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Processo n.º 1085/04
1.ª Secção Relatora: Conselheira Maria Helena Brito
Acordam, em conferência, na 1.ª Secção do Tribunal Constitucional:
I
1. A fls. 230 e seguintes, foi proferida decisão sumária no sentido do não conhecimento do objecto do recurso interposto para este Tribunal por A., com os seguintes fundamentos:
“[...]
2. O recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do artigo 70º da Lei do Tribunal Constitucional cabe das decisões dos tribunais «que apliquem norma cuja inconstitucionalidade haja sido suscitada durante o processo». Para que o Tribunal Constitucional possa conhecer de um recurso fundado nessa disposição, exige-se que o recorrente suscite, durante o processo, a inconstitucionalidade da norma (ou da norma, numa certa interpretação) que pretende que este Tribunal aprecie e que tal norma (ou tal norma, com essa interpretação) seja aplicada no julgamento da causa, como ratio decidendi, não obstante a acusação de inconstitucionalidade que lhe foi dirigida. Ora os pressupostos processuais do recurso interposto não estão verificados no caso dos autos.
3. Desde logo, o recorrente não suscitou perante o tribunal recorrido qualquer questão de inconstitucionalidade normativa a propósito das normas que agora vem submeter à apreciação do Tribunal Constitucional. Nas alegações de recurso através do qual impugnou a sentença da 1ª Instância
(fls. 151 a 177), o recorrente discutiu sucessivamente as seguintes questões:
– «violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva por violação do disposto nos artigos 20º e 268º, n.º 4, ambos da Constituição da República Portuguesa (CRP)» – C.I. (fls. 154 a 156 e conclusões 1ª a 4ª);
– «violação do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 9º e dos artigos
95º e 97º, n.º 2, todos da Lei Geral Tributária (LGT)» – C.II. (fls. 157 a 161 e conclusões 5ª a 14ª);
– «incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo 176º do CPPT» – C.III. (fls. 161 a 165 e conclusões 15ª a 20ª);
– «incorrecta interpretação e aplicação do disposto no n.º 3 do artigo 9º e do artigo 96º da LGT» – C.IV. (fls. 165 a 170 e conclusões 22ª a
25ª).
3.1. É certo que o recorrente invocou a violação do princípio da tutela jurisdicional efectiva e do disposto nos artigos 20º e 268º, n.º 4, da Constituição. Simplesmente tal violação foi imputada directamente à decisão então impugnada e não a normas de direito ordinário aplicadas nessa decisão, concretamente às normas que agora são identificadas no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional. Como é sabido, a competência atribuída ao Tribunal Constitucional pela Constituição e pela lei no âmbito dos recursos de fiscalização concreta de constitucionalidade diz respeito a normas ou interpretações normativas, não abrangendo a apreciação da inconstitucionalidade de actos de outra natureza, designadamente, de decisões judiciais. A invocação da mencionada questão perante o Tribunal Central Administrativo, respeitando à inconstitucionalidade da decisão então recorrida, não satisfaz portanto o ónus a que se referem os artigos 70º, n.º 1, alínea b), e 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional.
3.2. É também certo que uma das normas indicadas no requerimento de interposição do presente recurso de constitucionalidade foi questionada pelo recorrente nas alegações produzidas perante o Tribunal Central Administrativo: a norma constante do artigo 176º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Só que, nessas alegações, o recorrente não suscitou a propósito de tal preceito uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa, limitando-se a criticar o que considera ser a «incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo
176º do CPPT». Trata-se, portanto, de um problema de violação de lei e, assim, de matéria que não pode ser apreciada no âmbito de um recurso de fiscalização concreta [de] constitucionalidade, uma vez que o Tribunal Constitucional não tem competência para sindicar a aplicação que os tribunais comuns fazem do direito infra-constitucional aos casos que são chamados a julgar.
4. Só no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional
(supra, 1.) vem o recorrente imputar a violação de preceitos constitucionais a determinada interpretação de certas normas aí identificadas, o que é manifestamente extemporâneo, atendendo ao disposto no artigo, 70º n.º 1, alínea b), da Lei do Tribunal Constitucional e no artigo 72º, n.º 2, da mesma Lei.
