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Processo nº 610/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
(Cons. Ribeiro Mendes)
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A. foi, em processo de querela sujeito ao regime do Código de Processo Penal de 1929, acusado definitivamente pelo banco B., constituído assistente nos autos, pela co-autoria material de um crime continuado de fraude na obtenção de crédito, previsto e punido pelas disposições combinadas dos artigos 38º do Decreto-Lei nº 28/84, de 20 de Janeiro, e 26º e
28º, nº 1, do Código Penal, de um crime de administração danosa em unidade do sector público, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 26º,
28º, nº 1, e 333º, nº 3, do Código Penal, sendo, porém, aplicável, porque mais favorável, o artigo 235º, nº 1, deste Código, com a redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março, e de um crime de burla agravada, previsto e punido nos termos dos artigos 26º, 313º e 314º, alíneas a) e c), do Código Penal, sendo, porém, aplicáveis, porque mais favoráveis, os artigos 217º e 218º, nº 2, alíneas a) e b) deste Código, com a redacção que lhes foi dada por aquele Decreto-Lei nº 48/95.
Por despacho de 7 de Novembro de 1995, do Senhor Juiz do 1º Juízo do Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa, foi ordenado, além do mais, o arquivamento dos autos no tocante ao crime de fraude na obtenção de crédito, por se considerar que o respectivo procedimento criminal se encontra já extinto, por prescrição.
Remetidos os autos ao Tribunal Criminal de Círculo de Lisboa, o Senhor Juiz da 9ª Vara Criminal, em despacho de 4 de Janeiro de
1996, não pronunciou o arguido pelos restantes crimes de que vinha acusado por entender inexistir a necessária e suficiente prova indiciária, não havendo , assim, lugar à imputação respectiva.
Inconformado, recorreu o assistente para o Tribunal da Relação de Lisboa e suscitou, então, entre outras, a questão da inconstitucionalidade da norma do artigo 365º do Código de Processo Penal (CPP) de 1929, em conjugação com as normas constantes dos artigos 59º da Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais (Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro) e 8º do respectivo Regulamento (Decreto-Lei nº 268/78, de 1 de Setembro), na parte em que se contentam garantisticamente que o juiz interventor no despacho de pronúncia venha a integrar o tribunal de julgamento.
Certo é que, no então alegado, o recorrente imputa a suscitada inconstitucionalidade à própria decisão de não-pronúncia mas o certo
é que acaba por levantar uma questão de inconstitucionalidade normativa que, como tal, foi entendida pelo acordão da Relação ao equacioná-la em termos suficientemente esclarecedores: 'a questão que o assistente-recorrente coloca consiste em saber se na vigência do Código de Processo Penal de 1929 as normas que atribuem competência para a pronúncia ou não pronúncia ao juiz do julgamento, estão ou não feridas de inconstitucionalidade'.
2.- O Tribunal da Relação de Lisboa, por acórdão de 21 de Maio de 1996, negou provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
É deste acórdão que o banco B. interpõe recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, de 15 de Novembro, suscitando a questão de constitucionalidade das normas dos artigos 365º do CPP de 1929, 59º da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro, e 8º do Decreto-Lei nº 269/78, 'na medida em que tais dispositivos, ao permitirem ao Juiz de Julgamento, em Tribunal singular ou colectivo, proferir o despacho de pronúncia ou de não pronúncia, viola frontalmente os artigos 18º, nº
1, e 32º, nºs 4 e 5, da Constituição da República Portuguesa, e bem assim os princípios da estrutura acusatória e da imparcialidade constitucionalmente consagrados, inconstitucionalidade que em tempo e momento próprio logo foi suscitada pelo requerente, no recurso que interpôs, para o Tribunal da Relação de Lisboa, do despacho de não pronúncia proferido pelo Juiz de Julgamento da 2ª Secção, da 9ª Vara, do Tribunal Criminal da Comarca de Lisboa'.
Admitido o recurso, alegaram oportunamente o recorrente e o Ministério Público.
