ACTC nº 408/2014 -
ACTC nº 408/2014
_____________________
Texto integral:
Processo n.º 361/14
2ª Secção
Relator: Conselheiro Fernando Ventura
Acordam, em conferência, na 2ª Secção do Tribunal Constitucional
I. Relatório
1. Os arguidos A. e B., reclamam, ao abrigo do disposto no n.º 4 do artigo 76.º da Lei do Tribunal Constitucional (doravante LTC), dos despachos de 4 de março de 2014, proferidos pelo Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, que não lhes admitiram os recursos que interpuseram para o Tribunal Constitucional do acórdão proferido pelo Tribunal da Relação do Porto.
Em requerimentos separados, mas com o mesmo conteúdo (divergem apenas na identificação do apresentante), sustentam os reclamantes que o recurso deve ser admitido, com os seguintes fundamentos:
«(…)Vem, muito respeitosamente reclamar do despacho que indeferiu o recurso interposto para o Tribunal Constitucional, uma vez que veio indicar o preceito constitucional que no seu entender se mostra violado no douto acórdão em crise, como sendo a norma constante do art. 32º da C.R.P..
Com efeito, é inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1 da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de acórdão da relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido em 1ª instância, de decisão que condena o arguido em pena igual ou superior a oito anos de prisão;
Finalmente mais referiu que tal questão de inconstitucionalidade e violação dos art.º 32º CRP e 400º n.º 1 c) do Código de Processo Penal foi já suscitada nas Motivações de Recurso apresentadas em primeira instância.
Desta forma, tem a recorrente o direito a ver apreciado o Recurso interposto para o Tribunal Constitucional.»
2. Neste Tribunal, o Ministério Público pronunciou-se nos seguintes termos:
«1. A Relação do Porto, por acórdão de 18 de setembro de 2013, negou provimento ao recurso interposto pelos arguidos A. e B. da decisão proferida em 1.ª instância que os condenara nas penas de prisão de cinco anos e seis meses e seis anos, respetivamente.
2. Interposto, pelos arguidos, recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, como o mesmo não foi admitido, dessa decisão reclamaram para o Senhor Presidente daquele Supremo Tribunal, nos termos do artigo 405.º do CPP.
3. O Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça indeferiu a reclamação.
4. Dessa decisão, os arguidos recorrerem para o Tribunal Constitucional e, não tendo o recurso sido admitido, reclamaram para este mesmo Tribunal.
5. No requerimento de interposição do recurso a arguida A., após discorrer sobre o direito ao recurso, identifica a seguinte questão de inconstitucionalidade:
'Com efeito, é inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1 da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de acórdão da relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido em 1.ª instância, de decisão que condena o arguido em pena igual ou superior a oito anos de prisão;'
6. Ora, como nos parece evidente, aquela norma não foi aplicada.
7. A pena aplicada à arguida não foi igual ou superior a oito anos (foi de 5 anos e 6 meses) e na reclamação apresentada nos termos do artigo 405.º, aquela pronunciou-se sobre a admissibilidade do recurso, não tendo, pois, qualquer cabimento, falar de 'sem prévio contraditório'.
8. Por outro lado, em parte alguma das decisões proferidas, maxime na decisão recorrida, se menciona sequer qualquer questão relacionada com a (in)tempestividade do recurso.
9. Face ao conteúdo da decisão recorrida, não tem, pois, sentido, o que vem afirmado por esta recorrente.
10. No seu requerimento, o recorrente B. identifica as seguintes questões de inconstitucionalidade:
'Com efeito, é inconstitucional a norma do nº 1 alínea f) do artigo 400º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos condenatórios, proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
Por outro lado, entendemos também, salvo melhor opinião, que a interpretação e aplicação do disposto nos arts. 70º, 71º do CP, pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto, viola o art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso da 2ª vara do Tribunal Criminal do Porto, para o Tribunal da Relação do Porto.'
11. Tendo o recurso sido interposto ao abrigo da alínea b) do artigo 70.º da Lei do Tribunal Constitucional (LTC), um dos requisitos de admissibilidade consiste em a questão de constitucionalidade ter sido suscitada 'durante o processo'.
