nº1; 28º, nº 2; 31º, nº 1 e 32º, nºs.
1 e 2 da Constituição.
6. O direito à liberdade e à segurança são direitos fundamentais (art. 27º, nº 1 CRP), que apenas admitem as restrições constantes no nº 3 do art. 27º da Lei Básica, pelo tempo e nas condições que a lei determinar.
7. Da interpretação conjunta das normas dos arts. 27º, nº 3, e 28º, nº 4 da CRP, concluímos que a reapreciação trimestral dos pressupostos da prisão preventiva, constitui uma verdadeira condição para que aquela medida de coacção se mantenha de forma legal.
8. Quanto ao art. 28º, nº 2 da Constituição, ele afirma o carácter excepcional da prisão preventiva, com os inerentes princípios da subsidiariedade e da precariedade.
9. De acordo com estes princípios fundamentais do processo penal, o juiz tem de avaliar se as medidas de coacção menos gravosas são suficientes para assegurar as exigências cautelares do art. 204º do CPP.
10. Mas quando o juiz se decida pela aplicação da prisão preventiva, tem ainda o
ónus de realizar uma vigilância atenta e constante sobre os pressupostos que determinaram a sua opção se mantém, actuando nas vestes de garante dos direitos fundamentais.
11. Assim, a não observância do disposto no art. 213º do CPP compromete irremediavelmente o núcleo essencial do direito à liberdade e à segurança, sendo a providência de habeas corpus o instrumento jurídico adequado a reagir contra este atropelo e, porventura, o mais expedito.
12. Na verdade, não obstante os arts. 212º e 219º do CPP, conferirem ao arguido a possibilidade de recurso, este nunca será decidido num “espaço de tempo muito curto”, portanto,
13. A providência de habeas corpus é o único meio capaz de responder com a celeridade desejável, pondo término a uma situação de prisão ilegal.
14. De acordo com o art. 31º, nº 1 da CRP, a providência de habeas corpus pode ser usada “como remédio contra o abuso de poder do próprio juiz, em substituição da via normal do recurso” (cfr. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit.)
15. Apesar de nos casos de omissão não ser tão perceptível o abuso de poder, é um facto que o silêncio do Tribunal, sem qualquer motivação consistente, se traduz num puro arbítrio.
16. Por sua vez, o art. 32º, nº 1 da Lei Fundamental, assegura ao arguido uma protecção global e completa dos direitos de defesa, sendo certo que esta garantia pressupõe decisões céleres e eficazes.
17. Com efeito, sendo o recurso um meio processual que se pode prolongar no tempo, a providência de habeas corpus é a que melhor assegura a mencionada celeridade.
18. Finalmente, o art. 32º, nº 2 consagra a presunção de inocência e o direito a um processo célere e justo.
19. No que à primeira tange, consideramos que não se pode manter preso um cidadão presumido inocente, numa situação de incerteza, e com a agravante de não se lhe apresentarem fundamentos para a subsistência da prisão preventiva.
20. Pelo que, a não realização do reexame trimestral apresenta-se-nos como uma ofensa grave à liberdade e à segurança e, como tal é subsumível no art. 222º, nº
2 al. c) do CPP.
21. Por outro lado, o direito a um processo célere e justo funciona como garantia de que os prazos legais para a prática de actos processuais têm de ser observados pelo Tribunal.
22. Assim, se este Órgão de Soberania não tiver praticado tempestivamente o acto devido, nos termos do art. 213º, nº 1 do CPP, e sem que tenha apresentado motivação para tal omissão, verifica-se uma situação de puro arbítrio enquadrável nas hipótese taxativamente previstas no art. 222º do CPP.
23. Desta forma concluímos que o art. 222º, nº 2 al. c) refere-se a “prazos fixados na lei ou por decisão judicial”.
24. No caso em apreço, é a lei, no art. 213º, nº 1 do CPP que fixa o prazo de três meses para a reapreciação dos pressupostos que determinam a aplicação da prisão preventiva, sendo que este reexame culmina num despacho judicial.
25. Caso não seja cumprido o disposto naquele preceito, isto é, não havendo decisão judicial a renovar a prisão preventiva, opera-se a extinção desta e, em consequência a manutenção do arguido [em] cárcere traduz-se numa ilegalidade que, como ficou demonstrado, é subsumível no artº 222º, nº 1 e 2, al. c) do CPP.
