Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 07-12-2011   Inconstitucionalidade do crime tipificado no artº 97º do Código do Notariado.
I – O artigo 97.º do Código do Notariado descreve um tipo incriminador autónomo que se pode analisar da seguinte forma:
No que respeita ao tipo objectivo
- Delimita o círculo de agentes exigindo que eles sejam os outorgantes da escritura de justificação, o que compreende os declarantes e as testemunhas;
- Descreve as possíveis acções típicas dos agentes, que podem consistir em prestar ou confirmar declarações falsas;
- Delimita as circunstâncias da acção, que deve ter lugar após prévia advertência da susceptibilidade de responsabilidade criminal do agente;
No que respeita ao tipo subjectivo:
- Exige que a acção seja dolosa, admitindo qualquer modalidade de dolo;
- Prevê a existência de um elemento subjectivo especial, que consiste na consciência de que as declarações causam prejuízo a outrem.
II – Porém, o artigo 97.º do Código do Notariado não pode ser aplicado pelos tribunais porque é orgânica e materialmente inconstitucional por violar dois dos corolários do princípio da legalidade: o «nullum crimen, nulla poena sine lege scripta» e o «nullum crimen, nulla poena sine lege certa».
III – É organicamente inconstitucional porque, tendo sido aprovado pelo Governo no uso das suas competências próprias, consubstancia uma alteração de uma anterior norma incriminadora que integrava o Código do Notariado de 1965, que o actual visou substituir.
IV – É materialmente inconstitucional porque não contém, de uma forma minimamente precisa, a indicação da sanção que corresponde ao comportamento tipificado.
Proc. 66/08.5JAPDL 3ª Secção
Desembargadores:  Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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Processo n.º 66/08.5JAPDL – 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida

Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa

I – RELATÓRIO
1 – Os arguidos S, T, A, M, M, A e E foram julgados no Tribunal Judicial da Comarca da P.
Por acórdão de 9 de Fevereiro de 2011, o tribunal decidiu:
a) Condenar S como autora de dois crimes de falsas declarações, previstos no artigo 97.º do Código do Notariado e puníveis nos termos do artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de dois anos e quatro meses de prisão e de um ano e dez meses de prisão.
Em cúmulo, foi a mesma arguida condenada na pena única de três anos e seis meses de prisão suspensa na sua execução, na condição de, no prazo de dois meses, pagar aos demandantes, solidariamente com os demais condenados, a quantia indemnizatória em que também foi condenada e ainda de, no prazo de seis meses, levantar o estaleiro que com o seu marido edificaram em terreno alheio, sem que no local deixem um único bloco ou tijolo.
b) Condenar T como autor de dois crimes de falsas declarações, previstos no artigo 97.º do Código do Notariado e puníveis nos termos do artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de dois anos e quatro meses de prisão e de um ano e dez meses de prisão.
Em cúmulo, foi o mesmo arguido condenado na pena única de três anos e seis meses de prisão. Esta pena ficou suspensa na sua execução, na condição de, no prazo de dois meses, pagar aos demandantes, solidariamente com os demais condenados, a quantia indemnizatória em que também foi condenado e ainda de, no prazo de seis meses, levantar o estaleiro que com a sua mulher edificaram em terreno alheio, sem que no local deixem um único bloco ou tijolo.
c) Condenar A como autor de dois crimes de falsas declarações, previstos no artigo 97.º do Código do Notariado e puníveis nos termos do artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de dois anos e quatro meses de prisão e de um ano e dez meses de prisão.
Em cúmulo, foi o mesmo arguido condenado na pena única de três anos e seis meses de prisão. Esta pena ficou suspensa na sua execução, na condição de, no prazo de dois meses, pagar aos demandantes, solidariamente com os demais condenados, a quantia indemnizatória em que também foi condenado.
d) Condenar M como autora de dois crimes de falsas declarações, previstos no artigo 97.º do Código do Notariado e puníveis nos termos do artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de um ano de prisão e de dez meses de prisão.
Em cúmulo foi a mesma arguida condenada na pena única de um ano e quatro meses de prisão. Esta pena ficou suspensa na sua execução, na condição de, no prazo de dois meses, pagar aos demandantes, solidariamente com os demais condenados, a quantia indemnizatória em que também foi condenada.
e) C como autor de dois crimes de falsas declarações, previstos no artigo 97.º do Código do Notariado e puníveis nos termos do artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de dez meses de prisão e de oito meses de prisão.
Em cúmulo, foi o mesmo arguido condenado na pena única de um ano de prisão. Esta pena ficou suspensa na sua execução, na condição de, no prazo de dois meses, pagar aos demandantes, solidariamente com os demais condenados, a quantia indemnizatória em que também foi condenado.
f) Condenar A como autor de dois crimes de falsas declarações, previstos no artigo 97.º do Código do Notariado e puníveis nos termos do artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de dez meses de prisão e de oito meses de prisão.
Em cúmulo, foi o mesmo arguido condenado na pena única de um ano de prisão. Esta pena ficou suspensa na sua execução na condição de no prazo de dois meses pagar aos demandantes, solidariamente com os demais condenados, a quantia indemnizatória em que também foi condenado.
g) Condenar E como autor de dois crimes de falsas declarações, previstos no artigo 97.º do Código do Notariado e puníveis nos termos do artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal, nas penas de dez meses de prisão e de oito meses de prisão.
Em cúmulo, foi o mesmo arguido condenado na pena única de um ano de prisão. Esta pena ficou suspensa na sua execução na condição de no prazo de dois meses pagar aos demandantes, solidariamente com os demais condenados, a quantia indemnizatória em que também foi condenado.
h) Julgar parcialmente procedente o pedido civil formulado pelos demandantes L e P e, consequentemente, condenar os demandados S, T, A, M, M, A e E a pagar a cada um deles, solidariamente, a quantia de dois mil euros.
i) Absolver da instância os demandados quanto ao mais que referia o pedido civil apresentado por L e P.
j) Julgar improcedente o pedido de indemnização civil apresentado por M e outros, dele absolvendo os demandados. E absolver da instância os demandados quanto ao mais que referia o pedido civil apresentado por estes demandantes.
k) Absolver do pedido os demandados quanto à indemnização civil requerida pelo Estado.
l) Condenar os arguidos nas custas penais do processo, fixando a taxa de justiça de S e A em sete UC por cada um deles e em duas UC a taxa de justiça devida por cada um dos demais arguidos.
m) Condenar o Ministério Público nas custas cíveis do pedido que apresentou em representação do Estado (artigo 4.º, n.º 1, al. a) - a contrario sensu – do Regulamento das Custas Processuais).
n) Condenar os demandados e os demandantes L e P nas custas cíveis do pedido por estes formulado, na proporção de 90% e 10%, respectivamente.
n) Condenar os demandantes M e outros nas custas cíveis do pedido por estes formulado.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
A) Do plano
S nasceu a .. de … 19.. e T, em .. de .. de 19... São marido e mulher, casados em 2 de … de 19... Ela é filha de A e de M; e ele de M.
S e T decidiram tornar-se proprietários de prédios que pertenciam a outros. Para isso resolveram servir-se de escrituras de justificação notarial, invocar compras verbais, em tempos recuados, e o permanente domínio e uso deles, pelos tempos que se seguiram, nos termos em que o fazem os donos, de modo a serem reconhecidos proprietários por usucapião.
Num primeiro momento decidiram fazer a justificação de cinco prédios e, depois, julgando-se bem-sucedidos, decidiram fazer outra, relativa a um sexto prédio.
Diante da incredulidade que geraria o facto de serem eles próprios a invocar as aquisições, pela pouca idade que teriam nas datas que seria necessário indicar para que tivesse decorrido o tempo para a prescrição aquisitiva, estabeleceram acordo com os pais dela de modo a que os substituíssem nessa invocação, e a que, posteriormente, declarassem que lhes faziam a venda de tais prédios, também em escritura pública.
Como era necessária a intervenção de testemunhas que asseverassem as declarações dos justificantes, foram chamados M, A e E, os quais se aprestaram a intervir nas escrituras e nelas declarar que as aquisições tinham sido feitas nos termos que A e M nelas invocaram.

