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Processo n.º 1012/04
3.ª Secção Relator Conselheiro Vítor Gomes
Acordam, em conferência, na 3.ª Secção do Tribunal Constitucional
1. O relator proferiu a seguinte decisão sumária (fls. 1344-1346):
“1. A. e B. foram condenados pelo tribunal colectivo do 2º Juízo Criminal de Gondomar, além do mais, “por um crime continuado de abuso de confiança em relação à segurança social p. e p. à data da prática dos factos , no art.º
27.º-B, do Decreto-Lei n.º 20-A/90 (versão introduzida pelo Decreto-Lei n.º
140/95, de 14 de Junho), e, actualmente, pelos artºs. 107.º, n.º 1, 24.º, n.ºs 1 e 3, e 11º da Lei n.º 15/2001, de 5 de Junho, nas penas de 8 (oito) meses de prisão e de 7 (sete) meses de prisão, respectivamente”. Os arguidos interpuseram recurso desta decisão para o Tribunal da Relação do Porto que, por acórdão de 2 de Junho de 2004 (fls. 1317-1325), lhe negou provimento, confirmado a decisão recorrida. Não se conformado com o decidido, os arguidos interpuseram recurso deste acórdão para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.ºda Lei n.º 28/82, de 15 de Novembro (LTC), para apreciação da constitucionalidade das normas constantes dos artigos 283.º, n.º 3 e 374.º, n.ºs 2 e 3, alínea a) do Código de Processo Penal, visando obter o reconhecimento de que “(...) 5- está eivado de inconstitucionalidade, violando o disposto nos princípios vertidos nos artºs. 29.º e 32.º da CRP, o entendimento sustentado no douto acórdão da Relação
(e implícito na sentença confirmada da 1ª instância) quanto aos artigos 283.º, n.º 3 e 374.º, n.ºs 2 e 3, , al. a) do CPP, segundo o qual não é necessário que as normas se acarretam o sancionamento penal dos Apelantes constem do despacho de pronúncia nem do dispositivo da sentença condenatória, bastando que os factos dados como provados aparentem preencher uma outra disposição legal (essa sim, que incriminaria a conduta dos Apelantes) não constante do despacho de pronúncia nem do dispositivo da sentença, para que os Apelantes possam ser condenados como tendo praticado um crime cujo tipo legal prevê a punição de uma pessoa colectiva, distinta dos Apelantes”.
2. O recurso foi admitido, por despacho que não vincula o Tribunal Constitucional (n.º 3 do artigo 76.º da LTC). Ora, não pode conhecer-se do objecto do recurso, o que imediatamente passa a decidir-se, ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 78.º-A da LTC. Com efeito, ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC, cabe recurso para o Tribunal Constitucional das decisões que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo. Em complemento, dispõe o n.º 2 do artigo 72.º da mesma Lei que este recurso só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer. Não cabe tal recurso, como o Tribunal tem repetida e pacificamente afirmado, quando a censura de violação de normas ou princípios constitucionais seja dirigida à decisão judicial, em si mesmo considerada, e não a uma norma (na sua totalidade, em dado segmento, ou em certa interpretação mediatizada pela decisão recorrida). Ora, os recorrentes não suscitaram perante o tribunal que proferiu a decisão agora recorrida qualquer questão de constitucionalidade normativa.
É certo que na conclusão n.º 10 da motivação de recurso perante o tribunal da Relação fazem referência à violação dos artigos 32.º e 29.º da Constituição. Mas essa imputação é feita directamente ao acórdão do tribunal colectivo e não a qualquer norma de que essa decisão tenha feito aplicação. E não se trata de mera deficiência de enunciação das conclusões. Nada há no corpo da motivação que verse sobre a desconformidade das normas do n.º 3 do artigo 283.º e do n.º 2 e da alínea a) do n.º 3 do Código de Processo Penal com normas ou princípios constitucionais e que, portanto, possa ser levado em conta para efeitos de integração do pressuposto específico do recurso de constitucionalidade interposto. Perante isto, impõe-se que se profira decisão sumária, nos termos do artigo
78.º-A da LTC.
3. Decisão Pelo exposto, decide-se: a) Não tomar conhecimento do objecto do recurso; b) Condenar a recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 8 (oito) unidades de conta.”
2. Os recorrentes reclamaram para a conferência, ao abrigo do disposto no n.º do artigo 78.º-A da LTC, pedindo o prosseguimento do recurso, pelas seguintes razões:
“Suscitar a inconstitucionalidade de uma norma jurídica é fazê-lo de um modo tal que o tribunal perante o qual a questão é colocada saiba que tem uma questão de inconstitucionalidade a decidir. O Tribunal da Relação do Porto, face às conclusões 1 a 4 e 10ª das alegações de recurso sabia que tinha uma questão de constitucionalidade a decidir. Por outro lado era e é perfeitamente perceptível qual a questão a decidir: saber se alguém pode ser condenado não constando do despacho de pronúncia ou do dispositivo da sentença condenatória a norma incriminadora (em específico sendo os Apelantes gerentes de uma sociedade e constando do despacho de pronúncia e do dispositivo da sentença condenatória norma que acarreta apenas o sancionamento jurídico-penal da sociedade). A questão afigura-se claramente enunciada nas alegações de recurso apresentadas no Tribunal da Relação do Porto, com menção expressa da questão e das normas jurídicas cuja inconstitucionalidade foi suscitada.”
