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Processo n.º 1071/04
3.ª Secção Relator: Conselheiro Gil Galvão
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I – Relatório.
1. Nos presentes autos, vindos do Tribunal da Relação de Lisboa, foi proferido o Acórdão n.º 19/2005 deste Tribunal. Aí se indeferiu a reclamação interposta, pelo ora reclamante, da decisão sumária de não conhecimento do objecto do recurso e, em consequência, confirmou-se aquela mesma decisão.
2. Notificado, veio o reclamante ao processo com um requerimento do seguinte teor:
“[...]I - A ACLARAÇÃO (Art.º 669, n.º 1, alínea a) do C.P.C.) Foi por esse Digníssimo Tribunal decidido, em conferência, o não conhecimento do recurso interposto pelo reclamante, mantendo-se a decisão reclamada. Fundamentando que o reclamante não pretende ver apreciada a inconstitucionalidade da norma mas sim da decisão recorrida. E, baseando-se sempre em excertos do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, em que o reclamante alude o caso concreto. Entende, o reclamante que não é linear a separação entre a interpretação da decisão e a própria decisão.
É sim uma questão complexa como entendeu o professor Gomes Canotilho no seu
'Direito Constitucional e Teoria da Constituição' 4.a Edição, pag.947 e 948 em que afirma:
“Esta questão (...) é uma das mais complexas do direito processual constitucional, pois ainda hoje não é líquido o sentido da «questão de inconstitucionalidade» como questão de facto e questão de direito. ' Dizendo também que:
'Mas há que distinguir entre factos singulares da causa(...) e os factos gerais(...): os primeiros dizem respeito ao facto individual e concreto submetido a julgamento e devem ser averiguados pelo tribunal a quo; os segundos são considerados como factos legislativos (as relações da vida que o legislador pretendeu abstractamente regular) e, nesta veste, são inseparáveis da questão da inconstitucionalidade submetida à apreciação do TC. ' Na anotação feita ao artigo 280º da CRP, Gomes Canotilho e Vital Moreira entendem na Constituição da República Portuguesa Anotada, pág.1029 que:
'XXXI. Os recursos de constitucionalidade (ou de legalidade) estão incindivelmente ligados aos processos que lhes deram origem. Eles são recursos instrumentais em relação à decisão da causa em que o incidente de constitucionalidade surgiu.' O ora requerente/reclamante pede que seja aclarado se a menção de alguma factualidade no requerimento de interposição de recurso inquina o pedido de recurso de inadequação processual, pese embora, o requerente ter referido a inconstitucionalidade das normas do Código Penal por afronta a preceitos que consagram direitos fundamentais. A referência a alguma factualidade inutiliza o requerimento de recurso?. A alusão a alguma factualidade, poderá ser considerada apenas desnecessária, sem prejuízo do aproveitamento de alguns pontos do requerimento de interposição em que é feita alusão à inconstitucionalidade de normas, como por exemplo a seguinte conclusão no recurso para o Tribunal da Relação de Lisboa :
“XX- Os preceitos contidos no n.º 1 do artigo 143° e 347º, ambos do CP são no caso dos presentes autos, em concreto, inconstitucionais por terem sido interpretados e aplicados com violação dos princípios constitucionais contidos nos artigos 21º e 25° n.ºs 1 e 2, ambos da CRP.” E, também no seu requerimento de recurso interposto para esse Tribunal, apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa:
“E, pois, face ao exposto, a inconstitucionalidade dos artigos 143° n.º 1 e
347º, ambos do CP, que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, uma vez que o sentido normativo, a interpretação atribuída na decisão recorrida às referidas normas, viola o direito de resistência e o direito à integridade pessoal (artigos 21° e 25 n.ºs 1 e 2, ambos da CRP).”. E, também no seu requerimento de recurso interposto para esse Tribunal, apresentado no Tribunal da Relação de Lisboa:
“É pois, face ao exposto, a inconstitucionalidade dos artigos 143º n.º 1 e 347º, ambos do CP, que o recorrente pretende que o Tribunal Constitucional aprecie e declare, uma vez que o sentido normativo, a interpretação atribuída na decisão recorrida às referidas normas, viola o direito de resistência e o direito à integridade pessoal (artigos 21º e 25º nºs 1 e 2, ambos da CRP)...”
É certo que o recorrente nunca foi convidado a aperfeiçoar o seu requerimento de modo a banir do mesmo, de excluir porque lhe é defeso, qualquer alusão quer à decisão quer ao julgador/intérprete. Contudo, destes fundamentos atrás mencionados, e para efeitos de conhecimento do objecto do recurso, não foi entendido por esse Tribunal que o recorrente pretende ver apreciada a inconstitucionalidade de normas (artigos 143º n.º 1 e
347º, ambos do CP) na interpretação segundo a qual houve a violação de princípios e direitos constitucionais consagrados na Lei Fundamental (artigos
21° e 25° n.ºs 1 e 2, ambos da CRP)?
