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Processo n.º 682/02 Plenário Relator: Conselheiro Paulo Mota Pinto
Acordam no Plenário do Tribunal Constitucional:
I – Relatório
1.O Provedor de Justiça requereu ao Tribunal Constitucional a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma constante do artigo
7.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Eleitos Locais (aprovado pela Lei n.º
29/87, de 30 de Junho, e alterado pelas Leis n.º 97/89, de 15 de Dezembro, n.º
1/91, de 10 de Janeiro, n.º 11/91, de 17 de Maio, n.º 11/96, de 18 de Abril, n.º
127/97, de 11 de Dezembro, n.º 50/99, de 24 de Junho, n.º 86/01, de 10 de Agosto), por violação do princípio da igualdade, constante do artigo 13.º, n.º
1, e concretizado no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição.
À data do pedido, esse artigo 7.º estabelecia o seguinte:
“Artigo 7.º Regime de remunerações dos eleitos locais em regime de permanência
1 – As remunerações fixadas no artigo anterior são atribuídas do seguinte modo: a) Aqueles que exerçam exclusivamente as suas funções autárquicas recebem a totalidade das remunerações previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo anterior; b) Aqueles que exerçam uma profissão liberal, quando o respectivo estatuto profissional permitir a acumulação, ou qualquer actividade privada perceberão
50% do valor da base da remuneração, sem prejuízo da totalidade das regalias sociais a que tenham direito.
2 – Para determinação do montante da remuneração, sempre que ocorra a opção legalmente prevista, são considerados os vencimentos, diuturnidades, subsídios, prémios, emolumentos, gratificações e outros abonos, desde que sejam permanentes, de quantitativo certo e atribuídos genericamente aos trabalhadores da categoria optante.
3 – Os presidentes de câmaras municipais e os vereadores em regime de permanência que não optem pelo exclusivo exercício das suas funções terão de assegurar a resolução dos assuntos da sua competência no decurso do período de expediente público.” Para sustentar a sua pretensão, alegou, em síntese, o requerente:
«[...]
5. De acordo com a letra da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º, ao regime de permanência em exclusividade de funções corresponderá a totalidade da remuneração, definida em termos quantitativos no artigo 6.º do mesmo diploma.
6. Por sua vez, os eleitos locais em regime de permanência que não optem pelo exercício exclusivo de funções autárquicas, em virtude do desempenho de profissão liberal ou de qualquer outra actividade privada, auferirão, nos termos do artigo 7.º, n.º1, alínea b), metade do valor base previsto na alínea a) do mesmo artigo e número.
7. Relativamente aos eleitos locais em regime de meio tempo, determina o artigo
8.º do diploma em análise que os mesmos perceberão metade do valor das remunerações e subsídios dos vereadores em regime de tempo inteiro, independentemente de desenvolverem ou não qualquer outra actividade pública, privada, remunerada ou gratuita, prestada de forma regular e permanente ou ocasional.
8. Da leitura do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), conjuntamente com o disposto no artigo 8.º da citada Lei, resulta a não distinção entre os autarcas em regime de permanência que cumulem as funções autárquicas com outras actividades e os autarcas que exercem as suas funções em regime de meio tempo.
9. De acordo com a solução legal hoje constante da Lei n.º 29/87, os autarcas que desenvolvam actividade privada auferem, não obstante estarem abrangidos pelo regime de permanência, isto é, a tempo inteiro (com as obrigações e carga horária ínsitas no mesmo), o mesmo que os autarcas a tempo parcial, negligenciando o facto de os primeiros prestarem à autarquia o dobro do trabalho.
10. Na realidade, o próprio legislador, não obstante tal igualitarismo remuneratório, considera ser distinta a situação de um autarca em regime de permanência de funções (independentemente de o mesmo cumular ou não com a função autárquica qualquer outro tipo de actividade) ao determinar, no art. 2.º, n.º 2, in fine, da Lei n.º 29/87, que dois vereadores em regime de meio tempo correspondem a um vereador em regime de permanência (também neste sentido, o artigo 58.º, n.º 3, da Lei n.º 169/99, de 18 de Setembro).
11. Deste modo, reconhece o legislador que o trabalho desenvolvido por um autarca em regime de permanência é diferente, em termos de quantidade, natureza e qualidade, da actividade prestada por um autarca em tempo parcial.
[...]
14. Não se considera [pelo contrário], compatível com um tratamento constitucionalmente adequado destas realidades, a igual remuneração atribuída a autarcas em regime de permanência e a autarcas em meio tempo, isto quando aqueles exerçam actividade privada, apesar de desempenharem a sua actividade pública pelo dobro do tempo destes últimos.
15. Esta desigualdade torna-se mais gritante se se considerar que nada impede, sem perda de remuneração, o exercício de actividade privada pelos eleitos a meio tempo.
16. As situações de facto, de um autarca em permanência sem exclusividade e a de um autarca a meio tempo, apenas se distinguem por um singular aspecto: o de o primeiro estar vinculado a prestar, em número de horas, o dobro do trabalho do segundo.
17. E a esta desigualdade responde a Lei igualizando as respectivas remunerações.
[...]
22. Esta disposição (artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República Portuguesa), ao determinar que “para trabalho igual salário igual”, se considera que a trabalho igual em quantidade (duração e intensidade), natureza
(dificuldade e penosidade) e qualidade (exigências em termos de conhecimentos, prática e capacidade), deverá corresponder igual retribuição, de igual modo determina também que a trabalho desigual deverá corresponder salário distinto.
23. Muito embora se esteja a tratar da remuneração de titulares de órgãos públicos, aliás electivos, e não de qualquer relação laboral, crê-se aplicável à fixação da remuneração destes cargos a doutrina decorrente do princípio da igualdade.
24. Assim, à luz do normativo constitucional invocado, tem-se que, na presente situação, os autarcas inseridos no âmbito do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 29/87, estarão a auferir a mesma remuneração que os autarcas que desenvolvem trabalho diverso, desde logo no que respeita à sua quantidade.
[...]
26. Face a tal, não parece razoável a equiparação estabelecida nos termos já anteriormente expostos, tendo o legislador optado por uma solução desproporcional e inadequada face à situação fáctica a regular, pondo em causa os princípios vertidos no artigo 13.º, n.º 1 e, no artigo 59.º, n.º 1, alínea a), ambos da Constituição da República Portuguesa.
