I. O Juiz de Instrução Criminal ao validar ou não o segredo de justiça, cuja aplicação foi determinada pelo Ministério Público, não pode deixar de ter presente que se trata exactamente de «validar» e não de «determinar» - o que postula atitudes e competências diferentes.
II. Ao Ministério Público compete, apreciando os parâmetros legais e tendo presente que está num domínio e fase de investigação cuja condução lhe pertence, determinar se a aplicação do segredo de justiça é necessária à investigação, à protecção das vítimas ou dos arguidos, e não é excessivamente onerosa.
III. Ao Juiz de Instrução não compete, ao validar essa determinação, substituir-se ao Ministério Público no juízo que a este cabe, mas verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso ou desproporcionado daquela determinação.
IV. A responsabilidade do Juiz de Instrução tem a ver com o equilíbrio e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são as configuradas pelo Ministério Público), por um lado, e os direitos de defesa dos arguidos, por outro lado; e não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só.
V. No caso, a decisão recorrida ao sustentar que não está concretizada a razão pela qual interessa que o processo se mantenha em segredo de justiça, olvida as diligências de investigação já levadas a efeito e posterga os conhecimentos da experiência comum quanto às situações de tráfico de estupefacientes configurado como crime de perigo abstracto.
Proc. 168/10.8paamd-A.L1 3ª Secção
Desembargadores: Rui Gonçalves - Conceição Gonçalves - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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Acordam, em conferência, na 3.ª Secção Criminal da Relação de Lisboa:
1. RELATÓRIO
1.1. No Processo de Inquérito n.º 168/10.8PAAMD dos Serviços do Ministério Público junto da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste Amadora – G.L.N. – MP D.I.A.P. 8.ª Secção, por despacho do Senhor Juiz de Instrução Criminal de 29SET2010, foi decidido, no que ao caso releva:
“Não [validar] a decisão do Ministério Público de aplicar aos presentes autos [Proc. n.º 168/10.8PAAMD] o segredo de justiça, sem prejuízo de os interesses da investigação, concretamente identificados, em momento ulterior poderem vir a justificar tal aplicação.”
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1.2. Inconformado com o assim decidido, em 15OUT2010, recorreu o Ministério Público que remata a sua motivação recursória do seguinte modo (transcrição):
“a) O despacho recorrido violou, dessa forma, o disposto no nº 3 do artº 86 do CPP.
b) Na decisão de validação (ou não), da decisão do Ministério Público de sujeitar o inquérito a segredo de justiça, o juiz de instrução terá de compreender o poder que lhe é conferido de “controlar” a decisão do Ministério Público, no quadro das regras constitucionais e processuais penais em que ele se enxerta.
c) O Ministério Público é o “dominus” desta fase processual, é ele quem dirige o inquérito e é responsável pela investigação, conforme decorre do disposto no artº 263 nº 1 do CPP.
d) O OPC dispõe de autonomia técnico-táctica para levar a cabo as diligências tidas por relevantes para a prova e para a descoberta da verdade.
e) Por força dessa autonomia, o MºPº não conhece (nem tem de conhecer), em concreto, quais as diligências que estão a ser realizadas.
f) Em momento posterior, cabe ao MP analisar as diligências efectuadas e / ou, se for caso disso, sugerir outras que, no seu entendimento, possam contribuir para a prova e para a descoberta da verdade.
g) Assim sendo, nunca o MP podia indicar as diligências em concreto que se encontram em curso.
h) A nosso ver, nunca (com esse argumento) o Mme Juiz “a quo” podia decidir pela não validação da decisão do MP.
i) Nem nunca o Mme Juiz “a quo” poderia concluir que: “… a ser assim o segredo de justiça estaria desde logo a abranger o próprio juiz de instrução…”.
j) O que está em causa na decisão do Ministério Público, proferida nos termos do n.º 3 do artigo 86.º do CPP, é a publicidade externa do inquérito, ou seja, aquela que se estende à generalidade das pessoas, àquelas que são exteriores à relação processual.
l) Inexistem quaisquer razões relevantes de facto e de direito que coloquem em crise a decisão do MP em determinar a aplicação de segredo de justiça aos autos.
m) Pelo que a mesma devia ter sido validada pelo Mme Juiz “a quo”.
n) O despacho recorrido violou o disposto nos artsº 86 nº 3 “in fine”, 263 nºs 1 e 2, 267, 270 nº 1 e nº 3 todos do CPP, o artº 2 nºs 1, 2, 4, 5, 6 e 7 da Lei 49/2008 de 27.08 e ainda os artºs 20 nº 3 e 219 nº 1 e 2 e 220 nº 1 todos da CRP.”
t) Assim sendo, o despacho ora posto em crise deverá ser revogado e ordenada a prolação de despacho que ordene a validação do segredo de justiça determinado pelo MºPº.
Assim se fará a Costumada JUSTIÇA”
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1.3. Na 1.ª instância não foi apresentada qualquer resposta.
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1.4. O Senhor Juiz do Tribunal a quo não sustentou a decisão impugnada limitando-se a ordenar a subida dos autos a este Tribunal.
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1.5. Nesta instância foi oportunamente cumprido o disposto no art. 416.º do Código de Processo Penal emitindo a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta (P.G.A.), em 26JAN2011, o seu parecer, concluindo do seguinte modo: “[…] acompanhando-se os fundamentos constantes do recurso interposto pelo Ministério Público em 1.ª instância, emitindo parecer no sentido da procedência de tal recurso.”
1.6. Foi cumprido o disposto no n.º 2 do art. 417.º, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada qualquer resposta.
1.7. Colhidos os vistos legais, procedeu-se à conferência neste Tribunal, a qual veio a decorrer com observância do legal formalismo, cumprindo decidir.
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2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. DA QUESTÃO DE FACTO
Comecemos por nos deter sobre as ocorrências relevantes para a decisão do presente recurso:
2.1.1. Os autos de Inquérito n.º 168/10.8PAAMD, dos Serviços do Ministério Público junto da Comarca da Grande Lisboa – Noroeste iniciaram-se a 02JUN2010 através da recepção nestes Serviços do auto de notícia lavrado pela P.S.P. nessa mesma data, onde em suma, se dá notícia do seguinte:
No dia 01JUN2010, pelas 22:00 horas, na Rua da Liberdade, junto ao estabelecimento de restauração e bebidas, denominado “Calceteiro”, na Brandoa, zona referenciada pela P.S.P. como local de tráfico e consumo de estupefacientes foram abordados e identificados suspeitos indicados no referido auto, em virtude de no local onde se encontravam e na sua esfera de acção, foram apreendidos vários pedaços individualizados de um produto que depois de examinado revelou ser Haxixe (cf. fls. 66), com o peso bruto de 42, 15 gramas, e líquido de 39, 191 gramas, que foi apreendido em 01JUN2010 (cf. fls. 24), o qual se encontrava escondido na parte de trás de um gradeamento de protecção de um vidro do referido estabelecimento “Calceteiro” (cf. fls. 23, 24-26).
