I. Declarando-se, por decisão passada em julgado, a nulidade por o processo não poder manter a “… forma especial [abreviada] quando deveria ser tramitado como comum …”, deve chamar-se à colação a autoridade do caso julgado, entendida como proibição de contradição com uma decisão já transitada, devendo considerar-se assente, desde o trânsito de tal despacho, que o processo teria de seguir a forma comum.
II. Tendo o Ministério Público remetido para a acusação anteriormente deduzida sob a forma de processo abreviado, advertindo que “… os autos passam a seguir a forma comum com intervenção de Tribunal Singular”, e não prevendo a lei a proibição de remissão – desde que daí não resulte prejuízo para a definição do objecto do processo e para os direitos de defesa do arguido – será de considerar que nenhuma nulidade se mostra cometida, uma vez que a acusação satisfaz todas as exigências do artº 283º, do CPP.
Nota: Neste mesmo sentido, os seguintes acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa: de 25/11/2008, proc. nº 9149/2008, 5ª secção e proc. nº 501/06.7PHAMD.L1, 5ª secção, relatado por Luís Gominho
Proc. 597/06.1ILSB-A.L1 9ª Secção
Desembargadores: João Carrola - - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Recurso é o próprio com efeito e regime de subida adequado.
A questão suscitada no recurso tem vindo a ser decidida de um modo uniforme por esta Relação, mesmo que na sua génese esteja argumentação algo distinta, pelo que, nos termos do art.° 417° n.° 6 al. d) CPP, se passa a proferir a seguinte
Decisão Sumária
1.
Em Processo comum com intervenção do tribunal singular n.° 597/06.1 SILSB do 4° Juízo Criminal de Lisboa, 3a Secção, por despacho judicial de 13.10.2008 foi decidido determinar a devolução dos autos aos serviços do Ministério Público uma vez que dos autos apenas consta um despacho de acusação que foi declarado nulo por despacho judicial transitado em julgado.
Tal despacho apresenta o seguinte teor:
'Por despacho datado de 23.06.2006, a fls. 28ss, foi deduzida acusação sob a
forma de processo especial abreviado contra o arguido X imputando-lhe a comissão, em 17.09.2006, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292.°/1 CP, e de um crime de desobediência p. e p. pelas disposições conjugadas dos arts. 348 °/1 /ala) CP e 387.92 CPP.
Em 19.07.2006 foram os presentes autos remetidos à distribuição pelo TPIC de Lisboa (cfr. fls. 34), sendo que em 15.02.2008 foi proferido o despacho de fls. 35ss, no qual o colega, pelos motivos que ali aduz, declara 'nulo o processado, salvaguardando os seus termos até à acusação, nos termos do disposto nos artigos 391.°-D e 1 19.0, alínea f) do Código de Processo Penal'.
Não foi deduzida nova acusação.
Quid iuris?
Para além de o despacho do colega, salvo o devido respeito, nos parecer de acerto duvidoso quanto à questão de fundo em apreço, o certo é que o mesmo não prima pela clareza de exposição, o que inelutavelmente sempre acarretará a impossibilidade de este tribunal proceder ao julgamento dos factos descritos na acusação.
Vejamos:
Como se viu, no seu despacho o colega declarou nulo o processado, salvaguardando os seus termos até à acusação, nos termos do disposto nos artigos 391.°-D e 119.0, alínea f) do Código de Processo Penal'.
De tal enunciado linguístico parece resultar que a acusação não ficou abrangida pela salvaguarda efectuada pelo colega, pelo que foi a mesma declarada nula por tal despacho.
Se assim é (e este parece-nos ser a conclusão que melhor se compatibiliza com a redacção utilizada pelo Exmo. Colega no seu despacho), então necessariamente terá de, adicionalmente, se concluir que inexiste nos autos qualquer acusação que possa ser apreciada nos termos e para os efeitos do disposto no art. 311.° CPP, inexistindo delimitação do objecto do processo - e subsumindo-se tal hipótese, em meu entender, à nulidade prevista no art. 119.°/al. b) CPP.