[...]
28. Na realidade, da aplicação do actual normativo legal resulta que, coeteris paribus, um eleito local em regime de permanência, mas em exercício não exclusivo de funções, receberá exactamente o mesmo que um vereador em regime de meio tempo, resultando assim, que por ambos seja auferida igual remuneração, independentemente de os primeiros prestarem à autarquia o dobro do trabalho que os segundos prestam.
[...]»
2.Notificado nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 54.º e 55.º, n.º 3, da Lei do Tribunal Constitucional, o Presidente da Assembleia da República ofereceu o merecimento dos autos e juntou cópia dos exemplares do Diário da Assembleia da República [DAR] que contêm os trabalhos preparatórios relativos ao diploma em apreciação.
3.Apresentado memorando, nos termos do disposto no artigo 63.º, n.º 1, da Lei de Organização, Funcionamento e Processo do Tribunal Constitucional, foi fixada a orientação deste Plenário, havendo agora que lavrar a respectiva decisão. II. Fundamentos
4.Importa começar por tratar de uma questão prévia. Na verdade, em data posterior à apresentação do presente pedido e, bem assim, da resposta do Presidente da Assembleia da República, foi publicada a Lei n.º
22/2004, de 17 de Junho, que procedeu à oitava alteração do Estatuto dos Eleitos Locais, dando nova redacção aos seus artigos 5.º e 7.º, e determinando o início de produção dos seus efeitos, quanto a este último artigo, em 1 de Outubro de
2003. O legislador manteve intacta a redacção da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º, cuja apreciação é objecto do presente pedido de fiscalização abstracta sucessiva da constitucionalidade. Foi, todavia, alterada a redacção da alínea a) do n.º 1 desse artigo 7.º, que passou a dispor:
«[A]s remunerações fixadas no artigo anterior são atribuídas do seguinte modo: a) Aqueles que exerçam exclusivamente funções autárquicas, ou em acumulação com o desempenho não remunerado de outras funções públicas ou privadas, recebem a totalidade das remunerações previstas no artigo anterior». Por seu turno, o novo n.º 2 do artigo 7.º, aditado pela Lei n.º 22/2004 (tendo os anteriores n.ºs 2 e 3 passado a n.ºs 3 e 4), veio determinar que «[p]ara os efeitos do número anterior, não se considera acumulação o desempenho de actividades de que resulte a percepção de rendimentos provenientes de direitos de autor». Após esta alteração introduzida pela Lei n.º 22/2004, também os autarcas que exerçam funções em acumulação com o desempenho não remunerado de funções públicas ou privadas recebem a totalidade da remuneração (sobre o conceito de acumulação, cf. João Alfaia, «Acumulação», in Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol. I, Atlântida Editora, Coimbra, 1965, pp. 166 e ss.). Era algo que não resultava – ou, para quem perfilhe outra interpretação, não resultava claro – do regime anterior, já que este último, para efeitos remuneratórios, não previa qualquer distinção entre eleitos locais que acumulassem o exercício de funções com outras actividades remuneradas e os eleitos locais que, além das funções autárquicas, desempenhassem actividades, públicas ou privadas, não remuneradas. Por conseguinte, no contexto do Estatuto dos Eleitos Locais, na versão anterior à Lei n.º 22/2004, tudo apontava para que um eleito local que exercesse outras actividades, ainda que a título gracioso, recebesse apenas 50% do valor base da remuneração, nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º da Lei n.º 29/87. A partir da Lei n.º 22/2004, diversamente, a acumulação de funções autárquicas com actividades exercidas a título gratuito não implica qualquer redução salarial para os eleitos locais. Por outro lado, ficou agora definido que não se considera acumulação a actividade de que resulte a percepção de rendimentos provenientes de direitos de autor. Finalmente, existiam dúvidas sobre se a Lei n.º 9/90 teria revogado a alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º, tendo o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República sustentado a tese negativa (cf. o Parecer publicado in Diário da República [DR], II Série, n.º 217, de 19 de Setembro de 1996, e Paula Braga e Fátima Diniz, Estatuto dos Eleitos Locais anotado, Centro de Estudos e Formação Autárquica, Coimbra, 2002, pp. 33 e ss). Ora, a numeração da Lei n.º 22/2004 manteve expressamente a referência à citada alínea b), pelo que esta se deve considerar em vigor. Durante o processo legislativo parlamentar que conduziu à aprovação da Lei n.º
22/2004, a norma em apreciação no presente processo – o artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do citado Estatuto – foi, aliás, objecto de debate. Essa Lei n.º
22/2004 teve origem no projecto de lei n.º 417/IX/2, subscrito pelos Deputados Luís Marques Guedes (PSD), Manuel Oliveira (PSD), Vítor Reis (PSD), Miguel Paiva
(CDS-PP) e Isabel Gonçalves (CDS-PP), que deu entrada em 12 de Março de 2004 e foi admitido e anunciado no mesmo dia (sendo publicado no DAR, II Série-A, n.º
44/IX/2, de 13 de Março de 2004, p. 2094). O projecto de lei n.º 417/IX/2 propunha a seguinte redacção para o n.º 1 do artigo 7.º:
«Artigo 7.º (...)
