Para efeitos do n.º 7 do art.º 105.º do RGIT importa o valor de cada declaração de IVA, não podendo funcionar para a qualificação a soma de todos os montantes mensais retidos e recebidos, ainda que parcialmente retidos
Proc. 9181/08 9ª Secção
Desembargadores: Margarida Veloso - José Eduardo Martins - -
Sumário elaborado por Paulo Antunes
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Proc. 9181.08.9
Acordam os juízes da 9a secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. No âmbito do processo n.° (...), do Tribunal da comarca da Lourinha os arguidos (..), foram condenados por sentença datada de 30/06/2008, pela prática de um crime de abuso fiscal agravado, p.p.p. art.° 105°, n.° 1 e 5, do RGIT, na pena de dois anos de prisão suspensa na sua execução por igual período, na condição de procederem ao pagamento das prestações tributárias em divida.
Inconformados vieram interpor recurso, extraindo da respectiva motivação as seguintes conclusões:
- Não se provou, contrariamente ao sustentado na acusação, que os arguidos, ora recorrentes, tivessem recebido a totalidade do NA, correspondente ao período de Janeiro a Setembro de 2002, no valor de E 64.571,86;
* E que, se tivessem apropriado dessa quantia, que utilizaram, em proveito próprio;
* Pelo contrário, resultou provado que, no período de Janeiro a Setembro de 2002, apenas uma média de 20% dos clientes da arguida (...), é que pagavam, na data de vencimento, as facturas relativas à mercadoria que lhes era vendida;
- Como decorre do teor da alínea D) dos factos dados como provados;
- Pelo que, para efeitos do crime de abuso de confiança fiscal, o montante em causa, referente aos valores que a arguida SIPLUMA terá recebido, no período de Janeiro a Setembro de 2002, não excede os E 12.914,37;
- Constituindo o crime de abuso de confiança fiscal a não entrega ao Estado de determinado montante que, foi recebido e não, o não pagamento;
- Nesse sentido se pronunciou o Acórdão da Relação do Porto de 12/11/2003 e o Acórdão do STJ n° 16/2002;
- Não tendo, face ao montante de € 12.914,37, qualquer aplicabilidade aos arguidos, o regime previsto no n° 5, do art° 105 do RGIT, que tipifica o crime de abuso de confiança fiscal agravado;
- Uma vez que, as disposições legais aí previstas só são passíveis de aplicação, no caso de o imposto recebido e não entregue, exceder os E 50.000,00;
- Devendo, face à factualidade dada como provada, ser aplicável aos arguidos o regime constante do n° 1, do art° 105° do RGIT;
- Tendo em consideração que os arguidos não têm quaisquer antecedentes criminais e que o Fisco dispõe de garantias da cobrança da totalidade da quantia em dívida, por ter penhorado todos os bens à arguida (...), a medida da pena a aplicar aos arguidos, não deveria exceder a de multa; - Acresce ainda que, a sentença recorrida aplicou ao recorrente (...), a mesma pena, apesar de este ter 75 anos de idade e não ter registado no seu cadastro, a aplicação de qualquer pena;
- Pelo que, a sentença recorrida ao condenar os arguidos, na pena de prisão prevista no n° 5, do art° 105° do RGIT, violou, por erro de interpretação, o disposto no n° 1, do art° 105° do RGIT
Peticionam nestes termos, a revogação da sentença recorrida.
O Digno Magistrado do Ministério Público na sua resposta apresenta as seguintes conclusões:
- Ao contrário do que sucede no processo civil, não existe no processo penal ónus da prova.
- Assim, definido o objecto do processo pela acusação e delimitado, consequentemente, o objecto do julgamento, o tribunal deve procurar a reconstrução histórica dos factos, procurando, através de todos os meios processualmente admissíveis, alcançar a verdade histórica ou material, independentemente ou para além da contribuição da acusação e da defesa.
