I – O Tribunal da Relação, se entender que um determinado recurso merece provimento, deve, em geral, para além de revogar a decisão recorrida, proferir uma nova decisão que substitua a revogada.
II – Esse poder de substituição tem, para além de outros, os limites impostos pela garantia do duplo grau de jurisdição.
III – Por isso, tendo o Tribunal da Relação julgado procedente um recurso interposto pelo Ministério Público ou pelo assistente de uma sentença que tinha absolvido o arguido, decidindo condená-lo, deve o processo ser remetido à 1.ª instância para aí, se necessário após ter sido reaberta a audiência, nos termos do artigo 371.º do Código de Processo Penal, se determinar a sanção.
IV – Só assim se garante ao arguido o direito de impugnar a decisão que a tal respeito vier a ser proferida.
Proc. 10484/08 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – O arguido JGP foi pronunciado pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal (fls. 208 a 214).
No dia 2 de Julho de 2008, no termo da audiência de julgamento que decorreu no 4.º Juízo Criminal de Lisboa, veio a ser proferida sentença que absolveu o arguido da prática do crime que lhe era imputado.
A demandada “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.” foi também absolvida dos pedidos de indemnização cível contra ela formulados pelos demandantes TJL e “Instituto da Segurança Social, I.P.”.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
1. No dia 23 de Dezembro de 2005, cerca das 6h15m, o arguido conduzia o ligeiro de mercadorias, com a matrícula 64-60-SB, na Av. Infante D. Henrique, em Lisboa, no sentido Norte /Sul;
2. Uns metros antes da entrada do túnel, CL iniciou a travessia da faixa de rodagem da direita para a esquerda, atento o sentido de marcha do veículo do arguido;
3. O arguido apercebeu-se que o CL estava a efectuar a travessia da via e, embora tenha travado, não logrou imobilizar o veículo, evitando o embate;
4. O veículo embateu o peão com a frente, projectando o corpo no ar a cerca de 46,70 m do local do embate e fazendo com que aquele passasse por cima da viatura, ficando caído no solo a 6,20 metros à retaguarda da viatura;
5. Em consequência directa e necessária do embate, CL, sofreu infiltração hemorrágica do couro cabeludo e aponevrose epicraniana das regiões parietais, luxação da sexta sobre a sétima vértebra cervical com contusão da espinal-medula a este nível, laceração da aorta torácica com secção traumática total desta a nível da sexta vértebra torácica, contusão do lobo inferior do pulmão direito, hemotórax bilateral de cerca de 1125 cc. à esquerda e de 500 cc. à direita, laceração do baço, hemoperitoneu de cerca de 200 cc. e hemorragias petequiais subpleurais, subepicárdicas e subendocárdicas que lhe determinaram a morte;
6. No local havia vestígios de travagem do veículo numa extensão de 68,50 m;
7. Após o embate o veículo ficou imobilizado a sensivelmente 23,30 m do túnel e a 2,70 m do separador da via;
8. O local do embate é uma artéria em recta, plana, de duplo sentido de tráfego com placa central de 80 cm em bloco de cimento e tem, no sentido em que o arguido seguia, 12,20 m de largura;
9. A via possui uma passagem aérea a cerca de 168 metros dessa zona e não apresenta passadeiras a menos de 50 m desse ponto;
10. Aquando do embate o peão percorrera já 10 m da via, estando, por isso, a 2 m do separador central;
11. Nesse troço da via, encontra-se um placar informativo, sendo que um dos pilares de suporte do mesmo encontra-se no passeio e um outro no eixo da via;
12. Nessa zona, o separador central encontra-se afastado do pilar, sendo que aí se poderia transpô-lo;
13. Na ocasião, não estava a chover e os candeeiros existentes estavam em funcionamento;
14. Agiu o arguido de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
15. Pela apólice n.º 5070807652250 a “Companhia de Seguros Allianz, S.A.” assumiu perante o arguido o pagamento das quantias devidas em virtude de acidentes de viação em que o veículo de matrícula 64-60-SB fosse interveniente;
16. O falecido nasceu em 10 de Novembro de 1981 e era canalizador;
17. O falecido era uma pessoa alegre e estava emocionalmente ligado à assistente, sua mãe e ajudava nas despesas do agregado familiar;
18. A demandante ainda não esqueceu a morte do filho e sofreu pela perda daquele;
19. O Centro Nacional de Pensões pagou a TJL a quantia de € 1.295,00 em virtude das despesas de funeral de CL;
20. O arguido é titular de carta de condução desde 20 de Dezembro de 1974, não lhe sendo conhecidos antecedentes contra-ordenacionais;
21. O arguido é tido pelas pessoas que com ele convivem como um condutor prudente e como uma pessoa de quem todos gostam;
22. A via referida no ponto n.º 8 tem quatro faixas de rodagem;
23. Antes de travar, o arguido não se apercebeu da presença do falecido na via;
24. Na altura do embate, o veículo conduzido pelo arguido seguia, com as luzes ligadas, a mais de 50 km/h, na faixa mais próxima do separador central, sendo que, para o trajecto que pretendia tomar, existia uma outra faixa;
25. O arguido é divorciado, vive com uma companheira, explora um estabelecimento comercial, aufere em média cerca de € 500 por mês e suporta o pagamento mensal da renda do referido espaço no valor de € 400, sendo que as despesas da casa onde habita são suportadas por aquela;
26. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
O tribunal considerou não provado que:
• O arguido imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade instantânea não inferior a 100 km/h;
• O arguido apercebeu-se da presença do peão quando ainda se encontrava distante do local onde aquele estava, sendo que 16,40 metros dos rastos de travagem estão marcados ainda antes do local de embate;
• O arguido, nas condições supra descritas, sabia que conduzia com uma velocidade excessiva para aquele local, não ignorava que agia sem as cautelas a que se encontrava obrigado e de que era capaz de observar, de forma a evitar o embate com o corpo do CL e a sua morte;
• O arguido agiu de forma voluntária;
• Na sequência do embate, CL teve a noção de que iria morrer;
• O falecido sempre viveu com a mãe;
• Na sequência da morte de CL, a assistente passou a ser medicada com anti-depressivos e calmantes, sentindo revolta, sendo que o dia do aniversário do seu filho é um dia de tristeza e de mágoa;
O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:
No que respeita aos factos elencados nos pontos n.ºs 1 a 4 (no que respeita ao embate no corpo de CL e ao modo como o mesmo se desenrolou), o tribunal considerou as declarações do arguido que, de uma forma livre e parcial, admitiu os mesmos.
