Proc. 60/11.9S9LSB.L1 3ª Secção
Desembargadores: João Lee Ferreira - - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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1.Nestes autos de processo especial abreviado 60/11.S9LSB do 2.º juízo, 3ª secção, do Tribunal de Pequena Instância Criminal de Lisboa, o arguido A sofreu condenação pelo cometimento em 24 de Fevereiro de 2011 de um crime de desobediência previsto e punido no artigo 348.º n.º 1, alínea a) do Código Penal, com referência ao artigo 152.º n.º 3 do Código da Estrada na pena de cento e vinte dias de multa, à razão diária de seis euros e na pena acessória de proibição de conduzir pelo período de quinze meses.
2. O arguido, inconformado com a sentença, vem interpor recurso da decisão e da motivação extrai as seguintes conclusões (transcrição):
“1ª. O arguido/recorrente foi inicialmente submetido ao teste em analisador qualitativo de ar expirado, porém ao ser sujeito ao analisador, não conseguiu, por três vezes, efectuar o referido teste.
2ª. Face a essa impossibilidade, não restava outra solução legal que não fosse a de submeter o arguido/recorrente a colheita de sangue para análise do teor de álcool no sangue, como impõe de forma expressa, clara e literal o artigo 4.º, n.º 1 da Lei n.º. 18/2007, de 17 de Maio, pensamento sufragado pela mais recente Jurisprudência do Tribunal Constitucional (cfr. processo n.. 289/10, da sua 1ª. Secção, disponível em: www.tribunalconstitucional.pt ).
3ª. O procedimento de realização do teste de alcoolemia que os autos documentam está eivado de ilegalidade formal, nomeadamente porque não podia o agente de autoridade fiscalizador ter processado a interrupção da realização do teste de ar expirado.
4ª. No caso em análise, a ordem de sujeição aos exames de pesquisa de álcool no sangue, e que se diz desrespeitada, está ferida do vício de ilegalidade formal, e assim ao condenar o arguido/recorrente como autor material de um crime de desobediência, a Senhora Juíza do Tribunal a quo violou o preceituado no artigo 348°., n°. 1 do Código Penal, os artºs. 152° n°. 3, 153°., n.º. 8, 158°., n°. 1, do Código da Estrada. e o art°. 4 n°. 1, da Lei n.º. 18/2007, de 17 de Maio;
5ª.O artigo 152°., n.º. 3, do Código da Estrada, é expresso e literal ao referir que serão punidas por crime de desobediência as pessoas que recusem submeter-se às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool e por substâncias psicotrópicas, sendo que esta recusa teria de ser inequivocamente activa, no sentido do agente declarar não aceitar de todo, rejeitar, opor-se ou não se prestar realização dos exames de detecção de álcool.
6ª. O arguido/recorrente, enquanto condutor, não recusou ser submetido aos exames de pesquisa de álcool no sangue, pois que processou e realizou todos os que lhe foram determinados.
7ª. Por outro lado, também não resultou demonstrada em audiência de julgamento qualquer intenção dolosa do arguido enquanto elemento subjectivo do crime que lhe é imputado, no sentido de obstar ou impedir a realização de exames de pesquisa de álcool no sangue.
8ª. Não se verificando preenchidos (contrariamente ao exarado na douta Sentença em crise), os pressupostos inerentes ao crime de desobediência ao abrigo do qua o arguido/recorrente foi condenado, nos termos do art°. 346°, n°. 1, al. a), do Código Penal, e art°. 158°. n°. 3, do Código da Estrada, pois nenhuma ordem violou ou não cumpriu de forma dolosa, assim também tendo a Senhora Juiza a quo violado estes preceitos legais, aqui incluído o art. 1°., n.ºs. 1 e 3, do Código Penal.
9ª. Em último recurso, e de acordo com uma análise extremada dos elementos probatórios produzidos, deveria o Tribunal a quo ter absolvido o arguido/recorrente da prática de um crime de desobediência, ao abrigo do preceituado no art°. 32°., no. 2, da Constituição da República Portuguesa, e do princípio ‘in dubio pro reo”, pelo que não o tendo feito, também violou esta disposição legal (principio geral do nosso ordenamento jurídico penal).