1 – As remunerações fixadas no artigo anterior são atribuídas do seguinte modo: a) Aqueles que exerçam funções autárquicas em acumulação com o desempenho não remunerado de outras funções públicas ou privadas recebem a totalidade das remunerações previstas nos n.ºs 2 e 3 do artigo anterior, sem prejuízo do direito a senhas de presença; b) Aqueles que exerçam funções autárquicas, em acumulação com o desempenho remunerado de outras funções públicas ou privadas, recebem. 50% do valor da base da remuneração, sem prejuízo da totalidade das regalias sociais a que tenham direito». No decurso da discussão na generalidade, debateu-se, entre outros, o problema da percepção de senhas de presença ou, mais precisamente, da fixação do seu valor
(cf. DAR, I Série, n.º 64/IX/2, de 18 de Março de 2004, pp. 3570-3573, e, em especial, a intervenção do Deputado Honório Novo, do PCP, a p. 3572). O texto final aprovado na Comissão de Poder Local, Ordenamento do Território e Ambiente dispunha:
«Artigo 7.º
(…)
1 – As remunerações fixadas no artigo anterior são atribuídas do seguinte modo: a) Aqueles que exerçam exclusivamente funções autárquicas, ou em acumulação com o desempenho não remunerado de outras funções públicas ou privadas, recebem a totalidade das remunerações previstas no artigo anterior; b) (…)»
(in DAR, II Série-A, n.º 62/IX/2, de 21 de Maio de 2004, pp. 2474-2475). Este texto seria aprovado, por unanimidade, em votação final global, na reunião plenária da Assembleia da República que teve lugar em 20 de Maio 2004 (in DAR, I Série, n.º 90/IX/2, de 21 de Maio de 2004, p. 4981; cf. o texto do decreto n.º
173/IX, in DAR, II Série-A, n.º 63/IX/2, de 27 de Maio de 2004, p. 2564; para uma informação mais detalhada sobre o processo de aprovação parlamentar do decreto n.º 173/IX, cf. www.parlamento.pt). Esta breve descrição do processo legislativo que conduziu à Lei n.º 22/2004 permite concluir que foi clara a vontade do legislador no sentido da manutenção da redacção da alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º, que permanece inalterada. O texto deste preceito não sofreu modificações, não havendo a nova lei procedido à revogação da norma em apreciação, nem à sua substituição por outra de teor diferente. A nova redacção da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º veio, em todo o caso, implicar que os autarcas que acumulem as suas funções com actividades não remuneradas não vejam a sua remuneração diminuída. Deste modo, o campo de aplicação da hipótese prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º do Estatuto dos Eleitos Locais acabou por ser indirectamente afectado – mais propriamente, reduzido –, por força da alteração introduzida na alínea a) do mesmo preceito, que veio ampliar as possibilidades de exercício de funções autárquicas sem perda de remuneração. Subsiste, todavia, o problema de constitucionalidade suscitado pelo Provedor de Justiça, porquanto este, no seu requerimento, também não fez qualquer distinção entre eleitos locais em regime de permanência que acumulassem as suas funções com actividades não remuneradas e eleitos locais que, além das funções autárquicas, desenvolvessem actividades remuneradas. Quanto a estes últimos, continua, pois, a suscitar-se o problema de saber se não se encontrarão numa situação de discriminação negativa em face dos autarcas em regime de meio tempo. O fulcro da questão de constitucionalidade permanece, assim, intocado pela alteração realizada pela Lei n.º 22/2004, que apenas veio limitar o âmbito da acumulação relevante para efeitos de diminuição da remuneração (excluindo dela a acumulação com actividades não remuneradas). Pelo que a circunstância de o
âmbito material de aplicação da alínea b) ter sido «restringido» ou
«comprimido», por força da alteração produzida na alínea a), não conduz à conclusão da inutilidade superveniente do conhecimento do pedido, já que (ainda que num universo agora mais circunscrito) persiste o problema de saber se é inconstitucional a circunstância, resultante da norma em causa, de os autarcas em regime de permanência, mas sem exclusividade (salvo quanto a actividades não remuneradas), auferirem a mesma remuneração dos autarcas em regime de meio tempo. A norma cuja constitucionalidade aqui se aprecia consta de uma Lei que, quanto a essa norma, não foi, assim, por vontade expressa do mesmo órgão legislativo
(Assembleia da República), objecto de alteração, antes sendo mantida em vigor na redacção vigente à data da entrada do processo no Tribunal Constitucional, que teve lugar em 30 de Outubro de 2002. O Tribunal irá, pois, tomar conhecimento do pedido, passando-se à análise da questão de constitucionalidade.
5.O requerente solicitou ao Tribunal a declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Eleitos Locais. Porém, resulta exuberantemente da motivação apresentada que se pretende a declaração de inconstitucionalidade da norma constante desse artigo quando conjugada com o disposto na norma do artigo 8.º do mesmo Estatuto (cf., a propósito, os artigos 8.º a 11.º, 14.º a 17.º, e 26.º e 28.º da motivação do pedido do requerente), que estabelece:
“Artigo 8.º Remunerações dos eleitos locais em regime de meio tempo Os eleitos locais em regime de meio tempo têm direito a metade das remunerações e subsídios fixados para os respectivos cargos em regime de tempo inteiro.”
[redacção dada pela Lei n.º 86/2001, de 10 de Agosto; na versão originária da Lei n.º 29/87, este preceito aplicava-se apenas aos vereadores] De acordo com a fundamentação aduzida pelo requerente, da leitura do artigo 7.º, n.º 1, alínea b), conjugadamente com o disposto no artigo 8.º da citada Lei, resulta a não distinção, para efeitos de regime remuneratório, entre os autarcas em regime de permanência que acumulem as funções autárquicas com outras actividades e os autarcas que exercem as suas funções em regime de meio tempo. No presente processo, não cumpre averiguar se é, ou não, possível outra leitura dessas duas disposições conjugadas (designadamente, quanto à estatuição do citado artigo 8.º), pois é da interpretação referida – que, seja ou não a melhor, se afigura plausível – que parte o requerente, tomando-a como base do presente pedido de fiscalização de constitucionalidade. Mas para a correcta consideração da norma cuja constitucionalidade o Tribunal é chamado a apreciar há já que atentar na nova redacção dada pela Lei n.