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Processo n.º 869/04
2.ª Secção Relator: Conselheiro Mário Torres
Acordam na 2.ª Secção do Tribunal Constitucional,
1. Relatório
A. interpôs recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, aprovada pela Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e alterada, por último, pela Lei n.º 13-A/98, de 26 de Fevereiro
(LTC), contra o acórdão da Secção de Contencioso Tributário do Supremo Tribunal Administrativo (STA), de 16 de Junho de 2004, pretendendo ver apreciada a inconstitucionalidade – por violação dos artigos 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa (CRP) e dos princípios constitucionais da igualdade, da progressividade, da justiça, da generalidade, da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento líquido e da segurança jurídica, na modalidade da tutela da confiança – da norma constante do artigo 53.º, n.º 5, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares (CIRS), questão que teria sido suscitada quer na impugnação judicial da liquidação fiscal quer nas alegações do recurso para o STA.
O acórdão recorrido – que negou provimento ao recurso interposto da sentença do Tribunal Tributário de 1.ª Instância de Lisboa, de 3 de Outubro de 2003, que julgara improcedente a impugnação judicial da liquidação de IRS relativa ao ano fiscal de 2001 – remete para a fundamentação desenvolvida no acórdão do STA, de 31 de Março de 2004, processo n.º 2059/03, entretanto reiterada nos acórdãos de 12 de Maio de 2004, proferidos nos processos n.ºs
2029/03, 2030/03 e 2062/03.
No referido acórdão de 31 de Março de 2004, o STA expendeu o seguinte:
“3.1. Embora na petição inicial não se identifique, pelo ano a que respeita, o acto de liquidação impugnado, não há dúvidas, face ao estabelecido na sentença, que se trata da liquidação do IRS relativo ao ano de 2001. E ainda que na mesma peça processual se não aponte como violado qualquer preceito da Constituição, mas apenas princípios, cuja sede se não indica, não há, igualmente, dúvidas de que a norma constitucional invocada pelo recorrente
(agora, nas alegações de recurso, expressamente) é o artigo 104.º, n.º 1, do diploma fundamental, que presentemente (após a revisão de 1982) tem a redacção seguinte: «O imposto sobre o rendimento pessoal visa a diminuição das desigualdades e será único e progressivo, tendo em conta as necessidades e os rendimentos do agregado familiar». Não será despiciendo convocar, ainda, o n.º 1 do artigo 103.º da Constituição, designadamente, no segmento em que determina que «o sistema fiscal visa (...) uma repartição justa dos rendimentos e da riqueza».
É neste conjunto normativo que reside, ou de que se extrai, a maioria dos princípios constitucionais a que alude o recorrente, designadamente, os da igualdade, da progressividade, da justiça, da generalidade, da capacidade contributiva e da tributação pelo rendimento líquido. Quanto ao artigo 53.º do CIRS, que é a norma acusada de inconstitucionalidade material, dispunha, originariamente (tinha, então, o número 51.º), que «as pensões de valor anual igual ou inferior a 400 000$00 são deduzidas pela totalidade do seu quantitativo»; e que «a dedução relativa às pensões de valor anual superior ao referido (…) é igual àquele montante acrescido de metade da parte que o excede, até ao montante de 1 000 000$00».
Sucessivas alterações foram sendo introduzidas na norma ao longo do tempo, até se chegar à versão que aqui nos importa [a dada pelo Decreto-Lei n.º
198/2001, de 3 de Julho], dispondo o n.º 5 do artigo que «para rendimentos anuais, por titular, de valor anual superior ao vencimento base anualizado do cargo de primeiro-ministro, a dedução é igual ao valor referido nos n.ºs 1 ou 3, consoante os casos, abatido, até à sua concorrência, da parte que excede aquele vencimento».
Assim, por força desta norma, e porque o agregado do recorrente obteve, em 2001, um rendimento proveniente de pensões no montante de 104 155,77
€, a dedução específica se quedou em 383,77 €.
Ora, diz o recorrente, a dedução assim limitada (ou, até, em certos e hipotéticos casos, excluída), aos rendimentos provenientes de pensões, contradiz o n.º 1 do artigo 53.º (que manda deduzir a totalidade dos rendimentos com esta origem, até certo montante destas), provoca uma desigualdade fiscal horizontal, tornando incoerente o sistema, e violando os princípios já apontados, além do da segurança jurídica, na modalidade do princípio da confiança.
(...)