Com efeito, a primeira das fases do processo penal é o inquérito (cuja direcção cabe ao MP - cfr. art. 263.0/1 CPP), que 'compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação' (art. 262.°/1 CPP), sendo o inquérito encerrado pelo MP, mediante despacho de arquivamento ou de acusação, nos termos do preceituado nos ar-fs. 276.°ss CPP.
lnexistindo tal despacho, entendo verificar-se uma falta de promoção do processo pelo MP, o que constitui uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, nos termos do disposto no art. 1 19.°/al. b) CPP, que pode ser a todo a tempo declarada e que determina a remessa dos autos aos serviços do MP.
Se, ao invés, se entender que a interpretação a dar ao teor do segmento do despacho exarado, e que ora se analisa for, generosamente, a de que a salvaguarda que ali se refere abrange adicionalmente a acusação deduzida, então o certo é que, como se lê em tal libelo acusatório (e é esse que o julgador tem de apreciar, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 311.° CPP), o MP deduziu acusação sob a forma de processo especial abreviado - e 'Compete aos juízos de pequena instância criminal preparar e julgar as causas a que corresponda a forma de processo sumário, abreviado e sumaríssimo', nos termos do disposto no art. 102.°/1 LOFTJ, pelo que sempre seria este tribunal materialmente incompetente para a causa.
Porém, e retomando o que supra se expôs, como entendo que a conclusão que melhor se compagina com a redacção dada pelo Exmo. Colega ao seu despacho, quando declara 'nulo o processado, salvaguardando os seus termos até à acusação, nos termos do disposto nos artigos 391.°-D e 119.0, alínea f) do Código de Processo Penal' é a de que a salvaguarda mencionada não abrange o libelo acusatório, já que se pretenderia invalidar o mesmo, atenta a circunstância de nele se requerer o julgamento da factualidade ali descrita sob a forma de processo especial abreviado, que se entendeu inaplicável ir) casu, então a consequência a retirar a de que se verifica no caso em apreço a nulidade insanável prevista no art. 1 19.°/al. b) CPP; pelos motivos que se acima expuseram e que aqui se têm por reproduzidos, o que expressamente se declara.
Notifique.
Após trânsito, remeta os autos aos serviços do MP junto do TPIC de Lisboa.'
Inconformado com tal decisão dela veio recorrer o Ministério Público, Apresentando motivação com as seguintes conclusões:
'1. Decidindo o JPIC a aplicação da disposição do artigo 391°-D do Código de
Processo Penal, na redacção introduzida pela revisão de 2007, em processo que estava em curso sob a forma abreviada, à data do início de vigência dessa disposição, não tendo sido interposto recurso dessa decisão, constituiu-se caso julgado sobre essa questão;
2.Caso julgado que abrange a qualificação do vício de incumprimento do prazo de 90 dias aí previsto como nulidade insanável;
3.Decidindo o JPIC, em consequência desse vício, o reenvio do processo para a forma comum, mantendo válida a acusação proferida pelo Ministério Público, constante dos autos e não sendo interposto recurso desta decisão, constituiu-se caso julgado impeditivo do julgamento na forma abreviada e não se verificam os pressupostos da nulidade insanável, prevista no artigo 119° al.b) do C.P.
4.Devendo o processo seguir a forma comum, a competência para a fase de julgamento pertence aos Juízos Criminais, por aplicação do artigo 100° da LOFTJ;
5.Tendo em conta que:
a)A lei não impõe a dedução de nova acusação no caso de o processo abreviado ser remetido para outra forma;
b)O despacho do Mmº JPIC manteve válida a acusação proferida pelo Mº Pº e constante dos autos;
c)O despacho judicial transitado em julgado definiu a forma que o processo vai seguir;
d)O arguido foi notificado do teor do referido despacho judicial transitado e o seu teor foi-lhe explicado pelo Ministério Público quanto à forma de processo que o mesmo vai seguir;
e)Foram cumpridos os artigos 283n°s5 e 6, 277°n°3 e 287n°1, todos do Código de Processo Penal;
f)Os factos imputados ao arguido constam da acusação proferida nos autos;
g)E tal acusação não violou o disposto no artigo 283° do Código de Processo Penal,
deveria ter sido designado dia para julgamento em Processo Comum.
6. A decisão recorrida, por erro de apreciação, ao não designar data para julgamento em Processo Comum, fê-lo com violação do caso julgado formal e do artigo 672°, n°. 1, do CPC, aplicável por força do artigo 4°, do Código de Processo Penal e violação do disposto no artigo 100° da LOFTJ.'