10ª. Por último, e sem prescindir, são manifestamente excessivas e desproporcionadas, as condenações A) - Na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa. à taxa diária de €6,00 (seis euros), no montante global de €720,00 (setecentos e vinte euros) ou. subsidiariamente nos termos do art°. 49°., do CP. em 80 (oitenta) dias de prisão; B) - Mais a condenação do arguido na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de ‘15 (quinze) meses, nos termos do art°, 69°., n°. , ai. a), do C.P. Cfr. nesse sentido o Ac. da Relação do Porto, referente ao processo n.º 158/09.3GFPRT.P1-4 Secção, disponível em: http:!/www.trp. ptljurisprudenciaitij.html.
11ª.Pois que, sempre se reputaria como adequada a aplicação da pena acessória de inibição de conduzir veículos a motor por prazo não superior a 3 (três) meses, o que se requer a Vossas Excelências, sendo cedo que esta sanção acessória já constituiria um aviso sério para o arguido recorrente, e cumpriria na íntegra as necessidades de prevenção gera! e especial inerentes à aplicação desta pena acessória.
12ª. Porque assim não decidiu, a Senhora Juíza do Tribunal a quo também violou o preceituado nos arts. 69.º. e 71°., do Código Penal.
13ª Finda-se, requestando a revogação da douta Sentença recorrida e a sua substituição por outra que o absolva do crime de desobediência ou, pelo menos, que fixe a pena acessória no mínimo de 3 (três) meses.”
O recurso seguiu termos após resposta do Ministério Público e despacho de admissão no tribunal recorrido.
Neste Tribunal da Relação, a Exmª Procuradora-Geral Adjunta apôs o seu visto.
Vêm agora os autos para exame preliminar, nos termos do artigo 417º do Código de Processo Penal.
2. Tendo em conta o teor das conclusões do recurso, a questão a decidir nestes autos compreende-se no enquadramento jurídico dos factos provados na audiência de julgamento de primeira instância e, se for o caso, na escolha e determinação da pena principal e da pena acessória.
Contudo, suscita-se uma questão prévia susceptível de obstar ao conhecimento do recurso.
A audiência de julgamento em processo especial abreviado decorreu nos termos constantes da respectiva acta de fls. 73 a 76, procedendo-se a registo áudio em suporte digital das declarações e depoimentos. Finda a fase de produção de prova e realizadas as alegações, a sentença foi elaborada e proferida oralmente. Em consequência, a Mmª juíza ditou para a acta o segmento do dispositivo da sentença, conforme determina o artigo 389º-A, aplicável por força do artigo 391.º F, ambos do Código de Processo Penal, na redacção da Lei n.º 26/2010, de 30 de Agosto.
O recurso seguiu os seus regulares termos sem que tivesse sido efectuada a transcrição do registo áudio referente à sentença.
Não existe norma processual estrita que o imponha, mas a consideração dos princípios fundamentais e das normas referentes ao exercício do direito ao recurso, tramitação e conhecimento da impugnação em segunda instância, impõem que, havendo recurso em processo sumário ou abreviado, se torne indispensável a transcrição integral da sentença.
Como escreveu o Desembargador Cruz Bucho no estudo “A Revisão de 2010 do Código de Processo Penal Português pp, 122 e 123,
“Repare-se que nos termos do n.º4 do artigo 425.º é correspondentemente aplicável aos acórdãos proferidos em recurso o disposto nos artigos 379.º e 380.º, pelo que tais acórdãos são nulos quando não contiverem as menções referidas no artigo 374.º, n.º2 e 3 alínea b) do CPP, entre as quais se inscreve a enumeração dos factos provados e não provados bem como a exposição quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal. Por isso, as mais das vezes o tribunal de recurso vê-se obrigado a transcrever os factos provados e não provados e a respectiva motivação. Só depois, está habilitado a conhecer, sucessivamente, das nulidades da sentença (artigo 379.º), dos vícios do artigo 410.º, da impugnação da matéria de facto e das questões de direito.
Ora, não se vê que nessa tarefa seja exigível ao tribunal de recurso, nem à secretaria nem muito menos ao desembargador relator, a prévia transcrição da gravação da sentença.
