I – De acordo com o n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal, disposição que regula o conhecimento superveniente do concurso, há lugar à determinação de uma pena única se, «depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes».
II – Um arguido que tiver sido condenado por uma pluralidade de crimes pode ter que cumprir uma pluralidade de penas.
III – A data que delimita o universo dos crimes que se encontram numa situação de concurso, e que por isso devem dar lugar à formação de uma pena única, é a da primeira decisão de condenação.
IV – Todas as penas aplicadas pelos crimes até aí praticados devem dar lugar à formação de uma pena única independentemente da data em que tiver sido proferida a respectiva decisão de condenação e a data do seu trânsito em julgado.
V – Se, posteriormente à primeira condenação, um arguido vier a ser condenado por crimes cometidos depois dessa data, as penas que por eles forem aplicadas devem ser cumuladas.
VI – Porém, só devem integrar essa nova pena única as sanções aplicadas por crimes cometidos entre a data da 1.ª condenação pelas anteriores infracções e a data da 1.ª condenação pelos crimes cometidos a partir dela.
Proc. 235/09.0PTSNT 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – No dia 21 de Dezembro de 2010, no Juízo de Pequena Instância Criminal de Sintra, foi ditada para a acta a sentença que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
Tudo visto e ponderado, decido:
P... foi condenado:
a) Nos presentes autos, por decisão de 26-06-2009, transitada em julgado em 25-08-2009, pela prática, em 08-06-2009, de um crime de condução sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.ºs 1 e 2, do DL 2/98, de 3 de Janeiro, numa pena de 10 (dez) meses de prisão.
b) No processo abreviado 2/03.5GQLSB do 1.º Juízo do tribunal de pequena instância de Lisboa, por decisão de 21-04-2005, transitada em julgado em 22-03-2010, respeitando a factos de 15 de Janeiro de 2003, pela prática de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do DL 2/98, de 3/01, numa pena de 200 dias de multa à taxa diária de € 4,00.
c) No processo comum n.º 100/07.6PTLRS do 1.º juízo criminal do tribunal de Loures, por decisão de 21-05-2009, transitada em julgado em 06-07-2009, respeitando a factos de 3 de Fevereiro de 2007, pela prática de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do DL 2/98, de 3/1, na pena de 8 meses de prisão substituída por igual período de multa à taxa diária de 6 euros.
d) No processo comum n.º 574/03.4GTCSC do 4.º juízo criminal do tribunal de Cascais, por decisão de 19-12-2007, transitada em julgado em 21-01-2008, respeitando a factos de 26 de Julho de 2003, pela prática de um crime de condução ilegal, p. e p. pelo artigo 3.º, n.º 2, do DL 2/98, de 3/1, na pena de 150 dias de multa à taxa diária de € 5,00 euros, pena já convertida em 100 dias de prisão subsidiária.
O tribunal considerou existir uma relação de concurso e designou data para realização da audiência a que se refere o artigo 472.º do Código de Processo Penal.
Procedeu-se ao julgamento para realização do cúmulo jurídico que decorreu com as formalidades legais.
Não existem outras questões prévias que importe conhecer.
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Fundamentação de direito
Dispõe o artigo 77.º do C. Penal que será condenado numa única pena quem tiver praticado vários crimes antes de transitado em julgado a condenação por qualquer deles, atentos, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Atenta a data da prática dos factos, e as decisões condenatórias que aos mesmos respeitam, verifica-se uma relação de concurso entre os crimes impondo-se por isso a realização de cúmulo tendo por finalidade a aplicação de uma pena única.
A pena aplicar terá como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicada aos vários crimes (artigo 78.º do Código Penal).
Em termos de medida concreta da pena importa considerar – o grau de ilicitude do facto expresso em cada uma das condenações em apreço, a natureza dos ilícitos cometidos, a personalidade do arguido vertida nesses factos, as suas condições pessoais e a necessidade de prevenção geral deste tipo de condutas (artigo 71.º do C. Penal). Os factores gerais do art. 71.º, n.º 2, C.P. serão também tomados em linha de conta mas apenas referidos ao conspecto global dos crimes e à personalidade do arguido e não em relação a cada um dos crimes individualmente considerados pelos quais o mesmo já foi condenado.