B) Da celebração das escrituras de justificação
Tudo foi feito como planeado no Cartório Notarial de P, perante a ajudante H, no exercício de funções próprias de notário, por vacatura do lugar de notário, como a lei dispõe, e sempre com a intervenção de A e M como justificantes e de M, A e E, como testemunhas.
Para isso, os referidos A e M outorgaram, no dia 14 de Dezembro de 2007, cinco escrituras de justificação; e no dia 14 de Março de 2008, uma sexta, lavradas no livro de notas para escrituras diversas, número 146-D, e em todas elas se declararam «donos e proprietários, com exclusão de outrem» de outros tantos prédios rústicos, situados em lugares da Freguesia dos …., concelho de P…, a saber:
– Na lavrada de fls. 14 a 15 v., disseram ter feito a compra do prédio situado no lugar do B.., com a área de 1600m2, de mata de incensos, a confrontar do Norte e Sul com A, do Nascente com J, e do Poente com M, inscrito na matriz cadastral da referida freguesia sob o artigo 39 da secção 006, a J e mulher, M, em Março de 1980, pelo preço de 40 000$00;
– Em outra, lavrada de fls. 10 a 11 v., disseram ter feito a compra do prédio situado no lugar do B, com a área de 1.440 m2, de mata de incenso, a confrontar, do Norte, com A, do Sul, com J, do nascente, com D e do poente com herdeiros de M, inscrito na mesma matriz sob o artigo 38 da secção 006, a M e mulher, M, em 25 de Maio de 1970, pelo preço de 36 000$00;
– Numa terceira, lavrada de fls. 8 a 9 v., disseram ter comprado a A e mulher, M, em Março de 1980, pelo preço de 60 000$00, o prédio rústico situado no lugar do B, com a área de 2.600m2, de mata de incenso, a confrontar, do Norte, com Z, do Sul, com A, do nascente, com rua, do poente, com M, inscrito na matriz sob o artigo 34 da secção 006;
– Numa quarta, lavrada de fls. 16 a 17 v., disseram ter feito a compra do prédio situado no lugar do B, com a área de 1.720m2, de mata de incensos, a confrontar, do Norte, com M, do Sul, com A; nascente, com servidão, do poente, com herdeiros de M, inscrito na mesma matriz sob o artigo 40 da secção 006, a F e mulher, M, em Março de 1980, pelo preço de 60 000$00;
– Numa quinta, lavrada de fls. 12 a 13 v., disseram ter comprado o prédio situado no B, de mata de incensos, com a área de 1.640m2 a confrontar, do Norte e Sul, com A, do nascente, com rua, e do poente, com M, inscrito na matriz sob o artigo 35 da secção 006, a J ou J e mulher, M, em 1967, pelo preço de 40 000$00;
– Na sexta, lavrada de fls. 23 a 25, disseram ter comprado o prédio situado no lugar do B, lugar que também já foi conhecido por V, de mata de incensos, com área de 13 ares e 93 centiares, a confrontar, do norte, nascente e poente com rua, e do sul, com canada, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o número 40 706, a folhas 52 do livro B-103, inscrito na matriz sob o artigo 32 da secção 006, a M e mulher, A, em Março de 1980.
Mais declararam, em tais escrituras, que todas as compras tinham sido feitas verbalmente.
À excepção do último, nenhum dos demais prédios, estava descrito na Conservatória do Registo Predial competente, que é a de ….
De acordo com o que declararam, os casais vendedores tinham sido casados no regime da comunhão geral de bens, à data dos negócios que invocavam; os vendedores residiam na freguesia dos F; todos os vendedores tinham falecido à data das justificações; e que esse facto os impedia de celebrar as escrituras de compra e venda; os herdeiros dos vendedores tinham emigrado; e esse facto os impedia de recolher as procurações necessárias à celebração das escrituras; a partir do momento de cada contrato verbal, tinham entrado «na fruição» dos prédios, «como se de coisa sua se tratasse», «na convicção de exercerem um direito de proprietários, usufruindo as utilidades possíveis» mondando-os, procedendo às necessárias reparações das vedações, pagando impostos, bem como, no que toca aos prédios atrás referidos em 2.º, 3.º, 4.º e 5.º lugares, limpando ervas, cortando árvores e replantando-os.
Nos termos declarados, haviam feito tudo isto ininterruptamente, à vista de todos e sem a oposição de ninguém, e que eram conhecidos, em toda a freguesia, como donos, sendo que recorriam às escrituras de justificação por não disporem de títulos válidos das vendas para poderem efectuar o registo dos prédios no seu nome, quer porque os vendedores já tinham falecido, quer por não saberem quem eram os herdeiros respectivos ou onde moravam, por terem emigrado, o que os impedia de obter as procurações necessárias à outorga das escrituras de compra e venda.
Relativamente ao sexto prédio já não foi esta a alegação.