- Manifestação do princípio do inquisitório, na fase de julgamento, entre outros, é o artigo 340.°, n.°s 1 e 2 do Código de Processo Penal, que estabelece o poder-dever que ao tribunal incumbe de esclarecer e intervir autonomamente na investigação do facto sujeito a julgamento.
- Para a verificação dos elementos objectivos e subjectivos dos tipos de crime em causa é irrelevante o facto de se desconhecer se, pelos arguidos foi, efectivamente, recebido o montante de £ 64.571,86 proveniente de IVA.
- O Imposto Sobre o Valor Acrescentado toma-se exigível no momento da realização da transacção ou da prestação de serviços e, havendo lugar à emissão de factura – o que in casu se verifica – tal imposto é devido a partir do momento da emissão desse documento.
- Da prova produzida resultaram verificados todos os elementos do tipo do crime de abuso de confiança fiscal, a saber: a não entrega ao credor tributário da prestação tributária recebida de terceiro que haja a obrigação legal de liquidar; o decurso de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação e o dolo específico – receber e não entregar a dita prestação tributária.
- Não se pode considerar, como bem não se considerou, que a pena de multa satisfaz de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, nomeadamente no que concerne à protecção do bem jurídico violado, bem se tendo optado, por isso, pela aplicação da pena de prisão aos arguidos/recorrentes.
- Na douta sentença recorrida foram devidamente sopesadas todas as circunstâncias que militam contra e a favor dos arguidos, tendo ainda sido possível, com base em tais circunstâncias, formular um juízo de prognose favorável aos arguidos, aplicando-lhes uma pena de prisão suspensa na sua execução, apelando à própria vontade dos condenados para se reintegrarem.
- A aplicação das sobreditas penas de prisão em nada excede a medida das culpas dos recorrentes.
- O Mm.° Juiz a quo fez uma rigorosa apreciação da prova produzida, sendo os factos dados como provados suficientes para a decisão e sendo as penas aplicadas aos arguidos/recorrentes ajustadas, em correcta observância do disposto nos artigos 40.°, n.°s 1 e 2 e 70.°, n.°s 1, 2 e 3, todos do Código Penal, pelo que deve manter-se a decisão recorrida.
Neste Tribunal o Exmo. Procurador-geral Adjunto emitiu o parecer constante de fls 1028, solicitando a procedência do recurso por entender que a posição defendida pelos recorrentes quanto à apropriação é majoritária na jurisprudência.
Foi cumprido o art.° 417° do CPP.
Colhidos os vistos cumpre decidir.
II. É pacífica a jurisprudência dos tribunais Superiores, no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, das questões de conhecimento oficioso.
No caso os recorrentes tal como emerge das conclusões que formularam, impugnam a decisão sobre a matéria de direito e colocam a questão de saber se os factos provados preenchem o tipo de ilícito por que foram condenados.
Comecemos por ver o que consta da sentença e releva na perspectiva da questão a decidir.