5. Assim – e independentemente de saber se as normas indicadas no requerimento de interposição do recurso, na interpretação identificada pelo recorrente, constituíram o fundamento jurídico da decisão recorrida –, conclui-se que não pode dar-se como verificado um dos pressupostos processuais típicos do recurso interposto: a invocação pelo recorrente, durante o processo, da questão de inconstitucionalidade normativa que pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional.
[...].”.
2. Notificado dessa decisão, A. veio reclamar para a conferência, nos termos do artigo 78º-A, n.º 3, da Lei deste Tribunal (requerimento de fls. 238 e seguintes), invocando, para o que aqui releva, o seguinte:
“[...]
3. Cabe conceder que a forma como o Recorrente se expressou nas suas alegações para o Tribunal Superior não foi a melhor do ponto de vista da preparação de um eventual recurso para o Tribunal Constitucional – mas é verdade que nunca o Recorrente antolhou a necessidade de litigar, neste processo, perante este ilustre Tribunal!
[...]
5. Ao invés do que se afirma no ponto 3 da decisão reclamanda, o Recorrente suscitou perante o Tribunal recorrido uma questão de inconstitucionalidade normativa a propósito das normas que vem submeter à apreciação do Tribunal Constitucional. Com efeito,
6. Como se afirma no requerimento de interposição de recurso, a inconstitucionalidade dos artigos 176º, n.º 1, al. a), 264º, n.º 1, e 269º, todos do Código de Procedimento e de Processo Tributário (CPPT), por violação dos artigos 20º e 268º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa, é afirmada pelo Recorrente, seja no articulado de pronúncia sobre a decisão de extinção da instância proferida pelo Tribunal inferior, seja nas alegações junto do (então) Tribunal Central Administrativo (logo, em todas as peças que, neste processo, teve oportunidade de produzir). Assim,
7. No articulado de pronúncia a que se faz referência, junto pelo Recorrente aos autos de Oposição em 05/11/2002, todo o texto referenciado sob a epígrafe «II - Da tutela jurisdicional efectiva», concorre no sentido de que o (então) Tribunal Tributário de 1ª Instância de Santarém aplica o art. 176° do CPPT de forma tal que o mesmo se revela inconstitucional.
8. Com efeito, lá se afirma que interpretar tal preceito no sentido de que o pagamento da dívida exequenda, na pendência de oposição à execução fundada em ilegitimidade do executado e em prescrição dos créditos, importa a extinção tanto do processo de execução fiscal como do processo de oposição por inutilidade superveniente da lide, constitui violação do direito fundamental à tutela jurisdicional efectiva. Aliás,
9. Expressamente se refere, logo a abrir tal ponto, quais as normas da Constituição violadas – arts. 20° e 268°, n.º 4;
10. E igualmente se refere, de forma expressa, o preceito que mais directamente as viola – o referido art. 176º do CPPT.
[...]
13. Quando se afirma, na conclusão identificada 20ª, (iv), que: O artigo 176° do CPPT tem que ser interpretado no sentido de que a extinção do processo de execução por pagamento da dívida exequenda nem sempre pode, e nem sempre deve, ter por fim a extinção da oposição – designadamente quanto este constitui, de acordo com a lei, o meio processual adequado a satisfazer judicialmente a pretensão de um particular em ver reconhecida a sua irresponsabilidade como devedor da dívida exequenda, está necessariamente subjacente a esta asserção que o mesmo preceito, na interpretação que lhe é dada pelo Tribunal a quo, resulta inconstitucional por violação do direito à tutela jurisdicional efectiva.
14. Aliás, todo o texto das mencionadas alegações versa a referida matéria de inconstitucionalidade, não apenas do citado preceito, mas de outras normas que, a nosso ver de forma indirecta, o Tribunal recorrido aplicou de forma igualmente inconstitucional. Assim,
15. O Recorrente preencheu, inequivocamente, os pressupostos de recorribilidade exigidos nos n.ºs 1 e 2 do art. 75°-A da Lei do Tribunal Constitucional,
16. Porquanto se refere no requerimento quais as normas cuja inconstitucionalidade se pretende que o Tribunal aprecie, bem assim os princípios e normas da Constituição violadas pela lei ordinária.
17. Igualmente se refuta, pelos argumentos expendidos supra (e desde já apelando para uma nova leitura das peças processuais mencionadas na presente reclamação), que o Recorrente não tenha suscitado a inconstitucionalidade de normas, maxime do art. 176, n.º 1, alínea a), do CPPT, na interpretação que lhe foi dada pelos Tribunais a quo.