C) Dos registos
Posteriormente, fizeram registar cinco dos prédios referidos na Conservatória do Registo Predial de Ponta Delgada, em nome dos justificantes, vindo a caber-lhes as descrições seguintes:
– Ao que estava inscrito na matriz sob o artigo 34 da secção 006, o n.º 1353 da Freguesia dos F;
– Ao que estava inscrito na matriz sob o artigo 35 da secção 006, o n.º 1354 da freguesia dos F;
– Ao que estava inscrito na matriz sob o artigo 38 da secção 006, o n.º 1355 da freguesia dos F;
– Ao que estava inscrito na matriz sob o artigo 39 da secção 006, o n.º 1356 da freguesia dos F;
– Ao que estava inscrito na matriz sob o artigo 40 da secção 006, o n.º 1357 da freguesia dos F.

D) Da venda a S a T
Depois, conforme acordado com o genro e a filha, A e M, por escritura de 1 de Maio de 2008, lavrada a folhas 75 do livro 150-D, do referido cartório, declararam vender-lhes os cinco prédios acabados de referir, pelo preço global de 8 200,00 €.

E) Da intervenção do solicitador
Para preparar as escrituras e obter a documentação necessária, os quatro primeiros arguidos haviam contratado os serviços de um solicitador.
De entre os documentos a obter, contavam-se as certidões do registo predial dos prédios descritos e certidão confirmativa do não registo dos prédios que, efectivamente, não estivessem registados.
A requisição de certidões relativas a prédios não registados só poderia ser satisfeita se fossem indicados os nomes dos possuidores no momento e dos dois possuidores que os tivessem antecedido, comummente designados como primeiros antepossuidores e segundos antepossuidores.
O solicitador requisitou as certidões, indicando A e M como possuidores, e como desconhecidos os segundos antepossuidores. Quanto aos primeiros antepossuidores, que tinham sido:
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 32.º, secção 006, G, casado com M, e M e A;
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 39.º, secção 006, J, casado com O;
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 38.º, secção 006, M, casado com A;
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 34.º, secção 006, A, casado com M;
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 40.º, secção 006, F, casado com M.
Os prédios foram identificados como não descritos na Conservatória do Registo Predial, salvo no que respeita ao que tinha o artigo 32.º, secção 006.
Acontece que o prédio com o artigo matricial n.º 34, secção 006, estava descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 54 285, a fls. 91 v., do livro B-149 e inscrito sob o n.º 82 228, a fls. 106, do livro G-106, por acto de 29 de Junho de 1983, em nome de A, casado com M, e de M, em comum e sem determinação de parte ou direito.
Neste caso a requisição da certidão ao registo predial, feita pelo solicitador, indicava que o prédio não estava descrito e que os possuidores e primeiros e segundos antepossuidores eram os referidos.
Com a troca do nome do cônjuge e a menção de não descrição, a Conservatória do Registo Predial de … não pôde estabelecer relação entre os nomes fornecidos e o prédio que lhe era designado e, assim, certificou que o prédio efectivamente descrito sob o n.º 54 285 não constava do registo predial, ou seja, não estava descrito.