Foram provados os seguintes factos:
A) A arguida é uma sociedade comercial que exerce a actividade comercial de fabrico, comércio e representações de têxteis e artigos para o lar, da qual eram, à data dos factos, sócios-gerentes os dois arguidos;
B) Os arguidos estavam obrigados a enviar periodicamente aos Serviços de Administração do IVA, em nome, representação e interesse da arguida, a declaração com o IVA apurado acompanhada do meio de pagamento sempre que do cálculo resultasse imposto a favor do Estado;
C) Da actividade comercial da arguida relativa ao ano de 2002, apurou-se imposto a favor do Estado nos seguintes montantes:
i) Janeiro — €9303,53;
ii) Fevereiro — €5.937,23;
iii) Março — €4.395,24;
iv) Abril —€11.220,05;
v) Maio —€£3.178,47;
vi) Junho — €5.001,64;
vii) Julho — € 10.924,15;
viii) Agosto – €2.789,71; e
ix) Setembro – €11.821,84,
tendo por base o montante das facturas emitidas pela arguida relativas a mercadoria vendida aos seus clientes e que foi declarado aos serviços competentes;
D) À data dos factos, apenas uma média de 20% dos clientes da arguida pagavam, na data de vencimento, as facturas relativas à mercadoria que lhes era vendida, sendo que cerca de 80% o não fazia, embora uma percentagem concretamente não apurada pagava, posteriormente – às vezes muitos meses depois e/ou em prestações – o montante que deviam à arguida;
E) Os arguidos, agindo em nome, representação e no interesse da arguida, não procederam à entrega ao Estado do montante que recebiam dos clientes a título de IVA, dando-lhes o destino que bem entendiam e que não foi possível apurar, em concreto, qual foi esse destino;
F) Os arguidos, agindo em nome, representação e no interesse da arguida, quiseram e conseguiram não entregar ao Estado e dar o destino que bem entenderam aos montantes que recebiam dos clientes a título de IVA, bem sabendo que, dessa forma, estavam a incumprir uma sua obrigação fiscal e que, consequentemente, prejudicavam o Estado enquanto seu credor tributário;
G) Os arguidos, agindo em nome, representação e no interesse da arguida, agiram de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por Lei;
H) Não são conhecidos antecedentes criminais aos arguidos;
I) As dívidas referidas em C) estão a ser alvo de um processo de execução fiscal,
J) Os arguidos foram notificados para, no prazo de 30 dias, procederem ao pagamento das quantias em dívida, juros respectivos e da correspectiva coima, não tendo procedido a tal pagamento.
2.2. FACTOS NÃO PROVADOS (com relevância para a boa decisão da causa):
1. Sem prejuízo do referido em D), os clientes da arguida não pagaram os fornecimentos de bens e a prestação de serviços que a arguida lhes forneceu/prestou.
No enquadramento jurídico-penal pode ler-se:
'Quanto ao número de crimes pelos quais os arguidos deverão ser responsabilizados, temos que, de acordo com Eduardo Correia, A Teoria do Concurso em Direito Criminal, 2.a Reimpressão, pp. 67 e ss., e, também, em Direito Criminal, II, Reimpressão, pp. 201 e ss, a unidade ou pluralidade de infracções dependerá do número de valorações que, em termos jurídico-criminais, correspondam a uma determinada actuação, sendo extremamente relevante o número de juízos de censura (culpa) que haja que formular num caso em que possa estar em causa a adopção de várias condutas que preencham o mesmo tipo de crime, como é a situação sub juditio; mais refere o autor, na p. 202 de Direito Criminal, II, Reimpressão, que: «não nos resta outro [critério], porém, se não o de considerar a forma como o acontecimento exterior se desenvolveu, olhando fundamentalmente à conexão temporal que liga os vários momentos da conduta do agente. E justamente no sentido de se afirmar a existência de uma unidade resolutiva é necessária uma conexão temporal que, em regra e de harmonia com os dados de experiência psicológica, leva a aceitar que o agente executou toda a sua actividade sem ter de renovar o respectivo processo de motivação».
Assim, a conduta dos arguidos consubstancia a prática de um só crime. De facto, sendo o critério decisivo para a determinação da unidade/pluralidade de infracções o número de resoluções criminosas (que desencadeiam os juízos de censura jurídico-penal), e sendo que a conclusão mais plausível é a da existência de uma só resolução criminosa no sentido da não entrega dos montantes a título de IVA (que se foi mantendo durante todos esses meses), então, ainda que a obrigação de entregar os montantes a título de IVA seja uma obrigação que se vence cada vez que ocorre um facto sujeito a IVA, para efeitos da Lei penal, terá de se concluir que existe apenas um crime e não uma pluralidade de crimes.
Dito isto, temos que, de acordo com os factos provados, a conduta dos arguidos é subsumível ao crime de abuso de confiança fiscal agravado, p. e p. pelo art. 105 °, n.°s 1 e 5, do RGIT.
