I – Se, ao proferir o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal, o juiz de julgamento não tiver rejeitado a acusação por considerar que os factos nela narrados não constituíam crime – artigo 311.º, n.ºs 2 e 3, alínea d) – não pode apreciar a relevância criminal dessa mesma conduta a não ser na sentença depois fixar os factos provados e não provados e de fundamentar esse segmento da decisão.
II – Na sequência da aplicação da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, a falta de cumprimento do dever de entrega da carta de condução previsto no n.º 3 do artigo 69.º do Código Penal e no n.º 2 do artigo 500.º do Código de Processo Penal constitui crime de desobediência simples nos termos dos n.ºs 1 e 3 do artigo 160.º do Código da Estrada e da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal.
Nota: Em sentido idêntico ao alcançado em II - cfr. Ac. TRL de 8/6/2010, proc. nº622/08.1TAAGH.L1, 5ª Secção, relatado por Filipa Macedo.
Proc. 470/04.8TAOER.L1 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por João Vieira
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Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – O Ministério Público acusou o arguido P. pela prática de um crime de desobediência p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal (fls. 53) por, em síntese, após o trânsito em julgado da sentença que o condenou numa pena de 5 meses de proibição de conduzir veículos com motor, não ter procedido à entrega da carta de condução no prazo imposto por lei e cominado na sentença.
Remetidos os autos para a fase de julgamento foi proferido o despacho a que se referem os artigos 311.º a 313.º do Código de Processo Penal (fls. 61 e 62).
Depois de ter sido realizada a audiência de julgamento, foi proferida a sentença que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
«I – Relatório
Arguido:
P., filho de D. e de M., natural de Moçambique, nascido em 14/08/71, casado, residente na Rua M., lote 4, cave Dta., em Cascais.
Acusação do Ministério Público:
– Um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal.
O arguido contestou.
Realizou-se audiência de julgamento.
II – Saneamento
A jurisprudência mais recente, nomeadamente, do Tribunal da Relação de Lisboa, impõe que se proceda a uma análise da relevância criminal dos factos descritos na acusação.
Alega-se na acusação que o arguido não procedeu à entrega da sua carta de condução, não obstante ter sido destinatário de ordem nesse sentido, constante de sentença que o condenou em pena acessória de proibição de conduzir, com a expressa cominação de incorrer na prática de um crime de desobediência, no caso de o não fazer.
O crime de desobediência em causa encontra-se tipificado no artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal. Nos termos da citada norma, 'Quem faltar à obediência devida a ordem ou a mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade ou funcionário competente, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias se: <...>' 'Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação.'.
Conforme supra aflorado tem vindo a jurisprudência mais recente, nomeadamente do Tribunal da Relação de Lisboa, a considerar que tais factos não consubstanciam a prática de um crime de desobediência, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. b), do Código Penal. Neste sentido, pode ler-se o Ac. RL de 18/12/2008, proc. 1932/2008-9, publicado em www.dgsi.pt, segundo o qual o paradigma da intervenção mínima do Direito Penal que decorre do artigo 18.º, n.º 2, da CRP, obsta a que, existindo disposições legais que prevejam a não entrega da carta de condução e a punição do exercício da condução durante o período de proibição, se considere materialmente legítima, para efeitos de cominação do crime de desobediência, a ordem constante da sentença de entrega da carta de condução. Esta menção terá, antes, segundo tal entendimento, uma natureza informativa, uma vez que a obrigação de entrega da carta de condução já resulta do disposto no artigo 500.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Por seu turno, as normas referidas são o artigo 500.º, n.º 3, do Código de Processo Penal, que estabelece a possibilidade de apreensão da carta de condução em caso de não entrega no prazo legal, e o artigo 353.º do Código Penal, que pune a violação da proibição, independentemente da entrega da carta de condução.
Tais argumentos são válidos e convincentes, impondo efectivamente uma ponderação. Afigura-se que o entendimento exposto deverá prevalecer, na medida em que o artigo 69.º, n.º 2, do Código Penal, estabelece que a proibição produz efeito a partir do trânsito em julgado da decisão, o que torna, para o efeito, despicienda a entrega da carta de condução pelo arguido. Essa entrega justifica-se como forma de assegurar um adequado controle da execução da proibição. Nesta medida, impõe-se uma célere decisão de apreensão, logo que decorra o prazo legal para o arguido proceder à entrega.
Como tal, os factos alegados na acusação não consubstanciam a prática pelo arguido do crime por que vem acusado, o que determina da extinção do procedimento criminal, sem conhecimento do mérito da causa.
Pelo exposto, por ausência de relevância criminal dos factos descritos na acusação, declaro extinto o procedimento criminal, ficando prejudicado o conhecimento do mérito da causa».