3.2. Sabe-se que os rendimentos auferidos a título de pensões não eram, antes do CIRS, tributados em qualquer cédula parcelar, relevando, só, em sede de imposto complementar. Essa, reconhecidamente, a razão por que o legislador do CIRS se preocupou com aligeirar o impacto da tributação que pela primeira vez introduzia, estabelecendo um regime próprio, favorável, de dedução específica para os rendimentos oriundos de pensões. Assim, na versão original do CIRS, os rendimentos do trabalho dependente, por exemplo, gozavam de uma dedução específica de 65% do seu valor, com o limite de
250 000$00, ou com o limite das contribuições obrigatórias para a protecção social, se superior. Enquanto que aos rendimentos oriundos de pensões, se não superiores a 400 000$00, deduzia-se a totalidade, e aos superiores a esse montante eram deduzidos os mesmos 400 000$00, mas acrescidos de metade do excedente, com o limite de 1 000 000$00. Porém, este tratamento benevolente dado aos rendimentos provenientes de pensões não correspondia a qualquer imperativo constitucional, que exigisse ao legislador ordinário o emprego de mais suaves maneiras face a rendimentos com aquela origem, do que as usadas perante rendimentos de outra qualquer fonte. Tratou-se, apenas, de uma opção do legislador ordinário, visando, como se disse já, reduzir o sobressalto resultante da introdução da tributação sobre rendimentos com esta origem. Ora, se a especial atenção que ao legislador de 1988 mereceram os rendimentos provenientes de pensões, no tocante à dedução específica, não é o resultado de algum ditame constitucional, também não é a Constituição que obsta a que o legislador ordinário adopte, adiante, opções diferentes, designadamente, deixando de dar àqueles rendimentos tratamento preferencial, designadamente, no que concerne à dedução específica a atender.
3.3. As deduções específicas, como a própria designação aponta, são consagradas pelo legislador tendo em atenção a sua afinidade com o rendimento a que correspondem. Dito de outro modo, através da dedução específica visa-se considerar, excluindo-as da tributação, as despesas que, ao menos presumivelmente, o titular do rendimento se viu obrigado a fazer para o obter. Assim se concretiza o princípio do rendimento líquido, que manda tributar, não todo o rendimento, mas só aquele que resta depois de satisfeitos os encargos indispensáveis para o conseguir. Mas, precisamente para que se respeite o princípio do rendimento líquido, não há que estabelecer deduções específicas iguais para todos os rendimentos, independentemente da sua origem, pois não são necessariamente equivalentes as despesas a fazer para os angariar. [Idealmente, a dedução específica deve coincidir com as despesas que o sujeito passivo comprove, e só assim não será pela difícil praticabilidade de uma tal solução.] Por exemplo, a regra é que os trabalhadores por conta de outrem suportem menos encargos para obter o rendimento do seu trabalho do que os trabalhadores por conta própria, pois no caso daqueles grande parte dos gastos será feita pela entidade empregadora, enquanto que os trabalhadores independentes os suportarão sozinhos. Por isso, tem-se entendido que a dedução específica, no caso dos rendimentos do trabalho por conta própria, merece ser superior à que está fixada para os rendimentos provenientes do trabalho assalariado, o que não ofende nenhum princípio constitucional. Ora, no caso dos rendimentos provenientes de pensões, não se vislumbra a que despesas dê necessariamente lugar a sua obtenção. Ao menos, essas despesas, a existirem, sempre serão diminutas, face àquelas que há que fazer para granjear rendimentos da maioria das categorias sobre que incide o IRS. Nesta perspectiva, bem pode dizer-se que a consagração de uma dedução específica atinente aos rendimentos com origem em pensões é, antes, um tratamento favorável, relativamente aos rendimentos de categorias que importem custos. Por exemplo, relativamente à dedução admitida aos rendimentos do trabalho por conta de outrem, a qual, sendo fixa, é, essa sim, susceptível de
«gerar situações de desigualdade fiscal horizontal», como nota André Salgado de Matos, a pág. 254 do Código do Imposto do Rendimento das Pessoas Singulares
(IRS) Anotado, citando Saldanha Sanches, Manual de Direito Fiscal, págs.
207-208. Nem haverá impedimento constitucional a que se tribute o rendimento bruto, quando este coincide com o líquido, isto é, nos casos em que a sua obtenção não implicou a realização de qualquer despesa. Razão por que não é o princípio do rendimento líquido a impedir que o legislador ordinário estabeleça, relativamente aos rendimentos com esta origem, um regime de dedução específica diferente, porventura, quantitativamente menos favorável do que o adoptado para rendimentos de outras fontes.
3.4. Também o princípio da igualdade não é beliscado por uma opção legislativa que atenda a deduções específicas diferentes, consoante a origem dos rendimentos.
Numa formulação sintética, pode dizer-se que este princípio impõe que se sujeitem a igual imposto todos aqueles que tenham igual capacidade contributiva.