Não tendo a audiência de julgamento para a elaboração do cúmulo jurídico trazido qualquer novidade quanto ao que ficou decidido nas sentenças a que já se fez referência, cumpre apenas verter os critérios aí adoptados para a determinação da pena única que agora nos ocupa.
Levando em consideração a personalidade do agente revelado nos factos pelos quais foi condenado e a manifesta indiferença para com as condenações sofridas, sendo elevado o grau de culpa do arguido, atento o dolo directo com que actuou, visto o contido nos artigos 77.º e 78.º do C. Penal e 471.º e 472.º do C.P.P. e com referência aos presentes autos e bem assim os autos supra identificados decide-se condenar o arguido nas penas únicas de
– 15 meses de prisão e 300 dias de multa à taxa diária de € 6,00 (seis euros) perfazendo o total de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros).
Da suspensão da execução da pena de prisão
A personalidade do arguido revelada nos factos pelos quais foi condenado não permite fundar qualquer juízo de prognose favorável ao arguido, mormente quanto à suficiência da simples censura do facto e a ameaça de cumprimento da pena de prisão para o afastar da prática de novos ilícitos, dado inexistirem, sequer, quaisquer sinais de que se mostre arrependido dos factos que praticou e tenha assumido o desvalor da sua conduta.
Idênticas razões levam-nos a afastar a possibilidade de substituição da pena imposta por trabalho a favor da comunidade (artigo 58.º n.º 1 do Código Penal).
Por ser assim, afigura-se ao tribunal que razões de prevenção especial impõem no caso a efectividade da pena de prisão.
Decisão
Em face do exposto decide-se condenar P... pelos crimes pelos quais foi condenado nos processos identificados infra nas penas únicas de 15 meses de prisão e 300 dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros) perfazendo o total de € 1.800,00 (mil e oitocentos euros).
Por razões de prevenção especial entende-se não dever a pena de prisão imposta ser suspensa na sua execução.
2 – O Ministério Público interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. A decisão ora recorrida englobou no cúmulo jurídico das penas a pena aplicada no processo n.º 574/03.4GTCSC, sendo certo que esta pena não está em concurso com a destes autos.
2. Pois a condenação proferida naquele processo transitou em julgado em data anterior à da prática dos factos nestes autos, tendo assim a decisão recorrida violado o art. 78.º, n.º 1, do Cód. Penal.
3. Por outro lado, omitiu-se por completo qualquer referência ao processo n.º 262/03.1GGLSB, sendo certo que as penas aí aplicadas estão numa relação de concurso com todas as penas englobadas no cúmulo jurídico.
4. O que acarreta a nulidade da decisão recorrida, nos termos do disposto no art. 379.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Penal, porquanto o tribunal deixou de se pronunciar sobre uma questão que devia apreciar.
Por todo o exposto, revogando a decisão recorrida, V. Ex.ªs farão a costumada Justiça.
3 – Não foi apresentada qualquer resposta a essa motivação.
4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 370.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – A questão que o presente recurso fundamentalmente coloca é a de saber se o crime por que o arguido foi condenado nestes autos (235/09.0PTSNT) se encontra numa relação de concurso com outro ou outros crimes pelos quais ele também foi condenado por decisão transitada em julgado.
De acordo com a decisão recorrida este crime encontra-se em concurso com os crimes pelos quais o arguido foi condenado nos processos n.ºs 574/03.4GTCSC, 100/07.6PTLRS e 2/03.5GCLSB. Entende, por sua vez, o Ministério Público que a pena aplicada pelo crime objecto do processo n.º 574/03.4GTCSC deve ser excluída da pena conjunta determinada pelo tribunal, devendo, pelo contrário, nela ser integrada a pena aplicada no processo n.º 262/03.1GGLSB.
Analisemos então a questão colocada.
De acordo com o n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal, disposição que regula o conhecimento superveniente do concurso, deve haver lugar à determinação de uma pena única se, «depois de uma condenação transitada em julgado, se mostrar que o agente praticou, anteriormente àquela condenação, outro ou outros crimes».