F) Da advertência quanto às consequências
No acto da outorga das escrituras, previamente à confirmação das declarações feitas pelos identificados A e M, as testemunhas M, A e E foram advertidos de que cometeriam crime de falsas declarações perante oficial público se o fizessem contra o que fosse verdade e, não obstante, declararam confirmar tais declarações, sabendo que não correspondiam à verdade e que colaborariam em acto que privaria os verdadeiros donos dos respectivos prédios.
Sucedia que nem os supostos casais de vendedores tinham existido, nem as invocadas compras tinham sido celebradas, nem tinham sido exercidos os mencionados actos sobre os prédios, nem os justificantes tinham tirado quaisquer utilidades deles, excepto, quanto a estes, se o fizeram contra a vontade e sem o consentimento dos donos e às ocultas.
Quem exerceu os indicados actos ou deixou os prédios simplesmente em pousio e os defendeu, quando necessário, de aproveitamentos não autorizados das suas utilidades, foram os donos dos prédios enquanto vivos, ou seus herdeiros depois, ou aqueles para quem já tinham transferido a propriedade.
Todos os arguidos actuaram de modo livre, deliberado e consciente, certos da sua ignorância quanto a quem tinha sido dono dos prédios em questão e a quem vieram a pertencer depois, e sabendo que os negócios que referiram não tinham sido realizados, nem se tinham verificado os declarados actos de posse.
Todos tiveram o propósito de levar a que, num primeiro momento, A e M fossem reconhecidos donos dos prédios e viessem a gozar da presunção de proprietários que o registo lhe conferiria, para, num segundo momento, em acto meramente declaratório e sem negócio subjacente, que S e T fizessem a «compra», aumentando, sucessivamente, os respectivos patrimónios, com a correlativa diminuição do património de quem era dono deles.
Todos sabiam que as actuações que tiveram eram punidas por lei como crime.
Provou-se ainda, do pedido civil apresentado por L, e outro, que:
A nunca foi casado com M, foi sim casado com M, em primeiras e únicas núpcias de ambos.
M aparece em três escrituras de justificação lavradas no mesmo dia, no mesmo cartório, casada com três pessoas diferentes.
O prédio descrito na conservatória do registo predial de … sob o n.º 82 228, a fls. 88 v. do livro G-106, inscrito na matriz sob o artigo 34, secção F (hoje secção 6) tem o direito de propriedade inscrito a favor de M e do então marido A e de M, falecida no dia .. de … de 2008.
Os demandantes L e P são filhos de M e seus únicos e universais herdeiros.
Há cerca de um ano e meio os demandantes tiveram de chamar a polícia das C para identificar uma pessoa que estava a cortar árvores no seu prédio; situação essa que já anteriormente, há cerca de 3 anos, se havia verificado.
Mais se provou que:
S: tem 35 anos de idade, é casada e encontra-se desempregada. Frequentou o sistema de ensino até ao 6.º ano de escolaridade. É pessoa com capacidade de descentração e crítica, com capacidade para se projectar adequadamente nas várias dimensões da sua vida e dispõe de condições intrínsecas que lhe permitem avaliar antecipadamente as consequências das suas acções. Não regista antecedentes criminais.
T: tem 45 anos, é casado, encarregado de construção civil. Concluiu o 7.º ano de escolaridade. É indivíduo com capacidade crítica e de descentração e com capacidade para antecipar as consequências dos seus actos. Não regista antecedentes criminais.
A: tem 69 anos de idade, é casado e está aposentado, exercendo todavia a actividade de agricultor. Concluiu o 4.º ano de escolaridade. É pessoa com capacidade de descentração, autocrítica, autocontrolo e com capacidade para efectuar um pensamento alternativo consequencial, com interiorização de regras, normas e valores. Não regista antecedentes criminais.
M: tem 67 anos de idade, é casada e encontra-se reformada. Frequentou o ensino escolar até ao 3.º ano. Junto da comunidade é referenciada positivamente, encontrando-se bem inserida. Não regista antecedentes criminais.
M: tem 78 anos de idade, é viúvo e está reformado. Não frequentou o sistema de ensino, começando a trabalhar como ajudante de pedreiro aos 8 anos de idade. Revela alguma dificuldade em efectivar uma análise crítica do presente processo, apresentando um discurso desculpabilizante, não se percepcionando como arguido mas apenas como testemunha. Não regista antecedentes criminais.
A: tem 60 anos de idade, é casado e tem a profissão de pedreiro. Frequentou o ensino escolar até ao 4.º ano de escolaridade. Apresenta uma considerável despreocupação relativamente às consequências do presente processo. Não regista antecedentes criminais.
E: tem 59 anos, é casado, tem a profissão de pedreiro, mas actualmente desempregado. Concluiu o 4.º ano de escolaridade. É uma pessoa que apresenta capacidade crítica e de descentração. Não regista antecedentes criminais.
O tribunal considerou não provado:
Que os quatro primeiros arguidos deram instruções ao solicitador, que requisitou as certidões, para indicar como primeiros antepossuidores:
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 32.º, secção 006, G, casado com M, e M e A;
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 39.º, secção 006, J, casado com O;
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 38.º, secção 006, M, casado com A;
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 34.º, secção 006, A, casado com M;
– Do prédio inscrito na matriz sob o artigo 40.º, secção 006, F, casado com M.
Mais deram instruções para que indicasse os prédios como não descritos na Conservatória do Registo Predial, salvo no que respeita ao que tinha o artigo 32.º, secção 006.
Que os primeiros quatro arguidos, deram instruções ao solicitador para que afirmasse na requisição da certidão do registo predial que o prédio com o artigo matricial n.º 34, secção 006, descrito na Conservatória do Registo Predial de … sob o n.º 54 285, a fls. 91 v., do livro B-149 e inscrito sob o n.º 82 228, a fls. 106, do livro G-106, por acto de 29 de Junho de 1983, em nome de A, casado com M, e de M, em comum e sem determinação de parte ou direito, não estava descrito e indicasse os possuidores e primeiros e segundos antepossuidores pela forma referida.
Que os quatro primeiros arguidos sabiam que as declarações prestadas para obtenção de certidões do registo predial quanto aos possuidores e antepossuidores não correspondiam à verdade e que a declaração prestada era necessária à invocação da propriedade de prédios que a outros pertenciam e, por essa via, à subtracção da propriedade aos donos.
Do pedido civil de M, e outros:
Que os autores sejam donos do prédio rústico, composto por 1460 m2 de mata e incensos, sito no B, freguesia dos F da Luz, não descrito na Conservatória do Registo Predial, mas inscrito na respectiva matriz sob o artigo 35, secção 6.
Que «desde logo porque os donos do prédio não são pais dos AA. J e mulher M, sendo que antes destes era dos avós J e M, advindo-lhes por sucessão hereditária.»
Do pedido de L:
Que L e P «sempre pagaram os seus impostos».
O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:
O tribunal estribou a sua convicção quanto aos factos que julgou provados e não provados, com base nas declarações dos arguidos (quanto a estes mormente de M, A e E), nos depoimentos das testemunhas (destacando dentre estas M, L, M, G, J e L), todas conjugadas com o acervo documental constante dos autos, do qual se destacam as escrituras de justificação notarial (cf. apenso), a escritura de compra e venda dos prédios por A e mulher a S e Marido, a documentação fiscal relativa aos prédios em causa, os assentos de nascimento, de casamento e de óbito de pessoas ligadas aos prédios referidos nas escrituras, anúncios das escrituras publicados no jornal, procurações a M, reportagens fotográficas relativas aos prédios, habilitação de herdeiros, petições e contestações dos processos cíveis conexos (relativos aos prédios aqui em causa), constantes os mais relevantes a fls. 10/24, 25, 27, 29/37, 38, 40, 41, 88, 90, 93, 95/100, 105/110, 175/178, 212, 226, 229, 234, 237, 250/251, 264, 299, 304, 325, 326, 432/433 610/611, 713/725 e 738 dos autos.
Os arguidos S, T, A quiseram prestar declarações em audiência, continuando uma estória mal contada e que se desmorona seja qual for o ponto de vista que se tenha sobre ela, a começar pela circunstância de a versão que assumiram em audiência não coincidir com a que consta das escrituras públicas de justificação e estas não coincidirem também com a que narraram nas acções cíveis em que estão demandados. Em audiência disseram que A comprou os prédios todos a M, em 1971/1972, numa taberna, num negócio apressado, verbal, sem exibição de quaisquer documentos, e sem o «comprador» sequer saber bem quais eram os prédios e seus limites. Nas escrituras os vendedores são vários. E nas contestações também, mas não inteiramente coincidentes com aqueles. Realmente M foi, em conjunto com seu cunhado G, dono de alguns daqueles prédios de biscoito (dos prédios 25, 30, 32, 38 e 39), os quais passaram para os seus herdeiros (cf. declarações do procurador M). Em 1971 M tinha 61 anos de idade. E A tinha nessa altura 30 anos. Não podiam ser companheiros de taberna. Para além disso 61 anos de idade não era manifestamente idade para um homem, para mais daquela geração, emigrar (quem lhe daria trabalho?). Na verdade, nessa altura já ele tinha emigrado há quase 20 anos, para Angola (em 1952 ou 1953) e daí, posteriormente, para os Estados Unidos da América, nunca mais tendo regressado aos Açores. A primeira mulher morreu-lhe em Angola e por isso casou outra vez nos Estados Unidos. Isto mesmo foi asseverado em audiência por M, procurador de M, filho de M, que reside no Canadá (cf. fls. 88). O depoimento desta testemunha (M) é merecedor de todo o crédito. É ele pessoa nascida nos F... Conheceu M quando era ainda rapaz. Conhece a história de vida dele e não é por acaso que é procurador do seu filho. Para além disso conhece bem os prédios. O seu pai fazia por ali uma terra, em que ele trabalhou a tratar dos animais, desde a década de 50. E desde 2004 que tem lá o seu próprio prédio. É reformado do exército. O seu depoimento, na parte que o pode ser (quanto à ausência de qualquer presença dos arguidos até T começar a construir o seu estaleiro), coincide com os demais que se afiguram credíveis. E credíveis são os depoimentos provenientes de pessoas sem interesse na causa e que mostraram ter conhecimento directo dos acontecimentos que descreveram (G e J), bem assim como os daqueles que tendo interesse na causa tiveram depoimento lógico, seguro e bem arrimado em documentos (M e L).