2 – O Ministério Público interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
A) «A autoridade de onde proveio a cominação de incorrer na prática do crime de desobediência, em caso de não entrega da sua carta de condução, era competente para tal, tinha legitimidade e foi regularmente comunicada ao arguido;
B) O arguido não entregou a sua licença de condução, no prazo legal;
C) O direito constituído não consagra a tese defendida pelo Tribunal a quo não competindo ao julgador criar o direito, mas aplicá-lo;
D) O arguido confessou a prática dos factos vertidos na acusação que eram subsumíveis ao tipo de crime imputado;
E) Ao declarar extinto o procedimento criminal intentado contra o arguido, nos termos e com os fundamentos expostos, o Tribunal “a quo” violou os artigos 10.º, n.º 1, 13.º, 14.º, n.º 1, e 348.º, n.º 1, al. b), todos do Código Penal.
No entanto, V. Exas., decidindo, farão, como sempre, Justiça».
3 – Não foi apresentada qualquer resposta ao recurso interposto pelo Ministério Público.
4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 144.
5 – A Sr.ª procuradora-geral-adjunta emitiu o parecer de fls. 151 e 152 no qual sustentou que o recurso merecia provimento.
6 – Foi cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal.
II – FUNDAMENTAÇÃO
7 – Antes de entrarmos na análise da questão de fundo suscitada pelo recorrente, importa dizer que, de acordo com o artigo 311.º, n.ºs 2 e 3, alínea d), do Código de Processo Penal, o juiz de julgamento, se não tiver havido instrução, pode e deve rejeitar a acusação se considerar que os factos nela narrados não constituem crime.
Não tendo exercido tempestivamente esse poder/dever, o juiz não pode apreciar a relevância penal da conduta imputada ao arguido a não ser na sentença depois fixar os factos tidos por provados e não provados e de fundamentar esse segmento da decisão.
É o que claramente resulta do facto de essa matéria não constituir uma questão prévia ou incidental que possa ser apreciada em momento anterior ao mencionado e de a estrutura da sentença prevista no artigo 374.º do Código de Processo Penal exigir que o juiz obedeça à ordem de apreciação das questões estabelecida nessa disposição legal.
Por isso, não vemos que o Sr. juiz pudesse pronunciar-se sobre a relevância criminal da conduta imputada ao arguido sem que previamente tivesse enumerado os factos que tinha por provados e não provados e elaborado a fundamentação desse segmento da decisão.
Também não vemos que o tribunal pudesse ter terminado a sentença declarando «extinto o procedimento criminal, ficando prejudicado o conhecimento do mérito da causa» quando o fundamento da decisão era a irrelevância jurídico-penal da conduta.
8 – Dito isto, analisemos então a questão colocada pelo recorrente.
Estabelece o n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal que «quem faltar à obediência devida a ordem ou mandado legítimos, regularmente comunicados e emanados de autoridade competente, é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias se:
a) Uma disposição legal cominar, no caso, a punição da desobediência simples; ou
b) Na ausência de disposição legal, a autoridade ou o funcionário fizerem a correspondente cominação».
O Ministério Público imputou ao arguido a prática de um crime de desobediência p. e p. pela alínea b) do citado preceito legal por entender, por certo, que não existia nenhuma disposição legal que cominasse como desobediência a falta de cumprimento do dever de entrega da carta previsto no n.º 3 do artigo 69.º do Código Penal e no n.º 2 do artigo 500.º do Código de Processo Penal.
Não nos parece, salvo o devido respeito, que assim seja.
Se é verdade que de nenhum dos mencionados preceitos, nas suas actuais redacções , parece resultar, com clareza , a incriminação dessa conduta, ela surge com toda a nitidez dos n.ºs 1 e 3 do artigo 160.º do Código da Estrada .
Aí se prevê que:
«1 – Os títulos de condução devem ser apreendidos para cumprimento da cassação do título, proibição ou inibição de conduzir.
2 – …
3 – Quando haja lugar à apreensão do título de condução, o condutor é notificado para, no prazo de 15 dias úteis, o entregar à entidade competente, sob pena de crime de desobediência, devendo, nos casos previstos no n.º 1, esta notificação ser efectuada com a notificação da decisão».
Ora, a proibição de conduzir a que se refere este preceito não pode deixar de ser a pena acessória de natureza penal que se encontra prevista no citado artigo 69.º e que neste caso foi imposta ao arguido.
Por isso, entendemos que a falta de entrega pelo arguido da carta de condução no prazo de 10 dias a contar do trânsito em julgado da sentença que aplicou a proibição de conduzir constitui crime de desobediência punível nos termos da alínea a) do n.º 1 do artigo 348.º do Código Penal e não nos termos da alínea b) dessa mesma disposição legal.
Essa alteração da qualificação jurídica não obsta, contudo, a que se julgue procedente o recurso interposto e se revogue a sentença proferida, a qual deve ser substituída por outra que, na sequência da realização da audiência, aprecie a responsabilidade criminal imputada ao arguido.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando a sentença proferida e determinando que a mesma seja substituída por outra que, na sequência da realização de audiência, aprecie a responsabilidade criminal imputada ao arguido.
Sem custas.
Lisboa, 24 de Março de 2010
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)