Quanto à distância entre veículo conduzido pelo arguido e o local onde o corpo se encontrava e quanto à distância entre o local do embate e o local onde ficou o corpo (ponto n.º 4 do elenco dos factos provados), foi tido em conta o croquis de fls. 5, tendo-se tido em conta que o espaço onde se encontrava o gorro que CL trazia [cf. alínea d) da respectiva legenda] foi plausivelmente indicado por RA (o agente da Polícia de Segurança Pública que compareceu no local na sequência dos factos e que elaborou o dito croquis, tendo deposto de uma forma sincera, convicta e persuasiva), como sendo o ponto de conflito, o que se revela em consonância com os dados da experiência corrente, já que seria a primeira peça de roupa a cair na sequência do embate.
Ademais, de acordo com o croquis, era no enfiamento desse local que se situava a fresta entre os muros que compõem o separador de betão por um onde CL pretenderia atravessar.
No que respeita à morte do falecido e às lesões por ele sofridas, considerou-se criticamente o teor do relatório de autópsia de fls. 24 a 28, por intermédio do qual foi possível apurar a extensão, descrição e a localização das lesões sofridas por CL, bem como estabelecer a relação causal entre aquelas e os factos descritos sob os n.ºs 3 e 4 e identificar, com maior clareza, as causas da morte.
Quanto ao comprimento dos rastos de travagem e ao local onde o veículo ficou imobilizado, foram consideradas as medições constantes do referido croquis, as quais não foram infirmadas por quaisquer meios de prova.
No que tange à caracterização da via (pontos n.ºs 8, 9, 11, 12 e 22 do elenco dos factos provados), foram tidas em conta, conjugadamente, as declarações do arguido (que, no essencial, confirmou a descrição vertida no despacho de pronúncia), as menções vertidas no dito croquis (sendo que dele não consta a existência de qualquer passadeira) e o mencionado depoimento testemunhal.
No que respeita à distância percorrida pelo peão, foram tidas em conta, conjugadamente, as declarações do arguido (que, no essencial, confirmou a descrição vertida no despacho de pronúncia), a largura total da via (que, de acordo com o dito croquis se cifra em 12,20 m) e o mencionado depoimento testemunhal.
No que concerne ao estado do tempo, foram consideradas, conjugadamente, as menções vertidas a esse respeito no auto de participação de acidente de viação (de fls. 3 e ss.), sendo que RA confirmou que não estava a chover. A respeito da luminosidade existente, o tribunal levou em linha em conta as menções aos diversos postos de iluminação existentes no local (cf. croquis de fls. 5), sendo que o arguido e RA referiram que os mesmos estavam a funcionar.
Quanto à atitude interior do arguido, o tribunal, com base no apuramento dos factos elencados sob os n.ºs 1 a 4, logrou concluir que o arguido agira livre e conscientemente e, sendo detentor de carta de condução há mais de 20 anos, saberia, por certo, que as regras estradais determinam que a velocidade no interior de localidades (como é o caso) não seja, salvo casos excepcionais, superior a 50 km/hora, pelo que bem saberia que estava a protagonizar conduta legalmente proibida e punida.
No que se refere aos factos colhidos no pedido de indemnização civil da assistente, foi tida em conta, a respeito do seguro de responsabilidade civil automóvel do veículo, a apólice de seguro de fls. 246.
Quanto à data de nascimento do falecido, foi valorada analiticamente a respectiva certidão de nascimento de fls. 246 e, no que concerne à actividade que aquele desempenhava, foi considerado o depoimento de AO (meio irmão do falecido) que se revelou sincero, assertivo, espontâneo e descomprometido e que, por isso, foi tido como credível, tanto mais que o mesmo revelou conhecimento directo desse facto.
No que concerne ao cariz do falecido, à sua relação com a demandante e aos sentimentos por esta vividos, a convicção do tribunal estribou-se na análise crítica e conjugada dos testemunhos de AO, RO (ex-cunhada do falecido) e LA (uma vizinha da demandante).