É intuitivo, e vem sendo repetido até à exaustão, pela doutrina e pela jurisprudência, que o princípio da igualdade implica que se dê tratamento desigual àquilo que não é igual. A desigualdade de tratamento deve, porém, ter um fundamento material, não podendo surgir sem razão, ou arbitrariamente; e devem ser tratados de igual modo todos aqueles relativamente a quem valha esse fundamento. O princípio da igualdade concretiza-se na generalidade do imposto, ou seja, no seu carácter universal, e na uniformidade do critério legal. O critério para aferir da igualdade é, naturalmente, o da capacidade contributiva, medida pelo rendimento auferido, depois de subtraída a despesa necessária para o conseguir, com o que se chega ao rendimento líquido. Em sentido estrito, nisto se esgota o princípio do rendimento líquido. Mas o mesmo princípio, em sentido alargado, impõe, ainda, que se tribute só o rendimento disponível, isto é, que ao rendimento líquido, apurado do modo que se disse, se retirem os encargos de subsistência do agregado familiar, ou seja, as despesas indispensáveis para proporcionar um nível de vida compatível com a dignidade da pessoa humana. Na verdade, a capacidade para contribuir para as necessidades financeiras colectivas só começa a partir do mínimo de subsistência, que deve ser excluído de toda a tributação. Mas, para alcançar este resultado – a salvaguarda do mínimo de subsistência digna –, a dedução específica não é o único meio. Claramente, contribuem também para o atingir, além de outros, as demais deduções e abatimentos, e as taxas do imposto. Aliás, o princípio da capacidade contributiva, no sentido estrito que se apontou, isto é, encarado só como exigência de subtracção à matéria colectável das despesas indispensáveis para o alcançar, é indiferente a esta questão, só o não sendo naquela concepção lata, que impõe a extracção do mínimo de subsistência. Ora, a partir de um montante de rendimentos que, entre nós, no tempo e modo que vivemos, é, patentemente, muito superior à média do que auferem a maioria dos agregados familiares, aferindo-se, de resto, pelo vencimento anualizado atribuído a um dos cargos cimeiros do Estado, a consideração de uma dedução específica mais reduzida do que a atendida em outros casos, não fere o princípio da capacidade contributiva, ou o do rendimento líquido, pois não é susceptível de deixar o sujeito passivo desprovido do necessário à sua subsistência e do seu agregado familiar. Face a rendimentos de montante relativamente elevado, não haverá, constitucionalmente, que acautelar o mínimo de subsistência, através da dedução específica, pois esse mínimo continua garantido pela abundância dos rendimentos sobejantes, mesmo depois de tributados pela sua totalidade. Nem ofende o princípio da igualdade, ou o da justiça, a circunstância de rendimentos de igual montante, se resultantes do trabalho, beneficiarem de dedução específica superior: como se viu, não há igualdade entre os gastos suportados por um trabalhador no activo para obter os seus ganhos e os que se impõem a um pensionista para auferir a sua pensão. Quanto ao princípio da generalidade, é de observar, como se faz na sentença recorrida, que a norma em apreço se aplica a «todos aqueles que se integram no Tatbestand da norma», e que «não é por se aplicar apenas a uma determinada universalidade, cuidando de regular juridicamente um subconjunto de sujeitos, que a norma perde os requisitos da generalidade e da abstracção». Nem ele seria ofendido só porque, como afirma o recorrente, será fiscalmente
«mais gravoso ser reformado do que estar no activo», uma vez que a todos os que auferem rendimentos de pensões a norma se aplica. Para além do que o gravame a que se refere o recorrente fica por demonstrar.
3.5. O princípio da progressividade é, como se disse, uma concretização do princípio da igualdade, que se extrai, desde logo, do artigo 106.º, n.º 1, da Constituição. Visando uma repartição justa do rendimento, não é, também, afectado pela magnitude da dimensão específica atendida quanto a um rendimento parcelar ou, no limite, pela sua eliminação. Em sede de rendimentos pessoais, como é o caso daqueles que alveja o IRS, a progressividade só pode aferir-se em vista da carga fiscal que, no conjunto, incide sobre todo o rendimento do agregado familiar. No nosso caso, o que está em jogo é, apenas, o rendimento proveniente de pensões. Não é o modo como o rendimento desta origem é isoladamente tratado que pode, só por si, afectar o princípio da proporcionalidade. Acresce que este princípio se realiza tributando mais pesadamente os rendimentos relativamente elevados, e mais levemente os relativamente baixos. Nesta medida,
é de reconhecer que o n.º 5 do artigo 53.º do CIRS, isoladamente considerado, em lugar de contrariar a progressividade, persegue-a.
