I. De acordo com o n.º 1 do artigo 164.º do Código de Processo Penal, «é admissível prova por documento, entendendo-se por tal a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal».
II. A esta luz, reveste, nomeadamente, a natureza de documento toda a declaração corporizada num escrito, inteligível para a generalidade das pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, seja idónea a provar um facto juridicamente relevante.
III. Se para a definição do conceito de documento se atendesse apenas ao indicado n.º 1 do artigo 164.º do Código de Processo Penal e às alíneas a) e b) do artigo 255.º do Código Penal, para que aquele remete, qualquer auto lavrado num processo, contivesse ou não declarações, seria um documento e, como tal, poderia ser valorado para a formação da convicção do tribunal nos termos e nas circunstâncias enunciadas no artigo 355.º daquele Código.
IV. Uma tal conclusão entraria em claro confronto, para além do mais, com o disposto nos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, disposições que impedem, por regra, a valoração, para a formação da convicção do tribunal, de diligências de prova realizadas nas fases preliminares do processo, nomeadamente a valoração de autos de inquérito que contenham declarações do assistente.
V. Para delimitar os conceitos processuais de prova documental e de auto (artigo 99.º do Código de Processo Penal), deve partir-se da ideia de que o objecto representado pelo documento é necessariamente um acto realizado fora do processo ao qual ele vem a ser junto.
VI. Se, pelo contrário, o objecto representado é um acto do processo em causa, qualquer que ele seja, então estamos perante um auto que é nele lavrado e que está sujeito a um regime diferente do reservado à prova documental.
VII. Um auto não pode, nomeadamente, ser valorado para a formação da convicção do tribunal a não ser nos apertados limites traçados pelos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal.
Proc. 199/07.5GHSNT 3ª Secção
Desembargadores: Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
_______
Processo n.º 199/07.5GHSNT – 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I – RELATÓRIO
1 – Depois de, no dia 21 de Abril de 2011, ter sido proferido nestes autos o acórdão que apreciou o recurso interposto pelo arguido da sentença de 1.ª instância e a reclamação por ele apresentada de uma decisão sumária proferida pelo relator quanto a um recurso de um despacho intercalar, a assistente G juntou aos autos o requerimento que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
G, assistente nos autos à margem identificados, notificada do acórdão final proferido por V. Ex.as, que julgou parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido, designadamente alterando a matéria de facto considerada provada, vem, ao abrigo do disposto nos artigos 666.º, n.º s 2 e 3, e 669.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, ambos do C.P.C., e 380.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do C.P.P., requerer o seu esclarecimento e/ou reforma, o que faz nos termos e pelos fundamentos seguintes:
1. No acórdão aclarando, julgaram V. Ex.as parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido da sentença proferida, alterando a matéria de facto provada, à qual foi acrescentado o facto de, no dia 10 de Abril de 2007, a assistente ter dado um estalo ao arguido.
2. Em abono da alteração da matéria de facto promovida por V. Ex.as, refere o acórdão aclarando que:
“Corroborando a versão dos acontecimentos apresentada pelo arguido, apenas se encontra o reconhecimento, feito pela assistente, perante o soldado da GNR, de que no dia 10 de Abril de 2007 deu um estalo ao arguida e, de uma forma mais ténue, que a personalidade do arguido não é tida pelas pessoas que com ele se relacionam familiar e profissionalmente como violenta”
3. E continua:
“Poder-se-á, no entanto, contra-argumentar que a admissão pela assistente de um facto que lhe era desfavorável deve contribuir para reforçar a credibilidade das suas declarações e não para enfraquecer a força probatória do que disse e que cada um assume comportamentos diferentes, nas várias relações, familiares, profissionais e sociais que estabelece, o que pode explicar comportamentos díspares, nomeadamente em cada um destes âmbitos, públicos e privados, e em relações que se assumem como sendo de igualdade ou de superioridade.”
4. Concluindo que 'a prova produzida e examinada em audiência, nomeadamente a indicada pelo recorrente, não impõe, de forma alguma, salvo quando a um aspecto pontual já referido (1.ª parte do ponto 14 dos factos não provados), decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.