Pelo modo como deram conta dos factos em apreço, aqueles depoentes revelaram um conhecimento presencial dos mesmos (decorrente da lidação próxima com a assistente e a sua mãe), referindo-se a eles de uma forma clara, pormenorizada e convicta. Assim, atenta a forma lúcida, descomprometida e segura com que foram prestados os respectivos depoimentos, o tribunal considerou-os como persuasivos e fiáveis tendo, por isso, os relevado como fundamentais para a aquisição do conhecimento desses factos.
Ademais, para demonstrar a alegada relação de filiação, foi ainda valorada a dita certidão de nascimento.
Quanto ao pagamento das despesas do funeral de CL, o tribunal, com espírito crítico, apreciou o conteúdo da certidão emitida pelo Centro Nacional de Pensões de fls. 329, tendo-a conjugado com o requerimento de fls. 326 a 328 e com a proposta de deferimento de fls. 325.
No que respeita aos factos extraídos da contestação do arguido, foram conjugadamente tidos em conta o teor da menção alusiva à data da emissão da carta de condução do arguido (fls. 3) e a informação da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária junta aos autos no decurso da audiência de julgamento.
A respeito da caracterização do arguido como pessoa e como condutor, foram valorados os depoimentos sinceros e descomprometidos de LG e VG (amigas do arguido) que revelaram conhecer os traços mais relevantes do seu carácter.
No que respeita ao segundo facto extraído da contestação da demandada, a convicção do tribunal formou-se com base na apreciação das declarações do arguido que deu conta desse facto de uma forma que se revelou coincidente com o contexto do caso e com o relato que efectuou acerca do acidente, sendo que tal não foi posto em crise por outro meio de prova.
A respeito do facto contido no ponto n.º 24, a convicção do tribunal estribou-se na apreciação das declarações do arguido que deu conta de que seguia, na faixa mais à esquerda, a uma velocidade que situou entre 60 a 70 km/h, sendo que tal é coincidente com a projecção do peão à citada distância e com os estragos existentes na parte frontal do veículo de que RA deu conta. Ademais, o arguido referiu que pretendia entrar num túnel e que, naquele local, eram duas as faixas que tal propiciavam, como se refere no relatório técnico de acidente de viação de fls. 57 e ss..
No que se refere às condições de vida do arguido, tiveram-se em conta as declarações por este prestadas.
Por sua vez, quanto aos antecedentes criminais do arguido, teve-se em conta o teor do seu certificado de registo criminal de fls. 389.
No que se refere aos factos não provados, o tribunal ponderou o seguinte.
Quanto à velocidade a que o veículo conduzido pelo arguido seguia, este último não admitiu os factos constantes do despacho de pronúncia.
Por seu turno, a extensão dos rastos de travagem não constitui, por si só, um elemento por intermédio do qual se possa, sem mais, determinar a velocidade, i.e. o espaço percorrido numa determinada unidade de tempo.
Como é sabido, além do tempo de reflexo do condutor, há que ter em conta outros vectores e variantes como sejam a pressão e tipo dos pneus, o seu estado de conservação, o estado de funcionamento dos travões (e averiguar se os mesmos eram dotados do sistema “ABS”), o estado e tipo do pavimento e as condições atmosféricas.
Ademais, no caso concreto, caberia ainda ter em conta que os factos se passaram numa madrugada do mês de Dezembro, numa zona de Lisboa que se situa junto ao rio Tejo, pelo que é plausível que o pavimento não estivesse completamente seco, como o arguido aventou, o que poderia ter tido interferência no cálculo da velocidade constante do relatório técnico de acidente de viação de fls. 57 e ss. (no qual se terá estribado a pronúncia), como o seu autor (a testemunha de nome AB) explicou.
Nenhum destes elementos foi, concretamente, tido em conta no citado cálculo do dito relatório (como se infere do que aí se escreve a fls. 65), sendo certo que o estado dos travões apenas fora objecto de inspecção periódica cerca de 5 meses antes dos factos (cf. fls. 64).
Ora, assim sendo, o cálculo em causa não pode, por si só, fundar uma decisão positiva quanto ao aludido facto.
Por seu turno, os estragos verificados no veículo (cf. o respectivo detalhe, constante de fls. 64 e as fotografias de fls. 86) e a projecção do corpo do falecido à indicada distância não permitiam, sem mais, concluir no indicado sentido.
Não foi produzida qualquer prova que evidencie que o arguido se apercebeu da presença do peão em local distante do sítio onde se deu o embate, sendo que o facto de o falecido seguir com calças de ganga e com um “kispo” verde (como se extrai da conjugação das declarações do arguido – que viu o falecido após os factos – e do testemunho de RA) e de existirem luzes acesas no local não conduzem a conclusão oposta.
Acresce que, como AB deu conta, não foi medida a distância entre o início dos rastos de travagem e o local onde se encontrava o gorro e, contabilizando as medidas constantes do croquis de fls. 5, não se descortina que existam 16,40 m entre aqueles dois locais.
Não se apuraram circunstâncias que permitam qualificar a velocidade como excessiva ou que permitiam concluir que o arguido agira voluntariamente (o que seria um contra-senso) ou sem as cautelas devidas para evitar o embate, tanto mais que tanto AB como RA referiram que, se o arguido seguisse à velocidade de 50 Km/hora, o acidente teria igualmente tido lugar. Por outro lado, mesmo que o veículo tripulado pelo arguido seguisse a essa velocidade era altamente provável, como decorre dos ensinamentos da experiência a respeito da sinistralidade rodoviária, que o embate produzisse o mesmo resultado infausto.