Formulou aquele as seguintes conclusões:
'Aos presentes autos de querela são aplicáveis as normas do Código de Processo Penal de 1929, na parte em que não contrariem os preceitos da Constituição de 1976.
A Constituição, artigo 32º, nº 5, expressamente consagra a estrutura acusatória do Processo Penal, e no nº 4º consagra a figura do Juiz de Instrução Criminal, a quem compete dirigir a instrução e, a final, proferir o competente despacho de pronúncia ou de não pronúncia
A estrutura acusatória do Processo Penal implica, obrigatoriamente, que seja o Juiz de Instrução Criminal a dirigir a fase de instrução e bem assim a proferir, a final, o respectivo despacho de pronúncia ou de não pronúncia.
Nos presentes autos a decisão instrutória não foi proferida por um Tribunal de Instrução Criminal, nem esteve a cargo do competente Juiz de Instrução Criminal, mas foi proferida, como resulta dos autos, pelo Tribunal Criminal do Círculo de Lisboa, portanto pelo Tribunal de Julgamento.
Foi o Juiz da 9ª Vara, do Tribunal Criminal do Círculo de Lisboa quem proferiu o despacho de não pronúncia, quando tal despacho é da competência de um Juiz de Instrução Criminal.
O Acórdão recorrido do Tribunal da Relação de Lisboa aplicou normas que o recorrente alegara serem inconstitucionais: as normas conjugadas previstas no artº 365º, do Código de Processo Penal de 1929, no artº 59º, da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro e no artº 8º, do Decreto-Lei nº 269/78, de 1 de Setembro.
Pelo que deve ser declarada a inconstitucionalidade das normas conjugadas previstas no artº 365º, do Código de Processo Penal de 1929, no art.
59º, da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro e no art 8º, do Decreto-Lei nº 269/78, de
1 de Setembro.
Nestes termos e nos mais do Direito aplicável deve ser declarada, no caso concreto, a inconstitucionalidade das normas conjugadas previstas no artº 365º, do Código de Processo Penal de 1929,no art 59º, da Lei nº 82/77, de 6 de Dezembro e no art 8º, do Decreto-Lei nº 269/78, de 1 de Setembro, na medida em que tais dispositivos permitindo ao Juiz de Julgamento, em Tribunal singular ou colectivo, proferir o despacho de pronúncia ou de não pronúncia, violam as normas constitucionais contidas nos nºs. 4 e 5, do art. 32º da Constituição da República Portuguesa (directamente aplicável por fora do art. 18º nº 1 também da Constituição) e bem assim os princípios da estrutura acusatória e da imparcialidade constitucionalmente consagrados.
E em consequência devem os autos ser remetidos ao Tribunal da Relação de Lisboa para que, em função da declaração de inconstitucionalidade das normas acima referidas, reforme o seu aliás douto Acórdão recorrido.'
O magistrado do Ministério Público, por sua vez, concluiu do seguinte modo as respectivas alegações
'1º
A norma que se extrai do artigo 365º do Código de Processo Penal de
1929, em conjugação com as disposições dos artigos 59º da Lei nº 2/77, de 6 de Dezembro, e 8º do Decreto-Lei nº 269/78, de 1 de Setembro, na parte em que consente que o juiz que haja lavrado despacho de pronúncia, com simples dimensão garantística, venha a integrar o tribunal do julgamento, não padece de inconstitucionalidade.
2º
O impedimento legal, decorrente da tese sustentada pelo recorrente
- assistente nos autos - em função da questão de inconstitucionalidade que suscita, nunca poderia, aliás, verificar-se, já que, no caso dos autos, foi proferido pelo juiz despacho de não pronúncia, imediatamente impugnado, sem que logicamemte aquele julgamento haja ocorrido.'
Correram-se os vistos legais após o que foi apresentado projecto de acórdão pelo Senhor Conselheiro Relator primitivo, que não logrou vencimento, sendo os autos, por conseguinte, redistribuídos ao presente relator, para este específico efeito.