Quanto ao bem jurídico tutelado, sendo discutido na Doutrina e na Jurisprudência qual é o bem jurídico tutelado, entendendo uns que se trata da confiança da Administração Fiscal na verdadeira capacidade contributiva dos contribuintes (neste sentido, Alfredo José de Sousa, apud no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/01/2004, disponível em www.dgsi.pt) e outros que se trata das receitas fiscais no seu conjunto (neste sentido, Augusto Silva Dias, cit. no mesmo aresto).
Por nossa parte, entendemos que o bem jurídico tutelado será, o interesse do Estado na boa cobrança das receitas fiscais e, num segundo nível, a igualdade tributária dos contribuintes, sendo que, omitindo-se a prestação tributária devida, tanto se põe em causa o interesse do Estado na boa cobrança das receitas fiscais (para fazer face aos seus encargos para a satisfação das necessidades da Comunidade e dos seus membros) como a igualdade tributária entre os contribuintes cumpridores e os contribuintes remissos.
Quanto ao tipo objectivo de ilícito, integram o crime de abuso de confiança fiscal agravado, previsto no RGIT:
a) a não entrega integral à Administração Fiscal de prestação tributária deduzida nos termos da Lei e a cuja entrega o agente estava legalmente obrigado;
b) desde o decurso do prazo legal para a entrega já terem decorrido 90 dias;
c) a prestação em dívida ser superior a €50.000,00,
De referir que, como se vem defendendo, pelo menos maioritariamente, na Doutrina (por todos, Lopes de Sousa/Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2.a Edição, pp. 646-647) e na Jurisprudência (por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03/04/2003, e da Relação do Porto de 24/05/2006 e de18/l0/2O06, disponíveis em www.dgsi.pt), que, ainda que o art. 105.º, n.° 1, do RGIT (diversamente do que sucedia no art. 24.° do RJIFNA) não se refira a qualquer apropriação, o que é certo é que, por paralelismo com o crime de abuso de confiança previsto no art. 205.° do Código Penal, se deve exigir, para a sua consumação, a existência de uma apropriação por parte do agente, sendo que tal apropriação ocorrerá, por exemplo, quando o agente não entrega, no todo ou em parte, a prestação tributária a que está obrigado, ainda que as quantias disponíveis, no quadro de dificuldades económicas, tenham sido utilizadas no pagamento de salários aos trabalhadores, aos fornecedores, aos bancos credores e, de uma forma geral, na manutenção da empresa em laboração.
Ao nível do tipo objectivo há que ter, ainda, em conta que, tratando-se de um crime de resultado, a conduta do agente terá de ser adequada a causar a lesão do interesse do Estado na boa cobrança das receitas fiscais, sendo que tal adequação deverá ser aferida à luz da Teoria da Adequação, que o legislador acolheu no art. 10.º, n.° 1, do Código Penal (neste sentido, vide Figueiredo Dias/Costa Andrade, 'O Crime de Fraude Fiscal no Novo Direito Tributário Português', in RPCC, Ano 6.°, Fasc. 1.º, p. 91, e Acórdão da Relação de Lisboa de 15/06/2005, disponível em www.dgsi.pt).
Ora, no caso vertente, os arguidos, ao adoptarem a conduta supra referida, preencheram o tipo objectivo do crime de que vêm acusados, sendo certo que a sua conduta se mostra adequada a lesar o interesse do Estado na boa cobrança das receitas fiscais e a própria igualdade contributiva entre os contribuintes.
De notar que é irrelevante para o preenchimento do tipo objectivo do crime que os arguidos não tenham recebido a totalidade do montante facturado.
IVA toma-se exigível no momento da realização da transacção ou da prestação dos serviços e havendo lugar à emissão de factura, o imposto é Em primeiro lugar, nos termos dos artigos 7.° e 8.°, n.° 1, ai. a), do CIVA, o devido a partir do momento da emissão da factura, sendo certo que a falta de cobrança não impede que seja devido, desde logo, apenas conferindo – a posteriori – o direito a abatimento ou dedução no imposto que venha a ser devido ou a eventual reembolso, satisfeitas que se mostrem determinados requisitos e os interessados manifestem essa intenção (cfr., designadamente, os arts. 19.° e 22.° do CIVA) (neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 29/11/2006, disponível em www.dgsi.pt).