º 22/2004, de 17 de Julho, à alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Estatuto dos Eleitos Locais, que, como acima se referiu, introduziu uma alteração pertinente para a leitura da alínea b). Resulta do novo inciso da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º a valorização, para efeitos de regime remuneratório, não apenas de uma exclusividade em sentido mais estrito, em que se tem em conta a total disponibilidade do eleito local para o exercício de funções, mas antes a valorização da ausência de uma outra remuneração, equiparando-se à exclusividade a acumulação com o exercício de outras actividades não remuneradas. Esta alteração situa-se na esteira da modificação operada na Lei n.º 29/87, de 30 de Junho, pela Lei n.º 64/93, de 28 de Agosto, em matéria de incompatibilidades e impedimentos de titulares de funções autárquicas; como disse o Conselho Consultivo da Procuradoria-Geral da República no Parecer n.º 52/94 e reafirmou no Parecer n.º 77/2002 (in DR, II Série, n.º 228, de 2 de Outubro de 2003, p. 14913, nota 24): «o legislador passou a aplicar um regime do tipo que é tradicional, nomeadamente em França, decorrente da ideia de que a assunção de um mandato de eleito local corresponde a uma actividade a que as pessoas se devotam por vocação, e em princípio sem terem de abandonar as suas profissões próprias». Existe, assim, uma maior abertura à acumulação de funções autárquicas com outras actividades, salvaguardando-se, porém, que estas não sejam de carácter remunerado. Porventura, ter-se-á procurado evitar aquilo que já se designou por
“funcionarização” do exercício do poder local (cf. Jean-Marie Becet, «Les garanties accordées aux titulaires de mandats locaux», Revue française de Droit Administratif, Novembro-Dezembro de 1992, p. 974). Naquele país, de facto, uma das inovações da lei n.º 92-108, de 3 de Fevereiro de 1992, consistiu na
“melhoria da disponibilidade de tempo”, através de uma extensão do regime de autorização de faltas, criado pela lei de 2 de Agosto de 1949, e a criação de um crédito de horas, inspirado no Code du travail (cf. Philippe Lacaïle, Le Statut de l’Élu Local. Les conditions d’exercice des mandats locaux, 2ª ed., Berger-Levrault, Paris, 2001, p. 53 e pp. 135 e ss; cf. ainda Isabelle Muller-Quoy, «L’élu local: nouveau statut, nouveau droit», AJDA – Actualité Juridique Droit Administratif, 2002, fasc. 4, pp. 283, ss). O legislador acentua, deste modo, o desejo de compensar com a totalidade da remuneração aqueles que não recebam outra, de diferente proveniência, e não a intenção de remunerar a plena disponibilidade do eleito local para o exercício das funções. Não é a dedicação exclusiva que se premeia, mas a ausência de uma remuneração complementar que se compensa. O critério nuclear da distinção entre as alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 7.º não é, com efeito, a maior ou menor
“dedicação” do autarca – melhor dizendo, a ausência ou não do exercício de outras actividades. A lei não “penaliza” em termos remuneratórios o eleito local que desenvolva actividades para além das funções exercidas na autarquia: a redução do vencimento só ocorre se tais actividades forem remuneradas. Caso contrário, o eleito local perceberá o seu vencimento por inteiro, nos termos da nova redacção da alínea a) do n.º 1 do artigo 7.º do Estatuto. A partir da Lei n.º 22/2004, são, assim, fundamentalmente quatro as situações em que se podem encontrar os eleitos locais: (a) em regime de permanência e exclusividade; (b) em regime de permanência com acumulação de outras funções não remuneradas; (c) em regime de permanência com acumulação de outras funções remuneradas; (d) em regime de meio tempo. E para efeitos remuneratórios, não há qualquer diferença entre as situações (a) e (b). Por força da alteração introduzida na alínea a) do artigo 7.º, n.º 1, do Estatuto dos Eleitos Locais, da actual leitura da alínea b), conjuntamente com o disposto no artigo 8.º do referido Estatuto, resultará a não distinção, para efeitos remuneratórios, entre os autarcas em regime de permanência que acumulem as funções autárquicas com outras actividades remuneradas – situação (c) – e os autarcas que exercem funções em regime de meio tempo – situação (d). Ou seja, deixa de ser igual o puro tratamento remuneratório dado pela Lei aos eleitos locais em regime de meio tempo e aos eleitos locais em regime de permanência sem exclusividade de funções, visto que, nesta última categoria, se diferencia agora os que auferem uma outra remuneração e os que a não auferem. Apenas em relação
àqueles subsiste, e tão-só nessa exacta medida, o problema de constitucionalidade suscitado pelo requerente, pois permanece a equiparação dos montantes remuneratórios recebidos pelos eleitos a que se refere a alínea b) do n.º 1 do artigo 7.º (regime de permanência e exercício remunerado de outras funções) e pelos eleitos a que se refere o artigo 8.º do Estatuto (regime de meio tempo). Consequentemente, a questão relevante para efeitos de apreciação de constitucionalidade consiste em determinar se o artigo 7.º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Eleitos Locais (aprovado pela Lei n.º 29/87, de 30 de Junho e alterado pelas Leis n.º 97/89, de 15 de Dezembro, n.º 1/91, de 10 de Janeiro, n.º 11/91, de 17 de Maio, n.º 11/96, de 18 de Abril, n.º 127/97, de 11 de Dezembro, n.º 50/99, de 24 de Junho e n.º 86/01, de 10 de Agosto, e, posteriormente à formulação do pedido, pela Lei n.º 22/2004, de 17 de Junho), quando conjugado com o disposto na norma do artigo 8º do mesmo Estatuto, viola o princípio da igualdade e, desse modo, o disposto no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição da República, o qual determina que «[T]odos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei». Cumpre ainda aferir se a norma mencionada viola o artigo 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição, que estabelece:
“1. Todos os trabalhadores, sem distinção de idade, sexo, raça, cidadania, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas têm direito: a) À retribuição do trabalho, segundo a quantidade, natureza e qualidade, observando-se o princípio de que para trabalho igual, salário igual, de forma a garantir uma existência condigna.” Trata-se, pois, de apurar se merece acolhimento a tese do requerente segundo a qual a norma em causa é inconstitucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 1, e 59.º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República.