2.1.2. Tal apreensão veio a ser validada pelo Ministério Público (cf. fls. 27 e 41).
2.1.3. Por despacho de 07JUN2010, proferido ao abrigo do disposto no art. 270.º do Código de Processo Penal, o Ex.mo Magistrado do Ministério Público titular do referido Inquérito delegou na P.S.P. a realização de diligências de investigação relativas ao aludido inquérito (cf. fls. 29).
2.1.4. No referido inquérito, em 28JUN2010, foram apontados seis suspeitos identificados no documento de fls. 43, com antecedentes judiciários ligados ao tráfico de estupefacientes (cf. fls. 45, 47, 49, 50, 51, 52, , 53, e 54).
2.1.5. Quanto a um dos suspeitos indicado a fls. 54 in fine é referido que o mesmo “[…] há muito se encontra fortemente indiciado de crime de tráfico de estupefacientes sendo próximo de […] um dos líderes da calque […] (cf. informação de serviço de fls. 51 – 54 e documento de fls. 55-57)
2.1.6. Em 05JUL2010 um elemento da P.S.P. efectuou diligências com vista a localizar alguns dos suspeitos localizando um deles, pessoa próxima de um dos líderes da dita claque, no exterior junto ao local onde havia sido apreendido o referido produto estupefaciente (cf. relatório de diligência externa de fls. 63).
2.1.7. Por despacho proferido pelo Ex.mo Magistrado do Ministério Público de turno, no âmbito do referido inquérito, datado de 06AGO2010 foi prorrogado o prazo de investigação por mais 30 dias (cf. documento de fls. 76).
2.1.8. Em 23AGO2010 foi inquirido um dos suspeitos ligado à referida claque que “afirma que o haxixe [que havia sido apreendido no âmbito deste inquérito] não era seu, apesar de consumir aquela substância” (cf. fls. 82-83).
2.1.9. Nesse mesmo dia 23AGO2010 foi ouvido outro suspeito que assevera que “o haxixe [apreendido nestes autos] não era seu, apesar de ser consumidor daquela substância” (cf. fls. 84-85).
2.1.10. No dia 23AGO2010 foi ouvido outro suspeito que declarou “consumir haxixe” […] que não compra naquela localidade e se desloca a Chelas e adquire a desconhecidos”. E que no local se encontram mais de 30 (trinta) pessoas (cf. fls. 88-89)
2.1.11. Na sequência da investigação do referido Inquérito n.º 168/10.8 PAAMD foi averiguado que um dos suspeitos referido a fls. 43 e 95 tinha por hábito proceder à venda de haxixe junto ao café “Calceteiro” e no “Café Central”, também conhecido como “café do Afonso”, ambos sitos na Brandoa.
2.1.12. Como em 16SET2010 se encontrava encerrado o “Café Calceteiro” e no “Café do Afonso” não se encontrava ninguém, junto ao “parque da Noémia” local referenciado como de tráfico e de consumo de estupefacientes veio a ser interceptado o referido suspeito com vários pedaços vulgarmente designados “línguas” envolvido em plástico aderente, individualizados, de um produto que, examinado revelou ser haxixe, com o peso bruto de 35, 43 gramas (cf. fls. 95-96).
2.1.13. Já anteriormente em 19AGO2010 havia o suspeito referido em 2.1.12) sido identificado em circunstância idênticas aquelas que originaram o Inquérito n.º 168/10.8 PAAMD e que mereceu o NUIPC 667/10.1 PFAMD. (cf. fls. 96)
2.1.14. Na reportagem fotográfica de fls. 97-98 é visível a fls. 98 o “estupefaciente encontrado no bolso direito do casaco que o arguido trazia vestido.”
2.1.15. No dia 17SET2010 um elemento da P.S.P. deslocou-se aos referidos Cafés onde lobrigou dois dos suspeitos sendo um deles ligado à referida claque (cf. fls. relatório de 112)
2.1.16. No dia 20SET2010, João Duarte Reis Mendes, com demais sinais de fls. 114, é ouvido como arguido imputando-lhe os factos descritos a fls. 114 in fine, aqui dados por integralmente reproduzidos (cf. fls. 114-115).
2.1.17. Em 20 SET2010 foi reconhecido que “[…] por ora é difícil determinar a quem pertence o haxixe apreendido no dia 01JUN2010 e que originou o Inquérito n.º 168/10.8 PAAMD pois o modus operandi utilizado é posto em prática já com o intuito de dificultar a actuação da Polícia. Os suspeitos ocultam o grosso do estupefaciente num local indeterminado e quando contactados por consumidor, deslocam-se ao local onde se encontra o estupefaciente (já repartido em doses individuais).”; “[…] existem suspeitos da venda ilícita de haxixe, através de informações de populares que pretendem o anonimato por temerem represálias. (cf. documento de fls. 117-119, maxime fls. 118, § 5.º).
2.1.18. Por despacho de 22SET2010, proferido pelo Ex.mo Magistrado do Ministério Público no âmbito do Inquérito n.º 168/10.8 PAAMD, foi determinada a incorporação destes autos com o NUIPC 667/10.1PFAMD (cf. fls. 122).
2.1.19. No âmbito do Inquérito n.º 168/10.8 PAAMD, por despacho proferido pelo Ex.mo Magistrado do Ministério Público titular do mesmo, datado de 24SET2010, no decurso do prazo previsto no art. 276.º, n.º 2, alínea a) do Código de Processo Penal, o Ministério Público entendeu ser de aplicar ao aludido Inquérito o segredo de justiça, nos termos do disposto no art. 86.º, n.º 3 do referido Corpo de Leis, e determinou a apresentação dos autos ao Senhor Juiz de Instrução Criminal para efeitos do disposto na parte final do referido normativo.