Ademais, o facto de o arguido não ter conseguido imobilizar o veículo que conduzia antes de embater na vítima, não é sinónimo de excesso de velocidade, porquanto a possibilidade de parar no espaço livre e visível à sua frente caso seja necessário (que subjaz àquele conceito) pressupõe que não ocorram eventos inesperados, dirigindo-se antes às ocorrências normais do trânsito.
Não foi produzida qualquer prova de que CL teve a percepção da morte, sendo que as lesões sofridas não evidenciam que o mesmo tenha tido essa consciência, sendo que as testemunhas inquiridas revelaram nada saber a respeito dos demais factos alegados no pedido de indemnização civil da demandada.
Acresce que o falecido residia em Lisboa (como AO deu conta), pelo que não se pôde concluir que o mesmo viveu sempre com a mãe, sendo que esta, nas suas declarações, referiu residir em Viseu.
2 – A assistente interpôs recurso dessa sentença (fls. 532 a 561).
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
«I – Deverão ser dados como provados os seguintes factos:
O arguido imprimia ao veículo que conduzia uma velocidade instantânea não inferior a 100 km/h;
O arguido apercebeu-se da presença do peão quando ainda se encontrava distante do local onde aquele estava (...);
O arguido, nas condições supra descritas, sabia que conduzia com uma velocidade excessiva para aquele local, não ignorava que agia sem as cautelas a que se encontrava obrigado e de que era capaz de observar, de forma a evitar o embate no corpo do CL e a sua morte;
O arguido agiu de forma voluntária;
II – Consequentemente, deverá a douta sentença proferida ser revogada e substituída por outra, por força da prova dos factos em I), que condene o arguido e a demandada cível nos termos do requerimento de abertura de instrução e do pedido de indemnização civil formulado, que se dão aqui como reproduzidos para os legais efeitos;
III – Na douta sentença o Tribunal 'a quo' violou os comandos legais constantes dos artigo 137.º, n.º 1 do C.P. e dos artigos 24.º, n.ºs 1 e 2, 25.º, n.º 1, al. j), n.º 2, e 27.º, todos do Código da Estrada e 483.º do Código Civil.
Termos em que revogando a douta sentença proferida, condenando o arguido e a demandada cível no peticionado, V. Exas. farão a acostumada justiça».
3 – O Ministério Público, o arguido e a demandada responderam à motivação apresentada defendendo o primeiro a procedência e os restantes a improcedência do recurso (fls. 571 a 573, fls. 599 a 607 e fls. 575 a 586, respectivamente).
4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 608.
5 – Neste tribunal, a Sr.ª procuradora-geral-adjunta, quando o processo lhe foi apresentado, emitiu o parecer de fls. 615 a 617 no que sustenta que o recurso deve proceder.
6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – A assistente, como se pode ver das conclusões da motivação que se transcreveram, impugnou parte da decisão de facto proferida na 1.ª instância pretendendo que este tribunal altere os quatro primeiros pontos da matéria de facto não provada.
Com base na pretendida alteração, entende que este tribunal deve revogar a decisão proferida, condenando o arguido pela prática do crime por que foi pronunciado e a demandada civil no pagamento do valor da indemnização pedida.
Antes de apreciarmos esse recurso, importa fazer algumas considerações que têm a ver com a narração dos factos feita na sentença e a interpretação que deles deve, a nosso ver, ser feita.
Em primeiro lugar, quando em certos pontos da narração (ex. factos n.ºs 22 e 24) e mesmo na parte restante da fundamentação se utilizaram os conceitos de “faixa” e “faixa de rodagem” não se podem entender estas expressões no sentido técnico definido na alínea h) do artigo 1.º do Código da Estrada mas sim no sentido de “via de trânsito”, ou seja, de “zona longitudinal da faixa de rodagem destinada à circulação de uma única fila de veículos” [alínea t) do mesmo artigo 1.º].
Em segundo lugar, quando no ponto 14 da matéria de facto, relativa à prática de um crime negligente, se considerou provado que «agiu o arguido de forma livre e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei» quis-se significar, como decorre da fundamentação dessa parte da decisão(1) , que o arguido tinha conhecimento da velocidade a que conduzia o veículo, querendo actuar dessa forma apesar de saber que essa velocidade era superior ao limite estabelecido por lei para a circulação dos veículos automóveis daquela categoria dentro das localidades(2) .
Por fim, quando no ponto 23 se deu como provado que «antes de travar, o arguido não se apercebeu da presença do falecido na via», o tribunal não desconhecia(3) que entre a percepção da presença da vítima a atravessar a via e o desencadear da acção de travagem medeia sempre o “tempo de reacção”, durante o qual o veículo percorre uma determinada distância que vulgarmente se designa como “distância de reacção”.
8 – Feitas estas observações preliminares, apreciemos então o recurso interposto quanto à matéria de facto, começando pela questão da velocidade a que seguia o veículo ligeiro de mercadorias de matrícula 64-60-SB (um Peugeot 206 branco matriculado em Julho de 2001).
A esse respeito o tribunal considerou provado que o veículo seguia a mais de 50 km/h (facto n.º 24) e entendeu não estar provado que ele circulasse a uma velocidade não inferior a 100 km/h (1.º facto não provado).