II
1.- Discute-se nos autos a constitucionalidade da norma do artigo 365º do CPP de 1929, em conjugação com as dos artigos 59º da Lei nº
82/77 e 8º do Decreto-Lei nº 268/88, face ao disposto nos nºs. 4 e 5 do artigo
32º em articulação com o nº 1 do artigo 18º, ambos da Constituição, e tendo em conta os princípios da estrutura acusatória e da imparcialidade, constitucionalmente consagrados.
De acordo com a primeira dessas normas, 'deduzida querela definitiva pelo Ministério Público e pelo assistente, havendo-o, irá o processo imediatamente concluso ao juiz para, no prazo de oito dias, lançar o seu despacho de pronúncia ou não pronúncia'.
Por sua vez, dispõe o artigo 59º da Lei nº 82/77:
'Compete aos tribunais criminais a pronúncia, o julgamento e os termos subsequentes nas causas crime, salvo o disposto nos artigos 63º, 67º e
70º.'
E, por seu lado, preceitua o artigo 8º do Decreto-Lei nº 269/78:
'Compete aos juízes criminais a pronúncia, o julgamento e os termos subsequentes nas causas crime, a que corresponda processo de querela ou em que tenha de intervir o tribunal colectivo.'
O descrito complexo normativo, na medida em que define a competência dos tribunais criminais para pronunciar os arguidos e proceder ao seu julgamento (à luz do Código de 1929), foi, na verdade, objecto de ponderação do acórdão recorrido, ao memorizar que, para o recorrente, as normas dos artigos 59º e 8º citados são inconstitucionais por violarem o princípio da estrutura acusatória a que obedece o processo criminal, na medida em que atribuem competência para a pronúncia ao juiz de julgamento e põem em causa a imparcialidade e neutralidade do julgador a partir do momento da pronúncia, o que pode prejudicar a boa decisão da causa, seja a final, seja na pendência da acção.
Certo é que o acórdão recorrido, no desenvolvimento argumentativo a que procede, afasta a tese do recorrente para concluir - aliás, na linha do acórdão deste Tribunal, que expressamente cita, nº 219/89, publicado no Diário da República, II Série, de 30 de Junho de 1989 - que as impugnadas normas, na medida em que consentem que o juiz que haja lavrado despacho de pronúncia com simples dimensão garantística, venha a ser juiz do tribunal de julgamento (julgamento em tribunal singular) ou a participar do tribunal de julgamento (julgamento e tribunal colectivo ou com intervenção do júri), não padecem de inconstitucionalidade por violação das garantias de processo criminal.
Surge, no entanto, na concreta precipitação deste enunciado - e independentemente de qualquer juízo de valor sobre o mesmo, por se entender não ser este o momento oportuno - uma questão prévia que respeita directamente à verificação, ou não, dos pressupostos do recurso de constitucionalidade com fundamento na alínea a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82.
2.- Com efeito, a admissibilidade deste tipo de recurso depende da verificação de vários pressupostos: a) a prévia suscitação pelo recorrente da inconstitucionalidade da norma; b) a aplicação da norma pela decisão recorrida; c) a inadmissibilidade de recurso ordinário.
Ora, aceitando-se que o recorrente suscitou oportunamente a questão de constitucionalidade, dado que, pelo menos, a Relação assim o entendeu e, como tal, dela cuidou, e não sendo ordinariamente recorrível, excepto para o Ministério Público e a parte acusadora, um despacho de não pronúncia (cfr parte final do artigo 371º do CPP de 1929), deste modo aceitando-se sem controvérsia a congregação do primeiro e do terceiro dos apontados pressupostos, já o mesmo se não dirá, no entanto, relativamente ao segundo, ou seja, no tocante à aplicação efectiva do complexo normativo impugnado.
Coloca-se a questão de saber se as garantias de defesa constitucionalmente consagradas não estarão postas em causa perante uma normação que não impede a realização pelo mesmo juiz da pronúncia e do julgamento.
Simplesmente - e sublinhando estarmos perante um recurso de constitucionalidade, de concreta ponderação - não se perfila, no caso vertente, uma acumulação subjectiva entre o juiz de pronúncia e o juiz de julgamento (ou, melhor dizendo, entre o juiz de não pronúncia e o juiz de julgamento).
