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Processo nº 367/96
1ª Secção Rel. Cons. Tavares da Costa
Acordam na 1ª Secção do Tribunal Constitucional
I
1.- A., identificado nos autos, foi pronunciado, por despacho de 5 de Dezembro de 1995 do Senhor Juiz do Tribunal da Comarca de Santo Tirso, pela co-autoria de um crime de emissão de cheque sem cobertura, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 11º, nº 1, alínea a), do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, e 313º, nº 1, do Código Penal [artigos
202º, alínea a), 217º, nº 1, e 218º, nº 1, deste Código na redacção do Decreto-Lei nº 48/95, de 15 de Março).
Inconformado, recorreu desse despacho para o Tribunal da Relação do Porto e, desde logo, tendo presente que o artigo 310º do Código de Processo Penal (CPP) prescreve a irrecorribilidade da decisão instrutória de pronúncia, suscitou a questão da inconstitucionalidade desta norma, por entender violar a mesma o disposto nos artsº. 2º, 18º, 32º e 208º da Constituição da República (CR).
O Senhor Juiz, por despacho de 15 de Janeiro de
1996, considerando precisamente o preceituado naquele artigo 310º, em conjugação com os artigos 399º e 400º, nº 1, alínea e), do mesmo diploma, não admitiu o recurso interposto por o julgar legalmente inadmissível.
Reclamou, então, o arguido para o Senhor Presidente do Tribunal da Relação do Porto, o qual, por despacho de 7 de Março seguinte, indeferiu a reclamação, dado o disposto no aludido artigo 310º, que não teve por inconstitucional.
Os autos baixaram de imediato à Comarca, só então tendo o arguido sido notificado da decisão, dela reagindo, interpondo, em requerimento dirigido ao Senhor Presidente da Relação do Porto, recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº
28/82, de 15 de Novembro, requerimento esse apresentado na secretaria do tribunal comarcão.
Por despacho de 27 do mesmo mês, do Senhor Juiz da comarca, o recurso foi recebido por se entender tempestivo e não manifestamente infundado, assistindo legitimidade ao recorrente [artigos 70º, nºs. 1 alínea b), e 2, 72º, nº 1, alínea b), e 75º, nº 1, da lei nº 28/82], a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito suspensivo (artigo 78º, nº 4, do mesmo texto legal).
2.- Nos termos do nº 1 do artigo 687º do Código de Processo Civil (CPC) - aplicável ao procedimento do recurso de constitucionalidade ex vi do artigo 69º da Lei nº 28/82 - os recursos interpõem-se por meio de requerimento, no qual se indique a espécie de recurso interposto, requerimento esse entregue na secretaria do tribunal que proferiu a decisão recorrida ('dirigido ao tribunal que proferiu a decisão recorrida', de acordo com a actual redacção, introduzida pelo Decreto-Lei nº 180/96, de 25 de Setembro).
Por sua vez, o nº 1 do artigo 76º da Lei nº 28/82 dispõe competir ao tribunal que tiver proferido a decisão recorrida apreciar a admissão do respectivo recurso.
No caso sub judicio, compreende-se que o requerimento tenha sido apresentado na secretaria do tribunal comarcão, uma vez que o processo foi para aí de imediato remetido. Não obstante, e apesar de correctamente endereçado, foi o juiz da comarca quem admitiu o recurso e ordenou o envio dos autos para o Tribunal Constitucional, facto que originaria posterior remessa à Presidência da Relação do Porto para a devida regularização do processado.
II
1.- Delimitação do objecto do recurso.
Dispõe a norma do nº 1 do artigo 310º do CPP:
'A decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público é irrecorrível e determina a remessa imediata dos autos ao tribunal competente para o julgamento.'
O presente recurso de constitucionalidade, interposto ao abrigo da alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, reporta-se à decisão do Senhor Presidente da Relação do Porto que não julgou inconstitucionais:
a) aquela norma, 'enquanto interpretada no sentido da recorribilidade da decisão instrutória que aplique lei incriminatória inconstitucional e que padeça de emissão de pronúncia, falta ou obscuridade de fundamentação';
b) as normas dos artigos 11º, nº 1, alínea a), e 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 454/91, de 28 de Dezembro, conjugadas com a do artigo 313º do Código Penal 'enquanto submetam a sanção privativa da liberdade a emissão de cheque sem provisão para pagamento de dívidas já constituídas'.