Ao fundamentar este segmento da decisão de facto o tribunal afirmou:
«A respeito do facto contido no ponto n.º 24, a convicção do tribunal estribou-se na apreciação das declarações do arguido que deu conta de que seguia, na faixa mais à esquerda, a uma velocidade que situou entre 60 a 70 km/h, sendo que tal é coincidente com a projecção do peão à citada distância e com os estragos existentes na parte frontal do veículo de que RA deu conta. Ademais, o arguido referiu que pretendia entrar num túnel e que, naquele local, eram duas as faixas que tal propiciavam, como se refere no relatório técnico de acidente de viação de fls. 57 e ss..
…
No que se refere aos factos não provados, o tribunal ponderou o seguinte.
Quanto à velocidade a que o veículo conduzido pelo arguido seguia, este último não admitiu os factos constantes do despacho de pronúncia.
Por seu turno, a extensão dos rastos de travagem não constitui, por si só, um elemento por intermédio do qual se possa, sem mais, determinar a velocidade, i.e. o espaço percorrido numa determinada unidade de tempo.
Como é sabido, além do tempo de reflexo do condutor, há que ter em conta outros vectores e variantes como sejam a pressão e tipo dos pneus, o seu estado de conservação, o estado de funcionamento dos travões (e averiguar se os mesmos eram dotados do sistema “ABS”), o estado e tipo do pavimento e as condições atmosféricas.
Ademais, no caso concreto, caberia ainda ter em conta que os factos se passaram numa madrugada do mês de Dezembro, numa zona de Lisboa que se situa junto ao rio Tejo, pelo que é plausível que o pavimento não estivesse completamente seco, como o arguido aventou, o que poderia ter tido interferência no cálculo da velocidade constante do relatório técnico de acidente de viação de fls. 57 e ss. (no qual se terá estribado a pronúncia), como o seu autor (a testemunha de nome AB) explicou.
Nenhum destes elementos foi, concretamente, tido em conta no citado cálculo do dito relatório (como se infere do que aí se escreve a fls. 65), sendo certo que o estado dos travões apenas fora objecto de inspecção periódica cerca de 5 meses antes dos factos (cf. fls. 64).
Ora, assim sendo, o cálculo em causa não pode, por si só, fundar uma decisão positiva quanto ao aludido facto.
Por seu turno, os estragos verificados no veículo (cf. o respectivo detalhe, constante de fls. 64 e as fotografias de fls. 86) e a projecção do corpo do falecido à indicada distância não permitiam, sem mais, concluir no indicado sentido».
Não se pode deixar de dizer, antes de mais, que, tendo o tribunal acreditado nas declarações do arguido no que respeita à velocidade e tendo este declarado que seguia a uma velocidade entre os 60 e os 70 km/h, o que o Sr. juiz achou compatível com os danos provocados pelo embate do corpo da vítima no veículo, não se compreende que apenas tenha considerado provado que o arguido circulava a uma velocidade que excedia os 50 km/h, como se o seu valor concreto fosse indiferente.
Isto torna-se, porém, irrelevante porquanto, pelo que se dirá, a decisão do tribunal denota que existiu, a tal respeito, um claro erro na apreciação da prova, talvez devido a uma certa sobrevalorização das declarações do arguido em detrimento do que necessariamente se infere dos elementos de facto objectivos tidos também por assentes.
Embora se aceite que a extensão do rasto de travagem não é um elemento que, só por si e sem mais, permite determinar a velocidade exacta a que seguia um determinado veículo numa dada ocasião, havendo que considerar também os factores relativos ao automóvel (estado de conservação e pressão dos pneus, tipo de travões e condições do seu funcionamento) e à via (natureza do piso, o seu estado de conservação e as condições de aderência), não se pode desconsiderar, quase por completo, como parece ter feito a 1.ª instância, o que se deve inferir da extensão do rasto de travagem, em linha recta e contínuo.
Se todos esses outros factores influenciam o coeficiente de atrito, não se pode esquecer que este é apenas um dos elementos que foi utilizado para o cálculo da velocidade do automóvel conduzido pelo arguido.
De acordo com a fórmula adoptada no Relatório Técnico(4) junto a fls. 57 e ss., cuja validade não foi posta em causa, a velocidade aproximada do veículo corresponde à raiz quadrada do dobro do valor que resulta da multiplicação do comprimento do rasto de travagem pelo valor da gravidade e pelo coeficiente de atrito.
Tendo o rasto de travagem um comprimento de 68,5 metros, sendo o valor da gravidade de 9,8 m/s2 e tendo sido adoptado um coeficiente de atrito de 0,8, o dobro do resultado da multiplicação destes valores é de 1074,08 (68,5 X 9,8 X 0,8 X 2). Extraindo a raiz quadrada deste número, verificamos que a velocidade aproximada do veículo seria a de 32,77 metros por segundo, o que, multiplicando por 3600 (60 segundos X 60 minutos), corresponde a 117,97 km/h.
Ora, se se reduzisse em ¼ o coeficiente de atrito (o que era mais do que suficiente para compensar eventuais e não provadas limitações do veículo e deteriorações das condições da via), ou seja, se em vez do valor de 0,8 se utilizasse o valor de 0,6, verificávamos que a velocidade aproximada do veículo era de 28,38 metros por segundo (raiz quadrada do produto de 68,5 X 9,8 X 0,6 X 2). Multiplicando por 3600, o resultado era de 102,17 km/h.
Depararíamos sempre com uma velocidade superior aos 100 km/h.
Daí que não exista qualquer razão para se considerar como não provado aquele 1.º facto(5).
