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Processo nº 797/96
1ª Secção Rel. Cons. Monteiro Diniz
(Cons. Maria Fernanda Palma)
Acordam no Tribunal Constitucional:
I - A questão
1 - Na 1ª Vara do Tribunal Criminal de Lisboa, por acórdão de 2 de Fevereiro de 1995, foi o arguido A. condenado como autor material de um crime de roubo qualificado do artigo 306º, nºs 2, alínea a), 3, alínea b) e 5, com referência ao artigo 297º, nº 2, alínea h), do Código Penal de 1982, na pena de quatro anos e oito meses de prisão. Nos termos do disposto no artigo 8º, nº 1, alínea d), e sob a condição resolutiva do artigo 11º, ambos da Lei nº 15/94, de
11 de Maio, declarou-se perdoado um ano da pena de prisão aplicada.
Não conformado com o assim decidido levou o arguido recurso ao Supremo Tribunal de Justiça, suscitando na respectiva motivação a inconstitucionalidade das normas dos artigos 410º, 432º e 433º do Código de Processo Penal.
Por acórdão de 2 de Outubro de 1996, aquele Alto Tribunal desatendeu a questão de inconstitucionalidade e negou provimento ao recurso, se bem que haja alterado para dois anos a pena de prisão, por força da aplicação do Código Penal entretanto revisto pelo Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março.
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2 - O arguido trouxe então os autos em recurso a este Tribunal em ordem à apreciação daquela questão de constitucionalidade, concluindo assim a alegação que entretanto veio a produzir:
'Primeira. O actual ordenamento jurídico processual penal ao admitir apenas um grau de recurso e ao não consagrar uma verdadeira instância de recurso no que concerne à matéria de facto viola manifestamente os princípios da defesa e do controlo em processo penal, consagrados no nº 1 do artº 32º da Constituição da República Portuguesa.
Segunda. Motivo pelo qual, as normas, entre outras, constantes nos artºs 410º, 432º e 433º do Código de Processo Penal estão em manifesta contradição com tais princípios e normas constitucionais e, por conseguinte inquinadas do vício de inconstitucionalidade material.'
Por seu turno, o senhor Procurador-Geral Adjunto, em contralegação, aduziu argumentação infirmativa do entendimento do recorrente, escrevendo assim:
'1º - O sistema de recursos e os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo penal em vigor, emergentes do estatuído nas disposições conjugadas dos artigos 410º, 432º e 433º do Código de Processo Penal, não violam quaisquer princípios ou preceitos constitucionais.
2º - Termos em que deverá ser julgado improcedente o presente recurso.'
Foram corridos os vistos de lei e os autos levados a julgamento, verificando-se, porém, por vencimento, substituição do relator.
Cabe apreciar e decidir.
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II - A fundamentação
Este Tribunal, sobre a questão que constitui objecto do recurso
- a legitimidade constitucional do sistema de recursos e os poderes de cognição do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do Código de Processo Penal de 1987, emergentes da estatuição contida nas disposições consagradas dos artigos 410º,
432º e 433º deste diploma - teve já o ensejo de firmar uma jurisprudência reiterada, embora não unânime, segundo a qual tais normas não padecem de qualquer vício de inconstitucionalidade, nomeadamente da que resultaria de uma eventual violação do artigo 32º, nº 1 da Constituição (cfr. por todos, os acórdãos 322/93, 141/94 e 172/94, Diário da República, II Série, de, respectivamente, 29 de Março de 1993, 7 de Janeiro e 19 de Julho de 1994).
Acompanham-se inteiramente as linhas essenciais da fundamentação que têm suportado tal jurisprudência para as quais agora se remete.
Tem-se assim por desnecessário repetir todo o quadro argumentativo que ali foi largamente desenvolvido.
Todavia, acompanhando-se o texto do acórdão nº 172/94, cit., recordar-se-á a núcleo essencial dessa fundamentação.
Assim:
'3 - É sabido que aquele preceito constitucional [artigo 32º, nº 1] não consagra expressamente, entre as garantias de defesa, o princípio do duplo grau de jurisdição, como aliás acontece também com a Declaração Universal dos Direitos do Homem e com a Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Apenas no Pacto Internacional sobre os Direitos Civis e Políticos
(aprovado para ratificação, pela Lei nº 29/78, de 12 de Junho) se consagra, em matéria penal, essa garantia nos termos seguintes: 'Qualquer pessoa declarada culpada de crimes terá o direito de fazer examinar por uma jurisdição superior a declaração de culpabilidade e a sentença, em conformidade com a lei' (cfr. artigo 14º, nº 5).