Em segundo lugar, da mera leitura do art. 105.°, n.° 1, do RGIT, pese embora o nomen juris da infracção, não consta do tipo de crime a entrega por título não translativo da propriedade, bastando a não entrega, total ou parcial, da prestação tributária ou parafiscal (neste sentido, Lopes de Sousa/Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2 Edição, p. 646); de resto, se o legislador pretendesse que fosse de forma diversa, teria, por exemplo, adoptado a solução do Direito alemão, em que as condutas que constituem o crime de abuso de confiança 'fiscal' são subsumíveis ao crime de abuso de confiança previsto no Código Penal. Por outras palavras, o recebimento efectivo dos montantes de IVA não faz parte do tipo de crime de abuso de confiança 'fiscal' (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 19/12/2006, disponível em www.dgsi.pt).
Quanto ao tipo subjectivo, o crime em questão só é punível a título de dolo (cfr. artigos 105.°, n.° 1, do RGIT e 24.° do RJIFNA e 13.° do Código Penal), e sendo que bastará que o agente actue com dolo eventual.
Assim sendo, tendo os arguidos perfeito conhecimento de que a Ordem Jurídica proíbe e pune a não entrega de prestações tributárias e tendo agido com intenção de assim proceder, actuaram com dolo directo (cfr. art. 14.°, n.° 1, do Código Penal). Assim sendo, estão preenchidos os elementos do tipo objectivo e subjectivo do crime pelo qual os arguidos vêm acusados.
Não se verificam, in casu, os pressupostos de qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa.'
III. Como referimos os recorrentes consideram que os factos provados designadamente na alínea d), donde consta 'apenas uma média de 20% dos clientes pagaram o montante titulado pelas facturas', não permitem a punição pela sanção mais gravosa ínsita no n.° 5 do art.° 105 da RGIT, mas apenas a do n.° 1, uma vez que o montante recebido, por conta do IVA, foi de 12.914.37 euros.
Querem com isto os recorrentes dizer que relativamente às demais facturas uma vez que ainda não foram pagas pelos clientes, tal como de resto consta da matéria provada, não se verifica a apropriação e por isso não configura o crime de abuso de confiança fiscal.
Vejamos se lhes assiste razão.
Na verdade o crime de abuso de confiança fiscal é um crime fiscal especial que correspondia até à alteração introduzida pela Lei 15/2001, nos traços essenciais, ao tipo comum de abuso de confiança previsto no art.° 205° do Código Penal.
E nessa conformidade a apropriação é o elemento típico que exprime o bem jurídico protegido.
Porem, com a entrada em vigor da referida Lei, que aprovou um novo regime geral de infracções tributárias, o crime de abuso de confiança fiscal assumiu contornos diferentes, e para o preenchimento do tipo basta a não entrega à administração tributária de prestação pecuniária deduzida, nos termos da lei, ou de prestação tributária que tenha sido recebida e que haja obrigação legal de liquidar, prescindindo-se da apropriação.
Quer isto dizer que actualmente para que se verifique o crime de abuso de confiança fiscal, é apenas necessário a prova da não entrega dos montantes deduzidos, não se exigindo que haja apropriação dos referidos montantes. O tipo incriminador preenche-se com a não entrega dolosa das prestações tributárias, assim se lesando o património estatal.
De acordo com a previsão legal, as prestações tributárias cuja não entrega faz recair sobre o agente responsabilidade penal, pela prática de abuso de confiança fiscal podem ser de três tipos: para além da prestação tributária deduzida nos termos da lei e que o agente estava obrigado legalmente a entregar, prevê-se também a prestação deduzida por conta de uma prestação tributária, ou a prestação que tenha sido recebida havendo a obrigação legal de a liquidar, situação que vem inequivocamente prevista n°2 do citado preceito legal e que ocorre no caso do IVA.