Tal despacho vazado nos autos e certificado a fls. 125-126, aqui dado por integralmente reproduzido, alicerçou-se, no essencial, no seguinte:
(i) indiciarem os autos a prática pelos visados de 1 (um) crime de tráfico de estupefacientes, da previsão do art. 21.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22JAN;
(ii) Estarem em curso diligências importantes para a prova e para a descoberta da verdade;
(iii) Na fase actual da investigação não deverem os visados ter conhecimento das diligências pendentes;
(iv) Verificar-se em concreto que a publicidade do processo pode prejudicar, de forma elevada, os interesses da investigação, da prova e da descoberta da verdade.
2.1.20. Por despacho proferido pelo Senhor Juiz de Instrução Criminal, datado de 29SET2010, que consubstancia a decisão recorrida, e que se mostra certificado a fls. 129-132, aqui dado por integralmente reproduzido, decidiu-se não validar tal decisão do Ministério Público com o fundamento de “não terem sido alegados quaisquer circunstâncias das quais se pudesse extrair que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais justifiquem a aplicação do segredo de justiça. Desde logo, não ter sido autorizada nos autos recolha de imagem dos visados; compulsados os autos, não vislumbrar quais as diligências de prova que sejam importantes para a descoberta da verdade, sendo certo que não foi também autorizada a realização de buscas domiciliárias ou de intercepção telefónicas.”
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2.2. DA QUESTÃO DE DIREITO
O objecto do presente recurso delimitado pelas respectivas conclusões prende-se com a seguinte questão essencial:
Será de validar a decisão do Ministério Público de aplicar aos presentes autos o segredo de justiça?
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Antes de mais cabe referir que a conclusão da alínea c), salvo o devido respeito por opinião em contrário, parece-nos algo contraditória com a conclusão da alínea e), pela singela razão de que sendo o Ministério Público o dominus do inquérito [ex vi do n.º 1 do art. 263.º do Código de Processo Penal, cuja actuação dos órgãos de Polícia Criminal (O.P.C.) está sob a sua dependência funcional e orientação, lhe permite deduzir acusação fundamentada (cf. arts 276.º, n.º 1 e 97.º, n.º 2, ambos do Código de Processo Penal ou arquivar o inquérito cf. art. 277.º do Código de Processo Penal)] e responsável pela investigação tal impõe pela própria natureza das coisas conhecimento concreto das investigações que nesta sede são levadas a efeito quer in nomine proprio quer através de delegação de competência no órgão de Polícia Criminal (O.P.C.).
Na verdade, neste último caso, o Ministério Público sendo normalmente competente para realizar a investigação autoriza um outro órgão (O.P.C.) ou um agente, indicados na lei, a praticar certos actos jurídicos autorizados ( ). A sua natureza é a de uma autorização dada por um órgão normalmente competente a outro órgão ou agente que a lei indica também como competente sob condição de ser autorizado a exercer essa competência pelo primeiro. Ora, o facto de o delegante ter permitido ao delegado (O.P.C.) o exercício de poderes não o priva destes: o delegante continua a ser competente, cumulativamente com o delegado. Quando queira exercer a sua competência deve o delegante avocar o caso ( ).
O Ministério Público como representante da pretensão punitiva do Estado, é delegado pela sociedade para a tutela dos direitos dos cidadãos ofendidos pelo crime, ou seja a sua função deve ser inspirada por uma sinceridade de convicção e por objectividade, devendo defender os interesses que a lei determinar [cf. n.º 1 do art. 227.º da Constituição da República Portuguesa (C.R.P.)]. Esses interesses obrigam a que o Ministério Público exercite a acção penal norteada pelo princípio da legalidade democrática. Daí que, se realmente procura “o culpado” e não “um culpado”, se deseja a punição de quem ofendeu a sociedade deve ser o garante por lei e por dever do inocente. Na verdade, não pode aqui olvidar-se que o Ministério Público exerce a acção penal de harmonia com os contextos jurídicos dos princípios estruturantes do processo penal de estrutura acusatória, aparecendo como o primeiro defensor do inocente, promovendo não só a legalidade democrática, mas também o respeito pela dignidade da pessoa humana.
O fim de actuação do Ministério Público, que é de interesse público, só é a nosso ver alcançado caso a sua actuação se prenda por princípios de independência psicológica, social e intelectual de modo a que jamais se guie pelo princípio da presunção da culpabilidade.
Ora, o Ministério Público como promotor e vigilante da aplicação da lei deve sentir as pulsões e vibrações dos perigos da vida social, para que persiga o crime e os criminosos, os violadores da lei e os perturbadores da ordem social. O Ministério Público tem assim uma missão de energia e de generosidade, de sabedoria e de sentimento inspirada pela lei, pela razão e pelos fins que a determinam.
Na verdade, se bem vemos, só com a acusação inspirada na lei, na razão e nos fins daquela, temperada pelo sentido de responsabilidade que a sociedade lhe conferiu, o Ministério Público pode exercer a sua acção penal isenta de influência quer do juiz, quer da opinião pública, quer do poder político, quer das suas convicções pessoais e dos seus preconceitos.
Com efeito, o Ministério Público deve prosseguir a sua função com base nos princípios da isenção, da objectividade e da legalidade aos quais está vinculado (cf. arts. 53.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 219.º, n.º 1 da C.R.P.).
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A investigação criminal visando a concretização da justa pretensão punitiva do Estado de forma a que os direitos à liberdade e à segurança sejam uma real vivência dos cidadãos não deve permitir que uma sociedade democrática esteja isenta da verificação de garantias e direitos dos cidadãos (cf. arts. 126.º e 268.º, ambos da Código de Processo Penal e arts. 32.º, 27.º e 34.º, da Constituição da República Portuguesa), cujos actos de investigação devem obedecer a certos pressupostos factuais e de direito para que a investigação não viole quaisquer normas legais.
A investigação criminal prosseguida pelo O.P.C. deve basear-se nos princípio de isenção e de objectividade de forma a que haja uma coerência e conexão entre eficiência e justiça, está sujeita à orientação directa do Ministério Público, que dirige o inquérito que visa verificar ou não a existência de crime qual/quais os seus agentes e responsabilidade do(o)s mesmos(s), verificações estas baseadas na descoberta e recolha de provas que fundamentem a sua decisão (cf. arts 262.º, 263.º e 267.º, todos do Código de Processo Penal).