É ténue a fronteira, em concreto, entre a invocação inconstitucionalidade de uma norma nesta ou naquela interpretação por afronta a direitos ou princípios fundamentais, sem que por vezes, na redacção de um requerimento ou de um recurso se faça certa alusão, ou que pelo menos se note alguma pendência, focagem, para outros aspectos (decisão, intérprete...), sem que, estes últimos, tenham sido colocados à apreciação e julgamento desse Tribunal. Não deviam ser consideradas, por esse Tribunal, juridicamente irrelevantes, despiciendas, a alusão a alguma factualidade e menção à decisão, ou à interpretação dada à norma na decisão, e valoradas as questões que, no entender do reclamante, foram convenientemente suscitadas como acima se referiu, para efeitos de ser dado o devido conhecimento ao objecto do recurso? De modo a que o recorrente possa fazer valer os seus direitos junto dos Tribunais existentes para o caso no Estado Português?
É o que o recorrente pretende ver aclarado. II - A REFORMA QUANTO A CUSTAS (Artigo 669° n.º 1 alínea b) do C.P.C.) O recorrente/reclamante foi condenado no pagamento de custas, fixando-se a taxa de justiça em 20 unidades de conta. Por despacho do Ex.mo Juiz do Tribunal Judicial da Comarca da Moita proferido em
20/11/98, foi concedido ao recorrente/reclamante o benefício do Apoio Judiciário na modalidade de dispensa do pagamento de taxa de justiça e custas, conforme cópia do referido despacho que se junta. Nos termos do n.º 4 do artigo 18.º da Lei 34/2004 de 29 de Julho o apoio judiciário mantém-se para efeitos de recurso, qualquer que seja a decisão sobre a causa. Deste modo, o recorrente não deveria ter sido condenado no pagamento de custas por estar isento do mesmo. Deve assim o referido Acórdão ser reformado e o requerente não ser condenado no pagamento de custas. III - A NULIDADE (Artigo 668° n.º 1, alínea d) do C.P.C.) A anterior jurisprudência desse Tribunal é invocada e sustenta, pelo menos parcialmente, as suas decisões actuais. Não pode o recorrente, deixar de mencionar alguns acórdãos que, no seu entender, lhe proporcionam alguma base, apoio, justificação, legitimidade, conforto, para o modo como suscitou a inconstitucionalidade nas instâncias e apresentou o seu requerimento de recurso. De forma a que a questão da inconstitucionalidade fosse considerada, colocada adequadamente e não viesse a ser, como foi, julgada, em nosso entender indevidamente, uma suscitação imprópria, incorrecta. Senão, vejamos: Acórdão n.º594/03 de 03/12/03
'Está portanto em causa no presente processo apreciar a conformidade constitucional, face ao princípio do acesso ao direito e aos tribunais, da interpretação atribuída na decisão recorrida à norma do n.º 3 do artigo 410.º do Código Civil,' Acórdão n.º 643/99 24/11/1999
'ou sequer a inconstitucionalidade do artigo 765.º do Código de Processo Civil, em si mesmo (ou de uma sua determinada interpretação).' Acórdão 236/99 de 28/04/1999
'Ao Tribunal Constitucional cumpre apenas decidir se as normas que se extraem desse preceito na interpretação por que efectivamente optou a decisão recorrida estão ou não de acordo com a Constituição(...).'
'E, porque é assim importa delimitar com maior rigor o sentido normativo que a decisão recorrida extrai dos preceitos cuja constitucionalidade é questionada,
(...). '
'Não compete ao Tribunal Constitucional pronunciar-se sobre a correcção do entendimento por que optou a decisão recorrida, mas apenas verificar da compatibilidade com a Constituição das normas que nessa interpretação a decisão recorrida extrai daqueles preceitos. Porém, não deixaremos de referir, por ser relevante, que o sentido da expressão 'violação culposa” por que optou a decisão recorrida corresponde ao sentido que a essa expressão é dado por uma parte significativa da doutrina civilística portuguesa.'