Importa, portanto, determinar, analisando os antecedentes criminais do arguido constantes do seu certificado de registo criminal (e não apenas algumas das condenações contra ele proferidas), quais são os crimes que se encontram em relação de concurso com outros e quantas são as penas que o arguido devia, ao longo da sua vida, ter cumprido ou deverá cumprir.
Tendo em atenção o que consta do certificado de registo criminal (fls. 135 e ss.) e das certidões das condenações juntas a estes autos, ficamos a saber que o arguido foi condenado nas penas que, resumidamente, se indicam no quadro seguinte: PROCESSO DATA DOS FACTOS CRIME PENA APLICADA DATA DA DECISÃO DATA DO TRÂNSITO
31/02.6PBSNT 13-01-02 Condução sem carta 60 dias de multa à taxa diária de 2,5 € 14-01-02 29-01-02
254/02.8GHSNT 29-05-02 Condução sem carta 3 meses de prisão suspensa 29-05-02 29-09-03
217/04.9PPLSB 16-11-04 Falsificação e burla 1 ano de prisão suspensa 05-07-07 20-07-07
394/03.6PTALM 06-09-03 Condução sem carta 200 dias de multa à taxa diária de 5 € 26-11-07 07-01-08
574/03.4GTCSC
(fls. 216 e 226) 26-07-03 Condução sem carta 150 dias de multa à taxa diária de 5 € 19-12-07 21-01-08
561/07.3GGSNT 17-12-07 Condução sem carta 200 dias de multa à taxa diária de 6 € 31-01-08 07-03-08
1676/04.5PULSB 20-08-04 Condução sem carta 120 dias de multa à taxa diária de 2,5 € 27-09-05 05-06-08
8/01.9GGLSB 02-09-00 Condução sem carta 120 dias de multa à taxa diária de 1 € 10-11-08 02-12-08
23/08.1PTBRR 05-05-08 Desobediência
Condução sem carta 9 meses de prisão substituída por 270 dias de multa à taxa diária de 5 € 05-06-08 31-12-08
100/07.6PTLRS
(fls.190) 03-02-07 Condução sem carta 8 meses de prisão substituída por 240 dias de multa à taxa diária de 6 € 21-05-09 06-07-09
262/03.1GGLSB
(fls. 165, 236 e 278) 16-08-03 Desobediência
Condução sem carta Penas parcelares de 60 e 90 dias de multa à taxa diária de 10 € 02-06-09 22-07-09
235/09.0PTSNT 08-06-09 Condução sem carta 10 meses de prisão 26-06-09 25-08-09
2/03.5GCLSB
(fls. 158 e 180) 15-01-03 Condução sem carta 200 dias de multa à taxa diária de 4 € 21-04-05 22-03-10
146/09.0PHOER
(fls. 334) 22-03-09 Condução sem carta 7 meses de prisão 24-05-10 Ainda não transitou
Analisando os indicados antecedentes criminais do arguido devemos dizer, antes do mais, que, uma vez que a decisão proferida no processo n.º 146/09.0PHOER não transitou em julgado, a pena nele imposta não pode, enquanto essa situação se mantiver, ser integrada em qualquer pena conjunta que venha a ser determinada.
Excluída esta pena, vejamos agora quais são as relações de concurso que existem entre os crimes que fundamentaram as condenações proferidas nos restantes treze processos, o que é imprescindível para aquilatar da procedência do recurso interposto pelo Ministério Público.
A fronteira da primeira situação de concurso é, a nosso ver, estabelecida, de acordo com o n.º 1 do artigo 78.º do Código Penal, pela data da primeira condenação do arguido transitada em julgado (Neste mesmo sentido, considerando que a data que delimita a situação de concurso é a da decisão de condenação, DIAS, Jorge de Figueiredo, «Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime», Aequitas, Lisboa, 1993, p. 293, e ANTUNES, Maria João, «Consequências Jurídicas do Crime», Coimbra, 2010, p. 44.).
No caso, essa primeira condenação ocorreu em 14/01/2002 no âmbito do processo n.º 31/02.6PBSNT.