26. A decisão recorrida violou, por erro de aplicação e de interpretação, os arts. 27º, nº 1; 28º, nº 2; 31º, nº 1 e 32º, nº 1 e 2, todos da Lei Básica e o art. 22º, nº 1 e nº 2, al. c) e 213º, nº 1, ambos do CPP.[...]”
1.2. O Ministério Público, por sua vez, contra-alegou, defendendo a improcedência do recurso e concluindo o seguinte:
“1. A decisão proferida pelo STJ assume natureza exclusivamente procedimental, não precludindo ao recorrente a colocação, nos autos principais e através dos meios impugnatórios normais, do efeito da nulidade alegadamente cometida, ao não se ter procedido ao reexame oficioso trimestral da situação de prisão preventiva do arguido;
2. Não é inconstitucional a interpretação normativa do artigo 222º, nºs. 1 e 2, alínea c), do CPP que limita o âmbito da providência de habeas corpus aos casos em que se mostram excedidos os prazos máximos de duração de tal medida de coacção, decorrentes do preceituado no artigo 215º do CPP, desvinculando tal causa ou fundamento possível da providência de outras «ilegalidades» ou omissões cometidas, a invocar e valorar perante o tribunal onde pende o processo e através dos normais meios de defesa do arguido. [...]”
II – Fundamentação
2. Decorre a presente providência de «habeas corpus em virtude de prisão ilegal» (modalidade à qual especificamente se referem os artigos 222º e 223º do CPP) da circunstância de não ter sido observado o disposto no artigo 213º, nº 1 do CPP, omitindo-se o reexame trimestral dos pressupostos da aplicação da medida coactiva de prisão preventiva.
Entende o recorrente que tal omissão (o não cumprimento do artigo 213º, nº 1 do CPP) determina a ilegalidade da subsistência dessa prisão preventiva não reavaliada, acarretando a sua extinção (é o que se diz na conclusão 25º das alegações) e abrindo caminho – e é a este particular aspecto do problema que diz respeito o presente recurso – à dedução de providência de habeas corpus fundada na alínea c) do nº 2 do artigo 222º do CPP.
2.1. Tendo isto presente, importa, antes de mais, proceder à delimitação exacta do objecto do recurso.
No requerimento de interposição de fls. 60 indica o recorrente, ao caracterizar a questão de inconstitucionalidade normativa, que a norma-objecto (o artigo
222º, nºs. 1 e 2, alínea c), do CPP) teria sido “interpretada no sentido de que a omissão do reexame trimestral [...], não determina a extinção da prisão preventiva, nem integra, por si, fundamento de habeas corpus”. Esta primeira caracterização empreendida pelo recorrente, porém, no que especificamente respeita ao recurso de constitucionalidade, não espelha com total exactidão, desde logo, a suscitação prévia que havia sido efectuada no requerimento inicial com o qual desencadeou a providência (v. o excerto, transcrito no relatório desta decisão, constante de fls. 5 do processo), e não caracteriza com precisão o pronunciamento que funcionou como ratio decidendi do Acórdão recorrido.
Este, com efeito, restringiu-se à específica questão, de inegável natureza procedimental, como bem a caracteriza o Ministério Público, de interpretar qual o exacto sentido da alínea c) do nº 2 do artigo 222º do CPP e, em função disso, concluir que a situação configurada (a omissão do reexame trimestral) não constituía fundamento de habeas corpus. Disse a tal respeito o STJ o seguinte:
“Não se discute, nem tem de se discutir aqui, a natureza do prazo fixado no artigo 213º do CPP e muito menos que a prisão preventiva não deva estar sujeita a reavaliação oficiosa periódica. A lei obriga a essa reavaliação e a sua infracção constitui obviamente ilegalidade. É questão que temos por assente. Mas, repete-se, nem toda a ilegalidade do regime de prisão preventiva legitima o recurso ao habeas corpus” (fls. 54).