A função do O.P.C. é essencial na defesa dos direitos liberdades do cidadão (cf. n.º 1 do art. 272.º da C.R.P.). Contudo, acima da descoberta da verdade material encontra-se a liberdade e os direitos de cada cidadão, cuja garantia é uma das tarefas fundamentais do Estado (cf. alínea b) do art. 9.º da C.R.P.].
A actividade de coadjuvação da autoridade judicial por parte do O.P.C. da qual depende funcionalmente deve ser entendida como actividade de Administração da justiça e, por isso, também enformada pelos princípios a que está sujeito qualquer órgão da Administração da Justiça.
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Ora, na fase de inquérito o princípio da jurisdição do processo, como pedra angular do processo penal, impõe-se sempre que estejam em causa actos que se prendem directamente com direitos fundamentais (cf. n.º 4 in fine do art. 32.º da C.R.P.).
Promove-se, assim, a defesa dos direitos, liberdades e garantias do arguido, face ao poder estatal de investigação, através de uma função jurisdicional, desempenhada pelo juiz de instrução, sendo a sua existência imprescindível na defesa das garantias do arguido. Daí que o Código de Processo Penal de 1987 tivesse consagrado a jurisdicionalização de todas as medidas instrutórias que directamente contendam com as liberdades e garantias das pessoas. Deste modo, o juiz de instrução apresenta-se como um contra-poder que visa evitar quaisquer violações dos direitos fundamentais do cidadão.
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Feito este pequeno bosquejo e a esta luz, desde já importa, sinteticamente, deixar expresso o seguinte:
No processo penal, quer a actividade do Juiz de Instrução Criminal, quer a do Ministério Público, não constituem um fim em si mesmas, são actividades preordenadas a um fim: a realização da justiça. Por isso, impondo-se as práticas pragmáticas, temos dificuldade em perceber porque é que o Senhor Juiz de Instrução Criminal não “convidou” o Ministério Público a fundamentar e/ou esclarecer o seu requerimento [quid que, na prática, levou a efeito em sede de motivação recursória, o que parece não ter tido força bastante para reparar a decisão visto que nem merecedora foi por parte do senhor Juiz de Instrução de qualquer despacho de sustentação ou reparação], do mesmo passo que não compreendemos, atentos os valores em causa — a celeridade é o mais visível — porque é que o Ministério Público, sem prejuízo de vincar no processo a sua posição, não optou por apresentar novo requerimento.
Tornam-se, assim, os sujeitos processuais — principais actores na resolução da conflitualidade — protagonistas de uma indesejada litigância lateral, que tem a sua causa próxima na Lei n.º 48/2007, de 29AGO, que veio sobrepor campos de actuação antes inteiramente delimitados.
Cabe não olvidar que a partir de 1997, foi constitucionalizado o segredo de justiça, art. 20.º n.º 3 da Constituição da República Portuguesa em dois vectores:
(i) como meio de protecção da investigação penal e
(ii) como tutela do segredo.
In casu, desde já adiantamos que estando em causa a “investigação”, afigura-se-nos “quixotesco” ver a intervenção do Senhor Juiz de Instrução como o “juiz das liberdades”.
Na verdade, se bem vemos, parece que a sua intervenção concreta ganha a forma de “fiscal da investigação”, o que, no caso em apreço, está vedado pela Constituição da República Portuguesa e pela lei e parece desprezar o princípio do acusatório. Os “papéis” estão bem definidos e importa não os trocar, não tomar uma coisa em vez de outra.
E o juiz penal não pode esquecer que a obediência à lei começa pela Constituição da República Portuguesa.
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SEGREDO DE JUSTIÇA
É consabido que na versão inicial do Código de Processo Penal, o segredo de justiça constituía um regime legal das fases preliminares do processo - do inquérito e da instrução - embora, findo o inquérito, se quebrasse o segredo interno e passasse a existir um acesso pleno aos autos pelos sujeitos processuais.
No actual regime, introduzido pela Lei n.º 48/2007, de 29AGO, o segredo de justiça surge como uma excepção à regra geral da publicidade (externa e interna) do processo penal, proclamada no n.º 1 do art. 86.º do Código de Processo Penal, mesmo nas fases preliminares do processo.
O órgão legiferante pretendeu rasgar o modelo anterior. Levou-o a efeito de surpresa, com alterações de última hora ( ) sem esclarecer “os aplicadores do Direito sobre os fundamentos do concreto regime que criou, sobre a arquitectura jurídica do mesmo, nem as vantagens que visa atingir com as novas soluções legais e o que está disposto a sacrificar para o efeito por decisão sua” ( ).
Contudo, como vimos, o segredo de justiça está previsto no art. 20.º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa e exige adequada tutela enquanto tem em vista garantir aspectos fundamentais do processo penal: interesses públicos e interesses particulares associados à realização da justiça penal. Com o segredo de justiça não é só a eficácia da investigação que se quer salvaguardar mas, através dele, alcança-se, também, a protecção de interesses de particulares (v.g. das vítimas) e da própria presunção de inocência do(s) arguido(s) e dos suspeitos que não chegam, sequer, a ser constituídos arguidos.
A partir da revisão e alteração operada pela Lei n.º 48/2007, de 29AGO, o art. 86.º n.º 1 do Código Processo Penal passou a ter a seguinte redacção:
“O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei”.
Não obstante, tal regra de publicidade pode ser comprimida na fase de inquérito e dar lugar à sujeição do processo, durante a fase de inquérito e a impulso de qualquer dos sujeitos processuais e mesmo do Ministério Público, a segredo de justiça, nos termos previstos no art. 86.º n.º 2 e n.º 3 do Código de Processo Penal, mas sempre por decisão do competente juiz de instrução.
Com o que é forçosa a conclusão de que sendo antes o segredo de justiça, a regra, ope legis, durante a fase de inquérito, passou agora a ser a excepção, mas ainda assim, sempre determinada por decisão judicial.
Tal decisão judicial não preenche ou constitui, porém, qualquer elemento do tipo legal de crime de violação de segredo de justiça, antes constitui, tão só, após a revisão e alteração do art. 86.º do Código de Processo Penal operada pela Lei nº 48/2007, de 29AGO, um mero pressuposto ou condição de procedibilidade, de natureza processual penal, do crime de violação do segredo de justiça.
Ora, “A consagração de um regime de segredo de justiça que o subverte, o coloca como excepção onde anteriormente representava a regra e praticamente o suprime, não pode deixar de ser considerada uma protecção “desadequada” do segredo de justiça.” ( ).