6.A norma cuja constitucionalidade se aprecia regula a remuneração dos eleitos locais em regime de permanência que não exerçam exclusivamente funções autárquicas, estabelecendo que estes recebem 50% do valor da base da remuneração atribuída aos eleitos locais em regime de permanência que optem pelo exercício de funções autárquicas em regime de exclusividade ou não, desde que as outra funções que exerçam não sejam remuneradas. Resulta, igualmente, da conjugação deste preceito com a norma do artigo 8º do mesmo diploma, que os eleitos locais que se encontrem abrangidos por aquele regime auferem remuneração idêntica à atribuída aos autarcas que se encontrem a desempenhar funções em regime de meio tempo, ainda que os primeiros dediquem à autarquia o dobro do tempo de trabalho dos segundos. Neste quadro, o requerente pede ao Tribunal Constitucional que aprecie a compatibilidade com o princípio da igualdade do regime remuneratório fixado para os autarcas em exercício de funções a tempo inteiro que optem pela acumulação com o exercício de uma profissão liberal ou de qualquer actividade privada. O fundamento apresentado para sustentar a tese da inconstitucionalidade respeita à equiparação remuneratória que a lei estabelece entre estes, que se encontram em exercício a tempo inteiro, e os autarcas a desempenhar funções a meio tempo: ou seja, o princípio da igualdade seria violado pela circunstância de serem tratadas igualmente (com equiparação de remuneração) situações desiguais. O princípio da igualdade, constitucionalmente consagrado no artigo 13º da Lei Fundamental, tem como fundamento a igual dignidade social de todos os cidadãos. São três as dimensões que o princípio convoca: (a) a proibição do arbítrio, que torna inadmissível a diferenciação de tratamento sem qualquer justificação razoável, apreciada esta de acordo com critérios objectivos de relevância constitucional, e afastando também o tratamento idêntico de situações manifestamente desiguais; (b) a proibição de discriminação, impedindo diferenciações de tratamento entre os cidadãos que se baseiem em categorias meramente subjectivas ou em razão dessas categorias; (c) e a obrigação de diferenciação, como mecanismo para compensar as desigualdades de oportunidades, que pressupõe a eliminação, pelos poderes públicos, de desigualdades fácticas de natureza social, económica e cultural (cf. neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Anotada, Coimbra Editora, Coimbra,
1993, pp.127, ss, bem como, entre muitos, o Acórdão n.º 68/97, publicado em ATC,
36º vol., 1997, pp. 259 e ss, o Acórdão n.º 77/01, publicado em ATC, 49º vol.,
2001, pp. 277 e ss, o Acórdão n.º 402/01, publicado em ATC, 51º vol., 2001, pp.
165 e ss, e o Acórdão n.º 202/02, publicado em ATC, 53º vol., 2002, pp. 223 e ss). O Tribunal Constitucional considerou, reiteradamente, que o princípio da igualdade só é violado quando o legislador trate diferentemente situações que são essencialmente iguais, muito embora não proíba diferenciações de tratamento quando estas sejam materialmente fundadas (v.g., o Acórdão n.º 39/88, publicado no DR, I Série, de 3 de Março de 1988, os Acórdãos n.º 68/97 e n.º 202/02, já mencionados, ou o Acórdão n.º 177/99, publicado in ATC, 43º vol., 1999, pp. 109, ss). O Tribunal tem também entendido que a proibição do arbítrio exige ainda tratamento diferenciado, mas proporcionado, de situações que, no plano fáctico, surjam como diversas. Pode, a este propósito, ler-se no Acórdão n.º 39/88:
«A igualdade não é, porém, igualitarismo. É, antes, igualdade proporcional. Exige que se tratem por igual as situações substancialmente iguais e que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado: a justiça, como princípio objectivo, «reconduz-se, na sua essência, a uma ideia de igualdade, no sentido de proporcionalidade» – acentua Rui de Alarcão (Introdução ao Estudo do Direito, Coimbra, lições policopiadas de
1972, p. 29). O princípio da igualdade não proíbe, pois, que a lei estabeleça distinções. Proíbe, isso sim, o arbítrio; ou seja: proíbe as diferenciações de tratamento sem fundamento material bastante, que o mesmo é dizer sem qualquer justificação razoável, segundo critérios de valor objectivo, constitucionalmente relevantes. Proíbe também que se tratem por igual situações essencialmente desiguais. E proíbe ainda a discriminação; ou seja: as diferenciações de tratamento fundadas em categorias meramente subjectivas, como são as indicadas, exemplificativamente, no n.º 2 do artigo 13.º. Respeitados estes limites, o legislador goza de inteira liberdade para estabelecer tratamentos diferenciados. O princípio da igualdade, enquanto proibição do arbítrio e da discriminação, só
é, assim, violado quando as medidas legislativas contendo diferenciações de tratamento se apresentem como arbitrárias, por carecerem de fundamento material bastante».
É, pois, a dimensão do princípio da igualdade que proíbe o tratamento igual para situações desiguais que, ao tornar constitucionalmente inadmissível o tratamento igual de situações de facto diferentes, se afigura particularmente relevante para o juízo deste Tribunal acerca da norma em causa, em confronto com a do artigo 8.º do Estatuto dos Eleitos Locais. Como se refere no citado Acórdão n.º 39/88, aquele princípio proscreve «que se tratem por igual situações essencialmente desiguais», exigindo «que, a situações substancialmente desiguais, se dê tratamento desigual, mas proporcionado». Relativamente ao artigo 7.º, número 1, alínea b), do Estatuto dos Eleitos Locais, conjugado com o disposto na norma do artigo 8.º do mesmo Estatuto, deverá este Tribunal indagar se a norma resultante da conjugação violará o princípio da igualdade na medida em que nela se fixa a identidade de remunerações entre um eleito local em regime de permanência, mas não em exclusividade, antes em exercício remunerado de outras funções, e um eleito local a meio tempo. Para o efeito, deve ser convocada a dimensão do princípio da igualdade que conduz à aferição, por parte do Tribunal Constitucional, da efectiva existência de uma igualdade material entre as duas situações, a saber: a do eleito local em regime de permanência sem exclusividade de funções, nos termos referidos, e a do eleito local a meio tempo. Caso o Tribunal conclua pela existência de uma
«igualdade estatutária» de um e de outro, deve, nesse caso, confrontar tal situação com a circunstância de a essa «igualdade estatutária», no que respeita ao regime remuneratório, não corresponder uma situação de paridade no que concerne a outros aspectos, mais precisamente, à carga horária exigida num regime de permanência e num regime de meio tempo. Ao invés, na hipótese de o Tribunal concluir que o estatuto correspondente aos dois regimes – que não se circunscreve ao estatuto remuneratório, abrangendo outras realidades, muito diversas – não é estruturalmente idêntico, ou seja, não possui uma similitude ou identidade susceptível de fazer operar o princípio da igualdade, forçosamente haverá de decidir no sentido da não inconstitucionalidade da norma sub judicio.
7.Por sua vez, os critérios definidos no artigo 59º, n.º 1, alínea a), da Constituição da República são importantes para a concretização do princípio da igualdade no que à retribuição do trabalho diz respeito, podendo servir de parâmetro de aferição da igualdade no domínio específico do seu âmbito de aplicação. Aí se estabelece o princípio de que para «trabalho igual, salário igual», devendo a retribuição do trabalho atender à «quantidade, natureza e qualidade» daquele. Assim, a retribuição do trabalho «deve ser conforme à quantidade do trabalho (i. é, à sua duração e intensidade), à natureza do trabalho (i. é, tendo em conta a sua dificuldade, penosidade ou perigosidade) e à qualidade do trabalho (i. é, de acordo com as exigências em conhecimentos, prática e capacidade)» (J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição..., cit., p.
