I. A acção típica no crime de roubo, que pode consistir numa subtracção ou no constrangimento à entrega, tem de revestir uma de três características:
– Consubstanciar a utilização de violência contra uma pessoa;
– Consistir na utilização de ameaça com perigo eminente para a vida ou para a integridade física; ou
– Implicar a colocação da vítima na impossibilidade de resistir.
II. Existem diversas espécies de violência:
– Violência própria, quando se utiliza a força física;
– Violência imprópria, quando o constrangimento da vontade é feito por outros meios, como o uso de substâncias psicoactivas ou o hipnotismo;
– Violência directa, em que a violência incide no corpo da pessoa;
– Violência indirecta, em que a violência incide sobre coisas, só afectando mediatamente as pessoas.
III. A violência incluída sob tal conceito no crime de roubo é a violência própria e directa que supõe uma actuação física sobre a vítima.
IV. A violência que se exerça sobre terceiro é relevante na medida em que constitua uma ameaça implícita sobre a vítima.
V. A impossibilidade de resistir consubstancia uma forma de violência imprópria. Nada tem a ver com a surpresa do ataque.
VI. A ameaça tem de ter por efeito intimidar a vítima de forma a conseguir viciar a sua liberdade de determinação. A intimidação é o efeito psicológico causado pela utilização da ameaça.
VII. A ameaça pode ter lugar por palavras, por gestos, por actos concludentes ou por qualquer outra forma de procedimento que manifeste à vítima a intenção de ameaçar.
VIII. É relevante a ameaça com meio fingidos, como a que é realizada, por exemplo, com pistolas ou outras armas falsas ou através da simulação da existência de uma arma no bolso.
Proc. 276/09.8PEOER 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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Processo n.º 276/09.8PEOER – 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – O arguido D foi julgado no 3.º Juízo Criminal de Oeiras e aí condenado, por acórdão de 18 de Janeiro de 2011, pela prática de um crime de roubo p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal na pena de 2 anos e 3 meses de prisão.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
1. No dia 4 de Abril de 2009, pelas 22:10 horas, na Alameda …, em Carnaxide, no concelho de Oeiras, quando circulavam a bordo de um veículo V. azul, trazendo consigo um objecto com aparência de arma de fogo, tipo caçadeira, de características não apuradas, o arguido D e duas outras pessoas do sexo masculino, cuja identidade não se logrou apurar, avistaram J a aproximar-se do veículo 00-00-00 e decidiram apoderar-se do mesmo.
2. Em concretização daquele plano, abeiraram-se de J que se encontrava junto daquele carro.
3. O arguido saiu do automóvel onde seguia e abordou aquele último dizendo¬-lhe que ia levar o seu automóvel.
4. Entretanto, do lado do passageiro do V, saiu um dos suspeitos que apontou a J o referido objecto.
5. O arguido entrou então no 00-00-00 e levou-o consigo para parte incerta.
6. O outro suspeito entrou no V, conduzido pelo terceiro suspeito, ausentando-se do local.
7. Em consequência da referida actuação J sentiu receio para a sua vida.
8. O arguido e os suspeitos agiram conforme supra descrito, de acordo com o que tinham previamente planeado e em comunhão de esforços e intenções, com o propósito concretizado de se apropriarem do automóvel de J, sabendo que o mesmo não lhes pertencia e que actuavam contra a sua vontade.
9. Agiram o arguido e os suspeitos livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo ser a sua conduta proibida e [punida] legalmente.