Salvo o devido respeito,
5. Não logra e assistente alcançar qual prova produzida e examinada em audiência de julgamento que V. Ex.as consideraram para proceder à referida alteração da matéria de facto considerada provada.
6. É que, como bem refere a sentença proferida em primeira instância, alterada por V. Ex.as nesse específico ponto, em sede de audiência de julgamento 'A testemunha P, agente da GNR, não se recordava da situação de 10 de Abril, nem sequer do que é que lhe foi relatado na altura pelos intervenientes, não tendo confirmado que a ofendida lhe tenha dito que deu um estalo ao arguido, facto que ela negou em audiência de julgamento.”
7. Pelo que, tendo em atenção que do depoimento de testemunha P (GNR) nada resultou em virtude de o mesmo se não recordar dos factos e a assistente os negou, considerou a Mma Juiz a quo, atenta a total ausência de prova sobre a referida matéria, tais factos como não provados.
8. Não obstante, em sede de recurso, também atenta a prova produzida e examinada em audiência de julgamento, consideraram V. Ex.as que existia suporte factual para que tais factos – que a assistente deu uma bofetada no arguido – fossem dados como provados.
9. Não conseguindo legitimamente a assistente compreender com base em que depoimentos ou outros eventuais elementos de prova produzidos e examinados em audiência de julgamento chegaram V. Ex.as a tal conclusão.
10. Sendo certo que, e sempre salvo o devido respeito, V. Ex.as também não fundamentam a decisão que tomam no que respeita à operada alteração da matéria de facto, a qual é, por força do disposto nos artigos 374.º, n.º 2, 373.º, n.º 1, al. a), e 426.º, n.º 4, todos do C.P.P., nula, nulidade que expressamente se argúi.
Acresce que,
11. A situação é tão mais estranha porquanto, a dado passo do acórdão recorrido, dissertando sobre a credibilidade da assistente V. Ex.as fazem referência à admissão por parte desta, perante o soldado da GNR, de que no dia 10 de Abril de 2007 deu um estalo ao arguido.
12. Admissão essa que, sendo relativa a facto que lhe era desfavorável, serviria até para reforçar a credibilidade das suas declarações.
Sucede porém que,
13. em momento algum do seu depoimento, que V. Ex.as certamente ouviram e têm transcrito, a assistente admitiu ter dado uma estalada ao arguido.
14. Ficando assim na mente da assistente a dúvida insanável sobre se V. Ex.as, por lapso, não se terão equivocado, dando por assente que a assistente afirmou em audiência de julgamento tal facto quando na verdade não o fez.
15. ou se, eventualmente, também por lapso, não terão considerado que a testemunha P (soldado da GNR) se referiu a tal em audiência de julgamento, quando na realidade também não o fez.
16. Dúvidas essas que, sendo inultrapassáveis na mente da assistente, urge esclarecer.
Na verdade,
17. Para além do depoimento do arguido, a referência a uma alagada estalada dada pela assistente ao arguido surge efectivamente referida num único documento junto aos autos, a saber, a informação de serviço constante de fls. elaborada pelo soldado P, onde este, na sequência da deslocação que efectuou à residência do casal em 10 de Abril de 2007, ali refere que 'Chegados ao local encontrava-se lá a senhora G (...) que tinha estado a ouvir e conversa que o seu marido estava a ter na varanda ao telemóvel e que não tinha gostado, porque disse que se “tratava de uma amante e que não lhe admitia isso, e por isso lhe estava a faltar ao respeito” tendo então lhe dado um estalo, a mesma disse então, que depois o seu companheiro a empurrou e lhe deu uma cotovelada no abdómen e vários pontapés.'
18. Mais se refere na dita informação de serviço que 'A senhora acima supra citada disse ainda que não era a primeira vez, e que inclusive já lá tinha ido a GNR do posto de Mira Sintra por uma situação idêntica, a mesma disse que o seu companheiro “era um mentiroso” e que se fazia passar por um homem bondoso, calmo e sereno perante a presença da autoridade”.