A primeira das normas enunciadas, conforme se retira das alegações do recorrente e se condensa na conclusão primeira das respectivas alegações, viola o disposto nos artigos 2º, 18º, 32º e 208º da CR.
O complexo normativo invocado em segundo lugar, de acordo com o requerimento aludido e a conclusão segunda, na medida da interpretação de acordo com a qual é punível com prisão, mediante queixa do credor, a falta de pagamento oportuno, por inexistência de fundos, de um cheque passado pelos gerentes da devedora como meio de permitir, em tal hipótese, o seu encarceramento, viola o disposto no artigo 1º do Protocolo nº 4, Adicional à Convenção Europeia dos Direitos do Homem, anexo à Lei nº 65/78, de 13 de Outubro e, consequentemente, o artigo 8º, nº 1, da CR.
O Ministério Público, por intermédio do Senhor Procurador-Geral Adjunto neste Tribunal, conclui, no entanto, ter sido unicamente aplicada a norma do nº 1 do artigo 310º do CPP e não padecer esta,
'na parte em que se estabelece a irrecorribilidade da decisão instrutória que pronuncie o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público', de qualquer inconstitucionalidade.
Depara-se, assim, desde logo, um problema de delimitação do objecto do recurso, na medida em que não terão sido aplicadas, na decisão impugnada, as normas constitutivas daquele complexo normativo, sendo certo que o requerimento de interposição do objecto do recurso é o momento indicado para efeitos delimitativos desse objecto.
É o que, para já, cumpre decidir.
1.2.- Ora, como é óbvio e se destaca nas alegações do magistrado do Ministério Público, a decisão recorrida dirimiu a questão da admissibilidade de recurso do despacho de pronúncia lavrado nos autos, não aplicando, como tal, 'o conjunto de normas substantivas amontoadas pelo recorrente no requerimento de interposição do recurso', querendo, assim, referir-se aos artigos 11º, nº 1, alínea a), e 8º, nº 1, do Decreto-Lei nº 454/91 e 313º do Código Penal.
Com efeito, a única questão em equação respeitava à admissibilidade do recurso em si - ou seja, à aplicação do artigo 310º, nº 1, do CPP ou a uma sua dada interpretação - tudo o mais não tendo, claramente, lugar nessa decisão (e, se o tivesse, seria a mero título de especulação argumentativa).
De resto, é inequívoca, a este respeito, a aludida decisão, toda ela centrada - exclusivamente - na norma do nº 1 do artigo
310º do CPP. Como, então, se escreveu, não se vê como afectar a mesma o direito de defesa do arguido.
Um tal direito, ponderou-se, 'não se confunde com um qualquer direito de não ser submetido a julgamento'.
'A Lei que temos [desenvolve-se] de resto de acordo com jurisprudência constante do Tribunal Constitucional, não estabelece um qualquer direito dos cidadãos e não serem submetidos a julgamento.
Isto é, garantidos que sejam todos os direitos de defesa é indiferente que os efeitos desse exercício venham a ocorrer antes ou após o julgamento.
Um arguido não pronunciado não goza de estatuto de superioridade relativamente a um absolvido.
O que importa é salvaguardar a possibilidade de aquele, antes da decisão final do tribunal, ter oportunidade de fazer considerar por este, no processo decisório, tudo o que julgar útil a bem da sua defesa.
É isto, em suma, o que resulta do texto constitucional, mormente do art. 32º da Lei Fundamental.
E por aqui já se vê que o preceito atacado pelo reclamante também não estabelece qualquer afronta ao princípio da igualdade (art. 13, nº 1, CR).
Numa das suas possíveis dimensões, e que tem a ver com perspectivação do caso, o princípio aponta para a proibição do arbítrio.