10. O veículo 00-00-00 foi recuperado, no dia 6 de Abril seguinte, na sequência de busca domiciliária, e entregue a J.
11. O certificado do registo criminal do arguido averba as seguintes condenações, pela prática:
– Em 29/10/95, de um crime de roubo, na pena de dois anos de prisão (Proc. 317/96, decisão datada de 29/10/97);
– Em 23/09/96, de um crime de furto qualificado, na pena de catorze meses de prisão (Proc. 1198/96.6TAOER, decisão datada de 08/01/98);
– Em 19/08/96 de um crime de furto, na pena de sete meses de prisão (Proc. 1343/96.1PBOER, decisão datada de 26/03/98);
– Em 21/02/96, de um crime de furto, em cúmulo com outras penas, na pena única de três anos de prisão (Proc. 303/96.7PBOER, decisão datada de 23/04/98);
– Em 07/05/97, de um crime de roubo, na pena de quatro anos e seis meses de prisão (Proc. 5053/97.4JDLSB, decisão datada de 14/05/98);
– Em 07/03/97, de um crime de furto qualificado, na pena de doze meses de prisão (Proc. 94/97.4PGOER, decisão datada de 01/03/99);
– Em 28/04/04, de um crime de tráfico de menor gravidade, na pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução (Proc. 209/04, decisão datada de 17/10/06);
– Em 24/07/04, de um crime de furto qualificado na forma tentada, na pena de oito meses de prisão, suspensa na sua execução (Proc. 369/04.8PGOER, decisão datada de 07/04/06);
– Em 24/01/04, de um crime de condução sem habilitação legal, na pena de sete meses de prisão, suspensa na sua execução (Proc. 39/04.7GEOER, decisão datada de 26/04/07);
– Em 08/11/06, de um crime de condução sem habilitação legal, em pena de multa (Proc. 1771/06.6PBOER, decisão datada de 22/09/08);
– Em 19/09/08, de um crime de condução em estado de embriaguez, em pena multa e pena acessória de proibição de conduzir (Proc. 544/08.3GLSB, decisão datada de 12/02/08);
– Em 23/04/06, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário e um crime de injúria, na pena única de dez meses de prisão suspensa na sua execução pelo período de um ano (Proc. 156/06.9PGOER, decisão datada de 23/10/08);
– Em Janeiro de 2008, de um crime de violência doméstica, na pena de dois anos e seis meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período (Proc. 1637/07.2PBOER, decisão datada de 18/02/2010);
– Em 25/04/2010, de um crime de condução em estado de embriaguez, em pena de multa e pena acessória de proibição de conduzir (Proc. 81/10.9PAOER, decisão datada de 29/04/2010).
12. O arguido, descendente de emigrantes cabo-verdianos, efectuou o seu processo de socialização integrado na família nuclear numerosa.
13. Completou o 5.º ano aos 14 anos de idade. A partir dos 15 anos adoptou um estilo de vida anti-social, tendo sofrido a primeira privação de liberdade aos 17 anos, saindo da mesma já em idade adulta.
14. Desde Fevereiro 2008, D encetou um novo relacionamento afectivo, coabitando com a companheira, de quem tem uma filha com 1 ano de idade.
15. Este relacionamento tem sido importante no processo de inversão do desajustamento social do arguido e promove relações assertivas, designadamente a manutenção do contacto regular e próximo com os pais, reformados e doentes, bem como com outros familiares próximos.
16. Actualmente trabalha como servente da construção civil, situação que ultimamente se tem caracterizado por temporária.
17. Aparenta estar abstinente de consumo de álcool há cerca de 2 anos, tendo a sua vida marital uma preponderância neste facto.
O tribunal considerou não provado que:
– O arguido e seus acompanhantes levavam consigo uma caçadeira, provando-se, outrossim, o que consta do item 1 supra;
– O indivíduo que apontou ao ofendido o objecto com aparência de caçadeira disse ao arguido para entrar naquele outro veículo.
O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:
O Tribunal alicerçou a sua convicção quanto aos factos provados e não provados na apreciação conjunta e crítica, à luz das regras da experiência comum, das seguintes provas produzidas em audiência de julgamento:
– Depoimento da testemunha J, que efectuou relato minucioso da actuação dos indivíduos que o assaltaram, de forma firme, consistente e credível, tendo efectuado reconhecimento do arguido (conjugado com o respectivo auto de fls. 77). A testemunha mencionou que quando estava a conversar junto a um café viu o veículo V na sua direcção; caminhou para a sua viatura. Entretanto do V saiu o arguido e mais dois indivíduos (um destes com uma caçadeira). O arguido disse-lhe que ia levar o seu carro. E entrou neste e arrancou com ele. Esclareceu que havia deixado a chave na ignição e o motor a trabalhar. Conhecia o arguido por terem um amigo em comum. Dirigiu-se à P.S.P. onde apresentou queixa. Reconheceu logo o arguido. Recuperou o veículo e chave cerca de dois dias depois.