19. E, continuando, deste feita a conversa com o arguido, refere-se ali que 'O seu companheiro, C, (...), que disse que a sua companheira esteve a ouvir a sua conversa que estava a ter por telemóvel na varanda, com uma funcionária sua, e que durante esse telefonema a sua companheira estava e injuriá-lo, quando terminou o telefonema o senhor disse que saiu da varanda, para vir para dentro, e que a sua companheira acima supra citado o agrediu com um estalo na cara, tendo este respondido a tais agressões com umas palmadas; disse ainda que passado algum tempo (...).
Ora,
20. Da análise daquela informação de serviço, que não foi sequer confirmada em audiência de julgamento pelo seu subscritor, resulta muito claramente que o que de mesma consta mais não são do que as 'declarações' que assistente e arguido terão naquela data “prestado” perante aquele soldado.
21. Donde, a questão que se colocaria seria a de saber, qual o valor probatório da referida informação de serviço?
Nenhum
22. Com efeito, a prestação de declarações pelo assistente e pelas partes civis não só se encontra sujeita ao regime de prestação da prova testemunhal, como igualmente ao regime previsto nos artigos 356.º e 357.º do C.P.P. (cf. artigos 145.º, n.º 3, 345.º, n.º 3, 346.º, n.º 2, 355.º, 356.º e 357.º, todos do C.P.P.).
23. Nessa medida, porque a referida informação de serviço não foi examinada e muito menos produzida em audiência, como igualmente contém pretensas declarações do arguido e da assistente, as quais não foram sujeitas ao regime previsto nos artigos 356.º e 357.º do C.P.P., é manifesto o seu desvalor nos presentes autos, sendo até proibida a sua valoração nos termos do artigo 355.º do C.P.P.
24. Tanto mais que, ainda que se admitisse tratar-se de uma mera conversa informal, admitida por alguma jurisprudência, sempre o subscritor da referida informação se teria de referir à mesma em audiência de julgamento, o que não sucedeu.
25. Ora, a assistente não é capaz de conceber que V. Ex.as possam ter, em violação do específico regime consagrado nos artigos 355.º, 356.º e 357.º, considerado que a assistente deu uma estalada ao arguido no dia 10 de Abril de 2007, com base no que vem referido naquela informação de serviço.
26. Razão pela qual, face à pelo menos obscuridade da decisão proferida e seus fundamentos se requer a aclaração e reforma do acórdão proferido também quanto a este ponto.
27. Em todo o caso sempre se dirá que também por esta via enferma o acórdão proferido de nulidade, atento o disposto nos artigos 126.º, 355.º, 356.º, 357.º, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. c), todos do C.P.P., a qual expressamente se argúi.
À cautela,
28. A interpretação do disposto nos artigos 126.º, 145.º, n.º 3, 345.º, n.º 3, 346.º, n.º 2, 355.º, 356.º e 357.º, todos do C.P.P. no sentido de que o Tribunal pode valorar declarações de assistente contidas em informação de serviço, não confirmada pelo seu subscritor nem submetidas à disciplina dos artigos 356.º e 357.º do C.P.P., é inconstitucional por violação do disposto nos artigos 20.º e 32.º da C.R.P., inconstitucionalidade essa que expressamente se argúi.
Nestes termos e nos melhores de Direito, devem V. Ex.as aclarar o acórdão recorrido nos termos peticionados, declarar as nulidades arguidas e proceder à sua reforma, mantendo-se na íntegra a decisão proferida em primeira instância quanto à factualidade considerada provada e não provada nos autos.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Os poderes de cognição do Tribunal da Relação nesta fase do processo
2 – Importa apreciar o requerimento transcrito começando por delimitar os poderes de cognição do Tribunal da Relação nesta fase do processo.
A requerente, para fundamentar a sua pretensão, invocou o disposto nos «artigos 666.º, n.º s 2 e 3, e 669.º, n.º 1, al. a), e n.º 2, ambos do C.P.C., e 380.º, n.º 1, al. b), e n.º 3, do C.P.P.».
