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Processo n.º 240/05
1.ª Secção
Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. Nos presentes autos, em que se investiga a prática de crime de
violação do segredo de justiça, previsto e punível pelo artigo 371º, n.º 1, do
Código Penal, requereu o representante do Ministério Público na Comarca de Faro
ao Juiz de Instrução Criminal, nos termos do disposto no artigo 135º, n.º 3, do
Código de Processo Penal, que suscitasse a intervenção do Tribunal da Relação de
Évora, a fim de se decidir sobre a quebra do sigilo profissional da jornalista
A. e de se determinar a correspondente prestação de depoimento, destinado a
revelar as fontes ligadas à investigação do inquérito n.º 1328/01.8TAFAR que
estiveram na origem da elaboração de uma notícia publicada por aquela jornalista
no jornal “B.” de 30 de Abril de 2003 (fls. 1 e seguintes).
Por despacho de fls. 7 e seguinte, o Juiz de Instrução Criminal da
Comarca de Faro verificou a legitimidade da recusa de prestar depoimento por
parte da jornalista e, entendendo “ser justificada a quebra do sigilo
profissional”, suscitou a intervenção do Tribunal da Relação de Lisboa, ao
abrigo do disposto no artigo 135º, n.º 3, do Código de Processo Penal.
O Conselho Deontológico do Sindicato dos Jornalistas emitiu o
parecer de fls. 37 e seguintes, no qual pediu ao Tribunal da Relação de Lisboa
que não impusesse à referida jornalista a quebra do sigilo legitimamente
invocado.
O Ministério Público, por seu lado, emitiu o parecer de fls. 52 e
seguintes, no qual sustentou que se impunha a quebra do sigilo.
O Tribunal da Relação de Évora, por acórdão de 16 de Dezembro de
2003, viria a determinar que, com quebra de sigilo profissional, a jornalista A.
prestasse depoimento “nos autos de Inquérito n.º 505/03.1TAFAR, destinado a
revelar a fonte ou fontes ligadas à investigação do Inquérito n.º 1328/01.8TAFAR
que estiveram na origem da elaboração da notícia publicada pela mesma na página
26 do «B.» de 30.04.2003” (fls. 119 e seguintes).
2. Do acórdão que lhe determinou a prestação de depoimento com quebra de
sigilo profissional, recorreu A.para o Supremo Tribunal de Justiça (fls. 151),
tendo na motivação respectiva (fls. 152 e seguintes) concluído, entre o mais,
que o tribunal recorrido perfilhara “uma interpretação manifestamente
inconstitucional da norma constante do n.º 3 do art. 135º do CPP, por violadora
do disposto nos n.ºs 2 e 3 do art. 18º, nos n.ºs 1 e 2 do art. 37º, e no n.º 1 e
na alínea b) do n.º 2 do art. 38º, todos da CRP, inconstitucionalidade que, para
todos os devidos e legais efeitos, aqui se deixa expressamente arguida” (fls.
167).
O Ministério Público respondeu (fls. 186 e seguintes), sustentando
que devia negar-se provimento ao recurso interposto.
O Supremo Tribunal de Justiça, por acórdão de 16 de Fevereiro de
2005, rejeitou o recurso interposto por A., pelos seguintes fundamentos (fls.
287 e seguintes):
“[...]
Questão prévia:
Admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça
O artigo 400º do Código de Processo Penal estabelece nas diversas alíneas do seu
n.º 1 os casos em que as decisões proferidas não admitem recurso, entre elas e
com particular realce, de acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações que
não ponham termo à causa.
Por outro lado, o art. 432° do mesmo diploma estabelece os casos em que é
admissível o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, entre eles, o recurso
de decisões das relações proferidas em 1ª instância e das decisões que não sejam
irrecorríveis proferidas pelas relações, em recurso, nos termos do art. 400º.
Ora, em nenhuma destas alíneas se integra a decisão recorrenda.
