I – Uma vez que o arguido não se encontrava a conduzir, não tinha acabado de conduzir, nem existia qualquer sinal de que ele o tivesse feito momentos antes, não tendo também a qualidade de peão interveniente num acidente de trânsito – alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 152.º e artigo 156.º do Código da Estrada – não impendia sobre ele a obrigação legal de se submeter às provas estabelecidas para a detecção do estado de influenciado pelo álcool.
II – Por isso, a sua recusa a submeter-se a tais provas não o fez incorrer na prática de um crime de desobediência simples – artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 do Código da Estrada.
Proc. 302/10.8PTSNT 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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Processo n.º 302/10.8PTSNT – 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – O arguido P. foi julgado no Juízo de Pequena Instância Criminal de Sintra e aí condenado, por sentença de 13 de Maio de 2011, pela prática de um crime de desobediência simples, p. e p. pelo artigo 348.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, com referência ao artigo 152.º, n.º 1, al. a), e n.º 3, do Código da Estrada, na pena de 90 (noventa) dias de multa, à taxa diária de € 5 (cinco euros), o que perfaz o quantitativo total de € 450 (quatrocentos e cinquenta euros) de multa, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 5 (cinco) meses.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
1. No dia 12 de Agosto de 2010, pelas 23:00 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 00-00-00, na Av…., em Agualva;
2. Nessas circunstâncias, em virtude de ter sido interveniente em acidente de viação, o arguido foi abordado por uma patrulha de elementos da PSP que lhe solicitaram que efectuasse o exame de despistagem de álcool no sangue, mediante ar expirado;
3. O arguido, porém, recusou-se, por diversas vezes, a efectuar o teste de despistagem de álcool no sangue, através de ar expirado, apesar de advertido de que tal recusa o faria incorrer na prática do crime de desobediência;
4. Não obstante tal advertência, o arguido manteve a recusa de se submeter a tal exame;
5. Ao actuar da forma supra descrita, sabia o arguido que se recusava a efectuar o teste de despistagem de álcool no sangue, encontrando-se ciente de que desobedecia a uma disposição legal que o impedia de recusar submeter-se a tais testes, tendo sido advertido das consequências legais em que incorria se persistisse na sua conduta;
6. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei;
7. Antes de iniciar a condução do veículo supra referido, o arguido ingerira bebidas alcoólicas;
8. O veículo referido em 1. é pertença do arguido;
9. O arguido exerce a profissão de motorista de longo curso, encontrando-se desempregado desde há cerca de dois anos;
10. Executa ocasionalmente biscates, na área da construção civil, pelos quais aufere rendimentos variáveis, e não concretamente apurados;
11. Tem um filho, de .. anos de idade, que reside com a respectiva progenitora;
12. O arguido reside com o seu pai, o qual se encontra reformado;
13. Possui, como habilitações literárias, o 6.º ano de escolaridade;
14. Confessou parcialmente os factos de que vem acusado;
15. Demonstrou arrependimento;
16. Tem antecedentes criminais, porquanto:
- Por sentença transitada em julgado a 20.09.2010, proferida no processo n.º 318/10.4PTSNT, do Juízo de Pequena Instância Criminal de Sintra, Juiz 2, desta Comarca da Grande Lisboa Noroeste, foi condenado pela prática, a 29.08.2010, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, na pena de 70 dias de multa, à taxa diária de € 5, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses.
O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:
O Tribunal fundou a sua convicção com base na conjugação dos meios de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento.
Concretamente, teve-se em consideração as declarações prestadas pelo arguido, que, apesar de afirmar encontrar-se arrependido, e ciente de que não podia recusar submeter-se ao teste de pesquisa de álcool no sangue que lhe foi solicitado pelos agentes da PSP, declarou que não se encontrava a conduzir o veículo em causa, o qual lhe pertence, e, por conseguinte, considerou que não lhe era devida a realização do teste de despistagem do álcool.
Ora, tais declarações do arguido, na parte em que negou ter conduzido o veículo em apreço, não se mostraram verosímeis e sinceras. Na verdade, o mesmo, aquando de tais afirmações, mostrou-se inseguro e vacilante, sendo certo, ainda, que o arrependimento que afirmou sentir não se coaduna com a circunstância, pelo mesmo afirmada, de nada ter a ver com a condução do seu veículo, nas circunstâncias supra elencadas. Nesta medida, tais explicações do arguido não se afiguraram honestas e credíveis.
Quanto ao depoimento da testemunha M., agente da PSP que acorreu ao local, na sequência de chamada telefónica relatando a ocorrência de acidente de viação em que foi interveniente o veículo do arguido e outra viatura, declarou ter chegado ao local e visto o arguido perto do veículo em causa, o qual se encontrava imobilizado perto da viatura com a qual se verificou a colisão, e apresentando ambos vestígios de embate. Acrescentou, ainda, que o arguido se encontrava na posse das chaves do seu veículo, bem como dos documentos de identificação respectivos, e que, por diversas vezes, se recusou a efectuar o teste de pesquisa de álcool no sangue, tendo por diversas vezes sido informado de que tal recusa o faria incorrer na prática de crime de desobediência.
Ora, atento o modo totalmente imparcial, isento e seguro como a testemunha descreveu a factualidade ocorrida, nos precisos termos que supra se deixaram expostos, e conjugando, ainda, tal depoimento com as declarações prestadas em julgamento pelo próprio arguido, não teve o Tribunal quaisquer dúvidas de que o mesmo, ao contrário do que afirmou (de modo vacilante e inseguro), conduziu o veículo em apreço, ao volante do qual teve um acidente de viação.
