I – Embora o Código de Processo Penal seja aplicável ao processo para concessão da liberdade condicional sempre que o contrário não resulte do «Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade» (artigo 154.º do CEPMPL), um despacho que não concedeu a liberdade condicional que não se encontre devidamente fundamentado, nos termos impostos pelo artigo 146.º, n.º 1, do CEPMPL, não enferma de nulidade mas de mera irregularidade uma vez que as nulidades são típicas (artigo 118.º do Código de Processo Penal) e o n.º 1 do artigo 379.º deste Código apenas se aplica às sentenças proferidas na sequência de uma audiência de julgamento e não também aos meros despachos, por mais relevantes que eles sejam.
II – Isto não significa que a irregularidade do despacho por falta de fundamentação não possa determinar a sua invalidade, nos termos definidos pelo artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Proc. 4033/10.0TXLSB 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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Processo n.º 4033/10.0TXLSB – 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – No dia 26 de Janeiro de 2011, a Sr.ª juíza colocada no 2.º Juízo do Tribunal de Execução de Penas de Lisboa proferiu o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
1. Relatório
O Recluso e a Pena:
I, nascido a 00-00-00, filho de B e de M, natural da Guiné e actualmente preso no Estabelecimento Prisional de Sintra,
A cumprir uma pena de 5 anos de prisão, pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, em que foi condenado por sentença proferida por um Tribunal da Noruega, revista e confirmada pelo Tribunal da Relação de Lisboa.
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I. encontra-se ininterruptamente preso, para efeitos de cumprimento desta pena, desde o dia 23.10.2007.
Assim:
O ½ da pena ocorreu em: 23.04.2010.
Os 2/3 da pena ocorrem em: 23.02.2011.
Prevê-se o termo da pena para: 23.10.2012.
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Para a apreciação da eventual concessão da liberdade condicional ao recluso foi instaurado o presente processo.
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O Tribunal é o competente, inexistindo nulidades, excepções ou quaisquer questões prévias que cumpra conhecer ou que obstem ao conhecimento do mérito.
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Os autos mostram-se devidamente processados, mostrando-se instruídos.
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2. Motivação de facto e de direito
Antecedentes criminais: Não tem antecedentes criminais conhecidos.
Processos pendentes: Não lhe são conhecidos.
Comportamento prisional: Regular.
Actividade no E.P.: Frequenta o ano lectivo 2010/2011.
Medidas de flexibilização da pena: Está colocado em Regime Comum e nunca beneficiou de saídas ao exterior.
Apoio no exterior: Tem o apoio de um primo.
Projectos de vida: Verbaliza que em liberdade irá viver com o primo e tenciona trabalhar na construção civil, tendo apresentado declaração de promessa de trabalho.
Relativamente ao desvalor da sua conduta, ao crime e à pena: Assume a prática do crime, o qual justifica pela situação económica difícil que atravessava, num momento em que vivia na Noruega e não tinha trabalho.
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Reunido o Conselho Técnico os seus elementos, por unanimidade, emitiram parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional.
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Ouvido o Recluso declarou aceitar a liberdade condicional, caso a mesma lhe seja concedida.
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0 Ministério Público emitiu Parecer desfavorável à concessão da liberdade condicional.
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A liberdade condicional é uma medida de flexibilização da pena de prisão que visa criar um período de transição entre a reclusão prisional e a liberdade definitiva, durante o qual o condenado possa equilibradamente recobrar o sentido de orientação social enfraquecido por efeito da prisão e assim atingir adequada reintegração social, satisfazendo-se o disposto no art. 40.º n.º 1 do C. Penal, sob a epígrafe 'Finalidades das penas...' (cf. n.º 9 do preâmbulo do DL 400/82, de 23 de Setembro e Almeida Costa 'Passado, Presente e Futuro da Liberdade Condicional no Direito Português', in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Vol. LXV, 1989, pág. 433 e 434).
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Nos termos do disposto no art. 61.º n.ºs 1 e 2, do C.P., são pressupostos (formais) da liberdade condicional (ao ½ da pena) que:
a) O Recluso aceite ser libertado condicionalmente;
b) O Recluso tenha cumprido ½ da pena ou no mínimo 6 meses de prisão.