Na verdade, não se trata de decisão proferida em 1ª instância, já que se trata
de um recurso de acórdão a confirmar ou alterar uma decisão do Tribunal de
Instrução Criminal de Évora, o que a torna irrecorrível à luz do art. 400° do
CPP.
Além do mais, não se trata de decisão em que estejam em causa direitos
fundamentais do cidadão que impliquem privação do direito à liberdade,
nomeadamente a prisão preventiva, nem que não estejam asseguradas todas as
garantias de defesa da recorrente que, neste momento, nem se mostra sequer que
tenha sido constituída arguida no processo, em violação do disposto no art. 32°,
n.º 1, da Constituição da Republica Portuguesa.
Tratou-se, apenas e tão só, de decidir se a requerente deve ou não prestar
depoimento no processo de inquérito que corre termos no tribunal de instrução
criminal da Comarca de Évora.
O recurso interposto não se integra, pois, em qualquer das alíneas das
disposições acima referidas, pelo que nos termos do art. 420°, n.º 1, do CPP,
conjugado com o n.º 2 do art. 414° do mesmo diploma, deve ser rejeitado por
inadmissível.
Perante o exposto, tendo em conta o que vem disposto no art. 419°, n.º 4, al. a)
do CPP, acordam em Conferência os Juízes Conselheiros da Secção Criminal do
Supremo Tribunal de Justiça em rejeitar o recurso interposto pela recorrente A..
[...].”.
3. Deste acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que lhe rejeitou o
recurso veio A. interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos seguintes
termos (fls. 298 e seguinte):
“[...]
- O recurso é interposto ao abrigo da al. b) do n.º 1 do art. 70º da Lei n.º
28/82, de 15 de Novembro;
- Pretende-se ver apreciada a inconstitucionalidade das normas conjugadas da
alínea c) do n.º 1 do art. 400º e da al. b) do art. 432º, ambos do Código de
Processo Penal, quando interpretadas no sentido de considerarem irrecorrível,
por não pôr termo à causa, a decisão do incidente de prestação de depoimento com
quebra de segredo profissional, prevista no n.º 3 do art. 135º do mesmo Código;
- Tais normas, assim aplicadas, violam o disposto nos n.ºs 1, 4 e 5 do art. 20º
e no art. 32º, ambos da Constituição da República Portuguesa;
- A questão de inconstitucionalidade nos termos agora definidos não foi
suscitada no processo, dado que a Recorrente foi confrontada com uma situação de
interpretação normativa inesperada, ainda para mais restrita à questão da
admissibilidade do recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, não tendo, assim,
oportunidade processual para suscitar a questão antes de esgotado o poder
jurisdicional deste alto Tribunal;
[...].”.
O recurso foi admitido por despacho de fls. 300.
4. Nas alegações que apresentou neste Tribunal (fls. 320 e seguintes),
concluiu assim a recorrente:
“1ª O Acórdão do TRE decidiu, em primeira instância, a prestação de depoimento
pela Recorrente com quebra do respectivo segredo profissional, pondo por isso
termo ao respectivo incidente;
2ª Esta decisão é manifestamente desfavorável à recorrente, jornalista de
profissão, restringindo o seu direito fundamental (al. b) do n.º 2 do art. 38º
da CRP) ao segredo profissional;
3ª A Recorrente tem direito a obter uma reapreciação judicial desta decisão que
lhe foi desfavorável;
4ª A decisão do TRE não se enquadra na previsão da alínea c) do n.º 1 do art.