Quanto às circunstâncias, que resultaram provadas, de o arguido ter ingerido bebidas alcoólicas antes de iniciar a condução do veículo, teve o Tribunal em conta as declarações que o mesmo, a tal respeito, prestou em julgamento e, de acordo com as suas declarações, também, os factos que resultaram provados quanto à sua situação pessoal, familiar e profissional.
No concernente aos antecedentes criminais que possui, teve o Tribunal em conta o teor do certificado de registo criminal constante de fls. 61 e 62.
2 – O arguido interpôs recurso dessa sentença.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1 – Considera o arguido, atenta a prova produzida, incorrectamente julgados os seguintes factos dados como provados:
No dia 12 de Agosto de 2010, pelas 23:00 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 00-00-00, na Av…, em Agualva;
O arguido foi interveniente em acidente de viação;
Antes de iniciar a condução do veículo supra referido, o arguido ingerira bebidas alcoólicas;
2 – Analisando a prova produzida em sede de audiência de julgamento (declarações do arguido e depoimento da testemunha M.) não resulta que o arguido estivesse a conduzir e que tenha sido interveniente em acidente de viação;
3 – Considerando a matéria de facto produzida e bem assim rectificados os factos incorrectamente julgados temos não se encontra preenchida nenhuma das factualidades enunciadas nos alíneas do artigo 152.º, n.º 1, do Código da Estrada;
4 – Não estando preenchida qualquer das alíneas do artigo 152.º, n.º 1, também não tem aplicabilidade o disposto no n.º 3 do mesmo artigo, pelo que não estão preenchidos os elementos típicos do crime de desobediência e bem assim os requisitos necessários para aplicação da sanção acessória de inibição de conduzir, prevista no artigo 69.º do Código Penal.
5 – Ainda que assim não fosse atenta a factualidade efectivamente provada não poderia ter aplicação a sanção acessória de inibição de conduzir, prevista no artigo 69.º do Código Penal, porquanto não se logrou provar que o arguido estivesse a conduzir ou tivesse intenção de o fazer.
6 – Considerando tudo quanto ficou exposto não se pode concluir de outra forma que não seja que a prova produzida foi incorrectamente julgada devendo ser alterada a matéria dada como provada.
Termos em que deve ser concedido provimento ao presente Recurso, devendo, em consequência, ser reformulada a Sentença em crise, que culminará a absolvição do arguido.
3 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo também a procedência do recurso (fls. 106 a 111).
4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 114.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – O arguido impugnou a decisão que o condenou pela prática de um crime de desobediência simples por entender que, em face da prova produzida na audiência, que se resumiu às declarações do arguido e ao depoimento da testemunha M , não poderiam ter sido considerados provados os seguintes factos:
«No dia 12 de Agosto de 2010, pelas 23:00 horas, o arguido conduzia o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 00-00-00, na Av…, em Agualva;
O arguido foi interveniente em acidente de viação;
Antes de iniciar a condução do veículo supra referido, o arguido ingerira bebidas alcoólicas».
Ouvida a gravação das declarações prestadas na audiência, únicas a que este tribunal pode atender , não temos qualquer dúvida em afirmar que, efectivamente, assiste razão ao recorrente.
Na verdade, o arguido declarou que conduziu o veículo de sua propriedade até ao local em que o mesmo se encontrava estacionado. Depois disso jantou no restaurante “N..” com o seu filho e passou por um bar da zona onde esteve a beber, tendo ficado alcoolizado.
Acrescentou que não embateu no outro veículo, não tendo tido intervenção em qualquer acidente de trânsito, não tendo conduzido o veículo depois de o ter estacionado naquele local antes de jantar.
O agente policial ouvido, por sua vez, declarou que, quando chegou ao local, o arguido não estava a conduzir, nem se preparava para conduzir, estando fora da viatura, junto a um muro, parecendo estar alcoolizado.
Não assistiu a qualquer acidente de viação, tendo-lhe sido comunicado por terceiros que houve um embate entre o veículo do arguido e um outro que estava estacionado perto.
Nada disto é sequer localizado no tempo.
Tendo o Ministério Público prescindido da restante prova arrolada e não tendo o tribunal de 1.ª instância decidido ouvir as testemunhas prescindidas, nem as restantes indicadas no auto de notícia, este tribunal não pode deixar de alterar a decisão de facto proferida, considerando não provados os factos impugnados pelo recorrente.
A essa mesma conclusão chegou, de resto, o Ministério Público na resposta à motivação deste recurso.
Em face da referida alteração da matéria de facto provada, não se pode manter a condenação do arguido pela prática de um crime de desobediência uma vez que ele não se encontrava a conduzir, não tinha acabado de conduzir, nem existia qualquer sinal de que ele o tivesse feito momentos antes , não tendo também a qualidade de peão interveniente num acidente de trânsito – alíneas a) e b) do n.º 1 do artigo 152.º e artigo 156.º do Código da Estrada.
Por isso, e em face dos factos provados, não impendia sobre o arguido a obrigação legal de se submeter às provas estabelecidas para a detecção dos estados de influenciado pelo álcool e a sua recusa não o fez incorrer na prática de um crime de desobediência simples – artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 3 do Código da Estrada.
Deve, assim, ser absolvido do crime por que foi condenado na 1.ª instância.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido P., absolvendo-o do crime por que tinha sido condenado na 1.ª instância.
Sem custas.
Lisboa, 28 de Setembro de 2011
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)