– R., agente da P.S.P., por ter participado na busca realizada ao domicílio da namorada do arguido, onde este residia, e onde foi encontrada a chave do veículo do ofendido, bem como na apreensão do veículo na via pública. Esclareceu que na sequência da queixa apresentada pelo ofendido (contra desconhecidos) e de este ter reconhecido o arguido, em fotografia, efectuaram as referidas diligências e que foi o arguido que indicou onde estava estacionado o veículo automóvel.
– Foram, ainda, valorados os seguintes elementos, conjugados com os demais acima apreciados:
– Auto de reconhecimento do arguido efectuado pela testemunha J.de fls. 77;
– Auto de busca e apreensão no domicílio da namorada do arguido (apreendida a chave do veículo do ofendido – fls. 103);
– Auto de apreensão de blusão, telemóvel e veículo automóvel de matrícula 00-00-00 (fls. 105) e respectivas fotografias de fls. 108 a 113;
– Auto de exame e avaliação dos bens apreendidos de fls. 114;
– Termo de entrega do veículo ao ofendido de fls. 116.
Atendemos, ainda, ao CRC de fls. 342 e ss. quanto aos antecedentes criminais e ao relatório social no tocante às condições pessoais, familiares e socioeconómicas do arguido.
O arguido admitiu ter levado consigo o veículo do ofendido. Apresentou como explicação para o sucedido o facto de o ofendido lhe ter cedido a viatura, uma vez que lhe devia dinheiro (cerca de € 150 - € 200 que lhe havia emprestado) e não tinha dinheiro para pagar. São amigos há cerca de 3-4 anos. Na ocasião o ofendido pediu-lhe a chave do seu veículo e deixou a chave do dele. Aguardou e depois levou-o consigo. Estava sozinho e não foi exibida qualquer arma.
Esta versão, desacompanhada de qualquer outro meio de prova, e em confronto com a demais prova produzida, acima analisada, não nos merece qualquer credibilidade. Nem o arguido explicou por que razão o ofendido não ficou na posse do seu veículo (uma vez que teriam apenas “trocado” de carro). Nem tais factos são minimamente verosímeis, tendo em conta que logo de seguida o ofendido apresentou queixa e confrontado com uma hipotética dívida para com o arguido negou peremptoriamente a sua existência.
A versão apresentada pelo arguido falece, pois, perante a demais prova produzida e as regras da experiência comum.
Os factos não provados resultam de:
– Alínea a): não ter sido produzida prova bastante uma vez que o objecto exibido não foi apreendido, não tendo sido apuradas as respectivas características e apenas a testemunha J ter referido a sua exibição (o arguido negou o uso de qualquer arma), sendo que os factos ocorreram à noite, tal objecto estava na posse de acompanhante do arguido, com quem o ofendido não teve qualquer troca de palavras.
– Alínea b): por total ausência de suporte probatório.
2 – O arguido interpôs recurso desse acórdão.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. O tribunal recorrido fez errada apreciação da prova produzida em audiência de discussão e julgamento quanto aos factos dados como provados nos pontos 1 a 9 do acórdão recorrido, que deveriam ter sido antes levados a factos não provados, impondo decisão diversa da recorrida os meios de prova declarações do arguido D, ouvido no dia 16.12.2010, de minutos 09.57 a minutos 10.10, que afirmou a minutos 03:16 'Eu na altura encontrava-me a trabalhar, tinha recebido, emprestei o dinheiro, não tinha como me pagar o dinheiro, o rapaz cedeu-me o carro, deixou-me levar o carro, emprestou-me o carro, e deixei lá o meu,... 04.00, depois tivemos uma conversa ele diz que o carro tinha uma amolgadela e ele queria que eu pagasse o arranjo do carro, eu disse que não ia pagar o arranjo do carro, porque quando ele emprestou-me o carro o carro tava assim'
2. E que a minutos 4.16 'Depois ele ta bem, deixou-me levar o carro, levei carro estacionei à porta de casa, de seguida levei com os senhores agentes a dizer que ele deu o carro como roubado, e pronto encontraram-me com a chave sim senhor, que tinha a chave em casa, não tinha nada a temer porque ele emprestou-me o carro.'