Ora, salvo o devido respeito, as indicadas disposições do Código de Processo Civil só seriam aplicáveis ao processo penal se no respectivo Código existisse alguma lacuna sobre a matéria que nelas é regulada (artigo 4.º do Código de Processo Penal), o que, manifestamente, não acontece uma vez que os artigos 379.º e 380.º deste mesmo diploma delimitam os casos de nulidade da sentença e circunscrevem o universo das situações em que é admissível a sua correcção, traçando os respectivos limites.
Quanto à susceptibilidade de correcção da sentença, a última das indicadas disposições apenas a admite quando existir erro, lapso, obscuridade ou ambiguidade cuja eliminação não importe modificação essencial.
Significa isto que, em face deste regime legal e em contrário do que prevê o n.º 2 do artigo 669.º do Código de Processo Civil e pretendia a assistente, este tribunal não poderia, em caso algum, alterar o sentido da decisão proferida quanto aos seus aspectos essenciais, nos quais se incluía a matéria de facto provada.
A aclaração do fundamento da alteração da decisão de facto
3 – Dito isto, analisemos então o pedido de aclaração do acórdão formulado pela assistente.
Embora nos pareça que o acórdão proferido no passado dia 21 de Abril é, a tal respeito, suficientemente claro e que a requerente compreendeu o seu sentido, sempre diremos que este tribunal não se equivocou quanto ao conteúdo das declarações por ela prestadas na audiência, nem quanto ao teor do depoimento do soldado da GNR P.
Este Tribunal da Relação, para julgar aquele facto como provado, atendeu, antes de mais, às declarações prestadas na audiência pelo arguido, nas quais ele disse que no dia 10 de Abril de 2007 a sua companheira lhe tinha dado um estalo.
Tomou também em consideração que tais declarações encontravam-se corroboradas pelo teor do documento de fls. 45 que, no entender deste tribunal, tal como na opinião do tribunal de 1.ª instância (ver p. 405), podia ser valorado para a formação da sua convicção – artigo 355.º do Código de Processo Penal.
Fundando-se nesses dois elementos de prova e tendo em conta as considerações que sobre eles fez no acórdão, este tribunal entendeu dever alterar o indicado ponto da matéria de facto, tendo considerado provado que no dia 10 de Abril de 2007 a assistente deu um estalo ao arguido.
A nulidade do acórdão por falta de fundamentação
4 – Esclarecido este ponto, importa agora apreciar a arguida nulidade do acórdão por falta de fundamentação da decisão de facto.
Para justificar a sua pretensão, a assistente transcreveu parte do que naquele aresto se disse ao apreciar esse fundamento do recurso do arguido.
Porém, para formular um juízo sobre tal matéria, convém que se conheça toda essa parte da fundamentação do acórdão e não apenas um seu extracto.
Nessa peça processual, este tribunal disse o seguinte:
«9 – Passemos agora a apreciar a impugnação da decisão de facto.
O arguido, como se vê das conclusões da motivação apresentada, discorda da decisão do tribunal de 1.ª instância de considerar provados os factos narrados sob os n.ºs 1 a 23 e de considerar não provados os factos narrados nos n.ºs 1 a 3 e 7 a 14, quer porque entende que a prova produzida e examinada na audiência não permitia sustentar a decisão tomada, quer porque considera que o tribunal não poderia ter valorado os depoimentos das testemunhas I, S e S, que considera serem depoimentos indirectos.
Sobre esta última questão deveremos dizer que o tribunal recorrido, como expressamente consta da fundamentação da decisão de facto que se transcreveu, apenas valorou os depoimentos prestados pelas três indicadas testemunhas na parte em que eles não eram depoimentos indirectos, ou seja, quanto aos factos de que estas testemunhas tinham conhecimento directo e não quanto àquilo que a assistente lhes terá relatado.
Por isso, a questão suscitada pelo recorrente nem sequer se coloca. Diga-se desde já que esse mesmo critério será seguido por este tribunal na apreciação da prova que a seguir fará.