9 – A essa velocidade, embora não se produza ainda o “efeito de túnel”, o ângulo de visão do condutor, que, quando parado, é de 180 graus, não ultrapassa os 45 graus, o que constitui uma limitação muito acentuada da percepção, admitindo-se como possível que o arguido apenas se tenha efectivamente apercebido da presença do peão pouco antes de ter accionado os travões(6) .
Como resulta do ponto 23 da matéria de facto provada, na interpretação que dela anteriormente fizemos, o arguido, logo que se apercebeu da presença do peão, decidiu accionar os travões.
Isto não quer, contudo, dizer que ele não pudesse (e devesse, diga-se) ter-se apercebido dessa presença mais cedo.
De facto, tratando-se de uma avenida iluminada, recta e plana, tendo a hemi-faixa direita, atento o sentido em que seguia o arguido, quatro vias de trânsito e 12,2 metros de largura, vindo o peão da direita do condutor, circulando o veículo pela via mais à esquerda, e tendo o peão já percorrido 10 metros quando foi atropelado, o arguido bem podia ter-se apercebido da sua presença, se conduzisse com atenção, a mais de 90 metros, que é aproximadamente a distância percorrida pelo veículo à velocidade a que circulava nos, pelo menos, 3 segundos (7) que o peão demorou a percorrer aqueles 10 metros da via até ser atropelado.
Não é esse, contudo, o sentido do 2.º ponto da matéria de facto que foi impugnado pela assistente.
O que se considerou não provado foi que o arguido se apercebeu (efectivamente) da presença da vítima «quando ainda se encontrava distante do local onde aquele estava».
Ora, em nosso entender, como se disse, nada nos permite afirmar esse facto e, portanto, alterar a decisão proferida quanto a este ponto.
10 – A apreciação da impugnação da decisão quanto aos 3.º e 4.º pontos da matéria de facto não provada impõe que previamente se façam algumas considerações jurídicas sobre os limites impostos pelo Código da Estrada quanto à velocidade, que julgámos, se calhar ingenuamente, que não podiam suscitar dúvidas.
De acordo com o n.º 1 do artigo 27.º do Código da Estrada, «sem prejuízo do disposto nos artigos 24.º e 25.º e de limites inferiores que lhes sejam impostos, os condutores não podem exceder» as velocidades instantâneas (em quilómetros/hora) indicadas no quadro que se segue ao corpo desta disposição, no caso, os 50 km/h.
Significa isto que as velocidades indicadas em tal preceito são velocidades máximas absolutas, o que não quer dizer que os veículos não devam circular mais devagar, nomeadamente se se verificarem as circunstâncias enunciadas nos artigos 24.º ou 25.º do Código da Estrada.
Assim, ao ultrapassar os 50 km/h, e independentemente das circunstâncias concretas da via e do trânsito, o condutor, naquele local, infringe as regras do Código da Estrada.
Por isso, e pelo que se disse antes quanto ao sentido que atribuíamos ao ponto 14 da matéria de facto provada, o que consta da primeira parte do 3.º ponto e do 4.º ponto da matéria de facto não provada deve de ser eliminado, reconduzindo-se o seu conteúdo ao que se entendeu estar provado naquele ponto 14.
Para que não restem dúvidas, importa deixar claro que consideramos provado que o arguido tinha conhecimento da velocidade a que conduzia o veículo, querendo actuar dessa forma apesar de saber que essa velocidade era superior ao limite estabelecido por lei para a circulação dos veículos automóveis daquela categoria dentro das localidades.
11 – Pelo exposto, e quanto ao recurso relativo à matéria de facto, concluímos, em resumo, que:
a) Deve ser mantido o 2.º ponto da matéria de facto não provada;
b) Deve considerar-se provado (alterando-se a redacção dos pontos 1.º e 14.º da matéria de facto provada) o seguinte:
No dia 23 de Dezembro de 2005, cerca das 6h15m, o arguido conduzia o ligeiro de mercadorias, com a matrícula 64-60-SB, na Av. Infante D. Henrique, em Lisboa, no sentido Norte /Sul, a uma velocidade instantânea não inferior a 100 km/h;
O arguido tinha conhecimento da velocidade a que conduzia o veículo, querendo actuar dessa forma apesar de saber que essa velocidade era superior ao limite estabelecido por lei para a circulação dos veículos automóveis daquela categoria dentro das localidades.
c) Devem, consequentemente, ser eliminados os 1.º, 3.º e 4.º pontos da matéria de facto não provada (8).
12 – Apreciada a impugnação de facto, debrucemo-nos agora sobre o aspecto jurídico da causa.
Pelo que já se disse, julgamos que não se podem suscitar dúvidas de que o arguido, ao não se aperceber atempadamente da presença do peão a atravessar a via, violou o dever de cuidado interno (9), não tendo, por isso, adoptado o comportamento externo que, caso essa violação do dever de cuidado não tivesse acontecido, deveria e seria de esperar que tivesse adoptado.
Ao circular a uma velocidade de, pelo menos, o dobro do legalmente permitido (artigo 27.º, n.º 1, do Código da Estrada), o arguido infringiu o dever de cuidado externo porque não executou o comportamento perigoso, que é a condução automóvel, de acordo com as regras técnicas previstas para conter os perigos inerentes a essa actividade dentro dos limites socialmente aceitáveis (10).
