I. Num caso em que o arguido tenha estado preso preventivamente desde a data da prática dos factos e venha a ser condenado numa pena de seis anos de prisão, ele atinge o meio da pena quando se completarem três anos sobre o início da privação da liberdade e não quando se completar metade de um hipotético remanescente da pena contado desde a data do trânsito em julgado da decisão. O mesmo sucede com a determinação dos 2/3 e 5/6 da pena.
II. Se é assim no caso de uma privação ininterrupta da liberdade, nenhum sentido teria sustentar solução diferente no caso de o arguido se encontrar em liberdade no momento em que ocorreu o trânsito em julgado da decisão condenatória.
III. Se, na data do trânsito, o tempo de privação da liberdade a descontar corresponder a metade da pena imposta, estão nesse momento verificados os pressupostos formais para a concessão da liberdade condicional.
Proc. 182/04.2JAFUN 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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Processo n.º 182/04.2JAFUN – 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – O arguido A. foi condenado, por decisão transitada em julgado, na pena única de 6 anos de prisão.
No dia 30 de Março de 2009, o arguido apresentou-se no Estabelecimento Prisional do Funchal para cumprir essa pena.
O arguido tinha estado detido, preso preventivamente e em cumprimento da obrigação de permanência na habitação à ordem deste processo entre 11 de Outubro de 2004 e 26 de Abril de 2006, num total de 1 ano, 6 meses e 15 dias.
No dia 3 de Abril de 2009, a Sr.ª juíza proferiu o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve (fls. 8017 e 8018):
«O arguido A. foi condenado no âmbito dos presentes autos na pena de 06 (seis) anos de prisão.
O acórdão condenatório já se encontra transitado em julgado pelo que importa dar cumprimento ao disposto no artigo 477.º do Código de Processo Penal.
O arguido foi detido no dia 11 de Outubro de 2004 à ordem destes autos (cf. fls. 276), data em que foi sujeito a 1.º Interrogatório Judicial e, subsequentemente, à medida de coacção prisão preventiva (cf. fls. 284 e 286).
A 1 de Fevereiro de 2006, a medida de coacção de prisão preventiva foi substituída por obrigação de permanência na habitação sob vigilância electrónica (cf. fls. 4196).
A 26 de Abril de 2006, esta medida de coação foi substituída por outras medidas de coacção não privativas da liberdade (cf. fls. 4585 e 4586).
A 30 de Março de 2009, o arguido apresentou-se, de forma voluntária, no Estabelecimento Prisional do Funchal (cf. fls. 8009), iniciando nesta data o cumprimento da pena.
Assim, atento o disposto nos artigos 42.º do Código Penal e 479.º do Código de Processo Penal, procede-se ao cômputo da referida pena de 6 anos de prisão em que o arguido foi condenado, tendo em consideração o período em que o arguido esteve privado de liberdade (1 ano, 6 meses e 15 dias):
- O início da pena ocorreu em 30 de Março de 2009;
- O ½ da pena atingir-se-á em 21 de Junho de 2011;
- Os 2/3 da pena atingir-se-ão em 20 de Março de 2012;
- Os 5/6 da pena atingir-se-ão em 17 de Dezembro de 2012;
- O termo da pena atingir-se-á em 14 de Setembro de 2013».
Na sequência de solicitação do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa, o Sr. Procurador da República requereu a rectificação da contagem efectuada (fls. 8291).
No dia 29 de Julho de 2009, foi proferido o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
«Salvo o devido respeito, não partilhamos o entendimento perfilhado na promoção em apreço.
Com efeito, o que propõe (agora) o Ministério Público junto deste Tribunal é que os dias de privação de liberdade do arguido (1 ano, 6 meses e 15 dias) devam ser descontados 'ficcionando-se' um início de cumprimento de pena no dia anterior ao do efectivo 'ligamento' do arguido aos autos, o que, em nosso entender, não tem qualquer fundamento legal, sendo certo que decorre dos artigos 477.º e 478.º do Código de Processo Penal que o cumprimento da pena de prisão se inicia com a entrada do condenado no estabelecimento prisional após o trânsito em julgado da sentença condenatória.