Assim sendo – e, repete-se, foi este pronunciamento que determinou o sentido da decisão recorrida – a questão de inconstitucionalidade normativa objecto do presente recurso não poderá deixar de caracterizar-se como respeitante ao artigo
222º, nºs. 1 e 2, alínea c) do CPP, interpretado no sentido de não abranger, enquanto fundamento de habeas corpus, a situação em que a prisão preventiva subsiste, após omissão do reexame trimestral referido no artigo 213º, nº 1 do CPP. Note-se, aliás, que o recorrente acaba por rematar as respectivas alegações com uma formulação (v. o trecho final de fls. 71) que corresponde, no essencial, a esta caracterização.
Delimitado nestes termos o objecto do recurso, importa partir para a sua apreciação.
2.2. O aparecimento do instituto do habeas corpus no direito português ocorreu com a Constituição de 1911 (artigo 3º, nº 31), que, não obstante o caracterizar através de uma formulação particularmente ampla (“Dar-se-á o habeas corpus sempre que o indivíduo sofrer ou se encontrar em iminente perigo de sofrer violência ou coacção, por ilegalidade ou abuso de poder”), remetia para “lei especial” (jamais publicada na vigência deste texto constitucional) a regulamentação da “extensão desta garantia e do seu processo”. A opção dos constituintes de 1911, ao acolherem uma figura caracteristicamente anglo-saxónica, deveu-se à profunda influência que sobre eles exerceu a Constituição brasileira de 1891 (v. Jorge Miranda, O constitucionalismo liberal luso-brasileiro, Lisboa, 2001, págs. 51/52). No caso do habeas corpus, aliás, essa influência foi ao ponto de a disposição constitucional portuguesa ter transcrito praticamente o texto do § 22º do artigo 72º da Constituição brasileira. Esta, por sua vez, “importara” a figura do habeas corpus da tradição constitucional norte-americana (v. Jorge Miranda, O constitucionalismo..., cit. pág. 48/49; a Constituição americana refere o habeas corpus no artigo 1º, Secção IX, cláusula 2, pressupondo-o como instituto originário do período colonial britânico, entretanto acolhido nas Constituições dos diversos Estados federados e, como tal, subtraído à competência do Congresso, que o não poderia suspender
– e é isso o que diz o artigo 1º, Secção IX, 2º - “excepto quando, em casos de rebelião ou invasão, a segurança pública assim o exigir”; v. Daniel John Meader, Habeas Corpus and Magna Charta, dualism of power and liberty, Virginia – Charlottesville, 1966, págs. 30/35; cfr. William H. Rehnquist, All the laws but one, Nova Iorque, 1988, pág. 36).
A Constituição Política de 1933, logo na primitiva redacção de 11 de Abril de
1933, retomou a referência ao habeas corpus (artigo 8º, § 4º in fine: “Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do habeas corpus, nas condições determinadas em lei especial”; cf., por último, o texto decorrente da revisão constitucional de 1971, resultante da Lei nº 3/71, de 16 de Agosto:
“Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência de habeas corpus”). Foi ainda no primeiro período de vigência do texto constitucional de 1933 que ocorreu a publicação do primeiro diploma regulando a providência do habeas corpus. Tratou-se do Decreto-Lei nº 35.043, de 20 de Outubro de 1945, que estabeleceu um regime diferenciado (que, daí em diante, sempre tem caracterizado a nossa lei) de habeas corpus por detenção ilegal (artigos 2º e 6º do Decreto-lei nº 35.043) e por prisão ilegal (artigo 7º e seguintes do mesmo diploma). Nesta última situação, que é a que aqui está em causa, tornando-se claro o carácter excepcional da providência (artigo 7º, corpo: “Pode usar-se da providência extraordinária de habeas corpus [...]”), estabelecia-se que esta só poderia ter lugar ”quando se [tratasse] de prisão efectiva e actual, ferida de ilegalidade por qualquer dos seguintes motivos: a) ter sido efectuada ou ordenada por quem para tanto não tenha competência legal; b) Ser motivada por facto pelo qual a lei não autoriza a prisão; c) Manter-se além dos prazos legais para a apresentação em juízo e para a formação de culpa; d) Prolongar-se além do tempo fixado por decisão judicial para a duração da pena ou medida de segurança ou da sua prorrogação” [artigo 7º § único; mais tarde, através do Decreto-Lei nº 185/72, de 31 de Maio, este regime (todo o regime do habeas corpus) seria integrado, praticamente nos termos já constantes do Decreto-Lei nº 35.043, no Código de Processo Penal de 1929, nos artigos 315º a 325º].