Ponderando uma situação próxima - e não idêntica porque relativa a despacho de pronúncia, este Tribunal, no acórdão nº 248/90, publicado no Diário da República, II Série, de 23 de Janeiro de 1991, teve oportunidade de assim se pronunciar:
'O recorrente suscitou a inconstitucionalidade do artigo 59º da Lei nº 82/77, na medida em que houve por violador da Constituição, nomeadamente dos seus artigos 32º e 20º, o facto de ali se consentir que o juiz da pronúncia seja também o juiz do julgamento.
Simplesmente, havendo sido interposto recurso do despacho de pronúncia e a seguir recurso de constitucionalidade do acórdão que o confirmou, não houve ainda lugar à aplicação da norma contida no preceito do artigo 59º que consente a acumulação subjectiva entre o juiz da pronúncia e o juiz de julgamento. Tal norma ou segmento normativo apenas haveria de ser utilizado aquando do início do julgamento, que, conforme é evidente, ainda não teve lugar, nada mais representando ela, no estado actual do processo, do que uma potencialidade aplicativa, do que uma ameaça de concretização susceptível, aliás, de poder ou não vir a traduzir-se em acto confirmativo.
A esta luz, deve afirmar-se que a razão de ser da inconstitucionalidade suscitada pelo recorrente pressupõe a junção de dois segmentos normativos - uma efectiva pronúncia + um efectivo julgamento -, pois que só através dessa acumulação resultam eventualmente postos em causa os princípios constitucionais invocados.
E no domínio dos processos de fiscalização concreta de constitucionalidade, ao contrário do que acontece em sede de fiscalização abstracta, não é possível dissociar-se a norma ou normas postas em causa, da própria relação jurídica substancial a que foi ou foram aplicadas, nem tão pouco das circunstâncias objectivas em que essa aplicação ocorreu. E isto é assim, porquanto será a partir da norma concretamente aplicada que se há-de formar o juízo deste Tribunal sobre a eventual invalidade constitucional da respectiva norma.
Do exposto resulta que, in casu, o segmento normativo contido no artigo 59º que atribui competência ao tribunal criminal para o julgamento não foi efectivamente aplicado na decisão recorrida, inexistindo, assim, um dos pressupostos de admissibilidade do recurso cujo objecto atrás se delimitou.'
Esta orientação jurisprudencial foi, pouco depois, retomada no acórdão nº 292/90, publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de
20 de Fevereiro de 1991, e viria a ser mais tarde reiterada no acórdão nº
124/92, publicado no citado Diário, II Série, de 21 de Agosto de 1992.
Sem prejuízo de se reconhecer não ter logrado a consensualidade dos juízes da Secção, certo é que se não vê motivo para abandonar a tese então defendida - que o ora relator subscreveu - para ela, consequentemente, se remetendo.
A esta luz, deve acrescentar-se que o facto de, no caso sub judicio, se tratar de um despacho de não pronúncia, em nada prejudica a observância da apontada jurisprudência e correlativa decisão.
Sendo assim, entende-se inexistir um dos pressupostos de admissibilidade do presente recurso de constitucionalidade. Como se observou no citado acórdão nº 292/90, 'da ausência do segundo momento de realização das normas cuja inconstitucionalidade vem suscitada - o momento do julgamento - resulta que a decisão recorrida não está «apta» a uma adequada avaliação pelo Tribunal Constitucional: eventual inconstitucionalidade daquelas normas - normas que não atingiram a sua completa efectivação - sempre implicaria uma «conformação escassa» do resultado da decisão'.
III
Nestes termos, decide-se não tomar conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 6 (seis) unidades de conta.
Lisboa, 18 de Junho de 1997 Alberto Tavares da Costa Maria da Assunção Esteves Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Armindo Ribeiro Mendes
(vencido nos termos da declaração de voto junta ao acórdão nº 248/90, in Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º Vol., págns.751 e segs.). José Manuel Cardoso da Costa
(vencido, nos termos da declaração de voto junta ao Acórdão nº 248/90).