3. A matéria de facto que o recorrente considera ter sido incorrectamente apreciada são todos os factos que consubstanciam e integram a prática em co-autoria material na forma consumada de um crime de roubo, impugnando especificadamente os factos integrando a conduta de apropriação, por meio de violência ou ameaça, na consideração de que no dia e hora indicados na acusação do M.P., os factos alegados pelo ofendido quanto à forma como o recorrente entrou na posse do veículo 00-00-00, não são verdadeiros. Quando a testemunha ouvida J. a minutos 08.40, das suas declarações prestadas no dia 6.1.2011, acaba por afirmar 'No dia em que o D. foi buscar o carro.'
4. Valorou declarações arguido e testemunha e autos, de nenhum destes elementos decorre a existência, não existindo sequer indícios materiais de que a arma tivesse existido, e sido usada nas circunstâncias em que a testemunha o refere ter sido 'Eu vi que era uma caçadeira, porque estava apontada a mim'.
5. Este não é prova, nem meio de prova idóneo e suficiente para dar por demonstrada a prática de coacção, de impossibilidade de resistir – violência. O único meio de prova efectivamente produzido que foi, no entender do Tribunal recorrido, credível e apto a demonstrar a realidade e veracidade dos eventos foi a testemunha ouvida J, este não é no entanto meio de prova idóneo por falta de isenção e rigor e existência de interesse pessoal, não podendo considerar-se apto a dar por inteiramente demonstrada a ocorrência dos factos. E a prática do crime de roubo.
6. Aliás a decisão recorrida valor apenas e na medida em que tal segmento do depoimento foi necessário para demonstrar a coacção e o por ele relatado.
Em contradição com outro meio de prova, consentâneo noutros segmentos com as declarações do ofendido.
7. Deveria o recorrente ter sido absolvido da prática de tais factos, por não terem ficado demonstradas, com a segurança necessária à condenação, circunstâncias que integram os elementos típicos: apropriação ilegítima e da existência de violência, essenciais ao preenchimento do tipo de ilícito, teriam de considerar-se terem ocorrido no mundo real.
8. Impugnando especificadamente, nos termos do art. 412.º, n.º 3, al. a), e n.º 4, e para os efeitos do disposto na alínea b) do art. 431.º do C.P.P. toda a matéria vertida de 1 a 9, devendo estes factos serem considerados não provados, com vista à modificação da matéria de facto e absolvição do recorrente, do crime de roubo.
9. Não só porque a prova de tais factos assenta exclusivamente nas declarações prestadas pelo ofendido J., e estas não oferecem credibilidade, isenção ou possibilidade de serem corroboradas por outros elementos factuais externos existentes mas também porque existe notória discrepância entre o que a testemunha afirmou ter visto e o que vem dado como provado, quanto ao uso de violência por uso aparente de arma de fogo, uma vez que minutos 03:28 do seu depoimento prestado em audiência de julgamento no dia 6.1.2011 a testemunha J. afirmou 'um com uma caçadeira no punho e outro com uma pistola' e o tribunal aí entende que o ofendido não viu porque era de noite e não se apurou se a arma existia ou não no mundo real, mas noutras vertentes o depoimento da testemunha é meio de prova apto à cabal demonstração dos factos.
10. A prova produzida sobre esses factos, com referência exclusiva às declarações da testemunha ouvida na audiência de julgamento dia 6.12.2010, J., como única prova produzida para dar por assentes os segmentos da decisão de facto de pontos 1 a 9, sempre seria prova insuficiente, no respeito pelo princípio “unus testis nullus testis” para a demonstração de tais factos criminosos.
11. Impunha decisão diversa da recorrida o depoimento do arguido D., de per si, e conjugado com as regras da experiencia comum, fazendo o tribunal errada apreciação da matéria de facto que resulta como não provada por este meio de prova, na medida em que não o fazendo, dá como provado os factos que integram o crime de roubo.
12. Porquanto este afirmou, ouvido que foi na audiência de discussão e julgamento no dia 16.12.2010, de minutos 09.57 a minutos 10.10, a minutos 03: 16, 'Eu na altura encontrava-me a trabalhar, tinha recebido, emprestei o dinheiro, não tinha como me pagar o dinheiro, o rapaz cedeu-me o carro, deixou-me levar o carro, emprestou-me o carro, e deixei lá o meu... 04.00, e depois tivemos uma conversa ele diz que o carro tinha uma amolgadela e ele queria que eu pagasse o arranjo do carro, eu disse que não ia pagar o arranjo do carro, porque quando ele emprestou-me o carro o carro tava assim'.
