Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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 - ACRL de 07-12-2011   Distinção entre actos de tráfico e de consumo
I. O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sua versão originária, na linha, de resto, do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, que o antecedeu, punia tanto o tráfico como o consumo de droga, quaisquer que fossem as quantidades de substâncias ou preparações que fossem objecto de cada uma destas actividades.
II. O artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estabelecia a punição como tráfico de droga da prática dolosa e não autorizada de qualquer uma das 18 modalidades de conduta que o preceito descrevia, desde que essa prática tivesse por objecto alguma das substâncias incluídas nas tabelas I a IV a ele anexas.
III. O cultivo, a aquisição e a mera detenção para consumo dessas mesmas substâncias ou preparações (para além do próprio consumo) eram puníveis de uma forma significativamente atenuada pelo artigo 40.º do mesmo diploma, independentemente da quantidade das substâncias ou preparações envolvidas no acto.
IV. O que distinguia os tipos incriminadores descritos nos artigos 21.º, n.º 1, e 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, era, para além do leque de actos tipificados, que era compreensivelmente muito mais amplo no artigo 21.º, um elemento subjectivo especial da ilicitude, o propósito de destinar a substância a consumo próprio, que tinha de se encontrar presente para a conduta ser punível como um acto de consumo.
V. A determinação da quantidade de produto, para além de poder ter reflexos na eventual qualificação do crime de tráfico, se fosse esse o caso, e na pena concreta aplicada, apenas era relevante como indício que contribuía para a distinção dos actos de consumo dos de tráfico.
VI. De acordo com as regras de experiência comum, podia inferir-se que a detenção de uma elevada quantidade de droga se destinava ao tráfico, ao passo que a detenção, em determinadas circunstâncias, de uma pequena quantidade do mesmo produto, indiciava que a droga se destinava a consumo próprio.
VII. Para além disso, a lei delimitava alguns tipos incriminadores ou a medida da pena aplicável a certas condutas atendendo ao facto de a substância ou preparação em causa exceder ou não o «necessário para o consumo médio individual» durante determinado período de tempo (artigos 26.º, n.º 3, e 40.º, n.º 2).
VIII. Embora o conceito de «consumo médio individual» não fosse completamente rígido (artigo 71.º, n.º 3), era um conceito objectivo que não variava segundo os consumos mais ou menos elevados de cada utilizador do produto.
IX. Para esse efeito, a lei previu a publicação de uma Portaria que estabelecesse «os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV de consumo mais frequente» – alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º.
X. Foi no cumprimento dessa injunção que veio a ser publicada a Portaria n.º 94/96, de 26 de Março. Do seu artigo 9.º e do mapa que se lhe refere resulta que o valor diário a considerar quanto ao consumo médio individual de diacetilmorfina (heroína) é de 0,1 grama.
XI – Só se pode ver se uma determinada porção desse produto excede ou não um determinado limite depois de ter sido determinado o seu peso líquido e o grau de pureza.
XII. A descriminalização do consumo, aquisição e detenção para consumo próprio das plantas, substâncias e preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, operada pela Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (artigos 2.º e 28.º), não alterou a distinção entre os actos de tráfico e de consumo.
XIII. Depois da publicação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, de 25 de Junho de 2008, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações incluídas nas tabelas I a IV do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, constituirá contra-ordenação (artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro) ou crime (artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro) consoante o produto não exceda ou exceda «a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».
XIV. Se a aquisição ou a detenção não se destinarem ao consumo próprio estaremos perante actos de tráfico, independentemente da quantidade de plantas, substâncias ou preparações que estiverem em causa.
Proc. 5/11.6GACLD 3ª Secção
Desembargadores:  Carlos Almeida - Telo Lucas - -
Sumário elaborado por Carlos Almeida (Des.)
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Processo n.º 5/11.6GACLD – 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida



Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa


I – RELATÓRIO
1 – No dia 29 de Junho de 2011, no termo do 1.º interrogatório judicial do arguido A, o Ministério Público formulou o requerimento que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
'Não obstante o arguido não ter admitido que o produto estupefaciente lhe foi apreendido se destinava a cedência de terceiros, o certo é que dos elementos de prova carreados para os autos designadamente: o facto de se tratar de uma quantidade considerado produto estupefaciente; a circunstância desse produto estar embalado em diversos pedaços, e ter o arguido despendido quantia monetária para aquisição do produto superior à sua capacidade económica.
Tais factos são no nosso entender indiciadores que parte do produto apreendido ao arguido se destinava ao tráfico, que se destinava para a venda a terceiros.
Porém, nesta fase embrionária do processo desconhece-se qual a dimensão desse tráfico e frequência com que o mesmo é praticado, bem como todas as demais circunstâncias a ele conexas.
Contudo, não podemos olvidar que o produto estupefaciente apreendido ao arguido é a mais grave das drogas ilícitas.