2.2.1 A natureza extraordinária da providência, que constitui sua característica marcante logo na primeira «lei especial» que a estabeleceu entre nós, foi desde sempre sublinhada pela doutrina. Adriano Moreira, por exemplo, num dos primeiros estudos sobre o instituto, posteriores ao Decreto-Lei nº 35.043, reagindo à tendência daqueles que procuravam “transformar numa medida de carácter geral, o que é excepcional”, sublinhava:
“[...] Tais exageros desconhecem que o habeas corpus não tem nenhuma característica substancial, mas é apenas como que, entre os vários processos normais de tutela da liberdade, um processo de reserva para os casos em que não existe esse processo normal, ou de facto o indivíduo está impossibilitado de a ele recorrer.
[...] O habeas corpus, na sua função normal, não é pois mais do que – um processo destinado a restituir a pessoa, ilegalmente privada da sua liberdade física pela autoridade, à tutela do processo comum. [...]”
[Sobre o Habeas corpus, «Jornal do Fôro», Ano 9º, nºs. 70/73, 1945, págs.
228/229].
No mesmo sentido, nas Lições de Processo Penal de 1956, Cavaleiro de Ferreira afirmava:
“[...] O habeas corpus é uma providência extraordinária destinada, não a reparar os efeitos da ilegalidade da prisão, mas a pôr termo à situação ilícita que é a prisão ilegal. Diz-se providência extraordinária, porque os trâmites processuais e o mecanismo normal do funcionamento da administração devem, por si, ser salvaguarda suficiente para evitar a contingência de prisões ilegais. A frequência do habeas corpus, longe de revelar apenas a sua eficiência, demonstrará sobretudo a insuficiência dos meios normais – da estrutura do processo e da organização da administração – para impedir os abusos de poder. Há-de intervir a providência do habeas corpus, por isso, como remédio excepcional, pois que também só excepcionalmente necessário, quando falham as demais garantias defensivas do direito de liberdade, expressas pela legislação, e escalonadas na tramitação do processo penal.
[...] o habeas corpus [...] pretende tutelar, duma maneira genérica, a liberdade pessoal contra as violações oriundas do abuso de poder. O mal a remediar é, portanto, a privação ilegítima da liberdade; a causa contra a qual se reage, o abuso de poder, consoante o texto constitucional [§ 4º do artigo 8º]”.
[Curso de Processo Penal, vol. II, reimpressão, Lisboa, 1981, págs. 477/478].
Como corolário desta natureza excepcional, firmou-se o entendimento segundo o qual a providência pressupunha a taxatividade dos fundamentos, ou, mais precisamente, a necessária recondução ao que objectivamente expressava qualquer dos fundamentos infraconstitucionais do habeas corpus por prisão ilegal [neste sentido, por exemplo, o Acórdão do STJ de 11 de Abril de 1956 (BMJ nº 56, pág.
202); cf. ainda Arlindo Martins, Habeas Corpus, no BMJ, nº 2, 1947, pág. 92].
Importa sublinhar que este entendimento, que é visto como decorrência do carácter extraordinário da providência e se manifesta, também, através da taxatividade dos fundamentos, não se alterou com a Constituição de 1976 (e com as subsequentes revisões desta), nem com a edição do Código de Processo Penal vigente (aprovado pelo Decreto-Lei nº 78/87, de 17 de Novembro e que entrou em vigor em 1/1/1988).
É assim que, anotando o artigo 31º, nº 1 da CRP (cujo segmento final foi alterado num aspecto sem relevância para a presente situação na revisão de
1997), Gomes Canotilho e Vital Moreira, referem:
“A figura do habeas corpus [...] consiste essencialmente numa providência expedita contra a prisão ou detenção ilegal, sendo, por isso, uma garantia privilegiada do direito à liberdade, garantido nos artigos 27º e 28º [...]. A prisão ou detenção é ilegal quando ocorra fora dos casos previstos no artigo
27º, quando efectuada ou ordenada por autoridade incompetente ou por forma irregular, quando tenham sido ultrapassados os prazos de apresentação ao juiz ou os prazos estabelecidos na lei para a duração da prisão preventiva, ou a duração da pena de prisão a cumprir [...].”
[Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed. revista, Coimbra,
1993, pág. 199]
Da mesma forma, Germano Marques da Silva, sublinhando a natureza extraordinária da providência (“o habeas corpus é uma providência extraordinária para a protecção da liberdade e não um processo de reparação de direitos ofendidos”), que “apenas tem por fim fazer cessar a situação de prisão ilegal”, refere, explicitando o sentido da norma aqui em causa (artigo 222º, nº 2, alínea c) do CPP), quando fala, enquanto fundamento do habeas corpus, em prisão mantida para além dos prazos fixados pela lei, que estes “são os prazos máximos da prisão preventiva (artigo 215º e segs. [do CPP]) e os fixados por decisão judicial são os de duração da pena de prisão fixada na sentença condenatória” (Curso de Processo Penal, II, 2ª ed., Lisboa 1999, págs. 299/301; no mesmo sentido, cfr. Fernando Gonçalves e Manuel João Alves, A Prisão Preventiva e as Restantes Medidas de Coacção. A Providência de Habeas Corpus em virtude de prisão Ilegal, Coimbra, 2003, págs. 166/167).
Este entendimento, nos termos do qual a natureza extraordinária da providência conduz a que os respectivos fundamentos assumam natureza taxativa, constitui uma linha jurisprudencial constante do STJ. Daí que o Acórdão aqui recorrido o afirme inequivocamente na seguinte passagem: “Estamos, pois, perante fundamentos taxativos, como é próprio de uma medida excepcional, que concretiza, de forma aliás esgotante, os comandos constitucionais sobre os pressupostos e condições da prisão preventiva vazados nos artigos 27, nº 3, alínea a) e 28º, nºs. 2, 3 e
4 da CRP, cujo desrespeito é susceptível de patentear arbítrio ou abuso de poder” (transcrição de fls. 51). A título de exemplo – e sublinhando de novo estar em causa um ponto de vista invariavelmente adoptado pelo STJ – podemos citar, nas decisões mais recentes, os Acórdãos de 16-12-2003, 15-01-2004,
29-01-2004, 21-04-2004 e 15-07-2004 (estes Acórdãos estão disponíveis em
www.dgsi.pt/jstj; cfr., no mesmo sentido, a jurisprudência indicada por Maia Gonçalves no Código de Processo Penal anotado, 14ª. ed., Coimbra, 2004, págs.472/482), todos contendo a afirmação expressa da taxatividade dos fundamentos de habeas corpus em situações nas quais se pretendia enquadrar na alínea c), do nº. 2, do artigo 222º., do CPP, diversas vicissitudes da prisão preventiva distintas do esgotamento dos prazos previstos no artigo 215º. do CPP. Aliás, essa é também a posição seguida pelo STJ, não se conhecendo quaisquer variações nesse entendimento, em casos de omissão do reexame oficioso trimestral previsto no artigo 213º., do CPP, casos em tudo idênticos ao ora ajuizado. Com efeito, jamais o STJ aceitou que tal situação pudesse fundar uma providência extraordinária de habeas corpus [v. Acórdãos do STJ de 20-02-1997 (BMJ nº 464, pág. 420) e de 11-03- 2004 (www.dgsi.pt/jstj)].
2.2.2 Esta configuração do instituto, face aos desvalores jurídicos que determinada situação de prisão possa expressar, em termos de restringir a providência àqueles desvalores que claramente correspondam (é esse o verdadeiro sentido da taxatividade) ao teor das três alíneas do nº 2 do artigo 222º do CPP, traduz uma importante marca que quase um século de vivência na ordem jurídica portuguesa conferiu ao habeas corpus.
Já vimos anteriormente que o instituto aparece entre nós por influência mediata de uma instituição caracteristicamente anglo-saxónica (v., sobre a origem do habeas corpus no direito inglês, Hood Phillips, The Constitutional Law of Great Britain and the Commonwealth, Londres, 1952, págs. 543/546; e R. J. Sharpe, The Law of Habeas Corpus, 2ª. ed., Oxford, 1989, págs. 1/19) manifestada através do constitucionalismo republicano brasileiro de 1891. Porém, uma vez recebido nas ordens jurídicas brasileira e portuguesa o habeas corpus seguiu caminhos não coincidentes e assumiu características distintas em ambos os países.
