Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 24-03-2010   Despacho de recebimento da acusação. Impossibilidade de posterior reexame da relevância criminal dos factos fora da sentença. Proibição de conduzir. Não entrega da carta de condução. Crime de desobediência simples.
I – Se, ao proferir o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, o juiz de julgamento não tiver rejeitado a acusação por considerar que os factos nela narrados não constituíam crime – artigo 311.º, n.ºs 2 e 3, alínea d) – não pode apreciar a relevância criminal dessa mesma conduta a não ser na sentença depois fixar os factos provados e não provados e de fundamentar esse segmento da decisão.
II – Na sequência da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, a falta de cumprimento do dever de entrega da carta de condução previsto no n.º 3 do artigo 69.º do Código Penal e no n.º 2 do artigo 500.º do Código de Processo Penal constitui crime de desobediência simples nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 160.º do Código da Estrada e da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal.

Nota: Em sentido idêntico ao alcançado em II - cfr. Ac. TRL de 8/6/2010, proc. nº622/08.1TAAGH.L1, 5ª Secção, relatado por Filipa Macedo.
Proc. 470/04.8TAOER.L1 3ª Secção
Desembargadores:  Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por João Vieira
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa



I – RELATÓRIO
1 – O Ministério Público acusou o arguido P. pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (fls. 53) por, em síntese, após o trânsito em julgado da sentença que o condenou numa pena de 5 meses de proibição de conduzir veículos com motor, não ter procedido à entrega da carta de condução no prazo imposto por lei e cominado na sentença.
Remetidos os autos para a fase de julgamento foi proferido o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal (fls. 61 e 62).
Depois de ter sido realizada a audiência de julgamento, foi proferida a sentença que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
«I – Relatório
Arguido:
P., filho de D. e de M., natural de Moçambique, nascido em 14/08/71, casado, residente na Rua M., lote 4, cave Dta., em Cascais.
Acusação do Ministério Público:
– Um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
O arguido contestou.
Realizou-se audiência de julgamento.
II – Saneamento
A jurisprudência mais recente, nomeadamente, do Tribunal da Relação de Lisboa, impõe que se proceda a uma análise da relevância criminal dos factos descritos na acusação.
Alega-se na acusação que o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, não obstante ter sido destinatário de ordem nesse sentido, constante de sentença que o condenou em pena acessória de proibição de conduzir, com a expressa cominação de incorrer na prática de um crime de desobediência, no caso de o não fazer.
O crime de desobediência em causa encontra-se tipificado no artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal. Nos termos da citada norma, 'Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: <...>' 'Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.'.
Conforme supra aflorado tem vindo a jurisprudência mais recente, nomeadamente do Tribunal da Relação de Lisboa, a considerar que tais factos não consubstanciam a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal. Neste sentido, pode ler-se o Ac. RL de 18/12/2008, proc. 1932/2008-9, publicado em www.dgsi.pt, segundo o qual o paradigma da intervenção mínima do Direito Penal que decorre do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, obsta a que, existindo disposições legais que prevejam a não entrega da carta de condução e a punição do exercício da condução durante o período de proibição, se considere materialmente legítima, para efeitos de cominação do crime de desobediência, a ordem constante da sentença de entrega da carta de condução. Esta menção terá, antes, segundo tal entendimento, uma natureza informativa, uma vez que a obrigação de entrega da carta de condução já resulta do disposto no artigo 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Por seu turno, as normas referidas são o artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que estabelece a possibilidade de apreensão da carta de condução em caso de não entrega no prazo legal, e o artigo 353.º do Código Penal, que pune a violação da proibição, independentemente da entrega da carta de condução.
Tais argumentos são válidos e convincentes, impondo efectivamente uma ponderação. Afigura-se que o entendimento exposto deverá prevalecer, na medida em que o artigo 69.º, n.º 2, do Código Penal, estabelece que a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão, o que torna, para o efeito, despicienda a entrega da carta de condução pelo arguido. Essa entrega justifica-se como forma de assegurar um adequado controle da execução da proibição. Nesta medida, impõe-se uma célere decisão de apreensão, logo que decorra o prazo legal para o arguido proceder à entrega.
Como tal, os factos alegados na acusação não consubstanciam a prática pelo arguido do crime por que vem acusado, o que determina da extinção do procedimento criminal, sem conhecimento do mérito da causa.
Pelo exposto, por ausência de relevância criminal dos factos descritos na acusação, declaro extinto o procedimento criminal, ficando prejudicado o conhecimento do mérito da causa».