319). Todavia, não estando em causa, no caso, a retribuição do trabalho, mas a compensação pelo exercício de funções públicas - e, para mais, de funções públicas de carácter electivo -, pode duvidar-se de que esta norma da Constituição deva considerar-se, na situação em apreço, critério material de valoração a convocar a título próprio e principal. Tendo em conta que o princípio «para trabalho igual, salário igual» é uma refracção do princípio da igualdade consagrado no artigo 13º da Constituição da República (cf., neste sentido, J. J. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição..., cit., p. 319), e atendendo à circunstância de não ser líquida a possibilidade de, sem mais, aplicar de forma «automática» as regras da Constituição sobre direitos dos trabalhadores aos titulares de cargos públicos electivos, considera-se que o padrão de constitucionalidade a assumir pelo Tribunal deve situar-se, prima facie, apenas no artigo 13.º, n.º 1, da Lei Fundamental. Pelo menos numa certa perspectiva, poderá, aliás, afigurar-se problemático convocar o princípio «trabalho igual, salário igual» já que a argumentação do Provedor de Justiça assenta, justamente, na ideia de que não é «igual», ao menos quantitativamente, o «trabalho» exigido a um autarca a meio tempo e a um autarca a tempo inteiro – o que é «igual», isso sim, é o salário de ambos, como é
«igual» a quantidade (ou o tempo) de «trabalho» exigido, no quadro do regime de permanência, a um autarca em exclusividade e a um autarca em acumulação. Ora, não é inequívoco que o princípio «para trabalho igual, salário igual» tenha a virtualidade normativa de impor, em absoluto, a regra inversa («para trabalho desigual, salário desigual»), pelo menos num domínio como o dos cargos políticos electivos, em que o desempenho de funções não pode ser apreciado exactamente nos termos aplicáveis ao universo laboral geral, designadamente, quanto à caracterização do factor «trabalho» onde avulte nesse universo o elemento temporal da prestação – ou, mais concretamente, o horário de trabalho. E, mesmo no domínio específico do trabalho «clássico», não pode atender-se apenas à quantidade da prestação – o que parece decorrer do argumentário do requerente – mas ainda à qualidade e à natureza do trabalho desenvolvido, como salientam Gomes Canotilho e Vital Moreira (ob. cit., loc. cit.). Assim, tratando-se do exercício de funções políticas em sentido amplo (de
«governo da cidade», à escala da circunscrição autárquica) não é seguro que possam ser aplicados, sem devida ponderação, os parâmetros constitucionais relativos aos direitos dos trabalhadores. E isto porque, neste domínio particular do exercício de funções autárquicas, o factor «trabalho» é uma realidade complexa e algo difusa. Tal desaconselha o recurso ao parâmetro de constitucionalidade do artigo 59.º, n.º 1, alínea a), sobretudo quando, sem prejudicar à partida a análise e podendo deixar em aberto a questão do exacto alcance da regra contida nessa alínea a) do n.º 1 do artigo 59.º da Constituição, este Tribunal pode situar-se também no contexto do princípio geral da igualdade, previsto no artigo 13.º, n.º 1, da Constituição.
8.À luz deste artigo 13.º, n.º 1, da Constituição, importa então aferir, se, como pretende o Provedor de Justiça, os eleitos locais em regime de permanência que acumulem as suas funções com outras actividades remuneradas – e que por isso percebem apenas 50% da respectiva remuneração – são discriminados em relação a autarcas que recebem exactamente a mesma remuneração mas se encontram adstritos a um regime de meio tempo no que concerne à respectiva carga horária. Sublinhe-se, a este propósito, que a existência de uma diferente natureza na prestação de ambos, em quantidade, em natureza e em qualidade, resulta do próprio artigo 2º, n.º 2, do Estatuto dos Eleitos Locais, que faz corresponder um vereador em regime de permanência (sem distinção entre exercício exclusivo ou não exclusivo de funções autárquicas) a dois vereadores em regime de meio tempo. Ora, para a resposta à questão referida não se torna indispensável indagar se é, ou não, razoavelmente justificada a distinção dos autarcas que estejam simultaneamente em regime de permanência e em exclusividade (ou sem acumulação com funções remuneradas), valorizando a sua remuneração em relação à de todos os outros: isto é, daqueles que se não encontrem numa só destas duas condições (por estarem num regime de meio tempo ou por acumularem as suas funções com funções remuneradas) ou em nenhuma delas. Com efeito, pode deixar-se essa questão em aberto, centrando-se a análise na comparação, como faz o requerente, entre as situações dos autarcas em regime de permanência e em regime de meio tempo. Sucede, porém, que a comparação entre o tratamento jurídico destas duas situações não pode fazer-se apenas, como pretende o autor do pedido, com base num juízo que atenda simplesmente ao binómio carga horária/remuneração. O estatuto dos autarcas não se circunscreve a tal binómio e, como tal, a ponderação sobre a identidade ou dissemelhança do tratamento das situações em causa não pode operar-se atendendo apenas a dois dos vários elementos que caracterizam a posição funcional dos eleitos em regime de permanência que optem pela acumulação com outras actividades remuneradas e aqueloutra dos eleitos em regime de meio tempo. A complexidade do estatuto dos eleitos locais não se compadece com a singeleza reducionista de uma «comparação linear» apenas entre regime de prestação de funções e remuneração auferida, antes havendo que considerar na sua globalidade o estatuto dos eleitos locais, em regime de permanência e em regime de meio tempo, para averiguar se existe uma equiparação entre eles, violadora do princípio da igualdade. Ora, vários lugares do Estatuto dos Eleitos Locais mostram um tratamento jurídico diverso das situações de facto de um eleito local em regime de permanência (mesmo não em exclusividade, ou seja, acumulando com o exercício remunerado de outras funções) e de um eleito local a meio tempo – e isto, independentemente daquele binómio carga horária/remuneração. Existem nesse Estatuto, quando globalmente considerado, outros factores que tornam possível diferenciar a situação jurídica de um eleito local em regime de permanência (que não se encontre em exclusividade de funções, nos termos referidos) e a de um eleito local em regime de meio tempo. Com efeito, a leitura doutras disposições da Lei n.