No direito brasileiro, com efeito, manteve o instituto uma apreciável fidelidade
à matriz anglo-saxónica, assumindo presentemente a função de garantia contra a privação da liberdade pessoal, o que, no âmbito do processo penal, o fez actuar em regime de concurso e mesmo de sobreposição com os recursos penais ordinários e assentar em fundamentos muito amplos, praticamente coincidentes com todos aqueles motivos que, antes e depois da condenação, permitiriam atacar a privação de liberdade através do recurso (v. Diaulas Costa Ribeiro, Habeas-corpus no Brasil. Casos práticos, «Direito e Justiça», vol. XI, tomo 1,
1997, págs. 243/281, especialmente págs. 245/246). Tal conformação do habeas corpus, corresponde, no essencial, ao papel do instituto no direito anglo-saxónico, onde, nas palavras de uma decisão histórica, precursora do Habeas Corpus Act de 1979, o Bushell’s case de 1670, constitui “o remédio mais usual através do qual alguém é restituído à liberdade da qual contra a lei fora privado” (“the most usual remedy by wich a man is restored again to his liberty if he has been against law deprived of it”; v. R. J. Sharpe, ob. cit., pág. 60 e nota 203). Daí que os fundamentos de desencadeamento da providência, do denominado “mandado de habeas corpus” (Writ of habeas corpus), nos casos de privação da liberdade ocorridos dentro do processo-crime, acabem por coincidir, tendencialmente pelo menos, com os erros de julgamento que durante o processo determinariam a jurisdicional review. Esta é a prática norte-americana, onde o habeas corpus é usado como meio de revisão das sentenças dos tribunais federais, baseada na violação de garantias constitucionais (v. Laurence Tribe, American Constitucional Law, Vol. I, 3ª ed., Nova Iorque, 2000, págs. 512/518; v., expressando pontos de vista opostos quanto à prática do Supremo Tribunal Federal norte-americano em matéria de habeas corpus, Kenneth W. Starr, First Among Equals. The Supreme Court in American Life, Nova Iorque, 2002, págs.
187/188, e Martin Garbus, Courting Disaster. The Supreme Court and the Unmaking of American Law, Nova Iorque, 2002, págs. 57/58). No direito inglês, se é certo ser menos vasto, em confronto com o direito norte-americano, o campo de aplicação do procedimento de habeas corpus relativamente ao processo-crime, designadamente enquanto forma de recurso de condenações penais (“Os tribunais ingleses têm uma decidida aversão ao emprego do habeas corpus como recurso de condenações”, R. J. Sharpe, ob. cit., pág. 145), não deixamos, no entanto, de estar perante um instituto com uma vasta aplicação, que funciona frequentemente como meio de apreciação judicial dos procedimentos investigatórios anteriores ao julgamento (concretamente da detenção preventiva), como forma de controlo de alguns procedimentos do próprio julgamento e de controlo judicial da execução da sentença condenatória privativa da liberdade (cfr. R. J. Sharpe, ob. cit. , págs. 128/155).
No direito português, a evolução do instituto apresentou características substancialmente distintas do direito anglo-saxónico e brasileiro. Entre nós, o habeas corpus assumiu, nos termos anteriormente indicados, a natureza de providência excepcional, visando, no que aqui interessa, responder com urgência a situações de prisão manifestamente ilegal, decorrentes de uma violação
“directa, imediata, patente e grosseira” (decisão recorrida a fls. 50) de pressupostos tabelados na lei adjectiva. Daí que a articulação da providência com a marcha do processo-crime tenha sido sempre vista restritivamente, mesmo quando se aceite o habeas corpus em situações nas quais o respectivo fundamento poderia ser feito valer através de recurso ordinário. Não obstante esta visão tendencialmente restritiva da doutrina e jurisprudência nacionais, há que reconhecer, numa comparação do nosso sistema, não relativamente aos sistemas anglo-saxónicos (ou por este directamente influenciados), mas a sistemas de tipo continental, que o habeas corpus protagoniza na ordem jurídica portuguesa um papel mais relevante do que noutros sistemas continentais onde se encontra igualmente previsto.