3.6. Entre as disposições dos artigos 1.º e 53.º, n.º 5, do CIRS, aponta o recorrente uma contradição: enquanto que o artigo 1.º estabelece que a tributação incide sobre o rendimento líquido, e não sobre o bruto, o n.º 5 do artigo 53.º reduz progressivamente a dedução específica, podendo, mesmo, bani-la de todo. Aqui vislumbra o recorrente uma violação do princípio da coerência do sistema fiscal. Mais do que um princípio autónomo, aquilo que a doutrina designa por «princípio da coerência do sistema» constitui um mero índice de violação de outro princípio. De todo o modo, o princípio da coerência refere-se a um universo normativo mais alargado, dificilmente se podendo dizer que é ofendido de toda a vez que duas normas inseridas no mesmo diploma legal aparentam dirigir-se, cada uma, em sentido diverso do da outra. Os objectivos do legislador atingem-se, algumas vezes, através da consagração de dispositivos de sinal aparentemente contrário, ou porque um deles limita o outro, ou porque cada um visa situações e resultados diferentes, ou porque um excepciona o outro. A coerência que importa preservar é a do conjunto, de pouco servindo o cotejo norma a norma com cada uma das suas conviventes. Ora, o que o recorrente faz não é imputar uma incoerência ao sistema, mas, apenas, afirmar que o conteúdo de uma norma não parece percorrer o mesmo caminho que o teor de outra aponta. Mas não existe, entre aqueles artigos 1.º e 53.º, n.º 5, qualquer contradição: o artigo 1.º limita-se a estabelecer que o IRS incide sobre o valor dos rendimentos das várias categorias que indica, «depois de efectuadas as correspondentes deduções e abatimentos». Deste modo, quando, nos artigos seguintes, o mesmo legislador fixa as deduções e abatimentos para cada uma daquelas categorias, não está a contradizer o que dispôs no artigo 1.º, mas a concretizá-lo.
3.7. No expressivo dizer de Casalta Nabais, a pág. 145 da 2.ª edição do seu Direito Fiscal, só merece tutela a confiança «legítima, fundada e solidificada» dos contribuintes. Vem isto a propósito da pretensa violação do princípio da segurança jurídica, na vertente do princípio da confiança, que o recorrente afirma resultar da introdução no texto da lei do n.º 5 do artigo 53.º do CIRS. Face às intenções manifestadas pelo legislador do CIRS, apregoadas no preâmbulo do diploma, diz o recorrente, não podia contar senão com um tratamento mais favorável para as pensões. A introdução daquele n.º 5, aliás, sem qualquer justificação material, afectou em acentuada medida a confiança por si depositada
«na continuidade de uma relação jurídica constituída». Ora, por um lado, as intenções do legislador, manifestadas na parte preambular de um diploma, não assumem força igual à da normatividade nele contida. O que significa que não é o preâmbulo do CIRS terreno firme o bastante para que nele possa ancorar-se uma confiança «legítima, fundada e solidificada» em que, no futuro, não haverá alteração do normativo que regula uma dada situação. Para que exista violação do princípio da confiança é preciso que o legislador tenha regulado as coisas de tal modo que levou os particulares a dispor de certo modo as suas vidas, alterando depois, sem razão estrénua, a disciplina que primeiro consagrara, traindo a confiança dos cidadãos (por si criada), que razoavelmente contavam com uma certa longevidade do regime consagrado, e assim viram destruídas as suas expectativas. Não há, nas normas que inicialmente integravam o CIRS, nada que faça seriamente crer que o regime da dedução específica em causa iria manter-se ao longo de todo o tempo. A própria novidade do CIRS valeria, para um contribuinte avisado, como índice do contrário, sabido como é que as leis novas são sujeitas a testes, acontecendo, com frequência, que, ou porque se revelem ineficazes, ou inconvenientes, ou, até, por produzirem efeitos perversos, são alteradas – sem falar nas mudanças que o decurso do tempo, a alteração das circunstâncias, a melhor ponderação das coisas, ou as diferentes opções do legislador, vêm a provocar. Tudo para dizer que se não vê que o legislador de 1988 haja criado alguma expectativa que tenha traído com a introdução do n.° 5 do artigo 53.° do CIRS, sendo certo que não basta, para que haja violação do princípio da confiança, a mera crença, desenraizada, na imutabilidade das leis que vigoram num dado momento histórico. O que aconteceu foi, apenas, que «o legislador ordinário usou, de forma que não se pode considerar intolerável, a sua liberdade de conformação», conforme observa o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto junto deste Tribunal, no douto parecer que emitiu. Improcedem, pelo exposto, todas as conclusões das alegações de recurso, não se tendo por verificada a inconstitucionalidade material imputada pelo recorrente à norma aplicada pelo acto tributário de liquidação cuja impugnação judicial a sentença recorrida julgou improcedente.”