13. E a minutos 4.16 'Depois ele ta bem deixou-me levar o carro, levei o carro estacionei à porta de casa, de seguida levei com os senhores agentes a dizer que ele deu o carro como roubado, e pronto encontraram-me com a chave sim senhor, que tinha a chave em casa, não tinha nada a temer porque ele emprestou-me o carro.'
14. Tendo em conta que a minutos 06.00 das suas declarações prestadas em audiência de julgamento do dia 6.1.2011, a testemunha J. vem a afirmar e a confirmar que 'quando ele foi lá ter com o E, ele tava lá a beber no café, ele foi lá ter com o E, eles estavam a falar alto, a minutos 06.50, 'não te metas nisso... o D é que me disse. Pelo que não podem restar dúvidas da existência de relações pessoais entre ambos, prévias aos factos do dia 4 de Abril de 2009, que o ofendido não quis reconhecer.
15. Tendo em conta muito concretamente o afirmado a minutos 1.23 das suas declarações pela mesma testemunha cotejado com as regras da experiência 'parei ali na porta do café do indivíduo, que eu ia lá ter com ele, o E, parei o carro, nem parei o motor, tinha a porta aberta, tava a falar com a mulher dele na porta do café, vi o V a vir da entrada, só tem uma entrada, vi o carro, até disse para a senhora vou tirar o carro, vou entrar no carro, chegar mais à frente para continuar a falar com ela que estava em cima da porta do café', não é possível que pelo menos esta sua interlocutora, não tenha visto o ocorrido ou até reconhecido igualmente o arguido, encontrando-se à mesma distância do ofendido e uma vez que frequentava o café. Sendo por isso de estranhar que mais ninguém que tenha vindo aos autos, tenha visto o que a testemunha diz ter visto.
16. E que não foram recolhidos quaisquer vestígios materiais que confirmem ou não a versão do ofendido J., quanto aos fatos dados como provados integrando a subtracção com recurso a arma aparente e a contradição entre o por si afirmado e o que vem dado como provado, quanto ao uso dessas mesmas a armas, considerando os motivos que levaram à consideração dos factos não provados a) e b) de fls. 5 e 6, acrescendo que, com o devido respeito, não colhem os motivos apontados para a convicção de que o ofendido tem razão, porquanto:
17. Que fez queixa, não pode suportar um qualquer juízo de demonstração de que ocorreu violência sobre o ofendido. E a comissão do crime de roubo do art. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), e art. 26.º do C. Penal.
18. Que o ofendido reconheceu o recorrente, que aliás já conhecia anteriormente (afirmação da testemunha a minutos 08.40), não pode suportar a demonstração de que ocorreu violência, com recurso ao uso aparente de arma de fogo, ou pela superioridade numérica. E a comissão do crime de roubo nos termos do art. 210.º, n.ºs 1 e 2, al. b), e art. 26.º do C. Penal.
19. Resultando das declarações do ofendido que este tinha a chave na ignição e o carro a trabalhar, não sendo por ele relatado ou referido em toda a extensão do seu depoimento que tenha havido uso de força ou constrangimento nos termos exigíveis no art. 210.º, n.º 1 do C. Penal.
20. Resultando das declarações da testemunha que o arguido lhe disse 'vou ter que levar o teu carro' e este até pensou que era uma brincadeira, não existe qualquer suporte probatório para o ponto de facto n.º 7 – receio, pela vida integridade física ou ameaça, fundamental ao preenchimento do tipo de ilícito.
21. Tem o mesmo de ser absolvido do crime de que vem acusado, pelo que impugnando-se especificadamente, nos termos do art. 412.º, n.º 3, al. a), e n.º 4, e para os efeitos do disposto na alínea b) do art. 431.º do C.P.P. toda a matéria vertida de 1 a 9, devem estes factos serem considerados não provados.