Mas, aquele princípio tem sido afirmado pela doutrina (cfr. Gomes Canotilho, Direito Constitucional, 5ª ed., 1991, p. 769; Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, 3ª ed., 1993, p. 164; Jorge Miranda, Manual de Direito Constitucional - Direitos Fundamentais, 1988, p. 261) e, como já se observou, constitui jurisprudência firme deste Tribunal, que uma das garantias de defesa a que se reporta o artigo 32º, nº 1, da Constituição, é, justamente, o direito ao recurso contra sentenças penais condenatórias, o que vale por reconhecer, no domínio processual penal, como princípio, o direito a um duplo grau de jurisdição.
Simplesmente, como tal jurisprudência tem acentuado, 'tratando-se de matéria de facto, há razões de praticabilidade e outras (decorrentes da exigência de imediação da prova) que justificam não poder o recurso assumir aí o mesmo âmbito e a mesma dimensão que em matéria de direito; basta pensar que uma identidade de regime, nesse capítulo, levaria, no limite, a ter de consentir-se sempre a possibilidade de uma repetição integral do julgamento perante o tribunal colectivo'.
E com base nesta ponderação, no já citado acórdão nº 401/91, que declarou a inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 665º do Código de Processo Penal de 1929, na interpretação que lhe foi dada pelo Assento do Supremo Tribunal de Justiça de 29 de Junho de 1934, deixou-se expressamente consignado que a inconstitucionalização daquele regime não podia ser entendida
'como significando que outra solução que não seja a repetição da prova em audiência perante as relações está em conflito com a Constituição'. E logo se acrescentava: 'É que, entre o sistema em questão [...], e o que ordenasse a repetição da prova em audiência perante o tribunal de recurso, outros há certamente [...] que não porão em causa as garantias de defesa que o processo criminal deve assegurar, por força do citado preceito constitucional'.
Ora, o sistema de revista ampliada, previsto no Código de 1987, deve considerar-se como um desses sistemas constitucionalmente compatíveis, pois que protege o arguido dos perigos de um erro de julgamento (designadamente, de erro grosseiro na decisão da matéria de facto), e, em concomitância, defende-o do risco de uma sentença injusta.
Estando em causa o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça dos acórdãos finais dos tribunais colectivos, há-de desde logo assinalar-se que o tribunal colectivo (tendo em conta as regras do seu próprio modo de funcionamento e as que presidem à audiência de julgamento) constitui, ele próprio, uma primeira garantia no julgamento da matéria de facto.
Acompanhando Cunha Rodrigues, ['Recursos', nas Jornadas de Direito Processual Penal - O Novo Código de Processo Penal, 1988, p. 393], pode dizer-se a respeito da garantia resultante da estrutura dos tribunais colectivos, que
'assegurada a efectiva colegialidade do tribunal, garantido o contraditório e obtida uma tanto quanto possível imediação, o recurso do tribunal colectivo tem características particularmente nítidas de remédio jurídico. A previsão de um mecanismo de reapreciação dos factos não pode - não deve - ser senão uma válvula de segurança'.
Por outro lado, o Supremo Tribunal de Justiça poderá decretar a anulação da decisão recorrida ou determinar o reenvio do processo para novo julgamento, sempre que apurar a existência de insuficiência da matéria de facto, contradição insanável da fundamentação ou erro notório na apreciação da prova.
O quadro de garantias que derivam da conjugação destas duas vertentes de apreciação do processo criminal oferece aos cidadãos uma protecção constitucionalmente adequada e defende-os, tanto quanto é legítimo extrair dos princípios, da prolação de sentenças injustas.
4 - Mas, poderá talvez argumentar-se contra o que vem de dizer-se com o facto de que, tendo o vício (para reconduzir ao reenvio do processo para novo julgamento) que resultar do 'texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum', só muito dificilmente ele poderá ser despistado pelo Supremo Tribunal de Justiça, pois que, resumindo-se a fundamentação da sentença, muitas vezes, a uma remissão genérica para os diferentes meios de prova, aquele Tribunal, ver-se-á, na prática, impossibilitado de detectar as insuficiências, contradições ou erros que em matéria de facto ali possam conter.
A isto opor-se-á que, em conformidade com o disposto no artigo 374º, nº 2, do Código de Processo Penal, a fundamentação da sentença, para além da
'enumeração dos factos provados e não provados' há-de conter uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentem a decisão, com indicação das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
E, assim sendo, a fundamentação da decisão do tribunal colectivo, no quadro integral das exigências que lhe são impostas por lei, há-de permitir ao tribunal superior uma avaliação segura e cabal do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respectivo conteúdo decisório'.
Decorre do exposto que as normas que vêm postas em crise asseguram efectivamente um duplo grau de jurisdição em matéria de facto, não sofrendo assim da inconstitucionalidade invocada pelo recorrente.
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III - A decisão
Nestes termos, decide-se negar provimento ao recurso e confirmar, no que à questão de constitucionalidade respeita, o acórdão recorrido.
Lisboa, 25 de Junho de 1997 Antero Alves Monteiro Diniz Alberto Tavares da Costa Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves José Manuel Cardoso da Costa