(Sublinhados nossos). Tem sido assim entendimento da Jurisprudência Constitucional que o objecto de controlo de constitucionalidade são as normas, mas, também, não deixa de ser feita, claramente, alusão, nos acórdãos acima referidos e noutros, à interpretação que é dada às normas na decisão recorrida. Alusão que, também terá sido feita pelo recorrente, o que no mínimo, devia ser considerada despicienda ou juridicamente irrelevante, sem, contudo deixar de ser considerada, através de outras questões por si alegadas, com referência explícita às normas, validamente suscitada a questão de inconstitucionalidade e conhecido o objecto do recurso. Questões essas sobre as quais o Tribunal não se pronunciou, como devia, designadamente, aquelas questões a que acima se faz referência no pedido de esclarecimento. O Tribunal, pronunciou-se sobre questões despiciendas deixam de ser aludidas nalguma jurisprudência, como referiu, deixando de conhecer outras questões validamente suscitadas que não valorizou (Conclusão XX nas alegações de recurso e parágrafos do requerimento de recurso para esse Tribunal apresentados no Tribunal da Relação de Lisboa, bem como na reclamação para a conferência). Verifica-se, pois, a nulidade do acórdão por força do disposto no artigo 668º, n.º 1, alínea d) do CPC . E, por força da nulidade, agora arguida, deve a mesma ser declarada e em consequência o Acórdão ser reformulado, de modo a que a decisão reclamada não seja confirmada, decidindo-se pelo conhecimento do recurso. Nestes termos, pede o reclamante que: a) Seja aclarado o Acórdão, ao abrigo da alínea a) do n.º1 do artigo 669.º do C.P.C.; b) Se proceda à sua reforma quanto a custas, de acordo com a alínea b) do n.º1 do artigo 669.º do C.P.C.; c) Seja o Acórdão reformulado, por se verificar a existência da nulidade prevista na alínea d) do n.1º do artigo 668.º do C.P.C.; de modo a que se dê conhecimento ao objecto do recurso para o Tribunal Constitucional, seguindo-se os ulteriores termos legais. O requerente/reclamante beneficia de Apoio Judiciário. [...]”
3. Ouvido o Ministério Público recorrido, disse o seguinte:
1 – O pedido de aclaração, deduzido sob a forma de colocação de várias dúvidas ou questões ao Tribunal Constitucional, é manifestamente infundado, traduzindo utilização funcionalmente inadequada de tal instrumento processual.
2 – Na verdade, o acórdão proferido é perfeitamente claro e insusceptível de dúvidas sobre o que nele se decidiu, não cumprindo obviamente aos Tribunais – esgotado o seu poder jurisdicional – proferir uma espécie de aprofundamento dogmático complementar das suas decisões.
3 – O pedido de nulidade do acórdão proferido é, por outro lado, suscitado com inadmissível ligeireza: na verdade, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, naturalmente e apenas, sobre aquilo que lhe cumpria apreciar, começando – como não podia deixar de ser – pela apreciação dos pressupostos do recurso interposto.
4 – Finalmente, no pedido de reforma do decidido quanto a custas confunde o recorrente, de forma indesculpável, os planos da existência do débito de custas e da sua exigibilidade actual, só relevando naturalmente um hipotético apoio judiciário para este último aspecto – que não está em causa na fase actual do processo.
Cumpre decidir.
II. Fundamentação.
3. Pretende o reclamante ver aclarado o Acórdão n.º 19/2005. Ora, tal acórdão é perfeitamente claro quer quanto à decisão – indeferimento da reclamação da decisão sumária reclamada -, quer quanto à sua fundamentação - não ter o reclamante colocado à apreciação do Tribunal Constitucional “uma questão de constitucionalidade de uma norma jurídica, mas antes o concreto juízo de subsunção do seu comportamento aos artigos 143º e 347º do Código Penal, efectuado pela decisão recorrida”.
Não há, assim, nada a aclarar, sendo inteiramente descabida e, como refere o representante do Ministério Público, “traduzindo utilização funcionalmente inadequada de tal instrumento processual”, a utilização do pedido de aclaração para “uma espécie de aprofundamento dogmático complementar das [...] decisões” do Tribunal.
4. Quanto à reforma do acórdão quanto a custas, só por lapso manifesto ou desconhecimento indesculpável se poderia pretender tal reforma. De facto, conforme se decidiu no Acórdão n.º 316/02, (disponível na página Internet do Tribunal em http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/), em doutrina que mantém inteira validade, “é, por um lado, evidente que a condenação do então reclamante em custas decorreu da improcedência da reclamação por si apresentada
(cfr. art.º 84º, n.º 4, da Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro, e artigos 2º e 7º do Decreto-Lei n.º 303/98, de 7 de Outubro) e, por outro, que [...] a concessão do benefício de apoio judiciário não implica a não condenação em custas, mas apenas que o débito de custas não seja efectivamente exigido, enquanto se mantiverem os pressupostos que ditaram a concessão do apoio judiciário (cfr. art. 54º, n.º 1, da Lei n.º 30-E/2000, de 20 de Dezembro).”
5. Finalmente, quanto à nulidade suscitada, o mínimo que se pode dizer é que, conforme refere o representante do Ministério Público, a questão é suscitada
“com inadmissível ligeireza: na verdade, o Tribunal Constitucional pronunciou-se, naturalmente e apenas, sobre aquilo que lhe cumpria apreciar, começando – como não podia deixar de ser – pela apreciação dos pressupostos do recurso interposto”. Tendo concluído não estarem os mesmos presentes, nada mais havia a considerar.
III – Decisão
Nestes termos, decide-se desatender os pedidos de esclarecimento e de reforma do acórdão, bem como a arguição de nulidade. Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em 15 (quinze) unidades de conta, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
Lisboa, 11 de Fevereiro de 2005
Gil Galvão Bravo Serra Artur Maurício
[ documento impresso do Tribunal Constitucional no endereço URL: http://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20050074.html ]