Termina pelo provimento do recurso, com a consequente revogação da decisão recorrida, por ser nula e substituição por outra que, nos termos dos artigos 311 ° e 312°, do CPP, designe data para realização do julgamento em processo comum.
Não se verificou qualquer resposta ao recurso.
O Mmo. Juiz sustentou o despacho recorrido.
Neste tribunal, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto elaborou parecer em que entende ser de conceder provimento ao recurso.
Foi determinado o cumprimento do disposto no art.° 417° n.° 2 CPP, não se tendo verificado qualquer resposta.
II.
Cumpre apreciar.
A questão suscitada no recurso tem sido objecto de decisão nesta Relação de um modo uniforme, de que destacamos, independentemente do modo como a argumentação é apresentada, os acórdãos proferidos nos P.°s 5748/08 da 3a Secção em 2.07.2008 em que foi relator o Exmo. Desembargador Rui Gonçalves e n.° 6343/08 datada de 25.07.2008 (embora com argumentos mais sucintos até porque se tratou de decisão sumária) em que foi relator o Exmo. Desembargador Carlos Almeida, posições que vimos adoptando nos recursos entretanto surgidos e que nos coube relatar (6230/08, 6381/08, 7387/08, 617/09, p.e.) e de 14Out.08, proferidos nos P.°s 7.255/08, 7.300/08 e 7.393/08, em que foi relator o Ex.mo Desembargador Vieira Lamin.
Como se extrai do despacho recorrido o Mmo. Juiz questiona a subsistência, ou não, do libelo acusatório em processo abreviado elaborado nos autos uma vez o despacho do JPIC declarou nulo o processado, salvaguardando os seus termos até à acusação pelo que, a entender-se que aquela salvaguarda abrange a acusação, a consequência do mesmo despacho subsiste a acusação deduzida sob a forma de processo sumário, pelo que, tendo nos autos sido feita nova acusação, cometeu-se a nulidade do art.°119° al. b) CPP .
Na parte decisória do despacho da autoria do Mmo JPIC de 15.02.2008, não é referida a forma de processo que os autos devem seguir, no entanto essa questão não deixou de ser abordada pelo despacho, onde foi consignado '...existindo norma específica que comina com a nulidade insanável o emprego de uma forma especial abreviada fora dos casos previstos na Lei, ou seja, a manutenção da forma especial quando deveria ser tramitada como comum, é esta a consequência processual' (2° parágrafo de fls. 7 daquele despacho).
Assim, daquele despacho resulta que, para o Mmo. Juiz PIC que o proferiu, a nulidade em causa resulta da manutenção de uma forma especial quando devia ser seguida a forma comum. Está em causa, pois, a determinação do âmbito do caso julgado.
Como não passou do Código Processo Civil de 1939 para o actual, o parágrafo único do art.° 660°, segundo o qual se consideravam resolvidas em termos de caso julgado, as questões sobre que recaísse decisão expressa e as que constituíssem pressuposto ou consequência necessária desse julgamento, tem vindo a discutir-se o alcance objectivo do caso julgado.
A jurisprudência tem oscilado entre um entendimento mais restrito, que limita os efeitos do caso julgado, praticamente, à parte decisória da sentença, e um outro mais amplo, segundo o qual o dito efeito pode atingir alguns pontos do percurso lógico que conduziu à decisão.
Exemplo paradigmático da primeira corrente é o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 18Fev.99 (B.M.J. n°484, pág.318), tirado com um voto de vencido.
A favor da segunda linha de pensamento, mais ampla, entre outros, pronunciou-se o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-03-2004, proferido no processo n.° 03B4074 (acessível em ww.dgsi.pt) 'O caso julgado da decisão também possui um valor enunciativo, que exclui toda a situação contraditória ou incompatível com aquela que ficou definida na decisão transitada e afasta todo o efeito incompatível, isto é, todo aquele que seja excluído pelo que foi definido na decisão transitada, ainda que apenas dependente do decidido por uma relação de prejudicialidade.' e o acórdão da Relação de Lisboa de 15Nov.07 (Relatora Ana Luísa Geraldes, P° n°7506/07-8, acessível em www.dgsi.pt) '... embora em regra o caso julgado não se estenda aos fundamentos de facto da respectiva decisão, conforme se extrai do art. 96°, n. ° 2 do CPC, casos há em que os fundamentos em si possuem valor próprio de caso julgado, como nas situações em que se verificam relações de prejudicialidade, ou seja, quando o fundamento da decisão transitada condiciona a apreciação do objecto de uma acção posterior').