S e depois dela os seus irmãos, cunhados e tio (testemunhas A, M, H, J) referiram que ao longo do tempo iam aos prédios apanhar incensos (para cabras) e fazer piqueniques. Não é verdade. Aqueles que comprovadamente ali passavam, por ali terem casa ou por aqui apascentarem o seu gado, nunca por lá os viram (testemunhas L, M, Z, J, J) nem aquilo tinha condições para piqueniques (veja-se o sentido inequívoco da expressão da testemunha G: «onde é que eles iam fazer piqueniques?... Pela sua saúde…»).
Para além destes pormenores o sinal mais objectivo de todos é, indubitavelmente, a confissão feita pelos arguidos M, A e E, de que não têm nenhum conhecimento dos factos que atestaram nas escrituras, tendo a tal acedido a pedido de T (e não de A, o que também é significativo).
Sinal desta última nota, que se deixou entre parêntesis, é a trapalhada em que se meteu a testemunha L, cujo depoimento foi a vários títulos inconsistente (desde logo por afirmar ter visto os arguidos muitas vezes por ali de roda dos prédios, o que a demais prova já evidenciou ser uma consabida mentira; mas também por não conseguir explicar como é que havia lá uma placa sua a anunciar a venda, e como fez uma venda de 2 500 € de pedra ao arguido T), mas foi na acareação com as testemunhas J e L que se sentiu encurralado e sem conseguir explicar não apenas a falta de sentido das suas afirmações, como as que eram feitas por J, muito afirmativo e bem explicado, e que respeitavam à sua própria actuação (que por isso, quanto a ela, não pode ter dúvidas). A testemunha D, que a dada altura comprou o prédio 36, referiu saber que os arguidos nunca foram donos de nada ali. E que o L lhe disse que ia vender ao T o prédio para o estaleiro, isto em 2003 ou 2004. Por seu turno J, que é o cabreiro que desde há muitos anos apascenta as suas cabras por aqueles terrenos, referiu, entre o mais, que em dada ocasião, há uns 7 ou 8 anos atrás, viu nos prédios de biscoito uma placa de L e que este vendeu a T um prédio por 500 contos (o prédio onde T edificou o seu estaleiro). J disse ao T que o L não era o dono do prédio, e que ainda se iria meter em trabalhos, porque não se compram prédios sem documentos. Mas este não quis saber e comprou na mesma. E o L, mesmo depois de saber as complicações que tudo isso vem dando, não quer saber, afirmando que T lhe fez uma oferta de 500 contos! Não é por acaso que o arguido T achou que nas suas declarações finais deveria dizer algo quanto à placa. E disse: que viu lá, realmente, uma placa na mata a anunciar um jardineiro (que era o L)... Ora isto coloca o L com uma placa num terreno que não era dele (o que aquele negou); e o T a ter visto a placa que outros descreveram (e que não era a anunciar jardineiro) e a saber quem é o L. E daqui para diante se desenrola o novelo, porque o arguido T quis construir um estaleiro (que construiu – cf. fls. 105/110) mas não quis comprar pelo seu justo valor um terreno para esse efeito, preferiu arriscar e confiar que ninguém viria reclamar. E bem sabia que não tinha direito nenhum sobre aquele prédio. J tinha-o avisado. E por isso não aceitou participar nas despesas de um ramal de água para aqueles prédios (testemunha Z).
Claro que os arguidos A, S e T fazem outras referências (aos «paus» para a construção da casa, aos incensos e às cabras, por exemplo) para dar consistência à sua estória. E trouxeram testemunhas para afirmarem isso e ainda que o primeiro desde há muitos anos tratava aqueles prédios como dono (cortando paus e colhendo incensos para as cabras). Mas trata-se de pessoas muito próximas (familiares ou empregados dos arguidos), que a espaços deram mostra de não saberem realmente o que afirmavam. Veja-se, por exemplo, J, irmão do arguido A, que quando instado afirmou que o seu irmão celebrou escritura com o M relativamente àqueles terrenos (ele bem sabe que é assim que se compram prédios), o que fez quando aquele voltou depois de ter estado embarcado (mas já se sabe que cá não tornou). Mas só o sabe porque o seu irmão lhe disse! E disse também ter conhecido M, que era rapaz para a sua idade. Mas não era. M tinha mais 16 anos do que ele, que tem agora 84 anos – cf. fls. 212 e 299).
A só depois das escrituras de justificação pagou impostos dos prédios; mas M (dona do prédio 34) e, antes do seu falecimento, o seu marido A, sempre pagaram os seus impostos (cf. fls. 10/24 e 264). E tinham um olheiro, residente nos F (um tal José Maria), que vigiava o prédio.
L, que é sobrinho de M e tem uma casa e animais ali no biscoito, por isso vai lá todos os dias, uma vez viu por lá um sujeito no prédio da sua mãe a cortar madeiras e chamou a polícia (cf. também fls. 304). Isto sim são actuações próprias de donos, que sempre estiveram presentes.
Não estamos neste processo no âmbito de uma acção de reivindicação, em que um proprietário reclama ao tribunal que lhe restitua o que é seu de direito. Não têm, por isso, os ofendidos de vir demonstrar o seu direito de propriedade sobre os prédios. O que está em causa é um ardil, mediante o qual alguém produz declarações, que sabe serem falsas e que também sabe serem idóneas a enganar terceiros e a convencê-los de que eles são donos do que efectivamente não são. E isso ficou sobejamente demonstrado. E, já agora, também ficou demonstrado que os legítimos donos do prédio n.º 34 são M e seus sobrinhos L e P (está nos autos a descrição predial, a inscrição do direito e a escritura de habilitação de herdeiros – quanto a estes últimos).
A actuação de M foi manifestamente acessória, fazendo o que lhe mandavam (o marido e a filha).
No que respeita às relações que se estabeleceram com as repartições, com vista a obter os documentos necessários para as escrituras, sobram dúvidas sobre a essencialidade da participação dos quatro primeiros arguidos. Eles contrataram um solicitador para lhes tratar do assunto e foi este profissional quem fez os requerimentos, deu as voltas necessárias e tratou de marcar as escrituras. A tese dos arguidos é a de que contaram ao solicitador «a verdade», isto é, que os prédios foram todos comprados de uma só vez, na taberna, em 1971/1972, a M, tendo sido este quem tratou de pôr outros nomes nos requerimentos e nas escrituras, avisando-os de que «era assim que tinha de ser».
O solicitador, por seu turno, disse que os requerimentos que fez foram estruturados no que os seus clientes lhe disseram. Ele só fez o que eles lhe indicaram, tendo sido eles quem lhe forneceu os nomes das pessoas que vieram a figurar nas escrituras. Essa é também a tese da acusação. Mas, a ser assim, os arguidos não precisariam de contratar um solicitador, fá-lo-iam eles próprios, sempre ficava mais barato e não metiam neste manifesto sarilho alguém experimentado e que rapidamente daria conta do que estava a suceder. E os arguidos não têm, nenhum deles, a sageza que foi necessária para tamanha urdidura (como, por exemplo, quanto ao prédio n.º 34, com a obtenção da certidão predial negativa ter-se evitado que o Cartório Notarial tivesse de notificar pessoalmente os titulares que estavam já inscritos e que eram residentes em São Miguel, para lhes limitar as possibilidades de conhecimento da justificação e de reagir a ela).
Sobram dúvidas quanto ao papel real do solicitador, como até da funcionária de um cartório distante, sem notário, que lavrou as escrituras de justificação sem se dar conta da repetição do mesmo nome feminino casado com diferentes maridos (!), que não procedeu aos éditos na Junta de Freguesia do local dos prédios (cf. fls. 738) e que depois vem a lavrar a escritura de compra e venda que fecha o círculo, no dia 1 de Maio de 2008… A explicação que esta funcionária (Hélia Duarte) deu em audiência tem a mesma consistência que a proveniente do solicitador. O Ministério Público ter-se-á apercebido disso durante a investigação e entendeu não haver prova do seu envolvimento fraudulento. Isso é o bastante para que nos quedemos por aqui, sendo certo que as dúvidas que deixámos expressas têm de aproveitar aos arguidos, e nessa medida os respectivos factos se consideraram não provados. Estas são, no essencial, as razões que sustentam o juízo relativo ao acervo factual não provado. E dos que provinham dos pedidos cíveis, o mesmo juízo decorre da ausência de elemento probatório que os demonstre.
As condições pessoais dos arguidos firmam-se no teor dos relatórios sociais elaborados pela DGRS (fls. 517/520 e 541/569), estando a ausência de antecedentes criminais de todos eles documentada nos respectivos certificado de fls. 342/348.
As declarações dos arguidos e os depoimentos testemunhais foram gravados em registo áudio, conforme atesta a acta da audiência.