400º do CPP, antes cabendo na alínea a) do art. 432º do mesmo Código;
5ª Ao julgar irrecorrível o acórdão do TRE, o STJ dá às referidas normas do CPP
uma interpretação manifestamente inconstitucional, negando à Recorrente o
direito a recorrer de uma decisão judicial desfavorável;
Efectivamente,
6ª Tal interpretação das normas referidas viola directamente a Constituição da
República Portuguesa (CRP), nos seus arts. 20º n.ºs 1, 4 e 5 e 32º, ignorando
pura e simplesmente a norma que permite recorrer para o STJ de decisões das
relações proferidas em 1ª instância, nos termos do art. 432º a) CPP;
7ª A interpretação das normas do CPP acima referidas, no sentido de tornar
irrecorrível a decisão do TRE que se pronuncia em primeiro lugar sobre a
prestação de depoimento da Recorrente com quebra de segredo profissional, viola
manifestamente as disposições constitucionais que permitem e garantem o acesso
ao direito e à tutela jurisdicional efectiva e asseguram todas as garantias de
defesa em processo criminal;
8ª A interpretação levada a cabo pelo STJ das normas conjugadas da alínea c) do
n.º 1 do art. 400º e da alínea b) do art. 432º, ambas do CPP, verifica-se, em
consequência, inconstitucional face às normas constantes do art. 20º e do art.
32º da CRP, nomeadamente no que diz respeito à possibilidade de recurso,
devendo, portanto, ser declaradas inconstitucionais no âmbito do presente
processo.
[…].”.
5. O representante do Ministério Público junto do Tribunal
Constitucional contra-alegou (fls. 336 e seguintes), concluindo do seguinte
modo:
“1 - Não é convocável, a propósito do interesse de certa testemunha em processo
penal em ver resguardado o sigilo profissional por ela invocado, como
fundamento da recusa a depor, o princípio constitucional das garantias de defesa
do arguido.
2 - Não pode inferir-se da consagração constitucional do direito de acesso à
justiça e aos tribunais a existência, constitucionalmente imposta, do direito
ao recurso, para o Supremo Tribunal de Justiça, relativamente ao juízo de
ponderação de interesses, feito pela Relação nos termos do artigo 135°, n.° 2,
do Código de Processo Penal, decretando a «quebra» do sigilo profissional
invocado.
3 - Na verdade, o direito de acesso à justiça não comporta a atribuição de um
genérico «direito ao recurso», representando salvaguarda adequada do direito da
testemunha em questão a atribuição de competência para «quebrar» o sigilo
profissional a um Tribunal Superior, com precedência de um parecer emitido pela
entidade representativa dos interesses profissionais envolvidos no sigilo
invocado.
4 - Termos em que deverá improceder o presente recurso.”
Cumpre apreciar e decidir.
II
6. Constituem objecto do presente recurso de constitucionalidade – tal
como foi delimitado pela recorrente (supra, 3.) – as normas conjugadas da alínea
c) do n.º 1 do artigo 400º e da alínea b) do artigo 432º do Código de Processo
Penal, interpretadas no sentido de considerarem irrecorrível, por não pôr termo
à causa, a decisão do incidente de prestação de depoimento com quebra de segredo
profissional, prevista no n.º 3 do artigo 135º do mesmo Código.
Segundo a recorrente, tais normas, nessa interpretação, violariam o
disposto nos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 20º e no artigo 32º, todos da Constituição,
que lhe confeririam o direito a obter uma reapreciação judicial de tal decisão.
É o seguinte o teor dos preceitos do Código de Processo Penal
questionados no presente recurso:
“Artigo 400º
(Decisões que não admitem recurso)
1. Não é admissível recurso:
[...]
c) De acórdãos proferidos, em recurso, pelas relações, que não ponham termo à
causa;
[...].
Artigo 432º
(Recurso para o Supremo Tribunal Justiça)
Recorre-se para o Supremo Tribunal de Justiça:
[...]
b) De decisões que não sejam irrecorríveis proferidas pelas relações, em
recurso, nos termos do artigo 400º;
[...].”.
7. No acórdão recorrido – que é o do Supremo (supra, 2.) – considerou-se
que era irrecorrível a decisão da Relação que determinara à ora recorrente a
prestação de depoimento com quebra do segredo profissional, no âmbito de um
inquérito em que se investigava a prática de crime de violação de segredo de
justiça.