Como vimos, a Lei n.º 48/2007 fixa a regra da publicidade - interna e externa - do inquérito ( ).
Resulta do art. 86.º, n.º 2, que o inquérito é, em regra, público e só quando o juiz de instrução entenda que a publicidade prejudica os direitos dos sujeitos ou participantes processuais é que ele pode ser declarado secreto.
Igualmente o Ministério Público pode afastar a regra da publicidade do inquérito se entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justificam.
O n.º 3 do art. 86.º do Código de Processo Penal considera o caso de a sujeição do inquérito a segredo ser decidida pelo Ministério Público, por sua iniciativa, sem requerimento dos sujeitos processuais, nesse sentido. A decisão do Ministério Público carece, no entanto, de ser validada pelo juiz de instrução, no prazo máximo de setenta e duas horas.
Assim, a lei penal adjectiva estabeleceu um regime em que o dominus do inquérito (cf. art. 263.º, n.º 1, do Código de Processo Penal) não pode decidir por si só da sujeição do inquérito a segredo.
Na hipótese prevista no n.º 2 do art. 86.º do Código de Processo Penal, o juiz de instrução decide (por despacho irrecorrível) da sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido. Os requerentes devem, portanto, indicar as razões por que os seus direitos são prejudicados com a publicidade do inquérito, cabendo ao juiz de instrução, depois de ouvir o Ministério Público, apreciar se as razões invocadas fundamentam a sujeição do inquérito a segredo de justiça e decidir, em conformidade.
Já na intervenção prevista no n.º 3, do referido normativo ao juiz de instrução não compete a decisão. Na verdade a decisão de sujeitar o processo, na fase de inquérito, a segredo de justiça é do Ministério Público, ao juiz de instrução é reservado o papel de validar, ou não, essa decisão.
Ora, na decisão de validação, ou não, da decisão do Ministério Público de sujeitar o inquérito a segredo de justiça, o juiz de instrução terá de assimilar o poder que lhe é conferido de “controlar” a decisão do Ministério Público, no quadro das regras constitucionais e processuais em que ele se insere.
Na verdade o juiz de instrução criminal não pode desprezar a função constitucional do Ministério Público de exercício da acção penal da qual decorre o monopólio da direcção do inquérito.
Por isso, “a decisão de validação (ou não) da decisão do MP dificilmente pode ter um conteúdo material e decisório autónomo em relação à avaliação feita pelo MP sobre os interesses em causa, num inquérito a cuja orientação táctica e estratégica o JIC é completamente estranho” ( ).
“Serão normalmente os interesses da investigação a justificar a posição do Ministério Público no sentido da sujeição do processo a segredo de justiça (interno e externo, pois estes interesses reclamam estas duas facetas deste regime). O Ministério Público é o dominus desta fase processual, é ele quem dirige o inquérito e é responsável pela investigação. Seria insólito que o juiz de instrução sobrepusesse o seu critério a respeito dos interesses da investigação ao critério do Ministério Público a esse respeito (estaria a “meter a foice em seara alheia”). A função do juiz de instrução, no nosso sistema, é garantista (o “juiz das liberdades”), não de concorrência ou sobreposição em relação às funções do Ministério Público no inquérito. A responsabilidade indeclinável do juiz de instrução prende-se, antes, com o balanço e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as configura), por um lado, e os direitos de defesa do arguido, por outro lado. São este tipo de juízo e de ponderação (não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só) que são específicos da função do juiz de instrução. Portanto, o que pode levar o juiz a divergir do Ministério Público não é uma sua divergência a respeito dos interesses da investigação, como se devesse ajuizar a respeito desses interesses, mas uma ponderação entre esses interesses (aceitando-os como o Ministério Público os configura) e os direitos de defesa do arguido.” ( ).
A nosso ver, salvo o devido respeito por opinião em contrário, não resulta da lei (cf. n.º 3 do art. 86.º do Código de Processo Penal) que o juízo do Ministério Público sobre a necessidade de sujeição do inquérito a segredo de justiça tenha necessária e exclusivamente de se basear numa específica e concreta avaliação dos interesses da investigação ou dos direitos dos sujeitos processuais, no caso. Isto é, não resulta da lei que sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos processuais em concreto o justificam, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça.
O que a lei prevê é que “sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça”.
Daí que, salvo melhor opinião, não decorre da lei que ao Ministério Público se imponha uma ponderação, em concreto, sobre a necessidade do segredo de justiça (se, em concreto, se justificar...) ( ).
Ora, isto bem se enxerga se tivermos em mente que o Ministério Público só excepcionalmente agasalhará, na fase inicial do inquérito, elementos que lhe permitam efectuar uma valoração concreta da necessidade do segredo de justiça para salvaguarda dos interesses da investigação ou mesmo dos direitos dos sujeitos processuais. Daí que, se bem vemos, o entendimento sobre a aplicação do segredo de justiça, pelo menos durante a fase inicial do inquérito, terá de alicerçar-se, as mais das vezes, na natureza do crime a investigar, isto é numa avaliação abstracta dos inconvenientes para os interesses da investigação que a publicidade abarca.
Ora, é certo e sabido que tais inconvenientes já não poderão ser suprimidos com o decretamento, numa fase ulterior do procedimento, do segredo de justiça. Depois de iniciado um inquérito público (publicidade externa e interna), o efeito da publicidade torna-se para todos os efeitos irreversível. Os interesses públicos e os interesses particulares associados à realização da justiça penal, servidos pelo segredo de justiça, já não poderão ser devidamente defendidos pelo posterior decretamento do segredo de justiça.
Contudo, já o contrário é verdadeiro. O segredo de justiça pode, a qualquer momento do inquérito, ser levantado (cf. n.ºs 4 e 5 do art. 86.º do Código de Processo Penal). O Ministério Público, oficiosamente, e já sem necessidade de obter o “aval” do juiz de instrução, pode, a qualquer momento do inquérito, determinar o levantamento do segredo de justiça. Igualmente o juiz de instrução pode, a requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, decidir do levantamento do segredo de justiça (por despacho irrecorrível).
Daí que não se apresente ilegítima ou desrazoável a Directiva de 09JAN2008, do Senhor Procurador Geral da República (remetida com o Ofício-Circular n.º 5/2008, de 15JAN2008) no sentido de que “sempre que esteja em causa investigação relativa aos crimes previstos no artigo 1.°, alíneas j) a m) do Código de Processo Penal, na Lei n.º 36/94, de 29SET, e na Lei n.º 5/2002, de 11JAN, o Ministério Público determinará, no início do inquérito, a sujeição do mesmo a segredo de justiça, nos termos do art. 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal”.