E, como ensinam os constitucionalistas, nesta perspectiva, o princípio da igualdade exige positivamente um tratamento igual de situações de facto iguais e um tratamento diverso de situações de facto diferentes.
Mas, como também é dado adquirido nesta matéria, a proibição de arbítrio, ao valer como princípio objectivo de controle, não significa em si mesma, simultaneamente, um direito subjectivo público a igual tratamento, e não retira mesmo ao legislador ordinário a liberdade de conformação legislativa, pois a ele pertence, dentro dos limites constitucionais definir ou qualificar as situações de facto ou as relações da vida que hão-de funcionar como elementos de referência a tratar igual ou desigualmente [v. J.J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Const. da Rep. Portuguesa, Anotada, 3º-edição, Revista)
Ora, em nosso entender, pelo exposto, falece razão do reclamante.
Nesta conformidade, sem mais considerações, por escusadas, indefiro a presente reclamação.'
1.3.- Em face do que se expôs e considerando, por sua vez, que a efectiva aplicação da norma cuja constitucionalidade se questiona, como pressuposto do recurso de constitucionalidade previsto na alínea b) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82, se articula estreitamente, como é pacífico, com o fundamento normativo e determinativo da própria decisão, só há que concluir no sentido de que está apenas em causa, neste recurso, a norma do nº 1 do artigo
310º citado, desinteressando tudo o mais ao objecto do presente recurso.
2.1.- Saneado este, há, no entanto, que registar constituir jurisprudência deste Tribunal pronunciar-se no sentido da não inconstitucionalidade da norma sindicanda.
O problema, ora equacionado relativamente ao conjunto dos artigos 2º, 18º, 32º ('especialmente' o seu nº 5) e 208º do texto constitucional, foi, por exemplo, já tratado em anteriores acórdãos como sejam o nº 265/94 - publicado no Diário da República, II Série, de 19 de Julho de 1994
- relativamente aos artigos 1º, 2º, 8º, 13º e 16º da Lei Fundamental, e 610/96
- publicado no mesmo jornal oficial, II Série, de 6 de Julho de 1996 - no tocante aos artigos constitucionais nºs. 13º, nº 1, e 32º, nº 1, em termos que ora se secundam e para os quais se remete.
Não se vê, na verdade - sem prejuízo de uma outra regra de recorribilidade, a estabelecer pelo legislador ordinário - em que medida as garantias de defesa, e designadamente a estrutura acusatória do processo criminal com a sua correlativa sujeição ao contraditório, possam ser afectadas, em termos de garantia de direitos fundamentais, por uma medida como a adoptada que, aliás, é justificada pela potencialização da economia processual, numa óptica de celeridade e eficiência (na prática, nem sempre desejável) e não se mostra arbitrária nem materialmente infundada, além de não vedar ao arguido o poder de contraditar o juízo indiciário, se e quando este se fortalecer de modo a suportar eventual sentença condenatória.
Como se salientou no citado acórdão nº 610/96, apenas é irrecorrível a decisão instrutória que pronunciar o arguido pelos factos constantes da acusação do Ministério Público.
'Ora [escreveu-se então] este regime especial não é arbitrário, encontrando fundamento na existência de indícios comprovados, de modo coincidente, em duas fases do processo: pelo Ministério Público, dominis do inquérito , e pelo juiz de instrução. E o Ministério Público é configurado constitucionalmente como uma magistratura autónoma (artigo 221º, nº 2, da Constituição), sendo concebido, no processo penal, como um sujeito isento e objectivo que pode, nomeadamente, determinar o arquivamento do inquérito em caso de dispensa de pena, propugnar, findo o julgamento, a absolvição do arguido e interpor recurso da decisão condenatória em exclusivo benefício do arguido [artigos 280º, nº 1, e 53º, nº 2, alínea d), do Código de Processo Penal: cf. Figueiredo Dias, «Sobre os sujeitos processuais no novo Código de Processo Penal», O Novo Código de Processo Penal, obra colectiva, 1988, pp. 22 e segs. e 31]'
E, mais adiante, em articulação com o acórdão nº
265/94:
'[...]a irrecorribilidade do despacho de pronúncia nas situações previstas no nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal não ofende as garantias de defesa, se englobada no regime em que estejam salvaguardadas as garantias de defesa nas fases de inquérito e de instrução, nomeadamente através da possibilidade de requerer diligências probatórias e de recorrer de um eventual indeferimento. Sendo certo que o nº 1 do artigo 32º da Constituição impõe que se consagre o direito de recorrer de decisões condenatórias e de actos judiciais que, durante o processo, tenham como efeito a privação ou a restrição da liberdade ou de outros direitos fundamentais do arguido, é admissível que o legislador determine a irrecorribilidade de outros actos judiciais desde que não atinja o conteúdo essencial das garantias de defesa (cf. Acórdãos nºs. 8/87, 31/87 e 177/88 - o primeiro já citado e os restantes publicados em Acórdãos do Tribunal Constitucional, 9º vol., pp. 467-469, e 12º vol., pp. 596 e segs., respectivamente) e a limitação seja justificada por outros valores relevantes no processo penal.