Sobre este ponto vd. Susana Aires de Sousa, in, «Os Crimes Fiscais», Coimbra Editora pág. 121.»
Ora, os factos dados como provados pela sentença recorrida, nas alíneas a) a j) contêm, como deles se evidencia, todos os elementos objectivos típicos da conduta geradora de responsabilidade criminal pela prática do tipo de crime por que o recorrente foi condenado, e que se traduz numa omissão pura da entrega ao Estado de quantias efectivamente facturadas pelos recorrentes, apesar de não terem recebido a sua totalidade, mas que relativamente às quais impendia o dever de liquidar o IVA.
Foi de resto este o entendimento da 1a instância, embora a fundamentação jurídica neste concreto encerre algumas contradições.
Com efeito, se por um lado, se escreve e bem que: ' o bem jurídico tutelado é o
interesse do Estado na boa cobrança das receitas fiscais e num segundo nível a igualdade tributária dos contribuintes', o que vai ao encontro do fundamento
ético do imposto que está contido na Constituição da Republica, que aponta ao sistema fiscal, uma finalidade de repartição justa dos rendimentos e riqueza e no sentido mais amplo e menos exigente com que as referidas alterações conformaram o tipo de crime.
Por outro, acaba por fazer referência à apropriação como fazendo parte do
tipo, ao escrever, '...De referir que, como se vem defendendo, pelo menos maioritariamente, na Doutrina (por todos, Lopes de Sousa/Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2.a Edição, pp. 646-647) e na Jurisprudência (por todos, Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03/04/2003, e da Relação do Porto de 24/05/2006 e del8/10/2006, disponíveis em www.dgsi.pt), que, ainda que o art. 105.°, n.° 1, do RGIT (diversamente do que sucedia no art. 24.° do RJIFNA) não se refira a qualquer apropriação, o que é certo é que, por paralelismo com o crime de abuso de confiança previsto no art. 205.° do Código Penal, se deve exigir, para a sua consumação, a existência de uma apropriação por parte do agente, sendo que tal apropriação ocorrerá, por exemplo, quando o agente não entrega, no todo ou em parte, a prestação tributária a que está obrigado, ainda que as quantias disponíveis, no quadro de dificuldades económicas, tenham sido utilizadas no pagamento de salários aos trabalhadores, aos fornecedores, aos bancos credores e, de uma forma geral, na
manutenção da empresa em laboração', para imediatamente a seguir se referir: ' De notar que é irrelevante para o preenchimento do tipo objectivo do crime que os arguidos não tenham recebido a totalidade do montante facturado'.
Mas apesar da citada incongruência percebe-se claramente que o aresto posto em crise, não encara a apropriação como elemento constitutivo do crime de abuso de confiança fiscal ao concluir como acima se citou, sustentando essa posição da forma que passamos a transcrever e para a qual remetemos, 'Em primeiro lugar, nos termos dos artigos 7.° e 8.°, n.° 1, al. a), do IVA, o imposto é devido a partir do momento da emissão da factura, sendo certo que a falta de cobrança não impede que seja devido, desde logo, apenas conferindo — a posteriori — o direito a abatimento ou dedução no imposto que venha a ser devido ou a eventual reembolso, satisfeitas que se mostrem determinados requisitos e os interessados manifestem essa intenção (cfr., designadamente, os arts. 19.° e 22.° do CIVA) (neste sentido, Acórdão da Relação de Coimbra de 29/11/2006, disponível em www.dgsi.pt).