Por sua vez, a Ex.ma Senhora Procuradora Geral Distrital de Lisboa pelo seu Despacho n.º 03/08 de 03JAN2008, maxime no seu ponto 2 subordinado à epígrafe “Segredo de justiça e crimes de catálogo” consagra: “O Ministério Público determinará, no inicio do inquérito, a sujeição deste a segredo de justiça, que submeterá a validação judicial, sempre que esteja em causa investigação relativa aos crimes previstos no artigo 47 nº 1 do Estatuto, no arte 1.º alíneas j) a m) do Código de Processo Penal, na Lei n.º 36/94, de 29SET e na Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro, sem prejuízo de o fazer também em situações não abrangidas pelas hipóteses anteriores, desde que, em concreto, o magistrado identifique a necessidade de sujeição a segredo.”
Ora, a Directiva do Senhor Procurador Geral da República como sugere Paulo Dá Mesquita ( ) “[…] [pode] repercutir-se de forma transparente na conformação do processo decisório singular do magistrado que assume a intervenção no processo, por essa via reforçada no plano da legitimação pela fonte da directiva e a própria unidade de actuação prosseguida […]”.
De notar, ainda, que a Lei n.º 38/2009, de 20JUL, ao definir os objectivos, prioridades e orientações de política criminal para o biénio de 2009-2011, considerou, entre os crimes de prevenção e investigação prioritária, o crime de tráfico de estupefacientes [cf. art.º 3.º alínea f)] atribuindo competência ao Procurador-Geral da República para aprovar directivas e instruções genéricas destinadas a fazer cumprir aquelas prioridades, as quais, nos termos do respectivo Estatuto, vinculam os Magistrados do Ministério Público.
Ora, na investigação desses crimes, o Ministério Público procede logo no início do inquérito à determinação da sujeição a segredo de justiça do inquérito.
O que espelha uma ponderação abstracta da necessidade do segredo de justiça, em função da natureza do crime.
É a natureza do crime que justifica a derrogação do princípio da publicidade, assegurando-se uma investigação da notícia do crime que não corra o risco de ser perturbada ou mesmo prejudicada por factores exteriores. Ao mesmo tempo tutela-se, de forma efectiva, a dignidade das pessoas, especialmente, das vítimas mas, ainda, do(s) arguido(s), pela efectiva protecção que o segredo de justiça confere à presunção de inocência do(s) arguido(s), o que é também uma forma de lhe garantir o direito ao bom nome e reputação.
Cabe aqui relembrar que o que está em causa na decisão do Ministério Público, proferida nos termos do n.º 3 do art. 86.º do Código de Processo Penal é a publicidade externa do inquérito, ou seja, aquela que se estende à generalidade das pessoas, àquelas que são exteriores à relação processual.
O segredo interno não é uma consequência necessária ou automática decorrência do segredo externo. Há várias situações de quebra parcial de segredo, ou seja, em que se mantém o segredo externo mas já não o segredo interno.
Mantendo-se o segredo externo, o segredo interno é derrogado:
- No caso de requerimentos do arguido, do assistente, do ofendido, do lesado e do responsável civil de acesso aos autos, deferidos pelo Ministério Público (art. 89.º, n.º 1);
- Por decisão (irrecorrível) do juiz, favorável ao requerente, quando o Ministério Público se tenha oposto ao acesso (art. 89.º, n.º 2);
- No caso de decurso do prazo do inquérito sem prorrogação judicial do segredo ou esgotadas as prorrogações judiciais do mesmo (art. 89.º, n.º 6);
- Por decisão do Ministério Público, em casos específicos (art. 86.º, n.ºs 9 e 10).
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O interesse público na transparência da justiça e o escrutínio público do funcionamento da justiça compadece-se com a sujeição a segredo de justiça - sempre limitada no tempo - duma fase processual essencialmente investigatória.
A decisão do Ministério Público de sujeitar a segredo de justiça, ab initio, um inquérito, numa avaliação dos interesses da investigação que são dados pela natureza do crime a investigar, não representa uma solução desequilibrada nem, como vimos, legalmente rejeitada.
O juiz de instrução, para não validar a decisão do Ministério Público de afastar a regra da publicidade do inquérito, nos termos do n.º 3 do art. 86.º do Código de Processo Penal, terá de dispor de elementos que o levem a rejeitar essa solução por outros interesses juridicamente relevantes ditarem diferente resolução do conflito.
In casu pelo Ministério Publico foi determinado que o processo ficasse em segredo de justiça, com fundamento numa Directiva do Senhor PGR, atendendo ao tipo legal que integra o objecto da investigação (crime de tráfico de estupefacientes, da previsão do art. 21.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22JAN, o se insere no contexto de criminalidade altamente organizada [cf. alínea m) do art.º 1.º do Código de Processo Penal].
Entretanto, o senhor Juiz de Instrução proferiu despacho de 29SET2010 (cf. fls. 129-132) no qual não julgou válido o despacho em causa, determinando-se assim que o processo ficasse público.
Inconformado, recorreu o Ministério Público na 1.ª instância.
A este respeito para além do que já acima deixámos expresso, e a essa luz, importa em suma acrescentar o seguinte:
(i) O Juiz de Instrução Criminal, ao validar ou não o segredo de justiça cuja aplicação foi determinada pelo Ministério Público, não pode deixar de ter presente que se trata exactamente de “validar” e não de “determinar” (o que já foi feito) o que postula atitudes e competências diferentes.
(ii) Ao Ministério Público compete, apreciando os parâmetros legais e tendo presente que está num domínio e numa fase de investigação cuja condução lhe pertence, determinar se a aplicação do segredo de justiça é necessária à investigação, à protecção das vítimas ou do(s) arguido(s), e não é excessivamente onerosa.
(iii) Ao juiz de Instrução não compete, ao validar essa determinação, substituir-se ao Ministério Público no juízo que a este cabe, mas com bom senso e parcimónia, verificar se do seu ponto de vista de juiz das liberdades, existem elementos concretos que permitam afirmar o carácter excessivamente gravoso, desproporcionado daquela determinação.