12. Ora, no que respeita à primeira das questões, no momento processual próprio - a reclamação para o Senhor Presidente do Supremo Tribunal de Justiça -, não foi suscitada essa, nem qualquer outra, questão de inconstitucionalidade normativa.
13. Quanto à segunda questão, como a decisão recorrida, proferida pelo Senhor Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça, se limitou a indeferir a reclamação da decisão que, na Relação, não admitira o recurso, a mesma não aplicou, nem podia aplicar, os artigos 70.º e 71.º do Código Penal.
14. Por tudo o exposto, deve indeferir-se a reclamação.»
Cumpre apreciar e decidir.
II. Fundamentação
3. Para a apreciação das presentes reclamações, releva a seguinte evolução processual:
3.1. Por acórdão proferido pela 2.ª Vara Mista do Tribunal Judicial de Vila Nova de Gaia foi decidido, inter alia, condenar os arguidos A. e B. como coautores de um crime de tráfico de estupefacientes, previsto e punido pelo artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro, nas penas, respetivamente, de cinco anos e seis meses e seis anos de prisão.
3.2. Interposto recurso pelos arguidos A. e B. e outro, por acórdão do Tribunal da Relação do Porto, proferido em 18 de setembro de 2013, foi negado provimento aos recursos.
3.3. Deste interpuseram os arguidos A. e B. recurso para o Supremo Tribunal de Justiça, o qual não foi admitido por decisão do relator no Tribunal da Relação do Porto de 13 de novembro de 2013.
3.4. Deste despacho reclamaram os arguidos A. e B. ao abrigo do disposto no artigo 405.º do Código de Processo Penal, tendo a reclamação sido indeferida por decisão do Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça de 19 de fevereiro de 2014.
3.5. Os arguidos A. e B. apresentaram então recurso para o Tribunal Constitucional, em requerimentos separados, ambos ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º da LTC.
A arguida A. inscreveu no seu requerimento, no essencial, o seguinte:
«(...) [É] inconstitucional, por violação do artigo 32º, n.º 1 da CRP, a norma da alínea c) do n.º 1 do artigo 400º do CPP interpretada no sentido de não haver recurso para o STJ de acórdão da relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido em 1ª instância, de decisão que condena o arguido em pena igual ou superior a oito anos de prisão;
Pretende assim o recorrente a apreciação da constitucionalidade das normas jurídicas em causa, por ambiguidade e falta de clareza dessas mesmas normas jurídicas, por colidirem em função dessas debilidades com uma norma constitucional.»
Por seu turno, o arguido B. formulou no seu requerimento a seguinte questão:
«[É] inconstitucional a norma do nº 1 alín f) do artigo 400º do Código de Processo Penal, na interpretação segundo a qual não é admissível recurso de acórdãos condenatórios, proferidos, em recurso, pelas relações, que confirmem decisão de 1ª instância e apliquem pena de prisão não superior a 8 anos.
Por outro lado, entendemos também, salvo melhor opinião, que a interpretação e aplicação do disposto nos arts. 70º, 71º do CP, pelo Insigne Tribunal da Relação do Porto, viola o art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, inconstitucionalidades essas invocadas previamente no seu recurso da 2ª vara do Tribunal Criminal do Porto, para o Tribunal da Relação do Porto.
Com efeito, ao erguer a culpa - como critério principal de determinação da pena - e a prevenção como critério secundário, o Tribunal «a quo» não avalizou corretamente o art.º 71º do CP, não cumprindo com o princípio constitucional da adequação e proporcionalidade das penas, revelando-se justo aplicar apenas uma pena concreta correspondente ao limite mínimo abstratamente aplicável para aquele tipo de ilícito, especialmente atenuada.
Violou assim também o douto acórdão recorrido o princípio da proporcionalidade.
Pretende assim o recorrente a apreciação da constitucionalidade das normas jurídicas em causa, por ambiguidade e falta de clareza dessas mesmas normas jurídicas, por colidirem em função dessas debilidades com uma norma constitucional.»