Tudo indica, pois, que em caso de recurso a sentença deva ser transcrita ainda no tribunal a quo.
Resolvida esta primeira dificuldade logo outra lhe surge associada: a quem compete essa transcrição e quem deve suportar os seus custos. Veja-se o que aconteceu com o problema de saber a quem competia a transcrição da prova, apenas resolvido com o Ac. do STJ de uniformização de jurisprudência n.º 2/2003, de 16 de Junho (in DR n.º 25, I série-A, de 30-1-2003).
Parece-nos que tal tarefa deverá caber ao tribunal, através da respectiva secretaria, não sendo exigível o pagamento de qualquer importância” (acessível in http://www.trg.mj.pt/Estudos/Reforma_de_2010_CPP.pdf ) .
O entendimento expresso neste estudo foi seguido por Luís de Lemos Triunfante e por Helena Martins Leitão, em “As alterações de 2010 ao Código Penal e ao Código de Processo Penal, CEJ, Coimbra Editora, 2011, pp. 373 e 395, respectivamente, e no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 07.04.2011, processo 1343/10.0PGLRS.L1-9, concluindo que “tendo havido recurso, a gravação da sentença deve ser integralmente transcrita, em obediência ao disposto no nº 5 do artº 389º-A do Código de Processo Penal”.
No mesmo sentido decidiu o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 18-05-2011, processo 137/10.8GASBC.C1, numa situação processual similar :
“relativamente à questão do exercício do direito de recorrer e sobretudo o modo como o recurso é posteriormente conhecido pelo Tribunal Superior, é evidente que aquele conhecimento do recurso terá que incidir sobre a transcrição do registo da sentença oralmente proferida a ser efectuado pelos serviços do Tribunal e depois de confirmada pelo juiz que elaborou a decisão. Efectuada esta operação que naturalmente irá permitir, efectivamente, a garantia do direito constitucional ao recurso através o seu conhecimento pelo Tribunal Superior, a plenitude do direito de recorrer fica assim consagrada”.
Também na decisão sumária do Tribunal da Relação de Coimbra de 07-09-2011, processo 53/11.6GAMIR.C1 se entendeu que,
“A transcrição da sentença recorrida é elemento essencial da garantia do direito de recurso, já que o conhecimento do recurso terá necessariamente como objecto a transcrição do registo da sentença oralmente proferida em primeira instância, transcrição que deverá ser efectuada pela secretaria no tribunal recorrido, devendo o juiz que elaborou a decisão confirmar a fidedignidade da transcrição».
Mais recentemente, na decisão sumária do Tribunal da Relação do Porto de 28-09-2011, processo 11/11.0PFPRT.P1, concluiu-se igualmente que,
“interposto recurso de sentença proferida oralmente nos termos do artigo 389.º do C.P.P. “o tribunal a quo deverá transcrever integralmente a sentença recorrida, juntá-la aos autos, após a sua fidedignidade ser atestada pelo juiz que a proferiu e só depois remeter o respectivo processo para o tribunal ad quem”.
Em face dos argumentos expostos, podemos concluir:
1- A tramitação legalmente prevista e o modo de funcionamento do tribunal superior não prescindem da enunciação escrita dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão, pelo que o conhecimento do recurso, quer em matéria de direito quer em matéria de facto, terá necessariamente como objecto uma transcrição do registo áudio da sentença;
2-Em caso de recurso, a sentença proferida oralmente em processo sumário ou abreviado nos termos do artigo 389º-A do Código de Processo Penal deve ser transcrita antes do envio do processo ao tribunal superior;
3- A omissão da transcrição integral da sentença constitui uma irregularidade processual porque afecta de forma relevante a apreciação e conhecimento do recurso pelo tribunal de segunda instância.
4. Pelos fundamentos sumariamente enunciados, ao abrigo do disposto nos artigos 417º nº 6 alínea a) do Código de Processo Penal, julgo procedente a questão prévia e decido remeter os autos ao Tribunal recorrido para que seja efectuada a transcrição integral da sentença proferida oralmente nestes autos.
Sem tributação.
Notifique.
Lisboa, 26 de Outubro de 2011.
Texto elaborado em computador e revisto pelo signatário
João Carlos Lee Ferreira