Nas alegações apresentadas neste Tribunal Constitucional, o recorrente formulou as seguintes conclusões:
“Com a entrada em vigor do Código do IRS, o legislador criou uma discriminação qualitativa entre alguns tipos de rendimentos, entre eles os rendimentos da Categoria A e da Categoria H;
Pretendendo o legislador, à data, tributar de uma forma mais favorável os rendimentos derivados de pensões;
Tal foi claramente manifestado pelo legislador no preâmbulo do decreto-lei que aprovou o Código do IRS, bem como no artigo 51.º do Código do IRS na redacção que perdurou de 1989 a 1994.
Contudo, apesar dessa ser a intenção do legislador, a verdade é que, pela introdução do n.º 5 do artigo 53.º do Código do IRS, alguns rendimentos de pensões, os abrangidos por esta norma, passaram a ser tributadas de uma forma mais gravosa do que aquela que teria sido as expectativas criadas aos pensionistas, bem como ao ora recorrente.
Desta forma, violam-se alguns dos mais elementares princípios constitucionais do direito fiscal:
Assim, é violado o princípio da progressividade do Código do IRS, uma vez que a progressividade deve ser atingida através de taxas progressivas e não pela eliminação da dedução específica;
É violado o princípio da capacidade contributiva, já que com a eliminação/redução da dedução específica deixa de se ter em conta o mínimo de encargos necessários à obtenção dos rendimentos do sujeito passivo. Porque é que não se passa o mesmo na Categoria A e B?
É, ainda, violado o princípio da igualdade, uma vez que um sujeito passivo com igual capacidade contributiva no activo e na reforma têm uma tributação completamente diferente, sendo tributado mais gravosamente na reforma que no activo, quando era precisamente o contrário que o legislador pretendia;
Mais, viola-se o princípio da tributação pelo rendimento líquido, uma vez que nos casos em que existe uma eliminação, ou mesmo nos que existe apenas uma redução, da dedução específica, a taxa incide directamente sobre o rendimento bruto, tal não foi a intenção do legislador;
O único caso em que essa foi a intenção do legislador foi os rendimentos de capitais, o que se compreende dada a natureza dos mesmos, mas por esse facto, para a maioria desses rendimentos o legislador criou taxas de tributação liberatórias, que nunca, por nunca ser, atingem os 40%;
Contudo, um pensionista que pare de ter direito à dedução específica, por aplicação do n.º 5 do artigo 53.º do Código do IRS, vê os seus rendimentos serem sujeitos a uma taxa de tributação de 40%. Onde é que está a discriminação qualitativa que o legislador quis criar para esta categoria de rendimentos?
Onde é que está o tratamento preferencial que o legislador pretendeu dar a esta categoria?
Mas mais, esta norma cria uma incoerência no sistema fiscal português, uma vez que o artigo 1.º do Código do IRS dispõe que os rendimentos sejam sujeitos à taxa depois de se proceder à dedução específica e o n.º 5 do artigo 53.º do Código do IRS dispõe que se aplique a taxa sem que primeiro se proceda à realização da dedução específica, sem que qualquer razão objectiva esteja subjacente a este normativo.
Para finalizar, o n.º 5 do artigo 53.º do Código do IRS viola o princípio da segurança jurídica, na modalidade do princípio da confiança;
Ora, foi criada a convicção ao recorrente, e aos pensionistas em geral, que aquando da reforma ficariam sujeitos a um regime de tributação mais favorável do que aquele a que se encontravam sujeitos, enquanto sujeitos passivos enquadrados na Categoria A;
Diga-se, expectativa essa, criada pelo próprio legislador – quer no preâmbulo do decreto-lei que aprovou o Código do IRS quer no próprio artigo 51.º do Código do IRS na sua versão de 1989 até 1994, pelo que consubstancia um direito adquirido ou a aquisição de um verdadeiro direito subjectivo público, oponível ao próprio legislador, que se encontra assim assente no Estado de direito democrático;
Face ao exposto, conclui-se que a norma em apreço viola os mais elementares princípios de direito fiscal constitucional, sendo por isso materialmente inconstitucional.
Pelo que, face ao exposto, torna-se imperioso anular a liquidação de IRS do recorrente, pelo facto de a norma aplicável e que conduziu à presente liquidação ser ilegal por inconstitucional.”
Pela recorrida Fazenda Pública não foram apresentadas contra-alegações.
Tudo visto, cumpre apreciar e decidir.
2. Fundamentação
A questão que constitui objecto do presente recurso foi recentemente apreciada por esta Secção, que, pelo Acórdão n.º 173/2005, processo n.º 722/04, de 31 de Março de 2005, não julgou inconstitucional a norma questionada.