3.6. Em 4 de março de 2014 o Vice-Presidente do Supremo Tribunal de Justiça proferiu as decisões reclamadas, de não admissão do recurso, com o seguinte teor:
«Recurso interposto por A.
A. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos do art. 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC, para apreciação da inconstitucionalidade do art. 400.º, n.º 1, alínea c), do CPP, por violação dos do art. 32.º, n.º 1, da CRP.
Face ao disposto no n.º 2 do art. 72º da LTC, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar o brigado a dela conhecer'.
E para fundamentar a reclamação, para além de não ter sido suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade, também a norma da alínea c) do n.º 1 do art. 400.º do CPP não foi critério e fundamento da decisão que indeferiu a reclamação, o que inviabiliza qualquer julgamento sobre ela por parte do Tribunal Constitucional, porquanto os recursos de constitucionalidade desempenham uma função instrumental, só podendo o Tribunal Constitucional conhecer de uma questão de constitucionalidade quando exerça influência no julgamento da causa.
Nestes termos, não se admite o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por A..
(…)
Recurso interposto por B.
B. veio interpor recurso para o Tribunal Constitucional, ao abrigo do art. 70.º, n.º 1, alínea b), da LTC.
No respeitante à parte do requerimento de interposição de recurso para o TC em que pretende ver apreciada a inconstitucionalidade, do art. 400.º, n.º 1, alínea f), do CPP refere-se que, face ao disposto no n.º 2 do art. 72.º da LTC, o recurso previsto na alínea b) do n.º 1 do art. 70º da LTC só pode ser interposto pela parte que haja suscitado a questão da inconstitucionalidade 'de modo processualmente adequado perante o tribunal que proferiu a decisão recorrida, em termos de este estar obrigado a dela conhecer'.
E na reclamação não foi suscitada qualquer questão de inconstitucionalidade normativa.
Assim, não se admite, nesta parte o recurso interposto para o Tribunal Constitucional por B..
Por outro lado, não se toma conhecimento do segmento do requerimento de interposição de recurso para o Tribunal Constitucional, onde o recorrente suscita a inconstitucionalidade das normas dos 70.º e 71.º do CP, na interpretação que lhes foi dada pelo Tribunal da Relação do Porto, atento o disposto no art. 76.º, n.º 1, da LTC, por as normas em causa, não se referirem a decisão proferida nos termos do art. 405º do CPP.»
4. Decorre do exposto que a ora reclamante A. pretende impugnar a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação deduzida contra o despacho que não admitira o recurso para aquele tribunal, peticionando a apreciação da conformidade constitucional do artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, interpretado no sentido de “não haver recurso para o STJ de acórdão da relação que, sem prévio contraditório, considera intempestivo o recurso, admitido em 1.ª instância, de decisão que condena o arguido em pena igual ou superior a oito anos de prisão”.
A decisão reclamada suporta a não admissão do recurso de constitucionalidade em dois fundamentos, a saber, ausência de suscitação perante o Tribunal a quo de qualquer questão de inconstitucionalidade e inverificação de efetiva aplicação à dirimição do caso da norma indicada pela recorrente como padecendo de inconstitucionalidade.
Diga-se, desde já, que qualquer das reclamações não merece provimento.
4.1. Com efeito, a reclamante não enunciou perante o Tribunal a quo qualquer questão de inconstitucionalidade reportada ao artigo 400.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Penal, nem, acrescente-se, a qualquer outro preceito legal, conforme imposto pela alínea b) do n.º 1 do artigo 70.º e n.º 2 do artigo 72.º da LTC, para que assista legitimidade à recorrente.
Na reclamação em apreço, a recorrente, ora reclamante, defende que suscitou a questão de inconstitucionalidade nas motivações de recurso apresentadas em primeira instância. Porém, ainda que assim fosse, essa argumentação não encontra procedência, porquanto a invocação da inconstitucionalidade carece de ser feita perante o tribunal a que, na ordem jurisdicional e no ordenamento adjetivo, cabe proferir a decisão final sobre a matéria. Assim, no caso em apreço, tendo em conta o objeto do recurso de constitucionalidade indicado pela recorrente - admissibilidade de recurso para o Supremo Tribunal de Justiça - a reclamação apresentada ao abrigo do artigo 405.º do Código de Processo Penal era a peça processualmente idónea para suscitar tempestivamente a questão de constitucionalidade.