10 – Embora o recorrente tenha dito que impugnava os pontos 1 a 23 da matéria de facto provada, percebe-se perfeitamente que essa impugnação tem apenas como objecto as menções que nessa descrição se fazem a três agressões alegadamente perpetradas pelo arguido em 14 de Março (n.ºs 2 a 6), 10 de Abril (n.º 7 a 10) e 25 de Setembro de 2007 (n.º 11 a 17 e n.º 18 a 23, estes últimos relativos as todas as situações) e não também a aspectos circunstanciais que nenhum relevo têm para a definição do sentido da decisão a proferir (1) (2).
Para apreciar esta pretensão do arguido importa, antes de mais, analisar o que consta dos documentos hospitalares e das perícias médicas efectuadas à assistente, que é o seguinte:
– A fls. 64 encontra-se uma ficha hospitalar da qual se vê que a assistente se deslocou no dia 15 de Março de 2007, por volta das 15H24, ao Hospital Fernando da Fonseca queixando-se de ter sido agredida na cabeça e de ter cefaleias. Foi efectuado exame radiológico à cabeça, em dois planos, não existindo evidência de fracturas, pelo que teve alta medicada.
– A fls. 112 encontra-se uma ficha hospitalar da qual se vê que a assistente se deslocou no dia 25 de Setembro de 2007, por volta das 14H59, ao Hospital Fernando da Fonseca queixando-se de ter sido agredida, dizendo ter dores nos antebraços e na região dorsal. Apresentava equimoses dos antebraços e dor à palpação da região volar dos antebraços. A radiografia ao tórax então efectuada não denotava lesões de carácter agudo. A assistente teve alta medicada com indicação de seguimento no Centro de Saúde.
– A fls. 10 encontra-se um relatório de uma perícia médico-legal, datado de 19 de Abril de 2007, no qual se diz que a assistente apresentava «equimose verde com 1,5 cm de diâmetro médio no 1/3 inferior da face posterior do braço direito», lesão que resultou de «traumatismo de natureza contundente», podendo ter sido devida a agressão, a qual determinou doença por um período de 8 dias sem afectação da capacidade para o trabalho em geral e da qual não era de prever qualquer consequência permanente.
– A fls. 117 encontra-se um relatório de uma perícia médico-legal, datado de 27 de Março de 2008, no qual se diz, ao que parece mais uma vez, que as lesões traumáticas descritas nos autos dos exames anteriores e referidas na documentação clínica resultaram de traumatismo de natureza contundente, podendo ter sido devidas a agressão, determinaram doença por um período de 8 dias sem afectação da capacidade para o trabalho em geral e das quais não resultaram quaisquer consequências permanentes.
– A fls. 131 encontra-se um relatório de uma perícia médico-legal, datado de 4 de Dezembro de 2008, no qual se diz:
«1 – Em fls. 10 dos autos tem as conclusões do exame pericial compatíveis com a agressão em 10/4/07.
2 – Em fls. 64, consta documentação clínica do S. U. H. Fernando da Fonseca, em consequência de uma agressão em 15/3/07 “…refere ter sido agredida na cabeça…”. Deste não tem exame pericial.
3 – Em 25/9/07 foi agredida, foi ao H. Fernando da Fonseca, da qual a documentação clínica consta de fls. 112 dos autos “…equimoses dos antebraços…” com exame pericial a fls. 117 dos autos que estabelece um nexo de causalidade com o exame hospitalar».
Estas lesões são atribuídas pela assistente a agressões praticadas pelo arguido em períodos de maior conflito que ocorriam quando ele se encontrava enamorado por outras pessoas.
As testemunhas arroladas pela acusação atestaram, em geral, os efeitos provocados pelas agressões, de que a assistente se queixava, ao seu bem-estar psíquico.
O arguido, por sua vez, justificou as lesões apresentadas pela assistente e constatadas pelos médicos como actos de defesa e de contenção face a agressões praticadas pela assistente, apenas tendo admitido que a segurava, que no dia 10 de Abril lhe deu uma cotovelada e que, no dia 25 de Setembro de 2007, deu uma palmada para lhe tirar as chaves da arrecadação, que a poderá ter atingido na mão. Declarou que se a quisesse agredir o poderia ter feito e que, nesse caso, as lesões que ela apresentaria seriam muito maiores, com o que reconhece ter uma significativa superioridade física.