22. Assim não se entendendo, por mera cautela de patrocínio, improcedendo a absolvição do recorrente nos termos supra peticionados, e porque do texto da decisão recorrida resulta que poderia, como até bem notou nas suas doutas alegações orais o M.P., ainda ser possível a fazer um juízo de prognose favorável à sua reinserção social, e não ser “in casu” exigível o cumprimento de uma pena de prisão efectiva, nos termos do art. 42.º do C. Penal, pugna-se pela aplicação de uma pena não privativa da liberdade, atentos os factos descritos e dados como assentes sob os números 13 a 17 do acórdão recorrido, que sumariamente se transcrevem por serem relevante e relevarem positivamente no sentido de, sem afastar a necessidade de prevenir a prática especifica e geral de crimes desta e doutra natureza, neles fundadamente se poder antecipar um juízo de suficiência e adequação a uma pena que não de prisão.
23. O recorrente tem feito um esforço de adaptação a uma vida conforme as normas, invertendo algum desajustamento social e promovendo através da sua companheira relações sociais assertivas. Trabalha e aparenta estar abstinente do consumo de álcool há cerca de dois anos.
24. Termos em que ao não admitir como possível, pelas apontadas razões fls. 13 do acórdão condenatório, a aplicação da suspensão da execução da pena, por impossibilidade de 'prognose favorável subjacente à suspensão da execução da pena' impondo a privação da liberdade ao recorrente, também não faz a mais correcta aplicação do art. 50.º, n.º 1, do C.P., o benefício anterior de penas alternativas e ausência de confissão, quando podia ter valorado factos provados como a colaboração do recorrente na restituição imediata do bem e comportamento posterior aos factos sem registo de quaisquer crimes.
25. Por outro lado também a exacta medida da condenação se afigura excessiva atento o facto de não se ter apurado o valor patrimonial do bem objecto de subtracção, dos efeitos mediatos e imediatos da conduta, o grau de ilicitude e de culpa, e o seu comportamento anterior e posterior aos factos, bem como os motivos que o determinaram, que em rigor não se apuraram na íntegra, pelo que teria feito mais correcta aplicação do disposto no art. 71.º, n.ºs 1 e 2, do C.P. se tivesse fixado a pena em medida não superior a um ano, pelo que também se pugna.
26. Suspendendo a pena aplicada ao recorrente, ou substituindo-a por outra pena prevista na lei, e em medida nunca superior a um ano, teria o tribunal recorrido feito melhor aplicação do disposto nessas normas – art. 50.º, n.º 1, e 71.º, n.ºs 1 e 2, do C. Penal.
Termos em que deve ser concedido provimento ao recurso, modificando-se a matéria de facto provada, nos termos supra requeridos, absolvendo-se o recorrente do crime de que vinha acusado, ou, assim não se entendendo, e sem conceder, condenando-o em pena não privativa da liberdade, ou suspensa na sua execução farão V. Exas., Juízes Desembargadores, Justiça.
3 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada admitindo a procedência parcial do recurso quanto à suspensão da pena de prisão em face do teor do relatório social e do comportamento do arguido em audiência (fls. 422 a 427).
4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 429.
II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – De acordo com os artigos 402.º e 403.º do Código de Processo Penal, o recurso interposto de um acórdão abrange toda a decisão, salvo se o recorrente tiver limitado a impugnação a uma das suas partes.
No caso, como se vê da motivação apresentada, o arguido não limitou o recurso que interpôs a uma parte do acórdão, tendo posto em causa a decisão de o condenar pela prática de um crime de roubo e a medida da pena que, com base nele, lhe foi aplicada.
Importa, por isso, reapreciar a decisão proferida em toda a sua extensão, começando pela questão da culpabilidade.
6 – O recorrente sustentou, como primeiro fundamento da impugnação da decisão relativa à culpabilidade, que o tribunal não poderia ter considerado provados os factos narrados sob os n.ºs 1 a 9, tendo reproduzido trechos das suas declarações e do depoimento da testemunha J. que, a seu ver, imporiam decisão diversa da proferida.