Esse juízo de não inconstitucionalidade foi fundamentado nas seguintes considerações:
“3. O presente recurso foi interposto ao abrigo do artigo 70.º, n.º 1, alínea b), da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, e com ele o recorrente pretende ver apreciada a constitucionalidade da norma do artigo 53.º, n.º 5, do Código do IRS. Era, com efeito, a seguinte a redacção desse artigo 53.º, na versão em causa (resultante do Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho):
«Artigo 53.º Pensões
1 – Os rendimentos da categoria H de valor anual igual ou inferior a 1 523 000$
(€ 7596,69), por cada titular que os tenha auferido, são deduzidos pela totalidade do seu quantitativo.
2 – Se o rendimento anual, por titular, for superior ao valor referido no número anterior, a dedução é igual ao montante nele fixado.
3 – O limite previsto no n.º 1 é elevado em 30% quando se trate de titular cujo grau de invalidez permanente, devidamente comprovado pela entidade competente, seja igual ou superior a 60%.
4 – Aos rendimentos brutos da categoria H são deduzidas as quotizações sindicais, na parte em que não constituam contrapartida de benefícios relativos
à saúde, educação, apoio à terceira idade, habitação, seguros ou segurança social e desde que não excedam, em relação a cada sujeito passivo, 1% do rendimento bruto desta categoria, sendo acrescidas de 50%.
5 – Para rendimentos anuais, por titular, de valor anual superior ao vencimento base anualizado do cargo de primeiro-ministro, a dedução é igual ao valor referido nos n.ºs 1 ou 3, consoante os casos, abatido, até à sua concorrência, da parte que excede aquele vencimento.
6 – Para efeitos do disposto no número anterior, o vencimento base anualizado integra os subsídios de férias e de Natal.
7 – Excluem-se do disposto no n.º 1 as rendas temporárias e vitalícias que não se destinem ao pagamento de pensões enquadráveis nas alíneas a), b) ou c) do n.º
1 do artigo 11.º.»
O recorrente reputa inconstitucional o n.º 5 deste artigo 53.º, ao fixar, para efeitos de determinação da matéria colectável, um limite para a dedução específica aos rendimentos da categoria H (pensões) «anuais, por titular, de valor anual superior ao vencimento base anualizado do cargo de primeiro-ministro»: para estes, a dedução não é, nos termos do n.º 2 do mesmo artigo 53.º, igual ao montante fixado no n.º 1 (que, por força da redacção dada a esta disposição pelo citado Decreto-Lei n.º 198/2001, era em 2001, ano a que se reportam os rendimentos em causa, de € 7596,69), e antes esse valor referido
é abatido, até à sua concorrência, da parte que excede aquele vencimento base anualizado do cargo de primeiro-ministro. Segundo o recorrente, essa norma violaria os artigos 103.º e 104.º da Constituição da República Portuguesa e ainda «os seguintes princípios da Constituição da República Portuguesa: da igualdade, da progressividade, da justiça, da generalidade, da capacidade contributiva, da tributação pelo rendimento líquido e ainda o princípio da segurança jurídica na modalidade da tutela da confiança».
4. Entende-se que todas as questões de constitucionalidade trazidas pelo recorrente a este Tribunal são improcedentes, devendo, em consequência, negar-se provimento ao recurso. Começando pelos princípios invocados pelo recorrente, é seguro que não existe, na norma em questão, qualquer violação dos princípios da igualdade, da capacidade contributiva e da justiça na fixação de um limite para dedução a partir de um certo montante de rendimentos de pensões: são evidentemente situações diversas as de quem auferia simplesmente rendimentos superiores aos previstos no n.º 1 (isto é, rendimentos de valor anual superior a € 7596,69) – a quem era aplicável o n.º 2 do artigo 53.º do Código do IRS – e as de quem auferia rendimentos de valor anual superior ao vencimento base anualizado do cargo de primeiro-ministro (hipótese do n.º 5 do artigo 53.º). Aliás, as situações referidas são diferentes também, designadamente pelo diverso montante dos rendimentos auferidos, sob o ponto de vista da capacidade contributiva revelada pelos contribuintes respectivos, o que basta, só por si, para se excluir a existência de qualquer violação dos princípios da capacidade contributiva e da justiça. Não existe, por outro lado, identidade de situações entre os rendimentos do trabalho e os rendimentos de pensões, quanto aos custos necessários para obtenção de rendimentos de cada uma dessas categorias, pelo que a previsão da dedução, também sob este aspecto, não viola o princípio da igualdade. É que – independentemente de outras considerações – não pode comparar-se a dedução específica prevista no artigo 53.º do Código do IRS com a dedução dos custos em que o contribuinte incorreu para a obtenção de rendimentos de outras categorias, pois a primeira não tem o seu fundamento nessa necessidade de incorrer em custos para obtenção do rendimento. Improcede, pois, a acusação de