[...]
19. É manifesto que, das peças produzidas pelo Recorrente, seja junto do Tribunal de primeira instância, seja junto do Tribunal de recurso, ficou absolutamente claro: a) Que os Tribunais tomaram conhecimento de que tinham pelo menos uma questão de constitucionalidade para decidir; b) Quais as normas cuja inconstitucionalidade se arguia; c) Quais os preceitos e princípios constitucionais violados por essas normas.
[...]
23. Tal é, justamente, a única pretensão do Recorrente: que o Tribunal Constitucional julgue novamente da constitucionalidade das normas invocadas, em particular do art. 176°, n.º 1, alínea a), do CPPT, em face do constitucionalmente estabelecido quanto ao direito de acesso aos tribunais e de tutela jurisdicional efectiva.
24. Pois tal julgamento de constitucionalidade foi já feito pelos Tribunais Tributários de onde vimos de litigar, e foi-o no sentido de que a lei processual ordinária sindicada subordina a Constituição.
25. Tal ofensa à ordem jurídica não pode prevalecer – pelo menos sem que sobre ela o Tribunal Constitucional emita o seu julgamento e convença o Recorrente de que não tem razão...
[...].”.
3. A recorrida Fazenda Pública não respondeu à reclamação apresentada
(cota de fls. 245).
Cumpre apreciar e decidir.
II
4. Através do presente recurso para o Tribunal Constitucional, e tal como consta do respectivo requerimento de interposição, o ora reclamante pretende ver apreciada a inconstitucionalidade das normas contidas nos artigos
176º, n.º 1, alínea a), 264º, n.º 1, e 269º do Código de Procedimento e de Processo Tributário, interpretadas “no sentido de a realização do pagamento da quantia exequenda implicar, mesmo na pendência de oposição à execução apresentada regularmente em juízo fundada em ilegitimidade do executado e em prescrição dos créditos fundamento da execução, a extinção tanto do processo de execução fiscal como do processo de oposição por inutilidade superveniente da lide”, por violação dos artigos 20º e 268º, n.º 4, da Constituição (requerimento de fls. 221 e seguinte dos presentes autos).
Na decisão reclamada, entendeu-se que o recorrente não suscitou, perante o tribunal recorrido, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade normativa a propósito das disposições que agora pretende submeter ao julgamento do Tribunal Constitucional. Como tal, e sem necessidade de analisar a verificação dos restantes pressupostos processuais do recurso interposto, concluiu-se não ser possível conhecer do respectivo objecto e proferiu-se decisão sumária, ao abrigo do disposto no artigo 78º-A, n.º 1, da LTC, no sentido do não conhecimento do objecto do recurso.
5. Na reclamação agora deduzida, o reclamante pretende demonstrar que suscitou a questão de inconstitucionalidade de modo processualmente adequado. Refere-se todavia apenas à norma do artigo 176º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário (cfr., designadamente, n.ºs 7, 10, 13, 17,
19, 23 do requerimento apresentado, transcrito supra, 2.).
Daqui resulta que não vem impugnada a decisão sumária na parte em que considerou que durante o processo não foi invocada a inconstitucionalidade das normas constantes dos artigos 264º, n.º 1, e 269º do Código de Procedimento e de Processo Tributário. Consequentemente, a decisão proferida transitou em julgado quanto a essa parte.
O objecto da reclamação restringe-se portanto à decisão de não conhecimento do objecto do recurso de constitucionalidade no que diz respeito à norma do artigo 176º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
6. Reafirma-se que o ora reclamante não suscitou, durante o processo, perante o tribunal recorrido, uma autêntica questão de inconstitucionalidade normativa reportada ao artigo 176º, n.º 1, alínea a), do Código de Procedimento e de Processo Tributário.
Basta, de resto, atentar no texto das alegações produzidas perante o Tribunal Central Administrativo (e só essas alegações importa considerar tendo em conta a exigência feita pelo artigo 72º, n.º 2, da Lei do Tribunal Constitucional) – concretamente, no texto reproduzido no ponto n.º 13 da reclamação (transcrito supra 2.) –, para concluir que o ora reclamante se limitou a manifestar a sua discordância relativamente à decisão proferida pelo Tribunal Tributário de 1ª Instância de Santarém e a criticar o que considera ser a “incorrecta interpretação e aplicação do disposto no artigo 176º do CPPT”.