Se esta explicação poderia justificar as lesões que a assistente apresentava em Março e Abril de 2007, deixa, porém, sem explicação aquilo que os médicos declararam ter constatado em 25 de Setembro.
Corroborando a versão dos acontecimentos apresentada pelo arguido apenas se encontra o reconhecimento, feito pela assistente perante o soldado da GNR, de que no dia 10 de Abril de 2007 deu um estalo ao arguido e, de uma forma mais ténue, que a personalidade do arguido não é tida pelas pessoas que com ele se relacionam familiar e profissionalmente como violenta.
Poder-se-á, no entanto, contra-argumentar que a admissão pela assistente de um facto que lhe era desfavorável deve contribuir para reforçar a credibilidade das suas declarações e não para enfraquecer a força probatória do que disse e que cada um assume comportamentos diferentes nas várias relações, familiares, profissionais e sociais, que estabelece, o que pode explicar comportamentos díspares, nomeadamente em cada um destes âmbitos, públicos e privados, e em relações que se assumem como sendo de igualdade ou de superioridade.
O arguido pretende também descredibilizar as declarações da assistente dizendo que ela, ao depor perante o tribunal, assumiu uma postura dorida, que ele entende corresponder a uma pura representação, e que, quando foi ouvida pelo defensor do arguido, a sua atitude foi diferente, denotando maior assertividade e determinação.
Embora se reconheça que, em determinados momentos, essa diferente atitude se verificou, tal diferença, que não foi constante ao longo das declarações prestadas em resposta a perguntas feitas pelo tribunal, pode explicar-se pela tensão que manifestamente se verificava, muita dela explicada pelo litígio existente quanto aos termos da regulação do poder paternal .
Seja como for, o certo é que a prova produzida e examinada em audiência, nomeadamente a indicada pelo recorrente, não impõe, de forma alguma, salvo quanto a um aspecto pontual já referido (1.ª parte do ponto 14 dos factos não provados), decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.
Ora, o Tribunal da Relação, uma vez que não beneficia da imediação e oralidade de que gozou a 1.ª instância, apenas pode alterar a decisão de facto anteriormente proferida quando a prova produzida e examinada em audiência impuser decisão diversa , o que, como se viu, salvo quanto ao aspecto mencionado, não é o caso.
Diga-se ainda que não vemos qualquer contradição entre os factos narrados sob o n.º 26 da matéria de facto provada e o n.º 10 da não provada. Um refere-se à pessoa que ia levar o menor à escola enquanto que o outro diz respeito à identidade do progenitor que ia buscar o filho ao colégio.
11 – Acrescente-se apenas que o tribunal de 1.ª instância não manifestou ter tido dúvidas relevantes quanto ao sentido da decisão a proferir, nem aplicou, de forma juridicamente incorrecta, o princípio “in dubio pro reo”, razão pela qual, também quanto a este aspecto, não merece a decisão proferida qualquer censura (4) ».
Ora, a nosso ver, a apreciação da impugnação da decisão de facto, que foi feita após prévia audição de toda a gravação das declarações prestadas oralmente na audiência e depois da análise de todos os meios de prova pré-constituídos indicados na sentença de 1.ª instância, entre os quais se encontrava a informação de serviço de fls. 45, encontra-se suficientemente fundamentada por nela se ter explicado, em concreto, os motivos que levaram este tribunal a manter a decisão da 1.ª instância quanto à generalidade dos factos provados e a aditar-lhes o atrás indicado.
Não padece, por isso, o acórdão deste Tribunal da Relação da arguida nulidade.
A nulidade do acórdão por ter valorado prova proibida
5 – Sustentou também a assistente que aquela peça processual era nula porque tinha valorado prova proibida, tendo indicado como disposições legais violadas os artigos 126.º, 355.º, 356.º, 357.º, 374.º, n.º 2, 379.º, n.º 1, al. c), do Código de Processo Penal.