O exemplo que mais claramente ilustra esta afirmação encontramo-lo, porventura, em Espanha, cujo texto constitucional de 1978 diz que haverá habeas corpus “para obtenção da imediata colocação à disposição da autoridade judicial de qualquer pessoa detida ilegalmente” (artigo 17º, nº 4 da Constituição Espanhola), e onde este instituto, não obstante um diploma de 1984 o regulamentar (Ley Orgánica
6/1984, de 24 de Maio), constitui um meio processual com reduzida aplicação (v. Peneda Rodríguez, J. González Rivas, Martínez de Velasco e Gil Ibañez, Constitución Española, 2ª ed., Madrid, 1993, págs. 83 e 86). Em rigor, o habeas corpus refere-se em Espanha a situações de detenção ilegal, porque não apreciadas judicialmente; quanto à prisão preventiva violadora de garantias constitucionais, o meio processual é, por excelência, o «recurso de amparo» (v. Inmaculada Sánchez Barrios, La Prisión Provisional en España. Especial Referencia a su Procedimiento, in «Liber Discipulorum para Jorge de Figueiredo Dias», Coimbra, 2003, pág. 1517).
Pode assim assumir-se como conclusão que o sistema português de habeas corpus, com as características anteriormente referidas, apresenta algum grau de especificidade, o que lhe confere uma natureza passível de ser qualificada como mista, posicionando-se a meio caminho entre os sistemas onde esse instituto apresenta grande campo de intervenção e aqueles onde a sua relevância é escassa.
2.2.3. A decisão recorrida situa-se numa linha interpretativa, uniforme na jurisprudência do STJ, que se prende com o aludido carácter específico do habeas corpus no nosso sistema processual. Nela está em causa a afirmação da taxatividade dos fundamentos, entendida como excluindo do domínio de aplicação do artigo 222º, nº 2, alínea c) do CPP, outros desvalores legais referentes a prazos que, embora dizendo respeito ao regime processual da prisão preventiva, não se traduzem no prolongamento desta para além dos períodos de duração máxima previstos no artigo 215º do CPP.
Propõe o recorrente, como leitura constitucionalmente exigida da norma-objecto, aquela que reconduz a garantia do habeas corpus contida no artigo 31º, nº 1 da CRP, ao trecho do nº 3 do artigo 27º, que exceptua da garantia do direito à liberdade a privação desta, no caso de prisão preventiva, apenas “pelo tempo e nas condições que a lei determina”. Ora, porque uma das condições estabelecidas pela lei consiste, nos termos do artigo 213º do CPP, na revisão oficiosa trimestral, essa garantia do habeas corpus, enquanto mecanismo adjectivo de efectivação desse direito à liberdade, estender-se-ia a todas as condições legais infraconstitucionais respeitantes à referida medida de coacção.
O STJ entende, por sua vez, que a projecção da norma constitucional contendo a garantia do habeas corpus deve efectuar-se, no que toca às situações decorrentes de prisão preventiva, no quadro do regime do artigo 28º da CRP, porque especificamente respeitante àquele instituto, concretamente na parte em que este dispõe quanto a prazos, como sucede no nº 1 (prazo de 48 horas para apreciação judicial da detenção) e no nº 4 (obrigação da lei limitar no tempo a prisão preventiva, sujeitando-a a prazos). Daí que o sentido da referência à prisão que perdure “para além dos prazos fixados na lei”, signifique, neste entendimento, a abertura da via do habeas corpus, em função do comando constitucional que determina a limitação no tempo da prisão preventiva (artigo 28º, nº 4 da CRP) tão só às situações de ultrapassagem desses prazos, que são os constantes do artigo 215º do CPP [note-se que para o prazo do nº 1 do artigo 28º a tutela através do habeas corpus está prevista no artigo 220º, nº 1, alínea a), do CPP].