º 29/87 sustenta com clareza a distinção das soluções legais aplicáveis a eleitos locais em regime de meio tempo e a eleitos locais em regime de permanência (sem que, nesses casos, diferencie aqueles que se encontram em exclusividade de funções daqueles que não se encontram nesse regime), comprovando o tratamento diferenciado das diversas situações. Em muitos casos – podendo até dizer-se: na maior parte dos casos –, a diversidade de estatutos tem expressão pecuniária ou, se se preferir, possui imediata ou mediatamente uma projecção financeira ou material que inviabiliza que se atenda apenas ao elemento remuneratório quando se opera o confronto entre os regimes de permanência e de tempo parcial. A este propósito são pertinentes, desde logo, os artigos 5.º, 6.º, 13.º, n.º 1,
17.º, n.º 2, e 18.º, n.º 1, do Estatuto dos Eleitos Locais. Assim, o artigo 5.º, n.º 2, define certos direitos exclusivos dos eleitos locais em regime de permanência. Tais direitos, nos termos do Estatuto, na redacção da Lei n.º 22/2004, são os previstos nas alíneas a), b), e), f), m), n), r), s) e t) do n.º 1 do artigo 5.º, que correspondem: a uma remuneração ou compensação mensal e a despesas de representação [alínea a); em face do disposto no artigo
8.º, parece dever entender-se que apenas as despesas de representação são exclusivo dos autarcas em regime de permanência, pois, caso contrário, deveria concluir-se que o exercício de funções a meio tempo não seria remunerado ou objecto de qualquer compensação]; a dois subsídios extraordinários anuais
[alínea b)]; à segurança social [alínea e)]; a férias [alínea f)]; a contagem de tempo de serviço [alínea m)]; a subsídio de reintegração [alínea n); cf., no entanto, a letra do artigo 19.º, n.º 1, que parece reservar o direito a subsídio de reintegração aos eleitos em regime de exclusividade]; a uso e porte de arma de defesa [alínea r)]; ao exercício de todos os direitos previstos na legislação sobre protecção à maternidade e à paternidade [alínea s), aditada pelo artigo
1.º da Lei n.º 127/97]; a subsídio de refeição, a abonar nos termos e quantitativos fixados para a Administração Pública [alínea t)]. Os eleitos locais em regime de meio tempo não beneficiam, pois, de nenhum destes direitos. Os eleitos locais em regime de permanência nas câmaras municipais dispõem ainda, nos termos do n.º 4 do artigo 6.º do Estatuto, aditado pela Lei n.º 50/99, de 24 de Junho, do direito às despesas de representação correspondentes a 30% das respectivas remunerações, no caso do presidente, e 20% para os vereadores, as quais serão pagas 12 vezes ao ano. No mesmo sentido, o artigo 13.º contém disposições especiais, em matéria de segurança social, para os eleitos locais em regime de permanência. É-lhes aplicável o regime mais favorável para o funcionalismo público, se não optarem pelo regime da sua actividade profissional, nos termos do n.º 1 do citado artigo
13.º. A matéria do seguro de acidentes está igualmente sujeita a condições especiais quando está em causa um eleito local em regime de permanência (artigo 17.º, n.º
2). O valor do seguro não pode ser inferior a 50 vezes a respectiva remuneração mensal. O regime a que estão sujeitos os eleitos locais em regime de permanência é ainda diferente no que respeita à contagem do tempo de serviço (artigo 18.º, n.º 1). O tempo de serviço é contado a dobrar, como se tivesse sido prestado nos quadros do Estado ou entidade patronal, até ao limite máximo de vinte anos, desde que sejam cumpridos seis anos seguidos ou interpolados no exercício das respectivas funções. Por outro lado, nos termos do n.º 4 do artigo 18.º, na redacção da Lei n.º 97/89, de 15 de Dezembro, «[o]s eleitos locais que exerceram as suas funções em regime de permanência poderão, por sua iniciativa e independentemente de submissão a junta médica, requerer a aposentação ou reforma desde que tenham cumprido, no mínimo, seis anos seguidos ou interpolados no desempenho daquelas funções e que, em acumulação com o exercício das respectivas actividades profissionais, se encontrem numa das seguintes condições: a) Contem mais de 60 anos de idade e 20 anos de serviço; b) Reúnam 30 anos de serviço, independentemente da respectiva idade» (cf. ainda o n.º 5 desse preceito, aditado pela Lei n.º 86/2001, de 10 de Agosto). Em contrapartida, e a marcar claramente a diversidade de estatutos, os artigos
18.º-C e 18.º-D, aditados pela Lei n.º 86/2001, de 10 de Agosto, vieram fixar regras especiais para os eleitos locais em regime de meio tempo em matéria de aumento para efeitos de aposentação e para efeito de bonificação de pensões. Assim, nos termos do n.º 1 do artigo 18.º-C, «[o]s eleitos locais em regime de meio tempo, bem como os presidentes e vogais das juntas de freguesia em regime de não permanência, subscritores da Caixa Geral de Aposentações com, pelo menos,
8 anos no desempenho dos respectivos cargos, beneficiam, para efeitos de aposentação, até ao limite de 12 anos, de uma majoração de 25% do tempo de serviço prestado nas respectivas funções, quando essa prestação ocorra em simultâneo com o exercício do mandato autárquico» . O artigo 18.º-D, n.º 1, por seu turno, dispõe, sobre bonificação de pensões, que «[o]s eleitos locais em regime de meio tempo, bem como os presidentes e vogais das juntas de freguesia em regime de não permanência, têm direito a uma bonificação da pensão, de quantitativo equivalente ao previsto no artigo anterior, determinado em função de tempo de serviço prestado quando sejam abrangidos pelos regimes contributivos da segurança social, desde que possuam, pelo menos, 8 anos no desempenho dos respectivos cargos e até ao limite de 12 anos». Esta recensão não exaustiva do conjunto de direitos exclusivos dos autarcas em regime de permanência demonstra que há uma inescapável diversidade de estatuto jurídico entre autarcas em regime de permanência e autarcas em regime de meio tempo e que a profundidade dessa diferença de estatutos impede um cotejo circunscrito aos tópicos do regime de prestação de funções e do vencimento auferido. Note-se, a este propósito, que os artigos 18.º-C e 18.º-D, ou o n.º 3 do artigo