2 – O Ministério Público interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
A) «A autoridade de onde proveio a cominação de incorrer na prática do crime de desobediência, em caso de não entrega da sua carta de condução, era competente para tal, tinha legitimidade e foi regularmente comunicada ao arguido;
B) O arguido não entregou a sua licença de condução, no prazo legal;
C) O direito constituído não consagra a tese defendida pelo Tribunal a quo não competindo ao julgador criar o direito, mas aplicá-lo;
D) O arguido confessou a prática dos factos vertidos na acusação que eram subsumíveis ao tipo de crime imputado;
E) Ao declarar extinto o procedimento criminal intentado contra o arguido, nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal “a quo” violou os artigos 10.º, n.º 1, 13.º, 14.º, n.º 1, e 348.º, n.º 1, al. b), todos do Código Penal.
No entanto, V. Exas., decidindo, farão, como sempre, Justiça».

3 – Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público.

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 144.

5 – A Sr.ª procuradora-geral-adjunta emitiu o parecer de fls. 151 e 152 no qual sustentou que o recurso merecia provimento.

6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.

II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – Antes de entrarmos na análise da questão de fundo suscitada pelo recorrente, importa dizer que, de acordo com o artigo 311.º, n.ºs 2 e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, o juiz de julgamento, se não tiver havido instrução, pode e deve rejeitar a acusação se considerar que os factos nela narrados não constituem crime.
Não tendo exercido tempestivamente esse poder/dever, o juiz não pode apreciar a relevância penal da conduta imputada ao arguido a não ser na sentença depois fixar os factos tidos por provados e não provados e de fundamentar esse segmento da decisão.
É o que claramente resulta do facto de essa matéria não constituir uma questão prévia ou incidental que possa ser apreciada em momento anterior ao mencionado e de a estrutura da sentença prevista no artigo 374.º do Código de Processo Penal exigir que o juiz obedeça à ordem de apreciação das questões estabelecida nessa disposição legal.
Por isso, não vemos que o Sr. juiz pudesse pronunciar-se sobre a relevância criminal da conduta imputada ao arguido sem que previamente tivesse enumerado os factos que tinha por provados e não provados e elaborado a fundamentação desse segmento da decisão.
Também não vemos que o tribunal pudesse ter terminado a sentença declarando «extinto o procedimento criminal, ficando prejudicado o conhecimento do mérito da causa» quando o fundamento da decisão era a irrelevância jurídico-penal da conduta.

8 – Dito isto, analisemos então a questão colocada pelo recorrente.
Estabelece o n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal que «quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação».
O Ministério Público imputou ao arguido a prática de um crime de desobediência p. e p. pela alínea b) do citado preceito legal por entender, por certo, que não existia nenhuma disposição legal que cominasse como desobediência a falta de cumprimento do dever de entrega da carta previsto no n.º 3 do artigo 69.º do Código Penal e no n.º 2 do artigo 500.º do Código de Processo Penal.
Não nos parece, salvo o devido respeito, que assim seja.
Se é verdade que de nenhum dos mencionados preceitos, nas suas actuais redacções , parece resultar, com clareza , a incriminação dessa conduta, ela surge com toda a nitidez dos n.ºs 1 e 3 do artigo 160.º do Código da Estrada .
Aí se prevê que:
«1 – Os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir.
2 – …
3 – Quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias úteis, o entregar à entidade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no n.º 1, esta notificação ser efectuada com a notificação da decisão».
Ora, a proibição de conduzir a que se refere este preceito não pode deixar de ser a pena acessória de natureza penal que se encontra prevista no citado artigo 69.º e que neste caso foi imposta ao arguido.
Por isso, entendemos que a falta de entrega pelo arguido da carta de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença que aplicou a proibição de conduzir constitui crime de desobediência punível nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal e não nos termos da alínea b) dessa mesma disposição legal.
Essa alteração da qualificação jurídica não obsta, contudo, a que se julgue procedente o recurso interposto e se revogue a sentença proferida, a qual deve ser substituída por outra que, na sequência da realização da audiência, aprecie a responsabilidade criminal imputada ao arguido.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando a sentença proferida e determinando que a mesma seja substituída por outra que, na sequência da realização de audiência, aprecie a responsabilidade criminal imputada ao arguido.
Sem custas.



Lisboa, 24 de Março de 2010

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(Carlos Rodrigues de Almeida)

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(Horácio Telo Lucas)