E concluiu-se no sentido dessa irrecorribilidade por se entender
que:
a) A decisão da Relação não pôs termo à causa;
b) A decisão da Relação foi proferida em recurso;
c) A decisão da Relação é, além disso, uma decisão em que não estão
em causa direitos fundamentais do cidadão que impliquem privação do direito à
liberdade.
8. Por sua vez, a recorrente sustenta a recorribilidade da decisão da
Relação que lhe determinara a prestação de depoimento com quebra do segredo
profissional, com base essencialmente em dois fundamentos (supra, 4.):
a) A decisão da Relação deve qualificar-se como “decisão final”, que
pôs termo à “causa” – o incidente previsto e regulado no artigo 135º, n.º 3, do
Código de Processo Penal;
b) A decisão da Relação foi proferida em 1ª instância, sendo deste
modo admissível o “duplo grau de jurisdição”.
9. Não compete ao Tribunal Constitucional sindicar a aplicação do
direito ordinário feita pela decisão recorrida, nem os fundamentos em que ela
assenta.
A este Tribunal apenas cabe apreciar a conformidade constitucional
da interpretação perfilhada na decisão recorrida quanto às normas questionadas
pela recorrente.
Para melhor compreensão do que se discute no presente recurso,
transcreve-se o artigo 135º, n.º 3, do Código de Processo Penal (cuja
conformidade constitucional já foi, aliás, apreciada pelo Tribunal
Constitucional, no acórdão n.º 7/87, de 9 de Janeiro, publicado em Acórdãos do
Tribunal Constitucional, 9º volume, 1987, p. 7 ss):
“Artigo 135º
(Segredo profissional)
[…]
3. O tribunal imediatamente superior àquele onde o incidente [de escusa de
depoimento] se tiver suscitado, ou, no caso de o incidente se ter suscitado
perante o Supremo Tribunal de Justiça, o plenário das secções criminais, pode
decidir da prestação de testemunho com quebra do segredo profissional sempre que
esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da lei penal,
nomeadamente face ao princípio da prevalência do interesse preponderante. A
intervenção é suscitada pelo juiz, oficiosamente ou a requerimento.
[…].”.
No caso em apreço, tal como previsto na lei, o Ministério Público
requereu ao Juiz de Instrução que suscitasse a intervenção do Tribunal da
Relação de Évora, a fim de que este tribunal decidisse da prestação de
testemunho, pela ora recorrente, com quebra do segredo profissional. O Juiz de
Instrução suscitou tal intervenção e a Relação ordenou a prestação de depoimento
com quebra do segredo profissional.
O Juiz de Instrução não proferiu portanto qualquer decisão ordenando
a prestação de depoimento pela ora recorrente, da qual pudesse ser ou tivesse
sido interposto recurso para a Relação de Évora. Limitou-se a verificar a
legitimidade da recusa de prestar depoimento por parte da jornalista, ora
recorrente, e a suscitar a intervenção da Relação de Évora, tendo este tribunal
proferido a primeira decisão sobre a questão.
Observa-se, assim, analisando o disposto no artigo 135º, n.º 3, do
Código de Processo Penal e o processado nos presentes autos (supra, 1.), que a
decisão da Relação, da qual se pretendeu interpor recurso, foi a primeira
decisão proferida sobre o depoimento a prestar.
O que acaba de se afirmar não significa que devia, nos termos da
lei, ter havido recurso do acórdão da Relação para o Supremo.
Como acima se deixou expresso, o Tribunal Constitucional não tem
competência – contrariamente ao que parece entender a recorrente, tendo em conta
a conclusão 4ª das suas alegações (supra, 4.) – para aferir se, das normas em
apreciação no presente recurso de constitucionalidade, decorre aquela
recorribilidade, pois que tal aferição ou tal interpretação do direito ordinário
apenas compete ao tribunal recorrido.