Por outro lado, são requisitos (substanciais) indispensáveis:
a) Ser '...fundadamente de esperar, atentas as circunstâncias do caso, a vida anterior do agente, a sua personalidade e a evolução desta durante a execução da pena de prisão, que o condenado, uma vez em liberdade, conduzirá a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes'; e
b) 'A libertação se revelar compatível com a defesa da ordem e da paz social'.
Por outro lado, para a liberdade condicional aos 2/3 da pena apenas é exigido o preenchimento do requisito (substancial) previsto na al. a) do art. 61.º do C.P. – cf. art. 61° n.º 3 do C.P.
Subsumindo os elementos constantes dos autos ao direito e, em especial, considerando a auscultação e votação dos elementos do Conselho Técnico e a percepção resultante da audição do Recluso, temos que:
– Está ultrapassado o cumprimento de metade da pena e cumpre dentro de menos de 1 mês os 2/3 da pena que tinha a cumprir; e
– Aceitou ser libertado condicionalmente.
No caso:
– Estão verificados os pressupostos formais de atribuição da liberdade condicional pelo decurso do ½ da pena;
– Tanto quanto se sabe, a libertação é compatível com a defesa da ordem e da paz social;
– E em breve estarão verificados também os pressupostos formais da liberdade condicional aos 2/3 da pena.
Mas, porque também relevantes para apreciação do mérito da liberdade condicional, importa também considerar as seguintes circunstâncias do caso, da vida anterior do agente, e da sua personalidade:
– Trata-se de um Recluso que vive em Portugal desde 19.. e que aqui não tem qualquer referência familiar consistente, nem agregado familiar próprio (tem apenas o apoio de um primo);
– Desde que veio para Portugal trabalhou na construção civil, embora num quadro de instabilidade e precariedade que o levaram a durante algum tempo ir trabalhar para Espanha e depois para a Noruega, onde cometeu o crime cuja pena cumpre;
– Vem realizando um percurso prisional regular, sem particular mérito ou desmérito;
– Pode ainda evoluir ao nível da consciência crítica sobre o tipo de crime;
– O seu regresso ao meio livre deve ser feito progressivamente, através de saídas jurisdicionais e administrativas, como forma de testar a sua capacidade de manter uma conduta socialmente responsável e de preparar de forma consistente o seu futuro, sendo que ainda não foi possível testar o seu comportamento através de saídas ao exterior.
Pelo que se disse concluímos que I. não tem ainda condições intrínsecas para 'fundadamente esperar' que, uma vez em liberdade, possa conduzir agora a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
Nestes termos, entendemos que o Recluso não reúne as condições subjectivas conducentes à sua libertação condicional, pelo que não deve beneficiar da medida excepcional de liberdade condicional.
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3. Decisão
Pelo exposto, nos termos do art. 61.º, n.ºs 1, 2 al. a), e 3 do Código Penal, não concedo a liberdade condicional ao Recluso I.
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Notifique e oportunamente comunique (artigo 177.º, n.º 3, do CEPMPL).
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Considerando que os 2/3 do cumprimento ocorrem dentro de menos de 1 mês, deverá ser efectuada nova avaliação das condições para a liberdade condicional decorridos 6 meses desta decisão (período mínimo que se julga necessário para eventualmente ocorrer alteração dos pressupostos de concessão da liberdade condicional – na verdade a ser efectuada nova apreciação da liberdade condicional em momento anterior, não seria de prever que ocorresse alteração significativa dos pressupostos da liberdade condicional, tanto mais que agora já se considerou a possibilidade de liberdade condicional aos 2/3 da pena).
Assim, em 26.04.2011, solicite o envio, no máximo em 45 dias, dos relatórios dos serviços prisionais e de reinserção social para nova apreciação da liberdade condicional.
2 – O condenado interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1.° Com o presente recurso o recorrente I pretende o reexame da matéria de facto, por se considerar que em face dos documentos, relatórios juntos, a decisão deveria ter sido proferida no sentido de dar como reunidas as condições subjectivas conducentes à sua liberdade condicional e, em consequência, beneficiar 'da medida excepcional de liberdade condicional.
2.° Considera ainda o recorrente que o despacho recorrido não fundamentou com o grau de exigência que se espera de uma fundamentação de uma decisão judicial, enfermando, assim do vício de falta de fundamentação, nos termos do art. 379.º, n.º 1, alínea a), do Código de Processo Penal.