Ora, tomando a reclamação apresentada contra o despacho que não admitiu o recurso, verifica-se que a reclamante limitou-se a alegar que “deveria o Recurso em questão ser admitido, sob pena de se cometer uma inconstitucionalidade”, o que não consubstancia suscitação de uma questão de inconstitucionalidade perante o tribunal recorrido, em termos de o vincular ao seu conhecimento.
Assim, porque não respeitou o ónus que sobre si impendia, de suscitação prévia da questão de constitucionalidade, falece legitimidade à recorrente, o que conduz, como decidiu o despacho reclamado, à inadmissibilidade do recurso.
4.2. Acresce que, como se afirma na decisão reclamada, sem qualquer argumentação em contrário por parte da reclamante, a decisão de inadmissibilidade do recurso não assenta em critério normativo de que faça parte a ausência de contraditório, intempestividade do recurso ou a condenação em pena de prisão igual ou superior a 8 anos. O que, como bem nota o Ministério Público, decorre desde logo da circunstância da arguida ter sido condenada em pena inferior a esse limiar.
Cumpre, pelo exposto, confirmar a decisão reclamada.
5. Por sua vez, o reclamante B., pretende de igual modo impugnar a decisão do Supremo Tribunal de Justiça que indeferiu a reclamação deduzida contra o despacho que não admitira o recurso para aquele tribunal.
Verifica-se que, na reclamação em apreço, o recorrente, ora reclamante, pugna pela admissão de recurso com referência a preceito processual penal distinto daquele que indicou no requerimento de interposição de recurso. Com efeito, enquanto no requerimento de interposição de recurso indica a alínea f) do n.º 1 do artigo 400.º do Código de Processo Penal, para além de interpretação reportada aos artigos 70.º e 71.º do Código Penal, na reclamação pugna pela admissão de recurso de constitucionalidade que tenha como objeto de controlo apenas o preceituado na alínea c) do n.º 1 do artigo 400.º do CPP. Ou seja, embora coincidindo no preceito e número, entre o requerimento de interposição de recurso e a reclamação, a alínea a que se aponta sofre alteração, substituindo-se a alínea f) pela alínea c).
Cremos, porém, que essa distonia deve-se a mero erro de escrita. A circunstância de se referir que o critério normativo cuja constitucionalidade se pretende colocar em crise versa a irrecorribilidade de decisão condenatória em pena igual ou superior a oito anos de prisão, sentido que não encontra qualquer relação com a alínea c), correspondendo, sim, ao âmbito normativo contido na alínea f), denota com a necessária evidência que o reclamante incorreu nesse ponto em lapso de escrita e que visou verdadeiramente a alínea f) do n.º1 do artigo 400.º do CPP, tal como no requerimento de interposição de recurso.
Feita esta retificação, constata-se que o fundamento mobilizado no despacho reclamado para não admitir o recurso do arguido B. foi o mesmo invocado quanto ao recurso da arguida A.. Ora, o que se acima de afirmou quanto ao incumprimento do ónus de suscitação prévia de questão de constitucionalidade por parte da arguida mostra-se transponível para a apreciação da reclamação apresentada pelo arguido.
Também o arguido B. não colocou perante o STJ questão de constitucionalidade, sendo irrelevantes os termos do recurso apresentado em primeira instância, dirigido, aliás, a Tribunal que não proferiu a decisão recorrida.
Nessa medida, deve a decisão reclamada ser mantida e indeferida a reclamação apresentada pelo arguido B..
III. Decisão
6. Nos termos e pelos fundamentos expostos, decide-se:
a) Indeferir a reclamação apresentada pelos arguidos A. e B.;
b) Condenar os reclamantes nas custas, que se fixam, de acordo com a dimensão do impulso processual e o critério seguido neste Tribunal Constitucional, em 20 (unidades de conta) para cada um.
Notifique.
Lisboa, 7 de maio de 2014. – Fernando Vaz Ventura – Pedro Machete - Joaquim de Sousa Ribeiro.
|