Muito embora se possa entender que, perante a falta de iniciativa do Ministério Público e do defensor do arguido, o tribunal, no uso dos poderes de investigação que o Código lhe confere, poderia e deveria ter ordenado a produção de outros meios de prova para além dos indicados na acusação, inquirindo, nomeadamente, um tal Emídio, dono do café à frente do qual os factos se terão passado e com quem o arguido e o ofendido se terão alegadamente encontrado uns dias antes, quando terá surgido um conflito entre eles, a esposa deste, com quem o ofendido se encontraria a falar no momento em que os factos ocorreram, e a companheira do arguido, na casa da qual foi realizada a busca em que foram apreendidas as chaves do veículo, o certo é que, tendo apenas em conta a prova produzida e examinada na audiência, não se pode, de forma alguma, sustentar que se impõe decisão diferente da proferida.
Em primeiro lugar, porque as declarações do arguido são vagas, contraditórias e não se encontram localizadas temporalmente, não se conseguindo sequer extrair delas qualquer descrição minimamente lógica e coerente dos acontecimentos a que se refere.
Em segundo lugar, porque o ofendido, embora de forma não exaustiva e pormenorizada, descreveu os acontecimentos sem contradições intrínsecas (1) e sem qualquer desconformidade com as regras da experiência comum.
Em terceiro lugar, porque do facto de o tribunal, para a prova da utilização de uma arma de fogo, não se ter contentado com as declarações do ofendido, que identificou o objecto que um dos agentes teria em seu poder como uma espingarda caçadeira, exigindo que ela tivesse sido apreendida e examinada, não resulta necessariamente que uma mesma exigência tivesse necessariamente que fazer quanto a outros aspectos da prova do acontecimento. O possível engano de percepção quanto a uns não tinha necessariamente que se estender aos restantes.
Por último, porque o invocado princípio segundo o qual depoimento de apenas uma testemunha não seria suficiente para a formação da convicção do tribunal é próprio de um sistema de prova legal e não de um sistema de prova livre, como é o nosso.
Resta acrescentar que a decisão dos factos provados não assenta exclusivamente nas declarações do ofendido. Elas foram, até um certo ponto, corroboradas pela apreensão das chaves do veículo em casa da companheira do arguido, na qual ele também vivia, pela apreensão do próprio veículo, para cuja localização contribuiu o arguido, e pelas suas próprias declarações, que reconheceu ter o automóvel do ofendido em seu poder.
Por isso, e uma vez que não existem provas que imponham decisão diversa, o indicado fundamento da impugnação não pode ser atendido.
7 – O recorrente, embora não o diga de uma forma clara, parece pretender pôr em causa a decisão de qualificar a sua conduta como um crime de roubo por a acção, a seu ver, não revestir as características exigidas pelo tipo incriminador.
Não tem, também quanto a esta questão, qualquer razão.
Senão vejamos.
Se analisarmos o tipo objectivo desta incriminação verificamos que a acção típica, que pode consistir numa subtracção ou no constrangimento à entrega, tem de revestir uma de três características:
– Consubstanciar a utilização de violência contra uma pessoa;
– Consistir na utilização de ameaça com perigo eminente para a vida ou para a integridade física; ou
– Implicar a colocação da vítima na impossibilidade de resistir.
Embora no caso não tenha existido violência contra a vítima (2), nem a sua colocação na impossibilidade de resistir (3) , a subtracção foi conseguida através da utilização de uma ameaça implícita com a utilização de um objecto que parecia ser uma arma de fogo (4).
Por isso, e porque se encontram preenchidos os restantes elementos do tipo, que ninguém pôs em causa, a conduta do arguido constitui um crime de roubo simples p. e p. pelo artigo 210.º, n.º 1, do Código Penal.
8 – Resta-nos apreciar a questão da escolha da pena e determinação da sua medida.
O crime por que o arguido foi condenado é punível, em abstracto, com prisão de 1 a 8 anos.
O tribunal de 1.ª instância graduou a pena concreta em 2 anos e 3 meses de prisão.
Como factores relevantes para a graduação da pena há que atender:
– À natureza do objecto subtraído (um veículo automóvel), de valor não determinado, mas que tudo indica ser reduzido, dada a matrícula que ostentava;
– À recuperação do veículo, com a cooperação do arguido, dois dias depois, e à sua entrega ao dono;
– Ao grau de intimidação da vítima e à forma como ela foi constrangida, através do uso de algo que se assemelhava a uma arma de fogo;
– Ao facto de o arguido ter actuado em colaboração com duas outras pessoas;
– Aos antecedentes criminais do arguido;
– À alteração parcial do seu comportamento, quer a nível familiar, quer laboral;
– À alteração dos seus comportamentos aditivos.