Analisemos também esta questão colocada pela requerente.
Se bem vemos as coisas, toda a sua argumentação assenta no entendimento de que a indicada “Informação de Serviço”, constante de fls. 45, é um auto que, como tal, não podia ter sido atendido pelo tribunal por a tal obstar o disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 356.º do Código de Processo Penal.
Um tal ponto de vista parte, a nosso ver, de uma ideia pouco clara e precisa do conceito de prova documental, não a delimitando do conceito de auto, confundindo um documento com a documentação dos actos processuais.
Senão vejamos.
De acordo com o n.º 1 do artigo 164.º do Código de Processo Penal, «é admissível prova por documento, entendendo-se por tal a declaração, sinal ou notação corporizada em escrito ou qualquer outro meio técnico, nos termos da lei penal».
A esta luz, reveste, nomeadamente, a natureza de documento toda a declaração corporizada num escrito, inteligível para a generalidade das pessoas, que, permitindo reconhecer o emitente, seja idónea a provar um facto juridicamente relevante.
Se para a definição do conceito de documento se atendesse apenas ao indicado n.º 1 do artigo 164.º do Código de Processo Penal e às alíneas a) e b) do artigo 255.º do Código Penal, para que aquele remete, qualquer auto lavrado num processo, contivesse ou não declarações, seria um documento e, como tal, poderia ser valorado para a formação da convicção do tribunal nos termos e nas circunstâncias enunciadas no artigo 355.º daquele Código.
Uma tal conclusão entraria em claro confronto, para além do mais, com o disposto nos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal, disposições que impedem, por regra, a valoração, para a formação da convicção do tribunal, de diligências de prova realizadas nas fases preliminares do processo, nomeadamente a valoração de autos de inquérito que contenham declarações do assistente.
Para delimitar os conceitos processuais de prova documental e de auto (artigo 99.º do Código de Processo Penal), deve partir-se da ideia, que é aceite noutros ordenamentos jurídicos (5), de que o objecto representado pelo documento é necessariamente um acto realizado fora do processo ao qual ele vem a ser junto. Se, pelo contrário, o objecto representado é um acto do processo em causa, qualquer que ele seja, então estamos perante um auto que é nele lavrado e que está sujeito a um regime diferente do reservado à prova documental.
Um auto não pode, nomeadamente, ser valorado para a formação da convicção do tribunal a não ser nos apertados limites traçados pelos artigos 356.º e 357.º do Código de Processo Penal.
6 – Partindo dos indicados conceitos de documento e de acto processual documentado, há que dizer que a citada “Informação de Serviço”, embora tenha sido lavrada por um OPC, é um documento e não um auto, não estando, por isso, sujeita ao regime previsto na indicada alínea b) do n.º 1 do artigo 356.º do Código de Processo Penal.
Uma tal conclusão baseia-se no facto de essa informação ter sido lavrada no dia 10 de Abril de 2007 na sequência de uma deslocação de uma patrulha da GNR a casa da assistente, a pedido dela, 8 dias antes de ter sido instaurado o procedimento criminal, o qual se iniciou na sequência da queixa por ela apresentada no dia 18 de Abril desse mesmo ano.
Não sendo essa informação de serviço a documentação de um qualquer acto processual e tendo ela sido junta a um processo que, na altura em que foi elaborada, ainda não existia, não pode deixar de ser qualificada como prova documental pré-constituída cujo regime não está sujeito ao disposto no artigo 356.º do Código de Processo Penal, nomeadamente ao definido na alínea b) do seu número 1.
Não impedindo, nem esta nem outra qualquer disposição legal, a sua valoração para a formação da convicção do tribunal, não padece o acórdão recorrido da invocada nulidade.