(iv) A responsabilidade do Juiz de Instrução tem a ver com o equilíbrio e a ponderação entre as exigências da investigação (aceitando, à partida, que essas exigências são como o Ministério Público as configura), por um lado, e o direitos de defesa do(s) arguido(s), por outro lado; e não o juízo e ponderação a respeito dos interesses da investigação, por si só.
(v) Nessa ponderação entre os interesses da investigação encabeçados pelo Ministério Público e os direitos de defesa do(s) arguido(s), deve ter em conta se está perante situações reais de perigo de lesão grave destes direitos, como acontece v.g. no caso de aplicação de medida de coacção de prisão preventiva, ou se não o sendo, os direitos de defesa do(s) arguido(s) têm um peso menor, por não comprometidos por espera por fases ulteriores do processo, essas sim já dominadas pelo princípio do contraditório.
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Ora, in casu, das ocorrências relevantes acima fixadas e da globalidade dos elementos de prova constantes da certidão (encontrando-se já incorporado outro inquérito acima apontado) emerge o esforço de investigação por parte do O.P.C., maxime através das intercepções e apreensões no local da prática do crime de tráfico de estupefacientes levadas a efeito em 01JUN2010, 19AGO2010 e 16SET2010 a fim de apurar a dimensão, estrutura organizativa e identificação dos autores do indiciado crime de tráfico de estupefacientes.
Assim, face a todos os elementos para estes autos carreados e que consubstanciam a certidão de fls. 20-146 [contendo informação relevante dos visados, nomeadamente, anteriores processos-crime pela prática por eles de idêntico crime (tráfico de estupefacientes); e informação de serviço lavrada pela P.S.P. que aponta, com precisão, quais os visados na presente investigação como começou e se desenvolveu e labor tido no carrear paulatino da prova para os autos com vista a estabelecer ligação entre os visados procurando descobrir o papel de cada um deles, apontando dúvidas investigatórias que carecem de ser removidas por trabalho de campo], ao que tudo indica a eficácia da investigação ficará embaraçada e comprometida caso o segredo de justiça não seja validado, permitindo-se aos visados a tomada de conhecimento das zonas geográficas onde o O.P.C. tem levado a efeito as diligências de investigação em curso e todas as que vierem a reputar-se necessárias para a investigação em causa.
Assim, a decisão recorrida quando sustenta que não está concretizado porque motivo interessa à investigação que os autos se mantenham em segredo de justiça, olvida os elementos para os autos carreados plasmados nas diligências de investigação já levadas a efeito e neles documentadas e que fluem das ocorrências relevantes acima fixadas e posterga os conhecimentos de experiência comum quanto a este tipo de situações de tráfico de estupefacientes configurado como crime de perigo abstracto.
Ora, uma reflexão sobre o segredo de justiça não pode estar desligada dos princípios gerais que estruturam o processo penal no nosso país e de considerações de política criminal, pois só com tais pressupostos axiomáticos se compreenderá o alicerce e os marcos daquele instituto.
Depois do que já acima apontámos, para não sermos maçadores, no essencial e para o que agora releva, o art. 86.º do Código de Processo Penal reza assim:
“1 — O processo penal é, sob pena de nulidade, público, ressalvadas as excepções previstas na lei.
2 — O juiz de instrução pode, mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido e ouvido o Ministério Público, determinar, por despacho irrecorrível, a sujeição do processo, durante a fase de inquérito, a segredo de justiça, quando entenda que a publicidade prejudica os direitos daqueles sujeitos ou participantes pro-cessuais.
3 — Sempre que o Ministério Público entender que os interesses da investigação ou os direitos dos sujeitos processuais o justifiquem, pode determinar a aplicação ao processo, durante a fase de inquérito, do segredo de justiça, ficando essa decisão sujeita a validação pelo juiz de instrução no prazo máximo de setenta e duas horas.
4 — No caso de o processo ter sido sujeito, nos termos do número anterior, a segredo de justiça, o Ministério Público, oficiosamente ou mediante requerimento do arguido, do assistente ou do ofendido, pode determinar o seu levantamento em qualquer momento do inquérito.
5 — No caso de o arguido, o assistente ou o ofendido requererem o levantamento do segredo de justiça, mas o Ministério Público não o determinar, os autos são remetidos ao juiz de instrução para decisão, por despacho irrecorrível [...]”.
Este regime, como vimos, quase subverte o figurino que antes vigorava, cuja regra era a do segredo de justiça durante o inquérito.
Todavia este regime da publicidade e do controle judiciário entra em enervamento conflituante com princípios estruturantes do processo penal, como o da autonomia do Ministério Público, o princípio do acusatório (o qual se traduz, no plano metodológico, nomeadamente, na separação do processo nas fases de acusação e julgamento, no plano orgânico, na direcção de cada uma dessas etapas por uma entidade distinta: o que significa diferenciação entre as entidades incumbidas da acusação e da instrução ou do julgamento), o princípio da presunção de inocência do arguido e, naturalmente, pode pôr em causa direitos dos próprios ofendidos, das testemunhas e da eficácia da acção penal.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, ( ) “A estrutura acusatória do processo supõe uma fase de investigação, secreta, sem contraditório, dominada pelo Ministério Público, e uma fase de julgamento, pública, com contraditório, dominada pelo juiz, e uma separação funcional e orgânica entre estas duas fases (Acs do TC n.º 7/87, n.º 23/90 e n.º 581/2000)”.
E acrescenta este comentador, ancorando-se em Figueiredo Dias: “O arguido e o seu advogado têm o direito de ser informados, o mais cabalmente possível, dos factos que são imputados e dos fortes indícios que sobre ele pesam. Mas se disse já, e procurei justificar, a minha opinião de que durante o inquérito o segredo de justiça deve persistir, só posso reafirmar que não tem direito à consulta do processo. Qualquer outra solução implicaria uma alteração da estrutura básica do nosso processo penal que, já disse, não poderá contar com a minha concordância.”
O segredo é essencial para a investigação, é aquilo mesmo que serve de razão ao próprio inquérito.
No inquérito, o princípio da publicidade interna e externa não se pode afirmar da mesma maneira que se justifica na fase da instrução, ou no fim do inquérito. Ali instala-se uma espécie de dialéctica negativa, na qual a conformidade prática dos objectivos processuais e a consideração dos direitos conflituantes intrínsecos ao inquérito se traduz numa limitação do âmbito da publicidade, de modo a que a regra da publicidade só se deverá asseverar com um estatuto residual ou na dimensão negativa própria daquela dialéctica: a recusa da publicidade como algo de valioso.