Apontados os factores relevantes para a determinação da pena concreta, importa agora proceder à sua valoração à luz dos vectores da culpa e da prevenção.
O grau e a forma usada para a intimidação da vítima, a natureza do objecto subtraído e a actuação conjunta do arguido com duas outras pessoas agravam a ilicitude da sua conduta, ilicitude essa que é, no entanto, atenuada pelo reduzido valor da coisa.
Esse grau de ilicitude reflecte-se na culpa, a qual é acentuada pelos antecedentes criminais do arguido.
Esses mesmos antecedentes apontam para uma maior necessidade de prevenção especial.
Porém, a alteração recente e parcial do comportamento do arguido e a sua colaboração na recuperação do veículo impõem, a esse respeito, alguma moderação.
Essa mesma recuperação atenua as necessidades de pena para satisfação da prevenção geral.
Tudo ponderado, entende este tribunal ser adequada a imposição ao arguido de uma pena de 20 meses de prisão.
Procede, portanto, nesta parte, o recurso interposto pelo arguido.
9 – Tal pena, não obstante a recente alteração parcial do comportamento do arguido, não pode, no entanto, ser suspensa nem substituída por qualquer outra pena não privativa da liberdade, quer pela necessidade de protecção dos bens jurídicos violados, quer porque não é possível, com o passado criminal do arguido e com a reiteração criminosa mesmo depois de terem sido parcialmente alteradas as condições da sua vida, confiar em que a simples censura do facto e a ameaça da prisão sejam suficientes para evitar a reiteração criminosa.
Improcede, portanto, nesta parte, a pretensão do arguido.
10 – Uma vez que o arguido decaiu, embora apenas parcialmente, no recurso que interpôs é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto na alínea b) do n.º 1 e no n.º 3 do artigo 87.º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 15 UC.
Tendo em conta a situação económica do arguido, a complexidade do processo e a parcial procedência do recurso, julga-se adequado fixar essa taxa em 3 UC.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido D., alterando a medida da pena que lhe foi aplicada na 1.ª instância, que passa a ser de 20 (vinte) meses de prisão, e mantendo, em tudo o mais, a decisão recorrida.
b) Condenar o recorrente no pagamento das custas do recurso, com taxa de justiça que se fixa em 3 (três) UC.
(1) Contradições existirão entre essas declarações e o que consta ter sido por ele dito em fases anteriores do processo. Porém, essas declarações não foram lidas na audiência, razão pela qual não podem, nos termos dos artigos 355.º e 356.º do Código de Processo Penal, ser tomadas em consideração para efeitos da formação da convicção do tribunal.
(2) Existem diversas espécies de violência.
– Violência própria, quando se utiliza a força física;
– Violência imprópria, quando o constrangimento da vontade é feito por outros meios, como o uso de substâncias psicoactivas ou o hipnotismo;
– Violência directa, em que a violência incide no corpo da pessoa;
– Violência indirecta, em que a violência incide sobre coisas, só afectando mediatamente as pessoas.
A violência incluída sob tal conceito no crime de roubo é a violência própria e directa que supõe uma actuação física sobre a vítima. A violência que se exerça sobre terceiro é relevante na medida em que constitua uma ameaça implícita sobre a vítima.
(3) A impossibilidade de resistir a que se refere o artigo 210.º do Código Penal consubstancia uma forma de violência imprópria. Nada tem a ver com a surpresa do ataque, como por vezes se vê sustentar.
(4) A ameaça tem de ter por efeito intimidar a vítima de forma a conseguir viciar a sua liberdade de determinação. A intimidação é o efeito psicológico causado pela utilização da ameaça.
A ameaça pode ter lugar por palavras, por gestos, por actos concludentes ou por qualquer outra forma de procedimento que manifeste à vítima a intenção de ameaçar.
É relevante a ameaça com meio fingidos, como a que é realizada, por exemplo, com pistolas ou outras armas falsas ou através da simulação da existência de uma arma no bolso.
Lisboa, 13 de Abril de 2011
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(Carlos Rodrigues de Almeida)
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(Horácio Telo Lucas)