3.° De igual modo o juízo feito quanto à satisfação das finalidades preventivas da pena violou o princípio da culpa, contemplado nos artigos 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e 40.º n.º 2 do Código Penal.
4.° Entendeu o Tribunal a quo que não obstante estarem verificados os pressupostos formais de atribuição da liberdade condicional, quanto às circunstâncias do caso, da vida anterior do agente e da sua personalidade, não tem o aqui recorrente as condições intrínsecas para 'fundamentar esperar', que, uma vez em liberdade, possa conduzir agora a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
5.° Contrariamente ao referido na decisão o recluso tem referências familiares consistentes, tendo desde a sua entrada em Portugal trabalhado na construção civil, de forma estável, factos que foram essenciais para a aquisição da nacionalidade portuguesa por naturalização. A concessão de nacionalidade por naturalização dependeu da verificação e comprovação dos meios de subsistência regulares, ligação efectiva e afectiva ao território nacional, não se vislumbrando, perante factos apresentados junto das entidades com atribuições para a concessão das sucessivas autorizações de residência e nacionalidade, um quadro de instabilidade e precariedade.
6.° O apoio familiar do seu primo quer durante o período de reclusão quer após a sua saída em liberdade está devidamente comprovada nos autos. O recorrente recebe as visitas deste com regularidade, sendo para casa deste que o recorrente irá residir, tendo sido junto aos autos o contrato de arrendamento da fracção, de forma a comprovar quer o local quer a coincidência entre a identidade do primo e do arrendatário, a saber, A..
7.° O apoio de Alfa Umaro Só foi fundamental aquando o processo de aquisição de nacionalidade por naturalização, mantendo o mesmo apoio no presente, estando disponível para o acolher em sua casa, bem como ajudá-lo na obtenção de trabalho, tendo sido junta aos autos declaração de promessa de trabalho a favor do aqui recorrente.
8.° O recorrente não tem antecedentes criminais nem processos pendentes.
9.° Contrariamente, o Tribunal a quo entendeu que:
O recorrente vive em Portugal desde 1997 e não tem qualquer referência familiar consistente;
Desde que veio para Portugal trabalhou num quadro de instabilidade e precariedade que o levaram a ir trabalhar para fora do país;
O percurso criminal é considerado regular, sem particular mérito ou demérito; Pode ainda evoluir ao nível da consciência crítica sobre o tipo de crime;
O seu regresso ao meio livre deve ser feito progressivamente, sendo que ainda não foi possível testar o seu comportamento através de saídas ao exterior.
10.° Acresce que, da leitura do despacho, não resulta minimamente explicado em que elementos se baseou o tribunal a quo, para concluir que o recorrente vem realizando um percurso criminal regular, sem particular mérito ou demérito. Salvo o devido respeito, este juízo para além de não estar fundamentado em factos, não é perceptível o alcance de um percurso criminal com mérito.
11.° O mesmo se impõe dizer quanto ao juízo feito pelo Tribunal a quo que '... pode ainda evoluir ao nível da consciência crítica sobre o tipo de crime'. Não existindo factos a sustentar tal juízo, indicia tal raciocínio que o relevante para a consciência crítica passará pelo tempo decorrido em regime de reclusão efectiva. Ora, não podendo ser este o único fundamento, a saber, o decurso do tempo, não poderá o mesmo alicerçar também o juízo de que uma vez em liberdade, possa conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes.
12.° Desde que foi detido, teve uma actividade relevante no E.P.L., como cozinheiro, e presentemente exerce funções de costureiro na lavandaria do E.P.S. cumulativamente com a frequência de aulas no mesmo.
13.° A culpa da acção do agente foi avaliada aquando a aplicação da medida concreta da pena, tendo em consideração as medidas de prevenção geral e especial neste tipo de crimes. Utilizar novamente os mesmos critérios para a avaliação da aplicação da liberdade condicional, viola o princípio da culpa, o que não se poderá admitir.
14.° Se a pena imposta tiver dado satisfação plena às necessidades de prevenção geral deve considerar-se que o cumprimento de metade dessa pena é suficiente para a defesa da ordem e da paz social.
15.° O recorrente foi condenado a 5 anos de prisão efectiva. Perante os factos comprovados pelos documentos juntos e já atrás referidos, as necessidades de prevenção geral devem considerar-se plenamente satisfeitas.