Ora, a regra da publicidade apresenta bem mais inconvenientes do que vantagens. Com efeito, para além do que ficou dito quanto ao respeito da autonomia do Ministério Público durante o inquérito, a própria defesa da confidencialidade de peças processuais e da preservação das provas, a defesa da presunção de inocência, podemos facilmente conceber hipóteses em que nem ao Ministério Público (e autoridades policiais) convém revelar elementos essenciais para o bom termo da investigação criminal ou em que tais entidades ainda não dispõem de elementos de informação e/ou de prova que permitam orientar o rumo da investigação. Assim sucederá, por exemplo, no caso vertente pelas razões que acima apontadas ficaram pela singela razão que necessário se tone a apurar a dimensão, estrutura organizativa e identificação dos autores do indiciado crime de tráfico de estupefacientes. Na verdade, se bem vemos, a publicidade pode-se revelar fortemente danosa para a investigação em que fluem indícios de se estar perante uma certa estrutura organizativa, e pelo mesmo ou pelos mesmos arguidos, situações estas que muitas vezes o Ministério Público ou as autoridades de investigação não estão em condições de revelar, seja porque ainda faltam elementos, seja porque a sua divulgação no inquérito (veja-se a obrigação imposta ao Ministério Público de fundamentar concretamente as razões que sustentam o segredo de justiça) poderia tornar mais difícil ou impossível a investigação de outros crimes ou o estabelecimento das diversas responsabilidades criminais v.g. autoria, cumplicidade, associação criminosa). No presente caso de investigação de tráfico de estupefacientes só uma investigação insistente e passo a passo pode desvelar a contextura do enredo a que os agentes se dedicam, de tal modo que uma manifestação precoce dos papéis dos agentes ou dos factos sob investigação poderá comprometer o êxito da actuação policial / judicial.
Nestes particular basta uma consideração de ordem prática para ver os efeitos perniciosos que a publicidade do inquérito pode trazer para a investigação em termos de contaminação e/ou eliminação da prova.
Todos sabemos que muitas vezes a investigação avança passo a passo, por acumulação, a realização de uma diligência arrasta a necessidade de outras diligências. Por exemplo, a inquirição de uma dada pessoa determina a necessidade de ouvir outra pessoa, ou de efectuar uma busca ou um exame. Ora, se pessoas estranhas à investigação tiverem conhecimento do teor daquela primeira declaração, poderão frustrar ou alterar a eficácia das diligências seguintes, por exemplo pressionando a pessoa que deve ser ouvida, eliminando vestígios do crime, retirando ou destruindo objectos ou dados comprometedores. Nesta ordem de ideias se o Ministério Público tiver de fundamentar concretamente as razões para a aplicação do segredo de justiça, poderá estar a dar a tais pessoas as informações para elas diminuírem ou destruírem a prova da investigação.
Tem claramente razão Paulo Pinto de Albuquerque quando afirma que ( ) “A consagração de um regime de segredo de justiça que o subverte, o coloca como excepção onde anteriormente representava a regra e praticamente o suprime, não pode deixar de ser considerada uma protecção 'desadequada' do segredo de justiça. Acresce que a declaração de publicidade externa do inquérito tem um efeito adicional profundamente 'desadequado': ele determina a possibilidade de os autos que ainda estão na fase de investigação serem consultados fora da secretaria, não só por sujeitos processuais, mas até por pessoas que não são sujeitos processuais, como o ofendido (artigo 89.º, n.º 4), sendo certo que uma ponderação equilibrada dos vários interesses em jogo imporia solução inversa (como resulta do acórdão do TC n.° 117/96)”.
No mesmo sentido se manifesta Frederico de Lacerda da Costa Pinto ( ): “não há investigação criminal bem sucedida, em especial na criminalidade organizada, complexa ou sofisticada, sem uma envolvente mínima de segredo e não pode haver uma acusação seriamente sustentada se, antes de a mesma ser deduzida, a investigação de apoio tiver sido confrontada com manipulação ou destruição das provas, adulteração dos factos e ocultação de eventuais testemunhas”. Por isso, conclui, a primeira fase, do inquérito, terá que ser tendencialmente secreta.
E assim se compreende e justifica a aludida Directiva do Senhor Procurador Geral da República de 09JAN2008, que, como vimos, determina que “sempre que a investigação tenha por objecto os crimes previstos no art. 1°, alíneas i) a m), do Código de Processo Penal, na Lei n.º 36 / 94, de 29SET, e na Lei n.º 5 / 2002, de 11JAN [art. 1.º Âmbito de aplicação 1 — A presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado relativa aos crimes de: a) Tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21.º a 23.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro], o Ministério Público determinará, no início do inquérito, a sujeição do mesmo a segredo de justiça, nos termos do art. 86.º, n.º 3, do Código de Processo Penal”.
Pelo que dito fica, afigura-se-nos que nesta sede a intervenção do juiz de instrução na definição do segredo de justiça na fase de inquérito tem forçosamente como limites a autonomia do Ministério Publico e a eficácia da acção de investigação, devendo por isso restringir-se aos casos em que claramente a investigação não pode ser comprometida, ou em que não haja riscos para a presunção da inocência, a segurança das testemunhas e de outros intervenientes processuais.
No caso em apreço, está em investigação um daqueles crimes referidos na Directiva. E sem dúvida a natureza dos factos recomenda, regra geral, que o segredo de justiça é o que melhor permite preservar a eficácia da investigação e a segurança das pessoas (v.g. testemunhas).
Face aos factos concretos que constam dos autos de notícia, e demais elementos para estes autos carreados e acima espelhados nas ocorrências relevantes que retratam diligências de investigação, existem a nosso ver motivos sérios para que o processo se mantenha em segredo de justiça.
E no caso específico não vemos nos autos algo que aconselhe a derrogação deste entendimento.
Por tudo o que dito fica o presente recurso vai a bom porto.
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3. DISPOSITIVO
Perante tudo o que exposto fica, acordam os Juízes que compõem a 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:
Em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público, e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido que deverá ser substituído por outro, de validação da decisão do Ministério Público de sujeitar o inquérito a segredo de justiça.
Sem taxa de justiça.
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Lisboa, 23FEV2011 (processado e revisto pelo primeiro signatário, que rubrica as restantes folhas)
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(Rui Gonçalves)
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(Conceição Gonçalves)