2.2.4. No Acórdão nº 370/2000, qualificou este Tribunal o habeas corpus como
“providência de carácter excepcional destinada a proteger a liberdade individual nos casos em que não haja outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade” e, pressupondo tal excepcionalidade, entendeu também o Tribunal Constitucional, desta feita no Acórdão nº 423/2003, que o discurso argumentativo que reconduz os fundamentos do habeas corpus aos casos em que “a ilegalidade seja evidente e se case com a gravidade e o carácter grosseiro do erro”, traduz uma perspectiva aceitável do ponto de vista da sua conformidade constitucional
[estas decisões estão publicadas no Diário da República – II Série, respectivamente de 18-10-2000 (págs. 16787/16790) e de 15-04-2004 (págs.
5887/5891) e ambas podem ser consultadas em
www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/ ].
Este entendimento – que o Tribunal ora confirma – tem que ver com a caracterização anteriormente feita da especificidade do habeas corpus no direito português e corresponde inteiramente à perspectiva da decisão recorrida.
Com efeito, não viola a garantia constitucional decorrente do artigo 31º, nº 1 da CRP (“Haverá habeas corpus contra o abuso de poder, por virtude de prisão
[...] ilegal [...]”) um entendimento que, baseando-se no carácter excepcional do habeas corpus, não inclui na respectiva tutela, quanto à prisão preventiva, toda e qualquer violação de normas atinentes ao seu regime legal, designadamente do artigo 213º, nº 1, do CPP, restringindo-a a casos particularmente qualificados
(como é seguramente o da ultrapassagem do prazo máximo da prisão preventiva) e não conferindo tal tutela a outro tipo de situações, relativamente às quais o interessado dispõe – e aqui dispôs – de outros meios processuais aptos a reagir ao desvalor decorrente da violação da norma.
Na verdade, poderia o recorrente solicitar, nos termos do artigo 212º, nº 1 do CPC (cuja aplicabilidade às situações de prisão preventiva foi admitida pelo Acórdão de fixação de jurisprudência nº 3/96, de 24 de Janeiro – in DR, Iª Série
– A, de 14 de Março de 1996) a imediata revogação daquela medida de coacção.
Assenta esta perspectiva na recondução do âmbito da garantia constitucional do habeas corpus à tutela daqueles valores que a Constituição destaca na “dimensão processual da prisão preventiva”, contida no artigo 28º (v. Gomes Canotilho e Vital Moreira, ob. cit., pág. 189), valores esses traduzidos, no que apresenta relevância no âmbito deste recurso, na afirmação do carácter temporalmente limitado da prisão preventiva, através da obrigação de o legislador a sujeitar a prazos (artigo 28º, nº 4 da CRP). São estes prazos os do artigo 215º do CPP, e é a sua ultrapassagem que justifica o recurso a uma providência com as particulares características do habeas corpus.
Outros requisitos legais/procedimentais regulam na lei ordinária a medida de prisão preventiva, contando-se entre estes o reexame periódico trimestral. O entendimento de que a sua inobservância, implicando seguramente um desvalor legal, não tem que constituir fundamento de uma providência de habeas corpus, não se revela pois desconforme com a Constituição.
III – Decisão
3. Assim, pelo exposto, decide-se negar provimento ao recurso confirmando a decisão recorrida no que à questão de constitucionalidade diz respeito.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 2 de Fevereiro de 2005
Rui Manuel Moura Ramos Maria Helena Brito Maria João Antunes Carlos Pamplona de Oliveira – com declaração em anexo. Artur Maurício
DECLARAÇÃO DE VOTO
Não acompanho o presente acórdão. A natureza excepcional da prisão preventiva, condicionada a verificação judicial, actualizada e periódica, conduz a que não possa manter-se a partir do momento em que cessou a validade do despacho que a determina. Acresce que não é razoável exigir ao arguido preso que provoque ele próprio uma decisão que lhe é desfavorável, pois se destina a validar a prisão a que se acha sujeito. Entendo, portanto, que, no presente caso, o requerente não dispôs de outro meio, que não o habeas corpus, para fazer valer a sua pretensão. Ora, a taxatividade dos fundamentos do habeas corpus não pode sobrepor-se ao fim
último do instituto, que é o de, em todos os casos em que tal se verifique, obstar ao abuso de poder por virtude de prisão ou detenção ilegal (artigo 31º n.
1 da Constituição).
Pamplona de Oliveira
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050064.html ]