Assim, e conforme resulta do disposto no artigo 80.º do Código Penal, o desconto do tempo em que o arguido esteve sujeito a prisão preventiva e a obrigação de permanência em habitação (1 ano, 6 meses e 15 dias) tem de ser feito à pena em que o arguido foi condenado (6 anos) e não à data de 'ligamento' do arguido aos presentes autos, ficcionando-se uma data anterior de início de cumprimento de pena.
Deste modo, para início da contagem da pena toma-se sempre em consideração a data em que efectivamente o arguido começou a cumprir pena à ordem dos autos em causa, não se ficcionando qualquer data anterior.
Pelo exposto, não se procede de acordo com o promovido, mantendo-se, por isso, a liquidação de pena constante de fls. 8017/8018».
2 – O Ministério Público interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. A decisão recorrida ao não homologar a proposta de liquidação de pena apresentada pelo Ministério Público a fls. 8291, mantendo a anterior liquidação, errada, está protelar no tempo os momentos de intervenção do Tribunal de Execução das Penas, previstos nos n.ºs 2, 3 e 4 do artigo 61.º do C. Penal, prejudicando o arguido na apreciação e eventual concessão da liberdade condicional;
2. Efectivamente, tendo o arguido sido condenado em 6 anos de prisão, cujo cumprimento iniciou em 30 de Março de 2009, tem ele a descontar no cumprimento dessa pena o período de privação da liberdade, já sofrida, entre 11 de [Outubro] de 2004 e 26 de Abril de 2006;
3. O que, de modo incontroverso, todos os sujeitos processuais concordam corresponder ao período de 1 ano, 6 meses e 15 dias.
4. Porém, ao invés do Ministério Público e do arguido, que entendem que tal desconto opera, por inteiro, no cumprimento da pena, repercutindo-se sobre todos os seus momentos de execução, a M.ª Juíza “a quo”, na sua liquidação de pena, apenas faz incidir tal desconto sobre a própria pena global, reduzindo-a na sua dimensão; e
5. Calculando depois as datas previstas para se atingir o meio, os dois terços e os cinco sextos da pena, sobre o remanescente desta, assim encontrado;
6. Desse modo, ao invés do proposto pelo Ministério Público, em que o arguido atingirá o meio da pena (3 anos), logo que decorram 1 ano, 5 meses e 15 dias, sobre a data do seu início (1 ano, 6 meses e 15 dias + 1 ano, 5 meses e 15 dias = 3 anos), ou seja, em 15 de Setembro de 2010, a decisão recorrida relega tal momento para 21 de Junho de 2011, data em que o arguido já terá então cumprido 3 anos, 9 meses e 6 dias!
7. O que igualmente sucede com os cálculos feitos para os 2/3 e para os 5/6 da pena,
8. A decisão recorrida afigura-se inaceitável no caso dos autos e, pior ainda, se por exemplo pensarmos na hipótese de um arguido ter direito a descontar um período equivalente a 4 anos de prisão (o que hoje o artigo 80.º, n.º 1, do Código Penal prevê, ao mandar descontar ainda outros períodos de privação da liberdade sofridos, para além dos do próprio processo);
9. Nesse caso, em que nos pareceria evidente que o arguido já teria atingido até o meio e os dois terços da pena, para a tese da decisão recorrida, o meio de tal pena de 6 anos de prisão só seria atingido quando o arguido cumprisse mais um ano (metade do período remanescente), ou seja, quando completasse 5 anos! O que se nos afigura ser interpretação manifestamente absurda e fora do espírito e da letra da Lei.
10. A decisão recorrida, ao manter a errada liquidação de pena e ao não acolher a liquidação sugerida pelo Ministério Público a fls. 8291, viola, por erro de interpretação, os comandos dos artigos 80.º, n.º 1, do Código Penal e 477.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal;
10. Devendo, em consequência, ser revogada e substituída por outra, que corrija a liquidação de pena, nos moldes sugeridos pelo Ministério Público a fls. 8291 e a mande comunicar às entidades referidas no artigo 477.º, n.º 1, do Código de Processo Penal.
11. Com o que se fará a costumada justiça».
3 – O arguido respondeu à motivação apresentada manifestando concordar com o recorrente (fls. 8342/3).
4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 21 deste apenso.
5 – A Sr.ª procuradora-geral-adjunta emitiu o parecer de fls. 37 no qual sustentou que o recurso merecia provimento.
6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – De acordo com o n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal, «a detenção, a prisão preventiva e a obrigação de permanência na habitação sofridas pelo arguido são descontadas por inteiro no cumprimento da pena de prisão …».