2 – Os arguidos S, T, A e M interpuseram recurso desse acórdão.
A motivação conjunta apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
1. Salvo o devido respeito, entendemos que o acórdão enferma de contradição insanável da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão, o que se invoca nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo Penal.
2. Com efeito, do confronto entre os factos considerados como provados e não provados verifica-se que existe uma contradição insanável na respectiva fundamentação.
3. Dos factos considerados como provados, resulta que os arguidos ora recorrentes delinearam e executaram 'um plano' para se apoderarem de prédios rústicos que sabiam não lhes pertencerem.
4. Confrontada tal circunstância com os factos considerados como não provados, designadamente que os arguidos não deram quaisquer instruções ao solicitador, bem como, que os arguidos desconheciam que 'as declarações prestadas para obtenção de certidões do registo predial quanto aos possuidores e antepossuidores não correspondiam à verdade e que a declaração prestada era necessária à invocação da propriedade de prédios que a outros pertenciam e, por essa via, à subtracção da propriedade aos donos.'
5. Verifica-se que os arguidos não tiveram qualquer domínio sobre aqueles factos concretos, que constituíam pressuposto fundamental, essencial, para a concretização do 'plano' que a eles é imputado.
6. Deste modo, verifica-se que o acórdão recorrido revela contradição insanável da sua fundamentação, no que se refere à fixação dos factos considerados como provados e não provados,
7. bem como, contradição insanável entre a fundamentação e a decisão, pela circunstância do acórdão ter condenado os arguidos, não obstante considerar como não provada qualquer relação entre estes e a prática de factos muito concretos e precisos, descritos nos factos considerados como não provados, aqui reproduzidos, essenciais, vitais para a prossecução do alegado 'plano',
8. contradição da fundamentação e entre a fundamentação e a decisão esta que, nos termos do artigo 410.º, n.º 2, al. b), do Código de Processo [Penal] aqui se invoca para os devidos e legais efeitos.
9. Acresce que os arguidos, ora recorrentes, não podiam ser condenados pela prática do crime previsto pelo artigo 97.º do Código do Notariado.
10. Com efeito, só os factos interruptivos ou suspensivos previstos nos artigos 318.º a 321.º e 323.º a 325.º do Código Civil são susceptíveis de afectar o decurso do prazo de usucapião – artigo 1292.º do mesmo diploma.
11. Ora, dos factos considerados como provados do acórdão recorrido, não é identificado nenhum proprietário dos prédios em causa, objecto das escrituras de justificação, sendo certo que mesmo aqueles que se arrogaram como proprietários dos ditos prédios rústicos – demandantes civis – não lograram sequer provar aquela qualidade.
12. Apenas o prédio com o artigo matricial n.º 34, secção 006, encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial de P em nome de A, casado com M, e de M, em comum e sem determinação de parte ou direito, o que lhes confere, somente, uma simples presunção de propriedade.
13. Acontece que, dos factos considerados como provados não consta que os alegados ofendidos – demandantes civis – tenham promovido a interrupção do prazo de usucapião, designadamente através da citação ou notificação judicial de acto que exprimisse a intenção de exercer o direito correspondente, não podendo concluir-se que a posse dos arguidos, pública, não fosse também pacífica.
14. Nestes termos, constata-se que não houve qualquer falsidade nas declarações que os arguidos prestaram, pelo que não podiam ser condenados pela prática do crime previsto e punido pelo artigo 97.º do Código do Notariado e 359.º, n.º 1, do Código Penal.
15. Sempre se refira que a conduta pelos quais os arguidos, aqui recorrentes, foram condenados, não integra o crime do artigo 97.º do Código do Notariado, com referência ao artigo 359.º, n.º 1, Código Penal, e isto porque os outorgantes e intervenientes nessa escritura não prestaram tais declarações na qualidade de partes, de assistentes ou de partes civis em processo penal ou na qualidade de arguidos sobre a sua identidade ou antecedentes criminais, nem foram ajuramentados, tendo decidido neste sentido, entre outros, o Acórdão do T. R. do Porto no processo n.º 0040957 in www.dgsi.pt, pelo que ao decidir como decidiu, violou o acórdão recorrido o artigo 97.º do Código do Notariado e artigo 359.º, n.º 1, do Código Penal.
16. Saliente-se, ainda, que o Tribunal 'a quo' decidiu suspender a pena de prisão aplicada aos arguidos S e T mediante o cumprimento, entre outro, do seguinte dever: 'e ainda de no prazo de seis meses levantar o estaleiro que com o seu marido edificaram em terreno alheio, sem que no local deixem um único bloco ou tijolo.'
17. Ora, salvo o devido respeito, a imposição do aludido dever imposto aos arguidos S e T é manifestamente ilegal, porque viola o preceituado no artigo 51.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal,
18. e isto porque o dever imposto aos arguidos S e T não se encontra contemplado no elenco estabelecido no artigo 51.º, n.º 1, do Código Penal, sendo certo que o mesmo em nada se encontra relacionado com o crime pelos quais foram os arguidos condenados.
19. Por outro lado, o cumprimento do aludido dever não se encontra minimamente fundamentado no acórdão recorrido, nem o mesmo se debruça sequer sobre a razoabilidade do dever imposto aos arguidos S e T, bem como quanto à demonstração de que estes arguidos têm a possibilidade 'razoável' de cumprir com o aludido dever, conforme estabelece o artigo 51.º, n.º 2, do Código Penal.
20. Assim, a ausência no acórdão recorrido de qualquer fundamentação e demonstração de que os arguidos podem 'razoavelmente' cumprir com o dever que lhes é imposto, – o contrário está devidamente comprovado nos autos, nos termos do relatório social e económico dos arguidos – fere de ilegalidade e, consequentemente, de nulidade, a decisão do Tribunal 'a quo' que determinou a suspensão da pena de prisão mediante a demolição do dito estaleiro no prazo de seis meses, por violação do artigo 51.º, n.º 1 e n.º 2, do Código Penal, o que aqui expressamente se invoca para os devidos e legais efeitos.
21. Sem prescindir e meramente à cautela, sempre se refira que as penas a que os arguidos foram condenados mostram-se excessivas e desproporcionais à gravidade dos factos que lhes são imputados, não só pelo facto dos arguidos não terem quaisquer antecedentes criminais, bem como face à avançada idade dos arguidos, igualmente demonstrada nos autos, pelo que devem as penas de prisão em que os mesmos foram condenados ser revogadas e, em sua substituição, ser aplicada a pena de multa.
Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exas. doutamente suprirão, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado e, em consequência, ser proferido douto acórdão por este Venerando Tribunal, que absolva os arguidos dos crimes que lhe são imputados, por assim ser de Direito e Justiça».