Apenas se acrescentará que não se descortina o fundamento da invocação, a este propósito, do artigo 126.º do Código de Processo Penal uma vez que, qualquer que fosse a solução que se prefigurasse, nunca este tribunal tinha estado confrontado com a utilização de qualquer prova obtida mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas ou mediante a intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
A inconstitucionalidade da norma aplicada pelo tribunal
7 – Resta dizer que a valoração, nos termos indicados, de prova documental pré-constituída para a formação da convicção do tribunal não viola, a nosso ver, nem o direito de acesso ao direito e à tutela jurisdicional efectiva, nem qualquer garantia de defesa no processo criminal (artigos 20.º e 32.º da Constituição), não tendo este tribunal, por qualquer forma, violado qualquer norma ou princípio da lei fundamental.
Acrescente-se apenas que, como anteriormente se referiu, a valoração do indicado documento já tinha sido anteriormente feita pelo tribunal de 1.ª instância sem que a assistente ou qualquer outro sujeito processual tenha suscitado qualquer dúvida de constitucionalidade, razão pela qual não poderá sustentar agora que foi surpreendida pela posição sufragada a tal respeito por este tribunal.
Assim, e pelo exposto, não pode este tribunal deixar de indeferir o requerimento apresentado pela assistente.
8 – Uma vez que a assistente decaiu no requerimento que apresentou é responsável pelo pagamento da taxa de justiça e dos encargos a que a sua actividade deu lugar (artigos 513.º e 514.º do Código de Processo Penal).
De acordo com o disposto no artigo 84.º do Código das Custas Judiciais a taxa de justiça varia entre 1 e 5 UC.
Tendo em conta a situação económica da assistente e a complexidade das questões suscitadas, julga-se adequado fixar essa taxa em 4 UC.
III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em:
a) Indeferir o requerimento apresentada pela assistente G.
b) Condenar a requerente no pagamento de taxa de justiça que se fixa em 4 (quatro) UC.
Notas:
(1) Como seja, por exemplo, a data de nascimento do menor que, de acordo com os progenitores, e embora não se encontre junta aos autos qualquer certidão de nascimento ou cópia de documento de identificação, é 31/10/1999 e não se situa no ano de 2000.
(2) Também se descurará o facto de a matéria de facto provada, tal como o fazia a acusação, pretender reproduzir um discurso directo quando se sabe que a memória das pessoas quanto aos exactos termos do que foi dito é extremamente frágil (DAVIS, Deborah e FRIEDMAN, Richard D., in «Memory for Conversations: The Orphan Child of Witness Memory Researchers», in The Handbook of Eyewitness Psychology, Volume I, Memory for Events», Lawrence Erlbaum Associates, New York, 2007, p. 3 e ss.).
(3) Nesse sentido, entre outros, o nosso acórdão proferido em 10 de Outubro de 2007 no processo n.º 8428/2007.
(4) Sobre tais dimensões do princípio “in dubio pro reo” veja-se BACIGALUPO, Enrique, in «La Impugnación de los Hechos Probados en la Casación y otros estudios», AD-HOC, Buenos Aires, 1994, p. 69, o qual diz, nomeadamente, que «o princípio “in dubio pro reo” tem duas dimensões que se deveriam distinguir: uma dimensão normativa e outra dimensão factual que, em geral, não têm sido tomadas em conta nem pela jurisprudência nem pela doutrina.
Nesta última o princípio faz referência ao estado individual de dúvida dos juízes e, portanto, deve ficar fora do recurso de cassação pois o tribunal de cassação não pode obrigar o tribunal “a quo” a duvidar quando ele está convencido quanto ao sentido de uma prova que apreciou directamente.
Pelo contrário, a dimensão normativa manifesta-se na existência de uma norma que impõe aos juízes a obrigação de absolver quando não se tenham podido convencer da culpabilidade do acusado ou de condenar pela hipótese mais favorável ao mesmo. Esta norma é violada quando se condena sem ter alcançado tal convicção».
(5) Veja-se, nomeadamente, TONINI, Paolo, in «La prova penale», 4.ª edição, Cedam, Padova, p. 189 e ss. e «Manuale di Procedura Penale», 8.ª edição, Giuffrè, Milano, 2007, p. 306 e ss.
Lisboa, 18 de Maio de 2011
____________________________________
(Carlos Rodrigues de Almeida)
____________________________________
(Horácio Telo Lucas)