Com as considerações precedentes, apenas se pretende significar que
o acórdão da Relação, do qual se pretendeu recorrer para o Supremo, não havia
sido proferido em via de recurso; só que esta indagação teve necessariamente de
ser realizada, sob pena de não poder ser apreciada a presente questão de
constitucionalidade, que se prende, justamente, com a eventual violação do
direito ao recurso.
Ora, ainda que se considere – diferentemente do que entendeu o
Supremo – que a decisão da Relação foi proferida em primeira instância, tal não
implica a procedência das razões invocadas pela recorrente. Não sendo a
recorrente arguida no processo, mas simples testemunha, não podem obviamente
invocar-se no caso, como parâmetro para aferir a constitucionalidade das normas
questionadas, as garantias de defesa do arguido, tal como consagradas no artigo
32º da Constituição da República Portuguesa. Apenas poderá estar em causa, como
sublinha o Ministério Público nas suas contra-alegações, “o direito de acesso à
justiça de todos os sujeitos ou intervenientes processuais que se considerem
prejudicados ou afectados pelas decisões proferidas nos processos em que têm
intervenção” (cfr. fls. 337).
Sendo assim, a questão reconduz-se a saber se na decisão da Relação
estão em causa “direitos fundamentais do cidadão que impliquem privação do
direito à liberdade”.
Importa começar por reconhecer, como aliás decorre do que antecede,
que uma decisão que determina a prestação de depoimento com quebra de segredo
profissional num determinado processo em que o depoente não é arguido não se
enquadra efectivamente na previsão do artigo 32º, n.º 1, da Constituição, que
apenas contempla o direito ao recurso do arguido.
Não sendo aplicável, ao caso dos autos, este artigo 32º, n.º 1, na
parte em que prevê o direito do arguido ao recurso – pois que a ora recorrente
não é arguida no processo em que se ordenou que prestasse depoimento com quebra
de segredo profissional –, e discutindo-se tão somente o direito de acesso à
justiça, cabe verificar se as normas do artigo 20º, n.ºs 1, 4 e 5, da
Constituição, invocadas pela recorrente, exigiriam que a recorrente pudesse
recorrer da decisão da Relação para o Supremo.
É o que se vai ver de seguida.
10. Que a recorrente não beneficiou efectivamente do direito ao recurso
resulta do que atrás se disse sobre a circunstância de a decisão da Relação da
qual pretendeu recorrer para o Supremo ter sido a primeira decisão proferida
sobre a questão. Mas será que a Constituição lhe confere tal direito ao recurso,
enquanto direito a uma reapreciação judicial da decisão que havia sido
proferida?
10.1. O n.º 5 do artigo 20º da Constituição, que a recorrente invoca, não tem
aqui manifestamente aplicação. Tal preceito estabelece que “para defesa dos
direitos, liberdades e garantias pessoais, a lei assegura aos cidadãos
procedimentos judiciais caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a
obter tutela efectiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses
direitos”. Ora a irrecorribilidade de uma decisão não põe em causa a celeridade
e prioridade de uma decisão judicial, antes pode ter precisamente o efeito de
prosseguir esses valores.
10.2. Por outro lado, o n.º 4 do artigo 20º da Constituição apenas poderia
ter aplicação na parte em que assegura o direito a um processo equitativo.
Contudo, como a questão que importa agora resolver se prende com o direito ao
recurso, o preceito imediatamente aplicável é o do n.º 1, que assegura o acesso
aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos.
10.3. Ora, do n.º 1 do artigo 20º da Constituição não decorre um direito
geral ao recurso.
Como o Tribunal Constitucional afirmou no acórdão n.º 163/90, de 23
de Maio (publicado em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 16º volume, 1990, p.
301 ss), o direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses
legítimos “é, entre o mais, o direito a uma solução jurídica dos conflitos, a
que se deve chegar em prazo razoável e com observância das regras da
imparcialidade e independência, possibilitando-se, designadamente, um correcto
funcionamento do contraditório”. Mas esse acesso aos tribunais não tem que ser
assegurado sempre em mais de um grau de jurisdição: mesmo no domínio do processo
penal, “[a] Constituição não impõe [...] que o legislador consagre a faculdade
de recorrer de todo e qualquer acto do juiz”.