3 – O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 874 a 878).

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 884.

II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – Os arguidos foram acusados pelo Ministério Público, no que para este efeito interessa, da prática de dois crimes de falsificação de documentos, condutas p. e p. pelos artigos 256.º, n.º 1, alínea d), e n.º 3, e 255.º, alínea a), do Código Penal, na redacção que lhe foi dada pela Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro (fls. 332 a 337).
O Sr. Juiz Presidente, na fase final da audiência, antes de ter lido o acórdão recorrido, comunicou aos arguidos uma possível alteração da qualificação jurídica das condutas que lhes eram imputadas dizendo que elas podiam integrar, não os crimes de falsificação de documentos, mas dois crimes previstos no artigo 97.º do Código do Notariado, sendo eles puníveis nos termos do disposto no n.º 1 do artigo 359.º do Código Penal (fls. 826 e 827).
O mandatário dos arguidos declarou nada ter a opor ou a requerer, tendo sido lido o acórdão que condenou todos os arguidos pelos indicados crimes.
Muito embora se justificasse, em princípio, a realização da referida comunicação, quer porque as condutas pelas quais os arguidos vieram a ser condenados não consubstanciavam, efectivamente, a prática de qualquer crime de falsificação de documentos , quer porque, caso consubstanciassem a prática de tais crimes, existia uma relação de concurso aparente entre essas normas, impondo-se a aplicação do artigo 97.º do Código do Notariado em detrimento do artigo 256.º do Código Penal, o certo é que, a nosso ver, o artigo 97.º do Código do Notariado padece de inconstitucionalidade material e orgânica, o que impede a sua aplicação por este tribunal (artigo 204.º da Constituição).
É o que procuraremos demonstrar depois de um breve percurso pela história legislativa deste preceito incriminador.