Nem se argumente contra esta conclusão dizendo, como diz o ora reclamante, que a sua única pretensão é que “o Tribunal Constitucional julgue novamente da constitucionalidade das normas invocadas, em particular do art.
176°, n.º 1, alínea a), do CPPT, em face do constitucionalmente estabelecido quanto ao direito de acesso aos tribunais e de tutela jurisdicional efectiva”, pois “tal julgamento de constitucionalidade foi já feito pelos Tribunais Tributários de onde vimos de litigar”.
Na verdade, o Tribunal Central Administrativo resumiu assim os argumentos constantes da alegação do então recorrente (fls. 204):
“[...]
– a decisão recorrida viola o princípio da tutela jurisdicional efectiva e, consequentemente, viola o disposto nos arts. 20º e 268º, n.º 4, da Constituição da República Portuguesa (CRP) e o disposto nos arts. 9º, n.ºs 1 e 2, 95º e 97º, n.º 2, todos da Lei Geral Tributária (LGT), pois [...];
– a decisão recorrida não fez correcta interpretação e aplicação do disposto no art. 176º do CPPT, pois [...];
– a decisão recorrida fez incorrecta interpretação e aplicação do disposto nos arts. 9º, n.º 3, e 96º, n.º 2, da LGT, pois [...];
[...].”.
Seguidamente, o Tribunal Central Administrativo identificou como questão a apreciar e decidir no âmbito do recurso “a de saber se a decisão recorrida fez errado julgamento quando considerou que a extinção da execução fiscal acarreta a «impossibilidade/inutilidade superveniente» da oposição que lhe foi deduzida” (fls. 205 e 207).
E, pronunciando-se sobre as incompatibilidades com a Constituição alegadas pelo então recorrente, disse, a concluir, o Tribunal Central Administrativo (fls. 213):
“[...] O Tribunal Constitucional, tribunal especialmente vocacionado para a apreciação das questões da inconstitucionalidade e ao qual cabe em última instância a decisão sobre tais questões, decidiu já, pelo acórdão n.º 154/2002, pela não inconstitucionalidade do entendimento de que o pagamento da dívida exequenda efectuado nos termos do artigo 246º, n.º 3, do CPT, a que corresponde actualmente o art. 23º, n.º 5, da LGT, extingue a execução e inviabiliza a oposição à execução fiscal.
[...].”.
Das passagens do acórdão agora transcritas resulta, em síntese, que o Tribunal Central Administrativo:
– interpretou as alegações do aí recorrente no sentido de imputarem
à decisão recorrida os vícios de inconstitucionalidade e de ilegalidade;
– apreciou tais vícios, julgando improcedentes os argumentos do aí recorrente (sublinhe-se, quanto a este ponto, que, enquanto a competência dos tribunais comuns abrange a apreciação da eventual inconstitucionalidade da decisão recorrida, a competência que a Constituição e a lei atribuem ao Tribunal Constitucional no âmbito dos recursos de fiscalização concreta diz respeito a normas e não a decisões judiciais);
– afastou liminarmente a inconstitucionalidade do regime contido no artigo 246º, n.º 3, do CPT, a que corresponde actualmente o artigo 23º, n.º 5, da LGT, remetendo para jurisprudência anterior do Tribunal Constitucional (o que implica que o julgamento de não inconstitucionalidade proferido pelo tribunal a quo não incidiu, ao contrário do que afirma o reclamante, sobre as normas que pretende submeter à apreciação do Tribunal Constitucional, sendo certo que não foi por ele arguida oportunamente qualquer nulidade quanto àquele julgamento).
7. Conclui-se assim que, não tendo sido suscitada pelo ora reclamante, de modo processualmente adequado, uma questão de inconstitucionalidade reportada
às normas identificadas no requerimento de interposição do recurso para o Tribunal Constitucional, não pode conhecer-se do objecto do recurso.
Nada mais resta pois do que confirmar o decidido.
III
8. Nestes termos, e pelos fundamentos expostos, o Tribunal Constitucional decide indeferir a presente reclamação, confirmando a decisão reclamada, que não tomou conhecimento do objecto do recurso.
Custas pelo reclamante, fixando-se a taxa de justiça em vinte unidades de conta.
Lisboa, 16 de Março de 2005
Maria Helena Brito Carlos Pamplona de Oliveira Rui Manuel Moura Ramos