Somos favoráveis a um entendimento menos restrito do caso julgado, pois a posição mais restrita não garante o desejado efeito de evitar a contradição prática e teórica de julgados.
No caso, sendo inequívoco que no despacho de 11.02.2008, o Mmo. Juiz declarou a nulidade por o processo não poder manter a '.. forma especial quando deveria ser tramitada como comum... ', deve chamar-se à colação a autoridade do caso julgado, entendida como proibição de contradição com uma decisão. já transitada, no sentido de estar assente desde o trânsito de tal despacho que o processo teria de seguir a forma de processo comum.
Tal entendimento foi acatado pelo Ministério Público que em despacho posterior, fazendo referência ao despacho de 11.02.2008, ordenou que ao arguido fosse salientado que '... de acordo com este despacho, os autos passam a seguir a forma comum com intervenção do Tribunal Singular'.
Contudo, ainda que se entendesse que o caso julgado formado em relação ao despacho de 15.02.2008 não abrangia a forma de processo a seguir, o despacho do Ministério Público de 10.07.2008, na parte final do seu parágrafo 2°, di-lo expressamente '... os autos passam a seguir a forma comum com intervenção do Tribunal Singular', pouco importando que essa determinação do Ministério Público tenha surgido '... de acordo com este despacho...' (de 17.02.2008), ou por convicção própria, o certo é que não é deixada qualquer dúvida sobre a forma de processo a que o titular da acção penal pretende lançar mão.
Defende o despacho recorrido que não existe acusação deduzida nos termos do art.° 276° e segs. do CPP, ou seja, nulidade derivada da falta de promoção do processo pelo M.° P.°.
Para responder a essa questão, importa saber se o despacho do Ministério Público de 10-07-2008 (fls. 22 destes autos) cumpre as exigências do art.° 283°, n.° 3, do CPP, para que se considere acusação validamente deduzida.
Nesse despacho, optou o Ministério Público por remeter para a acusação antes deduzida sob a forma de processo abreviado, advertindo que '...os autos passam a seguir a forma comum com intervenção do Tribunal Singular'.
Tal acusação, embora deduzida em processo que na altura seguia a forma de processo abreviado, satisfaz as exigências de todas as alíneas do n.° 3, do citado art.° 283°, do CPP.
É óbvio que, em boa técnica, deveria ter sido evitada a remissão e elaborado despacho que contivesse todas essas exigências, sem necessidade de remissão para peça processual anterior.
No entanto, não prevendo a lei a proibição de remissão, corno forma de satisfação dos requisitos previstos naquelas alíneas (identificação do arguido, narração dos factos, indicação das disposições legais, etc.), não vemos obstáculo intransponível na adopção de um procedimento menos formalista, admitindo a remissão, desde que daí não resulte prejuízo para a definição do objecto do processo e para os direitos de defesa do arguido.
Ora, constando da peça processual de fls. 4 dos presentes (acusação deduzida em processo abreviado, em 23.06.2006), todas as exigências do citado n.° 3, do art.° 283°, nomeadamente a narração dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena, incluindo o lugar e tempo da sua prática, factos relativos ao elemento subjectivo dos crimes e relevantes para determinação da culpa, assim como indicação das disposições legais aplicáveis, da remissão efectuada pelo despacho de 10.07.2008 não resulta qualquer prejuízo para a definição do objecto do processo, nem para os direitos de defesa do arguido, advertido no caso que o processo passaria a seguir a forma de processo comum com intervenção do Tribunal Singular.
Assim, satisfazendo o despacho do Ministério Público, de 10.07.2008, com a remissão que nele é feita para o de 23.06.2006, todas as exigências do art.° 283°, do CPP, nenhuma nulidade se mostra cometida, sendo o recurso procedente e devendo os autos prosseguir com a prolação de despacho designando dia, hora e local para a audiência.
III.
Por todo o exposto, ao abrigo do disposto no art.° 417° n.° 6 al. d) CPP decide-se, sumariamente, conceder provimento ao recurso e, consequentemente, revogar ao despacho recorrido que deverá ser substituído por outro que dê prosseguimento ao processo.
Não são devidas custas.
Elaborado e revisto pelo primeiro signatário.
Lisboa, 6 de Março de 2009.
(João Carrola)