O mesmo acontece quanto à utilização da via de trânsito mais à esquerda, contrariando o disposto no n.º 1 do artigo 14.º do Código da Estrada.
O comportamento do arguido foi, portanto, claramente, violador do dever (objectivo e subjectivo) de cuidado e, por isso, negligente.
Uma vez que o homicídio é um crime de resultado, importa verificar se a morte do peão deve ser imputada à conduta do condutor.
Não se duvidará de que essa conduta foi uma condição “sine qua non” do evento, ou seja, que existe uma relação de causalidade, neste sentido, entre uma e outra.
Que, “ex ante” e naquelas circunstâncias (ou seja, com um campo de visão diminuído pela velocidade e, por causa dessa mesma velocidade, com a necessidade de uma distância muito maior para executar qualquer manobra, nomeadamente a de travagem), era previsível que o condutor pudesse atropelar um peão que atravessasse a estrada e que daí resultasse a morte da vítima, é conclusão que nos parece evidente.
O arguido, com este comportamento, incrementou claramente, para além dos limites socialmente aceitáveis, o perigo para a integridade física e para a vida da vítima.
As regras técnicas violadas foram estabelecidas para evitar eventos danosos desta natureza.
Se o arguido tivesse conduzido de acordo com as regras impostas pelo Código da Estrada o atropelamento não teria, seguramente, acontecido.
Daí que não se possa duvidar de que o resultado morte é imputável à conduta do agente e, portanto, que o arguido é responsável pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo n.º 1 do artigo 137.º do Código de Processo Penal.
Deve, por isso, ser revogada a decisão que absolveu o arguido da prática desse crime.
13 – Sobre esta matéria pretendemos apenas fazer mais duas observações.
Uma primeira, a propósito do atravessamento da avenida naquele ponto e do princípio da confiança.
Não vemos que resulte do Código da Estrada que à vítima não fosse permitida, independentemente das concretas circunstâncias do tráfego, atravessar a faixa de rodagem naquele lugar.
Não existia, a menos de 50 metros, qualquer passagem especialmente destinada ao atravessamento da via pelos peões. A vítima atravessou-a perpendicularmente, não existindo nada que aponte para que não o tenha feito o mais rapidamente possível.
Não será o simples facto de estar colocada uma barreira separadora com 0,80 metros de altura que, juridicamente, impedirá o atravessamento em toda e qualquer circunstância. Dissuade ou impede mesmo a certas pessoas a travessia. Alerta para o perigo. Exige cuidado. Nada mais.
Esse atravessamento, quando possa ter lugar(11) , não deverá, no entanto, ser feito sem que o peão previamente se tenha certificado de que, tendo em conta a distância que o separa do ou dos veículos e a velocidade destes, o pode fazer sem perigo de acidente (artigo 101.º, n.º 1, do Código da Estrada).
Nesta sede, e no caso concreto, também vale o princípio da confiança que, a outro propósito, se invocou na sentença recorrida.
Uma vez que era de noite e a visibilidade, embora assegurada pelos candeeiros existentes no local, não se comparava com a propiciada pelo sol, tornava-se difícil ao peão aquilatar a velocidade imprimida ao veículo automóvel. Para esse efeito ele podia contar que o condutor do veículo cumprisse as regras de velocidade estabelecidas no Código da Estrada, o que, a acontecer, teria permitido o atravessamento com segurança. Note-se que o peão foi colhido quando já tinha percorrido 10 dos 12 metros da hemi-faixa.
A segunda nota tem a ver com o carácter que se diz ter sido inopinado do atravessamento.
Se, como justificámos, o condutor podia ter avistado o peão, já na faixa de rodagem, a, pelo menos, 90 metros de distância, não se pode dizer que o atravessamento àquela hora e naquele local tenha surgido como um facto inopinado, tanto mais que o peão já tinha percorrido três das quatro vias de trânsito.
14 – Passemos agora à questão da absolvição dos pedidos cíveis.
A prática de um crime de homicídio negligente é geradora de responsabilidade civil já que se trata de um acto ilícito e, no caso, existem prejuízos reparáveis (artigo 483.º do Código Civil).
Por isso se justifica também a revogação da decisão de absolvição dos pedidos de indemnização civil.
15 – Alcançada a conclusão de que o arguido deve ser condenado pela prática do crime que lhe foi imputado e que a demandada deve responder pelos prejuízos decorrentes do acidente importaria agora passar à fase de determinação da sanção (artigo 369.º do Código de Processo Penal) e à da determinação do “quantum” das indemnizações a arbitrar.
Porém, se este tribunal o fizesse o arguido ficaria privado do direito ao recurso quanto à escolha da pena e determinação da sua medida porquanto a decisão deste tribunal não seria, nessa parte, recorrível. Este tribunal decidiria em primeira e única instância essas questões, o que contrariaria o direito ao recurso constitucionalmente consagrado no artigo 32.º, n.º 1, da Lei Fundamental.
O mesmo poderia suceder quanto às partes civis, a quem, pelo menos, seria suprimido um grau de recurso.