6 – No decurso dos anos cinquenta do século passado, o legislador português, ao procurar implementar a obrigatoriedade do registo predial , que tinha sido estabelecida, para certos concelhos, pelo artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 36.505, de 11 de Setembro de 1947, previu, no artigo 27.º da Lei n.º 2049, de 6 de Agosto de 1951, a possibilidade de que aqueles que, invocando direitos inscritos na matriz, não pudessem fazer prova desses direitos por documento bastante pudessem inscrever esses seus direitos no registo predial mediante um procedimento especial de justificação administrativa, que então criou.
Essa procedimento consubstanciava-se, de acordo com o § 1.º do citado artigo 27.º, numa «declaração do proprietário, prestada sob juramento e confirmada por três testemunhas de reconhecida idoneidade, em auto lavrado perante o chefe de missão» .
No § 6.º desse mesmo artigo 27.º dizia-se que «comete o crime previsto no § 5.º do artigo 238.º do Código Penal aquele que, dolosamente e em prejuízo doutrem, prestar declarações falsas, ou as confirmar como testemunha no auto a que se refere o § 1.º deste artigo. Os declarantes e as testemunhas serão sempre advertidos desta cominação».
Em face do fracasso do sistema concebido pela Lei n.º 2049, de 6 de Agosto de 1951, para promover a obrigatoriedade do registo predial, veio a ser publicado o Decreto-Lei n.º 40.603, de 18 de Maio de 1956, o qual, para além do mais, institui e regulou, no seu artigo 20.º, um novo instituto, a que chamou «justificação notarial», que consistia, de acordo com o seu § 1.º, na «declaração feita em escritura pública pelos interessados, confirmada por mais três declarantes que o notário reconheça idóneos, na qual aqueles se afirmem, com exclusão de outrem, sujeitos do direito de que se trata, especificando a causa da sua aquisição».
No § 11.º desse mesmo artigo 20.º dizia-se que «comete o crime previsto no § 5.º do artigo 238.º do Código Penal aquele que, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestar ou confirmar declarações falsas na justificação regulada neste artigo. Os declarantes serão sempre advertidos desta cominação».
O Código de Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 42.565, de 8 de Outubro de 1959, regulou de uma forma mais desenvolvida e cuidada os meios de suprimento da falta de registo, admitindo, a par da já referida justificação notarial (artigo 209.º e ss.), uma acção de justificação judicial (artigo 199.º e ss.).
No seu artigo 211.º, ao regular a justificação notarial, estabelecia que o justificante e os declarantes deveriam ser «sempre advertidos, pelo notário, das cominações previstas no artigo 276.º» e impunha que essa advertência constasse da escritura.
Por sua vez, o artigo 276.º dizia o seguinte:
«1. Quem fizer registar qualquer facto falso ou juridicamente inexistente será responsável por perdas e danos, além de, no caso de procedimento doloso, incorrer nas penas aplicáveis ao crime de falsidade .
2. Na mesma responsabilidade civil e criminal incorrerá quem prestar ou confirmar inexactas ou falsas declarações, na conservatória ou fora dela, para que se efectuem os registos ou se lavrem os documentos para eles necessários».
O Código de Registo Predial aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47.611, de 28 de Março de 1965, remeteu a regulação da justificação notarial para o Código do Notariado (artigos 215.º a 217.º), o qual, tendo sido aprovado pelo Decreto-Lei n.º 47.619, de 31 de Março de 1967 , veio a regulá-la no artigo 100.º e ss..
Do artigo 107.º desse corpo normativo passou a constar que «os outorgantes serão sempre advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsidade, se, dolosamente e em prejuízo de outrem, tiverem prestado ou confirmado declarações falsas, devendo a advertência constar da própria escritura».
O actual Código do Notariado, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 207/95, de 14 de Agosto, continua a prever e regular as justificações notariais (artigo 89.º e ss.), dizendo no seu artigo 97.º que «os outorgantes são advertidos de que incorrem nas penas aplicáveis ao crime de falsas declarações perante oficial público se, dolosamente e em prejuízo de outrem, prestarem ou confirmarem declarações falsas, devendo a advertência constar da escritura».
Foi esta a norma incriminadora que esteve na base das condenações proferidas nestes autos. Ela, no essencial, reproduz o que constava da redacção originária do anterior Código de Notariado salvo no que respeita à indicação da disposição em que se previa a punição daquele comportamento. Abandonou a remissão para o «crime de falsidade» e apontou para um «crime de falsas declarações perante oficial público».

7 – Não se pode deixar de dizer que esta disposição, ao contrário do que é afirmado pelos recorrentes (que se escoram, para tanto, num acórdão do Tribunal da Relação do Porto de que apenas está publicado o sumário), descreve um autónomo tipo incriminador que se pode analisar da seguinte forma:
– No que respeita ao tipo objectivo
- Delimita o círculo de agentes exigindo que eles sejam os outorgantes da escritura de justificação, o que compreende os declarantes e as testemunhas;
- Descreve as possíveis acções típicas dos agentes, que podem consistir em prestar ou confirmar declarações falsas;
- Delimita as circunstâncias da acção, que deve ter lugar após prévia advertência da susceptibilidade de responsabilidade criminal do agente;
–No que respeita ao tipo subjectivo:
- Exige que a acção seja dolosa, admitindo qualquer modalidade de dolo;
- Prevê a existência de um elemento subjectivo especial, que consiste na consciência de que as declarações causam prejuízo a outrem.

8 – O que esta norma não contém é a indicação da sanção que corresponde ao comportamento nela tipificado, se bem que o legislador tenha pretendido fazê-lo por remissão para uma outra norma sancionadora.
Porém, ao proceder desta forma, o legislador violou, a nosso ver, dois dos corolários do princípio da legalidade : o de «nullum crimen, nulla poena sine lege scripta» e o de «nullum crimen, nulla poena sine lege certa».
Em primeiro lugar, porque remeteu para um eventual “crime de falsas declarações perante oficial público”, designação que não corresponde à epígrafe, nem ao conteúdo, de qualquer incriminação do Código Penal ou de qualquer legislação extravagante que se conheça, apenas correspondendo a parte da epígrafe da Secção VI do Capítulo VI do Título III do Livro II do Código Penal de 1886 (Do falso testemunho e outras falsas declarações perante a autoridade pública), diploma há muito revogado quando em 1995 foi publicado o novo Código do Notariado.
Os artigos 359.º e 360.º do Código Penal incriminam apenas comportamentos desenvolvidos no âmbito de processos judiciais (administração de justiça estadual ), incluindo nestes as diferentes fases do processo de contra-ordenação , e não quaisquer falsas declarações perante oficial público , razão pela qual não se pode interpretar aquela menção como remetendo indiscriminadamente para aqueles preceitos.
Fica-se, portanto, sem saber qual a pena aplicável ao comportamento incriminado no mencionado artigo 97.º, o que viola a exigência de certeza imposta pelo princípio da legalidade.
Em segundo lugar, porque o Governo, ao aprovar este Código do Notariado, agiu no uso de poderes próprios e não no uso de qualquer autorização legislativa que legitimasse a alteração da pena aplicável a um comportamento já incriminado no anterior Código do Notariado.
Se lhe era lícito, sem autorização legislativa, manter a anterior incriminação de um comportamento, não lhe era permitido, nessas condições, alterar a respectiva punição, o que neste caso manifestamente sucedeu.
Por tudo isto, não pode este tribunal deixar de considerar que o artigo 97.º do actual Código do Notariado viola o princípio da legalidade penal consagrado no artigo 29.º, n.ºs 1 e 3, da Constituição, razão pela qual o não pode aplicar (artigo 204.º da Lei Fundamental).

9 – Não podendo aplicar a norma incriminadora que fundamentou a condenação dos arguidos em 1.ª instância e não preenchendo a sua conduta qualquer outro crime, não resta a este tribunal qualquer outra alternativa que não seja a de absolver todos os arguidos, incluindo os não recorrentes , dos crimes por que foram condenados.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso interposto pelos arguidos S, T, A e M, absolvendo todos os arguidos, incluindo os não recorrentes, dos crimes por que foram condenados em 1.ª instância.
Sem custas.


Lisboa, 7 de Dezembro de 2011

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(Carlos Rodrigues de Almeida)

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(Horácio Telo Lucas)