Em segundo lugar, da mera leitura do art. 105.°, n.° 1, do RGIT, pese embora o nomen juris da infracção, não consta do tipo de crime a entrega por título não translativo da propriedade, bastando a não entrega, total ou parcial, da prestação tributária ou parafiscal (neste sentido, Lopes de Sousa/Simas Santos, Regime Geral das Infracções Tributárias Anotado, 2.a Edição, p. 646); de resto, se o legislador pretendesse que fosse de forma diversa, teria, por exemplo, adoptado a solução do Direito alemão, em que as condutas que constituem o crime de abuso de confiança 'fiscal' são subsumíveis ao crime de abuso de confiança previsto no Código Penal. Por outras palavras, o recebimento efectivo dos montantes de IVA não faz parte do tipo de crime de abuso de confiança 'fiscal' (neste sentido, Acórdão da Relação de Lisboa de 19/12/2006, disponível em www.dgsi.pt).'
Também nós perfilhamos desta posição pelas razões acima referidas e abundantemente expostas na fundamentação jurídica que acabamos de transcrever, pelo que o recurso neste concreto terá de improceder.
Apesar disso, parece-nos que a conduta dos arguidos deverá de facto ser enquadrada no n.° 1, do art.° 105 da RGIT e não no n.° 5, tal como os recorrentes pretendem, mas por razão diferente da invocada no objecto do recurso.
Reza assim o citado dispositivo:
1 - Quem não entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias.
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - E aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue autonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só são puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito.
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega não efectuada for superior a (euro) 50.000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - Se o valor da prestação a que se referem os números anteriores não exceder (euro) 2000, a responsabilidade criminal extingue-se pelo pagamento da prestação, juros respectivos e valor mínimo da coima aplicável pela falta de entrega da prestação no prazo legal, até 30 dias após a notificação para o efeito pela administração tributária.
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Na situação em análise, relativamente às declarações a apresentar à administração tributária apurou-se:
'-Da actividade comercial da arguida relativa ao ano de 2002, apurou-se imposto a favor do Estado nos seguintes montantes:
i)Janeiro — €9303,53;
ii)Fevereiro — €5.937,23;
iii)Março — £4.395,24;
iv)Abril – €11.220,05;
v) Maio – €3.178,47;
vi)Junho – £5.001,64;
vii)Julho – £1 0.924,15;
viii) Agosto –£2.789,71; e
ix)Setembro – £11.821,84,
Apesar de estarmos perante diversas declarações cujo IVA não foi entregue, como devia, ao Estado, o tribunal a quo concluiu pela existência de um único crime de abuso de confiança fiscal por considerar haver uma unidade de resolução criminosa.
Embora discordemos desta unicidade, não se pode agora ir para a pluralidade de crimes porque o recurso foi interposto pelos arguidos e tal traduziria uma “ reformatio in pejus' que não é permitido e também não temos nos autos elementos que nos possibilitem enquadrar a conduta dos arguidos no crime continuado, pelo que nesta parte é de manter aquele enquadramento.
Embora o Mmo juiz não o diga expressamente, somou o valor de todas as declarações e integrou as condutas no tipo agravado, na medida em que a prestação em divida é superior a 50.000 euros.
Ao fazê-lo, ignorou o disposto no n.° 7, do citado dispositivo onde expressamente se diz, ' Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar são os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.'
Significa isto que para a subsunção de determinado comportamento ao tipo simples descrito no seu n.° 1 ou, ao tipo agravado descrito no seu n.° 5, o valor a ter em conta é o que consta de cada declaração, não podendo funcionar para a qualificação a soma de todas elas, porque a lei não o permite.
Porém a referida violação do princípio da legalidade é de conhecimento oficioso e nessa medida temos de a apreciar.
De acordo com o que acima referimos o tribunal de 1a instância não podia ter procedido ao somatório das diversas declarações para efeitos de qualificação, mas antes considerar apenas a declaração com o valor mais elevado, tal como se processa nos crimes continuados, apesar de sublinhe-se, relevar esse valor total na determinação da medida concreta da pena.