16.° Entende o recorrente que tem condições para conduzir a sua vida de forma consciente e cuidada, como estão reunidos os pressupostos formais e substanciais conducentes à sua libertação condicional.
Normas Jurídicas violadas
17.° O despacho recorrido violou o disposto no art. 379.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal, padecendo assim do vício de falta de fundamentação.
18.° O despacho recorrido violou o princípio da culpa, nos termos do artigos 29.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e 40.º, n.º 2 do Código Penal, devendo considerar-se satisfeitas as exigências de tutela do ordenamento jurídico, sendo de esperar um juízo de prognose favorável sobre o comportamento futuro do recorrente uma vez restituído à liberdade, artigo 61.º, n.º 2 do Código Penal.
Termos em que, e nos demais de direito, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a decisão recorrida, com as legais consequências.
3 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 27 a 37).
4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 104.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – I. interpôs, como se disse, recurso do despacho que não lhe concedeu a liberdade condicional.
Invocou, como primeiro fundamento desse recurso, a nulidade desse despacho a que considerou ser aplicável o disposto na alínea a) do n.º 1 do artigo 379.º do Código de Processo Penal.
Sobre essa questão deve, antes do mais, dizer-se que, embora o Código de Processo Penal seja aplicável ao processo para concessão da liberdade condicional sempre que o contrário não resulte do «Código da Execução das Penas e Medidas Privativas da Liberdade» (artigo 154.º do CEPMPL), um despacho dessa natureza que não se encontre devidamente fundamentado nos termos impostos pelo artigo 146.º, n.º 1, do CEPMPL não enferma de nulidade mas de mera irregularidade uma vez que as nulidades são típicas (artigo 118.º do Código de Processo Penal) e a referida disposição do processo penal apenas se aplica às sentenças proferidas na sequência de uma audiência de julgamento e não também aos meros despachos , por mais relevantes que eles sejam.
Isto não significa, porém, que a irregularidade do despacho por falta de fundamentação não possa determinar a sua invalidade, nos termos definidos pelo artigo 123.º do Código de Processo Penal.
Importa, por isso, verificar se o despacho recorrido padece de irregularidade por não se encontrar devidamente fundamentado.
A fundamentação desse despacho exige, nos termos do já citado artigo 146.º, n.º 1, do CEPMPL, que o juiz especifique os motivos de facto e de direito da decisão.
Ora, se analisarmos a decisão recorrida verificamos que a mesma, embora indique, em dois momento diferentes, os factos que tem por provados, não contém qualquer fundamentação dessa decisão, nem a mesma é sequer perceptível se se atender aos documentos que o tribunal podia valorar, que se encontram juntos a estes autos, nomeadamente ao relatório dos serviços prisionais , ao relatório dos serviços de reinserção social , à ficha biográfica dos serviços prisionais , ao certificado de registo criminal , ao auto de audição do condenado e aos documentos por ele apresentados .
Não se pode deixar de dizer que, para além de o relatório dos serviços prisionais ser, em muitos pontos, contraditório com o relatório dos serviços de reinserção social, não constam da acta da reunião do Conselho Técnico os esclarecimentos que os respectivos membros, por certo, deram à Sr.ª juíza nos termos do n.º 1 do artigo 175.º do CEPMPL.
Note-se ainda que o relatório dos serviços prisionais foi elaborado em 30 de Abril de 2010 e o relatório dos serviços de reinserção social encontra-se datado de 8 de Março do mesmo ano e o despacho recorrido foi proferido em 26 de Janeiro de 2011, ou seja, cerca de 9 meses depois, o que não é despiciendo tendo em conta os factores que são relevantes para a decisão a proferir.
Por isso, não pode este tribunal deixar de declarar a indicada irregularidade, invalidando o despacho proferido e determinando que seja substituído por outro que cumpra devidamente o dever de fundamentação imposto pelo n.º 1 do artigo 146.º do CEPMPL.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em declarar a irregularidade do despacho proferido e a sua consequente invalidade, determinando que o mesmo seja substituído por outro que cumpra devidamente o dever de fundamentação imposto pelo n.º 1 do artigo 146.º do CEPMPL.
Sem custas.
Lisboa, 6 de Abril de 2011
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)