Por outro lado, disse este Tribunal, no acórdão n.º 673/95 (Diário
da República, 2ª Série, n.º 68, de 20 de Março de 1996, p. 3786 ss):
“[...]
Que não há aí violação do artigo 20º e mais rigorosamente do seu n.º 1, da
Constituição – [...] – é um dado que ressalta de posições ditas e reafirmadas
por este Tribunal Constitucional, apoiando‑se na doutrina e na sua já vasta
jurisprudência a propósito tirada, no sentido de que o direito de acesso aos
tribunais postulado pelo artigo 20º, n.º 1, da Lei Fundamental não garante,
necessariamente, em todos os casos e por si só, o direito a um duplo ou a um
triplo grau de jurisdição, sendo que a garantia de um duplo grau de jurisdição
referentemente a réus condenados em processo criminal não é imposta por aquele
normativo constitucional, antes decorrendo do que se preceitua no n.º 1 do
artigo 32º da Constituição.
E, igualmente, tem defendido que aquela Lei não consagra um direito geral de
recurso das decisões judiciais (afora aquelas de natureza criminal condenatória,
recurso esse, porém, que deflui da necessidade de previsão de um segundo grau
de jurisdição, necessidade essa, repete‑se, imposta pelo n.º 1 do artigo 32º).
Acrescenta, todavia, com suporte na própria doutrina, que, uma vez que a
Constituição prevê «a existência de tribunais de recurso na ordem dos tribunais
judiciais» – o mesmo acontecendo na ordem dos tribunais administrativas e
fiscais – e que lei infra‑constitucional, designadamente os diplomas adjectivos
fundamentais e os que regem a organização judiciária, [...], também prevêem
esses órgãos de administração de justiça funcionando como tribunais também
vocacionados para decidir em sede de impugnação das decisões emanadas de
tribunais de hierarquia inferior, então não será lícito ao legislador ordinário
suprimir em bloco os tribunais de recurso e os próprios recursos ou ir até ao
ponto de limitar de tal modo o direito de recorrer, que, na prática, se tivesse
de concluir que os recursos tinham sido suprimidos (as expressões em itálico
são extraídas da obra Recursos em Processo Civil, de Armindo Ribeiro Mendes,
Lisboa 1992, pp. 100, 101 e 102; cfr., como exemplo da jurisprudência do
Tribunal, e com mais recente publicação, quanto ao tema em análise, o Acórdão
n.º 447/93, no Diário da República, 2ª Série, de 23 de Abril de 1994).
[...].”.
É, portanto, entendimento pacífico na jurisprudência constitucional
que o direito de acesso à justiça não comporta o sistemático exercício do
direito ao recurso, visando assegurar o duplo grau de jurisdição perante todas
as decisões que afectem determinado interveniente processual.
Logo, não é possível sustentar que do artigo 20º, n.º 1, da
Constituição decorre, sem mais, o direito do titular do direito ao sigilo
profissional, a quem foi ordenada a prestação de depoimento em processo penal
com quebra desse mesmo sigilo, de interpor recurso da correspondente decisão
judicial, para obter a reapreciação dessa decisão.
Conclui-se, deste modo, que o direito ao recurso, num caso como o
discutido nestes autos, se inscreve na liberdade de conformação do legislador,
porque a Constituição não assegura tal direito relativamente a todo e qualquer
acto praticado em processo penal.
A interpretação que agora se aprecia não implica, assim, violação
do disposto nos n.ºs 1, 4 e 5 do artigo 20º da Constituição.
III
11. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional
decide negar provimento ao presente recurso.
Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 20 (vinte)
unidades de conta.
Lisboa, 2 de Novembro de 2005
Maria Helena Brito
Carlos Pamplona de Oliveira
Maria João Antunes
Rui Manuel Moura Ramos
Artur Maurício