O Ministério Público responde que a reclamação é manifestamente infundada, porque os reclamantes não suscitaram “durante o processo e em termos procedimentalmente adequados, qualquer questão de inconstitucionalidade normativa, susceptível de servir de base ao recurso de fiscalização concreta interposto”.
3. Em abstracto, não há divergência essencial entre a reclamação e a decisão reclamada quanto ao objecto possível do recurso de fiscalização concreta de constitucionalidade (objecto do confronto com preceitos ou princípios constitucionais é a norma, ainda que em certa interpretação mediatizada pela decisão recorrida e não a decisão), nem quanto ao entendimento do pressuposto específico do recurso de constitucionalidade interposto que se entendeu não estar preenchido (dever a questão ter sido suscitada, com esse preciso recorte, perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, de modo processualmente adequado). A divergência resume-se à aplicação deste critério às alegações de recurso perante o Tribunal da Relação. Ora, basta a transcrição daquelas conclusões nas quais as reclamantes dizem ter colocado uma questão de constitucionalidade normativa para concluir que não têm razão:
“1- Os Apelantes foram condenados nos termos dos artºs. 27º-B, 24º, nº.s 1 e 3 e
11º do RJIFNA, sendo certo que, de acordo com a douta decisão instrutória, haviam sido pronunciados pela prática de 40 crimes previstos e punidos nos artºs. 9º, 2, 27º-B e 24.º, n.ºs 1 e 5 do RJIFNA.
2- As normas punitivas invocadas no douto acórdão condenatório não permitem nem acarretam a censura jurídico-penal dos representantes de sociedade, pois que, o tipo de ilícito penal pelo qual os Apelantes foram punidos consigna apenas a punição das “entidades empregadoras....” e não dos seus gerentes ou representantes legais e sendo certo que quem estava obrigado a entregar ao credor tributário os descontos para a Segurança Social era a Ré C. e não os Apelantes.
3- O despacho de pronúncia e bem assim a sentença condenatória devem conter as disposições legais aplicáveis, ou seja, deve indicar expressamente as normas incriminadoras e punitivas do facto ou factos ilícitos imputados, ao(s) arguido(s), para que, respectivamente, o(s) arguido(s) se possa(m) defender da conduta criminosa específica que lhe é imputada e para que se assegure só sejam punidos face à aplicação de norma que incrimine a sua conduta, sob pena de inconstitucionalidade por preclusão das garantias constitucionais de defesa e respeito pelos pressupostos constitucionais da aplicação da lei criminal.
4- Fundando-se o acórdão condenatório, em correspondência com as normas legais já invocadas no douto despacho de pronúncia, em normas das quais não resulta a responsabilidade criminal dos Apelantes, têm estes de ser absolvidos.”
(...)
10- O douto acórdão recorrido violou o disposto nos artºs. 27.º-B, 24.º, n.ºs 1 e 3 e 11º do RJIFNA, art.º 24.º da lei n.º 28/84, art.º 283.º, n.º 3 ex vi art.º
308.º, n.º 2, art.º 374.º, n.º 2 e 3, al. a), art.º 1º, n.º 1, al. a) e art.º
2º. Todos do CPP, art.º 1º do CP, artº.s 32.º e 29.º da CRP, artº.s 264.º, n.º
2, 486.º, 487.º, 497.º e 562.º do CC.”
Como esta transcrição torna imediatamente evidente, os reclamantes limitaram-se a sustentar que as normas de direito ordinário referidas no dispositivo da sentença de1ª instância não permitiam a sua condenação. Foi ao acórdão do tribunal colectivo que, conjuntamente com essas normas de direito substantivo, imputaram violação de preceitos do Código de Processo Penal e dos artigos 29.º e 32.º da Constituição. Nem sequer em plano subsidiário propuseram ao Tribunal da Relação que deixasse de aplicar quaisquer normas com fundamento em inconstitucionalidade. Para tanto não é suficiente o simples acrescentamento de normas constitucionais aos preceitos de direito ordinário que se consideram infringidos pela decisão de 1ª instância.
4. Decisão
Pelo exposto, acordam em indeferir a reclamação e condenar os reclamantes nas custas, fixando a taxa de justiça em 20 (vinte) unidades de conta (por cada recorrente).
Lisboa, 25 de Fevereiro de 2005
Vítor Gomes Maria dos Prazeres Pizarro Beleza Artur Maurício