«discriminação qualitativa» deduzida pelo recorrente (e isto, independentemente de quaisquer considerações sobre qual seria a melhor solução, do ponto de vista da justiça social, sobre as quais não tem este Tribunal que se pronunciar, apesar de não poder deixar de notar-se que a invocação deste objectivo vê a sua força sem dúvida diminuída acima de certos limiares de rendimento, como aqueles que auferiu o recorrente). Como se salientou no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Março de 2004, para que remeteu o acórdão recorrido,
«a partir de um montante de rendimentos que, entre nós, no tempo e modo que vivemos, é, patentemente, muito superior à média do que auferem a maioria dos agregados familiares, aferindo-se, de resto, pelo vencimento anualizado atribuído a um dos cargos cimeiros do Estado, a consideração de uma dedução específica mais reduzida do que a atendida em outros casos, não fere o princípio da capacidade contributiva, ou o do rendimento líquido, pois não é susceptível de deixar o sujeito passivo desprovido do necessário à sua subsistência e do seu agregado familiar. Face a rendimentos de montante relativamente elevado, não haverá, constitucionalmente, que acautelar o mínimo de subsistência, através da dedução específica, pois esse mínimo continua garantido pela abundância dos rendimentos sobejantes, mesmo depois de tributados pela sua totalidade. Nem ofende o princípio da igualdade, ou o da justiça, a circunstância de rendimentos de igual montante, se resultantes do trabalho, beneficiarem de dedução específica superior: como se viu, não há igualdade entre os gastos suportados por um trabalhador no activo para obter os seus ganhos e os que se impõem a um pensionista para auferir a sua pensão. Quanto ao princípio da generalidade, é de observar, como se faz na sentença recorrida, que a norma em apreço se aplica a “todos aqueles que se integram no Tatbestand da norma”, e que “não é por se aplicar apenas a uma determinada universalidade, cuidando de regular juridicamente um subconjunto de sujeitos, que a norma perde os requisitos da generalidade e da abstracção”. Nem ele seria ofendido só porque, como afirma o recorrente, será fiscalmente
“mais gravoso ser reformado do que estar no activo”, uma vez que a todos os que auferem rendimentos de pensões a norma se aplica. Para além do que o gravame a que se refere o recorrente fica por demonstrar.»
O limite à dedução específica previsto no artigo 53.º, n.º 5, é, aliás, de aplicação geral, dentro do âmbito da respectiva hipótese, pelo que, também sob este prisma, não se vislumbra onde poderia residir a violação do princípio da
«generalidade», igualmente invocado pelo recorrente.
5. Quanto ao princípio da progressividade do imposto, e ao objectivo de uma repartição justa do rendimento, também não é violado pela norma em apreço, que se limita a prever um limite para a dedução específica para rendimentos anuais já bastante elevados. Como se disse também no citado acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Março de 2004, na norma em apreço apenas está em jogo o rendimento proveniente de pensões, e não é o modo como o rendimento desta origem é isoladamente tratado que pode, só por si, afectar o princípio da proporcionalidade, pois que não se considera o rendimento do agregado familiar. Acresce, decisivamente, que o princípio da tributação progressiva do rendimento se efectiva com uma tributação mais pesada dos rendimentos relativamente elevados e com uma tributação mais leve dos relativamente mais baixos, sendo justamente a este resultado que conduz o n.º 5 do artigo 53.º do Código do IRS, o qual, assim, em lugar de contrariar a progressividade, contribui para a sua prossecução.
6. No que toca à invocada violação da tributação pelo rendimento líquido – e deixando de lado a determinação do exacto alcance desta exigência –, a verdade é que, como também se salientou no citado aresto do Supremo Tribunal Administrativo, no caso dos rendimentos provenientes de pensões, não se vislumbra a que despesas dê, necessariamente, lugar a sua obtenção. Tais despesas, a existirem, sempre serão diminutas, face aos custos em que há normalmente que incorrer para obter rendimentos da maioria das restantes categorias sobre que incide o IRS. A consagração de uma dedução específica como a prevista no artigo 53.º do Código do IRS não pode, pois, ser vista como uma exigência dessa tributação segundo o rendimento real. E, seja como for, muito menos o poderá ser o carácter ilimitado de uma tal dedução, sobretudo a partir de montantes de rendimento relativamente elevados. Tal dedução específica para rendimentos da categoria H é, antes, um tratamento favorável, relativamente aos rendimentos de categorias que importem custos. Nos casos em que a obtenção do rendimento não implicou directamente qualquer custo, como é o caso dos rendimentos em questão, não há, aliás, qualquer obstáculo constitucional a que se tribute simplesmente o rendimento auferido, sem qualquer dedução. Nem sequer resulta, pois, de um «princípio do rendimento líquido» – independentemente do exacto alcance da sua consagração constitucional, que, repete-se, se deixa em aberto – que o legislador ordinário não possa, relativamente aos rendimentos com origem em pensões, prever um regime de dedução diferente do adoptado para rendimentos de outras fontes, e, designadamente, um limite para rendimentos dessa fonte a partir de montantes elevados.