Daí que, decidida a revogação da sentença recorrida e a condenação penal e civil, deva o processo ser remetido à 1.ª instância para aí, se necessário após reabertura da audiência nos termos do artigo 371.º do Código de Processo Penal, se determinar a sanção e se fixar o montante das indemnizações devidas.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pela assistente TJL, decidindo:
a) Alterar, nos termos indicados no ponto 11, a matéria de facto provada.
b) Revogar a sentença recorrida, na parte em que absolveu o arguido JGP do crime que lhe era imputado e a demandada civil “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.” dos pedidos contra ela formulados pelos demandantes TJL e “Instituto da Segurança Social, I.P.”.
c) Condenar o arguido JGP pela prática de um crime de homicídio negligente p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1, do Código Penal.
d) Condenar a demandada “Companhia de Seguros Allianz Portugal, S.A.” a indemnizar os demandantes TJL e “Instituto da Segurança Social, I.P.”.
e) Determinar que os autos sejam remetidos à 1ª instância para, com base na matéria de facto agora fixada e na apreciação da responsabilidade civil e criminal que ela acarreta, se necessário depois de se reabrir a audiência nos termos do artigo 371.º do Código de Processo Penal, se determinar a pena a aplicar ao arguido e o valor das indemnizações devidas aos demandantes.
NOTAS:
(1) Aí se diz que, «quanto à atitude interior do arguido, o tribunal, com base no apuramento dos factos elencados sob os n.ºs 1 a 4, logrou concluir que o arguido agira livre e conscientemente e, sendo detentor de carta de condução há mais de 20 anos, saberia, por certo, que as regras estradais determinam que a velocidade no interior de localidades (como é o caso) não seja, salvo casos excepcionais, superior a 50 Km/hora, pelo que bem saberia que estava a protagonizar conduta legalmente proibida e punida».
(2) Para que não houvesse contradição insanável da fundamentação, ter-se-ia que entender que, quando o tribunal considerou não provado que «o arguido, nas condições supra descritas, sabia que conduzia com uma velocidade excessiva para aquele local» adoptou o eventual ponto de vista valorativo do agente, ou seja, o de que, embora aquela velocidade excedesse o limite máximo absoluto imposto pelo n.º 1 do artigo 27.º do Código da Estrada, «atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito» e às demais circunstâncias relevantes, essa velocidade não o impedia de, «em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade [fosse] de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente» (artigo 24.º, n.º 1).
(3) Porque na fundamentação da decisão de facto se refere expressamente ao «tempo de reflexo do condutor».
(4) Que, segundo se diz no Relatório Técnico, tem por base uma adaptação feita pelas autoridades policiais espanholas de uma fórmula contida provavelmente no manual da Northwestern University (Evanston Campus, no Illinois, USA) intitulado «Traffic Collision Investigation», originalmente escrito por J. Stannard Baker, cuja última edição é de 2002.
(5) E se dúvidas existissem, sempre poderia ter sido ordenada a realização de perícia adequada.
(6) Circulando o veículo a uma velocidade não inferior a 100 km/h, durante o tempo de reacção, ou seja, entre a percepção pelo condutor da presença do peão e o accionamento do travão, tempo esse que não é seguramente inferior a 0,7 segundos, a viatura terá percorrido, pelo menos, 19,44 metros.
Tendo o corpo da vítima ficado a 6,2 metros do veículo, admitindo que a viatura tinha 3,5 metros de comprimento e tendo em conta que a vítima foi projectada a 46,7 metros, poderemos concluir que ela foi atropelada quando o arguido já estava a tentar imobilizar o carro, tendo já deixado no pavimento cerca de 12 metros de rasto de travagem. Uma vez que com a travagem o veículo reduz a velocidade e, consequentemente, é menor a distância percorrida, poderemos seguramente afirmar que o arguido viu a vítima, pelo menos, a 30 metros de distância, o que corresponderá a um pouco menos de 1,5 segundos.
Circulando a uma velocidade de 50 km/h, o arguido podia perfeitamente ter imobilizado o veículo sem atropelar a vítima.
Na verdade, tendo em conta a distância percorrida durante o tempo de reacção e a distância de travagem, em condições de aderência normais, seriam, para este efeito, necessários seguramente menos de 30 metros.
E mesmo que, por qualquer motivo, não imobilizasse o veículo, são incomparáveis as lesões provocadas por um atropelamento a 50 km/h (ou muito menos, dada a redução da velocidade originada pela travagem) e um a quase (porque no momento do embate com o corpo da vítima já tinha havido alguma redução da velocidade também devido à travagem) 100 km/h, sendo incomparavelmente maior, neste último caso, a probabilidade de morte do peão.
(7) Um peão, mesmo andando depressa, não percorre, em geral, mais de 2,5 metros por segundo.
(8) A parte restante do 3.º ponto era meramente conclusiva e valorativa não contendo qualquer facto.
(9)«O primeiro dever que deriva do mandato geral de cuidado consiste em identificar e valorar correctamente os perigos que espreitam o bem jurídico protegido, pois todas as precauções destinadas a evitar um dano dependem do tipo e da medida do conhecimento do perigo que o ameaça» (JESCHECK, Hans-Heinrich e WEIGEND, Thomas, in «Tratado de Derecho Penal – Parte General», tradução castelhana da 5ª Edição, Comares, Granada, 2002, p. 622.
(10) JESCHECK, ob. cit. p. 624.
(11) O integral cumprimento de uma das dimensões do dever externo de cuidado impõe, pelo menos na maior parte das horas do dia, dada a largura da avenida, a intensidade do tráfego e a velocidade a que este circula, o dever de omitir a conduta perigosa já que a mesma não pode ser executada dentro de margens de risco socialmente aceitáveis.
Lisboa, 14 de Janeiro de 2009
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)