Fazendo-o, como o valor dessa declaração é de 11.821.84 euros e não atinge os 50.000 euros, decide-se enquadrar a conduta dos recorrentes no crime de abuso de confiança fiscal previsto e punido no n.° 1 do art.° 105° do RGIT, cuja moldura penal abstracta é a de prisão até 3 anos ou multa até 360 dias.
Uma vez que se trata de matéria de direito e dispomos de todos os elementos que nos permitem achar a pena concreta vamos fazê-lo. Para tanto, importa transcrever o que consta da sentença recorrida, relativamente à medida da pena:
'Passando à determinação da medida concreta da pena, nos termos do art. 71.°, n.° 1, do Código Penal, a pena concreta deverá ser fixada tendo em conta a culpa do agente e as necessidades de prevenção geral e especial, tanto na vertente positiva como na vertente negativa de ambas e, nos termos do n.° 2 do mesmo preceito, deverão ser levadas em conta as circunstâncias que, não fazendo parte da estrutura essencial do crime, deponham a favor ou contra o agente.
Como circunstâncias relevantes para a determinação da medida concreta da pena, quanto aos arguidos, ocorrem, in casu, as seguintes:
a) as exigências de grau elevado, ao nível da prevenção geral, porquanto a fuga e a evasão fiscal são realidades por demais frequentes no nosso país (potenciadas pela completa inércia da Administração Fiscal, é certo), situação que urge combater através da afirmação inequívoca da validade das normas que punem tais comportamentos;
b) as elevadas exigências de prevenção especial, ainda que ligeiramente atenuadas pelo facto de não serem conhecidos antecedentes criminais aos arguidos
c) o elevado grau de culpa dos agentes, que actuaram com dolo directo;
d) A elevada danosidade social da conduta adoptada pelos arguidos, consubstanciada na lesão patrimonial do Estado e no causar de aumentos de impostos (que acabam por lesar os contribuintes cumpridores) e da diminuição das contrapartidas típicas do Estado-Providência,
e) Os montantes das prestações não entregues (que ultrapassa em €14.571,85 o montante mínimo para que se trate de um crime de abuso de confiança fiscal agravado); A dívida ainda não ter sido paga, encontrando-se por pagar o capital devido; Os arguidos terem declarado ao Fisco a facturação, o que constitui uma conduta menos grave do que a pura e simples omissão de declaração.'
Considerando as descritas circunstâncias, e sobretudo razões de prevenção geral afastam a possibilidade de opção pela pena de multa que não garante as finalidades da punição.
Dentro da moldura penal abstracta e mais uma vez tendo em conta os elementos anteriormente referidos julgamos adequadas a pena de 12 meses de prisão para cada um deles.
Mas tal como na 1 a instância entendemos que os arguidos deverão beneficiar do instituto da suspensão da pena, pelo período de 1 ano, pelas razões amplamente expostas na decisão recorrida para as quais remetemos. Concordamos de igual modo que a suspensão seja condicionada ao pagamento da prestação tributária e legais acréscimos, nos termos do art. 14.°, n.° 1, do RGIT, pois só assim serão devidamente prosseguidas as finalidades da punição ao nível da reposição da ordem Jurídica violada. Nesta conformidade condiciona-se a execução da pena de prisão ao pagamento, no decurso do prazo de suspensão ao pagamento integral da quantia respeitante às prestações tributárias supra referidas e aos respectivos acréscimos que se tiverem vencido (e que ainda não estejam pagos) até ao trânsito em julgado da presente decisão e que se vierem a vencer após o trânsito da mesma.
DECISÃO
Nestes termos, concede-se provimento ao recurso e condena-se os arguidos na pena de 12 (doze) meses de prisão, nos termos do art.° 105°, n.° 1 da RGIT, suspendendo-se a sua execução pelo período de um ano, na condição de nesse mesmo período, pagarem as prestações tributárias em divida e os respectivos acréscimos que se tiverem vencido, devendo disso, fazer prova nos autos.
Sem tributação.
Após trânsito remeta os autos à 1a instância.
Lisboa, 4 de Dezembro de 2008