A ideia político-criminal que preside ao instituto do desconto é, no dizer de Figueiredo Dias(1) , a satisfação de «imperativos de justiça material» que impõem que o tempo de privação de liberdade anterior ao trânsito em julgado da condenação seja imputado na pena que tiver sido aplicada.
Esta imputação em nada contraria o facto de apenas as decisões penais condenatórias transitadas em julgado terem força executiva (artigo 467.º do Código de Processo Penal).
No momento em que a sentença ganha força executiva, a execução que a partir daí se inicia leva em conta o tempo de privação de liberdade já infligido.
Num caso em que o arguido tenha estado preso preventivamente desde a data da prática dos factos e venha a ser condenado numa pena de 6 anos de prisão ele atinge o meio da pena quando se completarem 3 anos sobre o início da privação da liberdade e não quando se completar metade de um hipotético remanescente da pena contado desde a data do trânsito em julgado da decisão (2). O mesmo sucede com a determinação dos 2/3 e dos 5/6 da pena.
Se é assim no caso de uma privação ininterrupta da liberdade, nenhum sentido teria sustentar solução diferente no caso de o arguido se encontrar em liberdade no momento em que ocorreu o trânsito em julgado da decisão condenatória.
É esta a única forma de, por via da contagem da pena, não se vir a alterar os pressupostos formais da liberdade condicional (3) e de outros institutos de flexibilização da execução.
Se, na data do trânsito, o tempo de privação da liberdade a descontar corresponder a metade da pena imposta (se for esse o caso), estão nesse momento verificados os pressupostos formais para a concessão da liberdade condicional.
Se se considerasse que o desconto determinava a redução da pena de prisão e se calculasse o meio da pena e as restantes datas relevantes tendo em conta o remanescente da pena inicial, estar-se-ia também a conferir a este instituto uma natureza e uma fisionomia que ele manifestamente não tem.
E, do ponto de vista político-criminal, nada justificaria a solução a que essa concepção conduziria.
Tem, por isso, inteira razão o recorrente.
Uma vez que a execução se iniciou no dia 30 de Março de 2009 e o desconto a efectuar era de 1 ano 6 meses e 15 dias, o condenado completará metade da pena decorrido que seja 1 ano, 5 meses e 15 dias sobre o início do cumprimento da pena.
Daí que o período de 1 ano, 5 meses e 15 dias deva ser contado, seguindo os critérios definidos no n.º 1 do artigo 479.º do Código de Processo Penal, a partir de 30 de Março de 2009.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando o despacho recorrido e determinando que ele seja substituído por outro que proceda à contagem da pena imposta ao condenado imputando nessa pena, nos termos definidos, o período correspondente ao desconto a que ele tem direito, nos termos do n.º 1 do artigo 80.º do Código Penal.
Sem custas.
Lisboa, 7 de Setembro de 2009
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)
Notas - (1) DIAS, Jorge de Figueiredo, in «Direito Penal Português – As consequências jurídicas do crime», Aequitas, Lisboa, 1993, p. 297.
(2) No dizer de Figueiredo Dias, «para efeito de se considerar “cumprida” metade da pena, contabiliza-se seguramente qualquer redução que a pena tenha sofrido, nomeadamente por via do perdão parcial ou de outra medida graciosa; como igualmente se contabiliza qualquer privação de liberdade sofrida no processo que conduziu à condenação ou por causa dele, nomeadamente o tempo de prisão preventiva» (DIAS, ob. cit. p. 536).
(3) Exemplificando.
Tomemos o caso de um arguido que esteve preso preventivamente desde 1 de Janeiro de 2000, data da prática dos factos, e veio a ser condenado, por decisão que transitou em julgado em 1 de Janeiro de 2003, numa pena de 6 anos de prisão.
Se não se imputasse, desde logo, no cumprimento da pena que se iniciou nessa data o período anterior de reclusão, a liberdade condicional, se pudesse ocorrer a meio da pena, só poderia ser concedida a partir de 1 de Julho de 2004, quando o arguido já estava preso há 4 anos e 6 meses. E se ela só pudesse ocorrer depois de cumpridos 2/3 da pena, esse pressuposto só estaria preenchido em 1 de Janeiro de 2005, cinco anos depois do início da privação da liberdade.