Consequentemente, também não se pode concluir que o regime consagrado no nº 1 do artigo 310º do Código de Processo Penal viole as garantias de defesa (artigo 32º, nº 1, da Constituição) e, especificamente, o direito de recurso ou a um duplo grau de jurisdição.'
2.2.- Os acórdãos citados, indicados exemplificativamente e para cuja fundamentação se remete, respondem devidamente à argumentação deduzida pelo recorrente.
Este, no entanto, nas suas alegações e sem que tenha transportado para a síntese conclusiva final essa matéria, argumenta ainda, com o que considera ser a mais recente evolução do sistema constitucional, que 'vai no sentido de assegurar aos cidadãos que impugnem, desde logo, quaisquer decisões ilegais ainda que não definitivas, bastando que se verifique uma lesão imediata dos seus direitos ou interesses legalmente protegidos (Vide a redacção que pela revisão de 1989 foi dada ao nº 4 do arte.
268º, da Lei Fundamental, em paralelo com o nº 3 da redacção anterior).
Daí retira:
'Ora, a censura penal decorrente da pronúncia (em processo crime) atinge, a maior parte das vezes, valores do cidadão (honra, consideração social e nome comercial) de muito maior carga axiológica que a daqueles valores que podem ser atingidos por uma decisão interlocutória, mas desde logo danosa, no procedimento administrativo.
O concreto cerceamento da liberdade e a efectiva lesão do bom nome resultantes da pronúncia - na prática sabe-se que a presunção de inocência do pronunciado só é seguido como um princípio processual, mas não tem seguidores na opinião pública - afectam direitos e liberdades fundamentais (artºs. 26º,
1, e 27º, 1, da Constituição.
A limitação constitucional à restrição de tais direitos (artº 18º, nº 2, daquele Diploma Fundamental) só pode ser assegurado pelo direito de recurso.
Aliás, não se entende que se admita o recurso do despacho que ordene a prisão preventiva em flagrante delito e o mesmo já não seja admitido do despacho de pronúncia do qual pode resultar de igual modo a prisão preventiva e necessariamente resulta a privação parcial da liberdade (resultante do termo de identidade e residência) - artº 27º, nºs. 2 e 3, a), da Lei Fundamental.'
Esta é, no entanto, uma questão que, in casu, não colhe, sempre preservados que estão o direito ao recurso e o conteúdo essencial das garantias de defesa (os acórdãos transcritos parcialmente respondem nesse sentido, compaginável, de resto, com o entendimento que o Tribunal vem adoptando quanto ao nº 4 do artigo 268º da CR, como, v.g., ilustra o acórdão nº 499/96, publicado no Diário da República, II Série, de 3 de Julho de 1996).
III
Em face do exposto, decide-se negar provimento ao recurso, confirmando-se a decisão recorrida no que respeita à questão de constitucionalidade.
Lisboa, 2 de Julho de 1997 Alberto Tavares da Costa Antero Alves Monteiro Diniz Maria Fernanda Palma Maria da Assunção Esteves Vítor Nunes de Almeida Armindo Ribeiro Mendes José Manuel Cardoso da Costa