A pena aplicada nesse processo deve ser cumulada com a aplicada no processo n.º 8/01.9GGLSB uma vez que o crime com base no qual a mesma foi aplicada foi praticado em 2/09/2000, antes, portanto, daquela data.
Depois dessa condenação, verificamos que o arguido veio a ser condenado pela primeira vez por crimes cometidos a partir dessa data no dia 29/05/2002 no âmbito do processo n.º 254/02.8GHSNT.
Entre 14/01/2002 e 29/05/2002 o arguido, para além do crime por que foi condenado neste último processo, não cometeu qualquer outro.
Por isso, a pena aplicada no processo n.º 254/02.8GHSNT deve ser cumprida isoladamente.
Depois da condenação proferida no processo n.º 254/02.8GHSNT, verificamos que o arguido veio a ser condenado pela primeira vez por novos crimes em 21/04/2005 no processo n.º 2/03.5GQLSB.
Entre 29/05/2002 e 21/04/2005 o arguido cometeu, para além do crime por que foi condenado neste último processo, aqueles por que foi condenado nos processos n.ºs 217/04.9PPLSB, 394/03.6PTALM, 574/03.4GTCSC, 1676/04.5PULSB e 262/03.1GGLSB.
As penas aplicadas nestes seis processos devem dar lugar à aplicação de uma segunda pena conjunta.
Depois de ter sido proferida a sentença no processo n.º 2/03.5GQLSB, verificamos que o arguido veio a ser condenado pela primeira vez por novos crimes no dia 31/01/2008 no processo n.º 561/07.3GGSNT.
Entre 21/04/2005 e 31/01/2008 o arguido cometeu, para além do crime por que foi condenado neste último processo, aquele por que foi condenado no processo n.º 100/07.6PTLRS.
Por isso, as penas aplicadas nestes dois processos devem dar lugar à aplicação de uma terceira pena conjunta (quarta que ele devia cumprir).
Depois de ter sido proferida a condenação no processo n.º 561/07.3GGSNT, verificamos que o arguido veio a ser condenado pela primeira vez por novos crimes em 5/06/2008 no processo n.º 23/08.1PTBRR.
Entre 31/01/2008 e 5/06/2008 o arguido, para além do crime por que foi condenado neste último processo, não cometeu qualquer outro.
Por isso, a pena aplicada no processo n.º 23/08.1PTBRR deve ser cumprida isoladamente.
Depois de ter sido proferida a condenação no processo n.º 23/08.1PTBRR, verificamos que o arguido veio a ser condenado pela primeira vez por novos crimes em 26/06/2009 no processo n.º 235/09.0PTSNT.
Entre 5/06/2008 e 26/06/2009 o arguido, para além do crime por que foi condenado neste último processo, não cometeu qualquer outro por que tenha sido condenado por sentença transitada em julgado [Caso a condenação proferida no processo n.º 146/09.0PHOER venha a transitar em julgado, as penas aplicadas nestes dois processos (235/09.0PTSNT e 146/09.0PHOER) devem ser cumuladas.].
Por isso, a pena aplicada no processo n.º 235/09.0PTSNT deve ser cumprida isoladamente.
Significa isto que, a nosso ver, o crime que fundamentou a condenação na pena aplicada neste processo n.º 235/09.0PTSNT não se encontra em concurso com qualquer outro, nomeadamente aqueles que foram objecto de condenação nos processos n.ºs 574/03.4GTCSC, 100/07.6PTLRS, 2/03.5GCLSB (que foram integradas pelo tribunal na pena única determinada na sentença recorrida) e 262/03.1GGLSB (que o Ministério Público queria ver nela integrada).
Por isso, o recurso interposto pelo Ministério Público deve ser julgado parcialmente procedente, impondo essa parcial procedência a revogação da decisão proferida pela 1.ª instância por ter cumulado penas aplicadas com base em crimes que não se encontravam numa relação de concurso com o que foi objecto de condenação nestes autos.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando a sentença proferida na 1.ª instância.
Sem custas.
Lisboa, 9 de Março de 2011
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)