7. Também o confronto com o «princípio da segurança jurídica na modalidade da tutela da confiança» não conduz a que se vislumbre qualquer inconstitucionalidade na norma em análise. Na verdade, não se detecta base suficiente para uma «confiança legítima», digna de protecção, que o legislador não pudesse afectar com a introdução de um limite à dedução prevista para rendimentos da categoria H. Designadamente, não se detecta base jurídica para a alegada convicção do recorrente, e dos «pensionistas em geral, que aquando da reforma ficariam sujeitos a um regime de tributação mais favorável do que aquele a que se encontravam sujeitos, enquanto sujeitos passivos enquadrados na Categoria A». Tal convicção seria, quando muito, relevante no plano político, mas não se concretizou em qualquer «direito adquirido» (ou na «aquisição de um verdadeiro direito subjectivo público, oponível ao próprio legislador, que se encontra assim assente no Estado de direito democrático»), cujo concreto fundamento jurídico não é, aliás, invocado pelo recorrente. Como se afirmou também no acórdão do Supremo Tribunal Administrativo de 31 de Março de 2004, para que o acórdão recorrido remeteu na sua fundamentação, nada há, nas normas que inicialmente integravam o Código do IRS,
«que faça seriamente crer que o regime da dedução específica em causa iria manter-se ao longo de todo o tempo. A própria novidade do CIRS valeria, para um contribuinte avisado, como índice do contrário, sabido como é que as leis novas são sujeitas a testes, acontecendo, com frequência, que, ou porque se revelem ineficazes, ou inconvenientes, ou, até, por produzirem efeitos perversos, são alteradas – sem falar nas mudanças que o decurso do tempo, a alteração das circunstâncias, a melhor ponderação das coisas, ou as diferentes opções do legislador, vêm a provocar. Tudo para dizer que se não vê que o legislador de 1988 haja criado alguma expectativa que tenha traído com a introdução do n.º 5 do artigo 53.º do CIRS, sendo certo que não basta, para que haja violação do princípio da confiança, a mera crença, desenraizada, na imutabilidade das leis que vigoram num dado momento histórico.»
O que se verificou com a introdução do n.º 5 do artigo 53.º (então n.º 4 do artigo 51.º) do Código do IRS, já em 1993 (pela Lei n.º 75/93, de 20 de Dezembro), foi, simplesmente, o uso, pelo legislador ordinário, de forma que não pode considerar-se intolerável, da sua liberdade de conformação. E sem que tenha, com a sua actuação – a introdução de um limite à dedução prevista para rendimentos da categoria H, para rendimentos anuais superiores ao vencimento anualizado do Primeiro-Ministro –, frustrado qualquer confiança legitimamente formada sobre a manutenção do direito anterior. Dir-se-á, até, que o natural é, antes, que o quadro legislativo dos impostos evolua, e que matérias como a dos limites a deduções, sobretudo para rendimentos relativamente elevados, não podem considerar-se, à partida, como tipicamente merecedoras de uma estabilidade tal que as torne imunes a alterações, ou, mesmo, que possam fundar uma confiança digna de protecção na manutenção do respectivo regime. Há, pois, que confirmar o juízo de não inconstitucionalidade a que chegou o acórdão recorrido, negando provimento ao presente recurso.”
É este juízo de inconstitucionalidade que ora se reitera, sem necessidade de considerações complementares, uma vez que, nas suas alegações, o recorrente não suscita qualquer questão nova, que não tivesse sido tratada no citado Acórdão n.º 173/2005.
3. Decisão
Em face do exposto, decide-se:
a) Não julgar inconstitucional a norma do artigo 53.º, n.º 5, do Código do Imposto sobre o Rendimento das Pessoas Singulares, na redacção dada pelo Decreto-Lei n.º 198/2001, de 3 de Julho; e, consequentemente,
b) Negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida na parte impugnada.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em
20 (vinte) unidades de conta.
Lisboa, 5 de Abril de 2005.
Mário José de Araújo Torres Maria Fernanda Palma Benjamim Silva Rodrigues Paulo Mota Pinto Rui Manuel Moura Ramos