27.º, do Estatuto (este último, na redacção da Lei n.º 50/99), por exemplo, se aplicam a eleitos em regime de meio tempo, havendo, pois, disposições específicas consoante a diversa posição ou estatuto funcional dos autarcas. Um outro exemplo pode encontrar-se, no que concerne a ajudas de custo e subsídios de transporte, nos n.ºs 2 dos artigos 11.º e 12.º do Estatuto, respectivamente. E é, no fundo, porque a diversidade de estatutos se afigura de tal forma marcada e intensa, não se confinando a aspectos marginais ou de menor relevo, que se torna inviável comparar os vários regimes de exercício de funções autárquicas apenas com base nos elementos horário/remuneração. Para mais, não é apenas no contexto dos direitos mas também no dos deveres e incompatibilidades que deve ser perspectivada a questão sub judicio. Aí se revela, de novo, uma diversidade estatutária entre autarcas em regime de permanência e em regime de meio tempo. Assim, por exemplo, no que se refere ao sistema de incompatibilidades definido no artigo 3.º do Estatuto, o mesmo só é aplicável aos autarcas em regime de permanência (cf., ainda, o artigo 1.º, n.º
1, alínea h), da Lei n.º 9/90, de 1 de Março, alterada pela Lei n.º 56/90, de 5 de Setembro, e revogada pela Lei n.º 64/93, de 26 de Agosto, por sua vez alterada pelas Leis n.ºs 39-B/94, de 27 de Dezembro, 28/95, de 18 de Agosto,
12/96, de 18 de Abril, 42/96, de 31 de Agosto, e 12/98, de 24 de Fevereiro). Em síntese, não pode acompanhar-se a afirmação (artigo 16.º do pedido) de que as situações “de autarcas em regime de permanência sem exclusividade” e “de um autarca em meio tempo”, “apenas se distinguem por um singular aspecto: o de o primeiro estar vinculado a prestar, em número de horas, o dobro do trabalho do segundo”, pois que a própria lei distingue o regime dessas situações em relação a múltiplos aspectos, como os referidos. Pode dizer-se que a diferenciação de estatutos dos autarcas não se circunscreve ao aspecto remuneratório, antes se materializa num conjunto muito vasto e complexo de direitos, que atrás se deixou sumariado de forma não exaustiva. Nesta perspectiva, avulta a ideia de que a posição relativa dos autarcas integrados em regimes distintos não pode ser aferida exclusivamente à luz do critério da respectiva remuneração. E é justamente esta ideia que impede que, como pretende o requerente, o estatuto dos autarcas em regime de permanência seja confrontado com o dos autarcas em regime de meio tempo unicamente na óptica do vencimento auferido, fazendo-se tabula rasa de todos os outros elementos enunciados em vários lugares da Lei n.º 29/87. Por conseguinte, independentemente do problema da justificação da equiparação de remunerações em causa, o certo é que, desde logo, o Tribunal Constitucional não pode, à luz dos elementos indicados, efectuar uma comparação entre as situações dos autarcas em regime de permanência que acumulem com o exercício de outras funções, a que se refere o artigo 7º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Eleitos Locais, e dos autarcas em regime de meio tempo, nos termos do artigo 8º do mesmo Estatuto, apenas na óptica do vencimento, para concluir, tão-só com base neste aspecto específico, pela existência de uma equiparação em ofensa ao princípio da igualdade. É, pois, de rejeitar a tese da inconstitucionalidade material, em resultado da violação do princípio da igualdade, a este respeito avançada pelo requerente.
III. Decisão Com estes fundamentos, o Tribunal Constitucional decide não declarar a inconstitucionalidade da norma do artigo 7º, n.º 1, alínea b), do Estatuto dos Eleitos Locais, aprovado pela Lei n.º 29/87, de 30 de Junho, e alterado pelas Leis n.º 97/89, de 15 de Dezembro, n.º 1/91, de 10 de Janeiro, n.º 11/91, de 17 de Maio, n.º 11/96, de 18 de Abril, n.º 127/97, de 11 de Dezembro, n.º 50/99, de
24 de Junho, n.º 86/01, de 10 de Agosto, e n.º 22/2004, de 17 de Junho. Lisboa, 23 de Fevereiro de 2005
Paulo Mota Pinto Maria João Antunes Maria Fernanda Palma Mário José de Araújo Torres Vítor Gomes Benjamim Rodrigues Rui Manuel Moura Ramos Gil Galvão Bravo Serra Maria Helena Brito Maria dos Prazeres Pizarro Beleza (com declaração) Carlos Pamplona de Oliveira (com declaração) Artur Maurício
Declaração de voto
Votei o acórdão, e nomeadamente votei o conhecimento do pedido, mas com duas observações. Em primeiro lugar, a de que o disposto no artigo 8º (quer na redacção inicial da Lei n.º 29/87, quer, com muito maior clareza, na que lhe foi dada pela Lei n.º
86/2001, de 10 de Agosto) implica que os autarcas que exercem funções em regime de meio tempo têm direito a metade das remunerações que lhes caberiam se as desempenhassem a tempo inteiro, quer em exclusividade, quer em acumulação. A norma que constitui o objecto deste processo resulta, assim, a meu ver, de uma incorrecta interpretação da lei. Em segundo lugar, a de que considero que a redacção que a Lei n.º 22/2004, de 17 de Junho, deu à alínea a) do n.º 1 do artigo 7º da Lei n.º 29/87 apenas veio clarificar o sentido com que o mesmo preceito já devia ser entendido no contexto do próprio artigo 7º, ou seja, o de que, para a redução das remunerações, só contava o acumulação com o exercício de funções remuneradas. É o que desde logo resultava do confronto entre as alíneas a) e b) do citado n.º 1. Maria dos Prazeres Pizarro Beleza
DECLARAÇÃO DE VOTO
Voto o acórdão na parte em que decide não declarar a inconstitucionalidade da norma em apreço. Contudo, tenderia a não conhecer do pedido pois, em meu entender, a norma ajuizada não é, efectivamente, aquela que constituiu o objecto do pedido: A Lei 22/2004 de 17 de Junho, ao conferir nova redacção à alínea a) do n. 1 do artigo 7º do EEL determinou, consequentemente, uma alteração da norma resultante da alínea b), aqui em causa.
Carlos Pamplona de Oliveira