Deste modo, os indícios já recolhidos nos autos são suficientemente fortes e susceptíveis em abstracto integrarem a prática de crime de tráfico de menor gravidade previsto no artigo 25.º, ou eventualmente o tráfico previsto no artigo 21.º, n.º 1, do DL 15/93, de 22/01, tabela anexa I-A.
O aludido ilícito 'trafico de menor gravidade' é punível com pena de prisão de um a cinco anos.
Assim, atenta a natureza do ilícito, a circunstância do arguido ser consumidor de heroína e o facto de não desempenhar uma actividade laboral remunerada com regularidade, afigura-se-nos existir perigo de continuação da actividade criminosa.
Apesar disso, atenta a fase embrionária da investigação entendemos, para já, no interesse da investigação, que seja aplicado ao arguido uma medida de coação [não] detentiva.
Face ao exposto, entendemos que o arguido deverá aguarda os ulteriores termos do processo sujeito ao TIR já prestado; à medida de obrigação de apresentação periódica, duas vezes por semana em dias e horas a designar, como também sujeito à medida de coação de proibição de contactos, designadamente proibição de contactos com consumidores de produtos de estupefacientes, não frequentar espaços conotados com o consumo, bem como não se ausentar da área desta comarca. Tais medidas afigura-se-nos que são aquelas que, em concreto, se mostram mais adequadas às exigências cautelares que o caso requer e proporcionais à gravidade do ilícito, bem como à pena que se antevê que lhe seja aplicada na fase de julgamento – artigo 191.º, n.ºs 1 e 2, 196.º, 198.º, 201.º, n.º 1, al. d), e 204.º, al. c), o que se promove'.
A defensora oficiosa nomeada ao arguido declarou nada ter a opor ao requerido.
O Sr. juiz colocado no 3.º Juízo do Tribunal Judicial da Comarca das Caldas da Rainha proferiu então o despacho que, na parte para este efeito relevante, se transcreve:
«Interrogado o arguido e analisados os elementos de prova indicados na promoção de fls. 30 a 32, julgo indiciados, de entre os factos referidos nessa promoção, os seguintes:
'No dia 28 de Junho de 2011, pelas 16 horas e 45 minutos, o arguido circulava na Auto-Estrada A8, no sentido de marcha Sul/Norte, tripulando um veículo ligeiro de mercadorias, de matrícula 00-00-00, da sua pertença, vindo a ser interceptado pelos militares da GNR, M e H, ao km 13,500, do IP6, área desta comarca.
Após imobilização da viatura do arguido, os mencionados militares da GNR abordaram-no, solicitando-lhe que saísse da mesma.
Ao sair do veículo, o arguido atirou para o solo um pequeno saco de plástico transparente, contendo no seu interior oito porções de uma substância em pó de cor castanha, com o peso de 5,8 gramas, que ao ser submetida a teste rápido (Identa), foi identificada como sendo heroína.
De seguida, os referidos militares fizeram uma busca à viatura que o arguido conduzia, encontrando no interior da base da caixa de velocidades dezoito porções de uma substância em pó de cor castanha, com o peso de 12,9 gramas, que ao ser submetida a teste rápido (Identa), foi identificada como sendo heroína.
No referido circunstancialismo de tempo e lugar foram encontrados os seguintes objectos:
– Um telemóvel de marca Samsung, de cor vermelha, modelo SGH-X510, com IMEI 357454-01-221408-4, com a respectiva bateria;
– Um telemóvel de marca Sony Ericsson, de cor preta, modelo W715, IMEI 00000, com a respectiva bateria;
– Um telemóvel de marca Bluebelt, de cor preta, modelo ZTEmobile, com IMEI 0000000, com a respectiva bateria;
– Um cachimbo para consumo de produto estupefaciente.
As embalagens encontradas na posse do arguido tinham o peso total de 18,7 gramas. O referido produto estupefaciente pertencia ao arguido que o havia adquirido em Lisboa.
Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, pois sabia e conhecia a natureza e características do produto estupefaciente que detinha (heroína).'
Com base nos elementos de prova indicados na promoção do Ministério Público não podem considerar-se indiciados os demais factos indicados nessa promoção e agora expurgados. Toda a tese atinente à actividade de tráfico assenta num raciocínio especulativo do OPC, acolhido pelo MP, em flagrante violação da presunção da inocência do arguido e de ser à investigação que incumbe obter indícios da prática do crime e não ao arguido provar a sua inocência.
Pese embora parecer frágil a argumentação que serve de fundamentação ao seguimento e intercepção do arguido, aceita-se que tal caiba nas competências funcionais do OPC, pelo que se considerará válida a detenção, bem como as diligências de obtenção de prova realizadas.
O que não pode aceitar-se é que se avalie o grau de pureza de estupefaciente 'a olho', que se considere o peso do estupefaciente embalado como sendo o peso líquido da heroína ou que, ignorando a existência de embalagens individuais, se calcule o número de doses individuais com base no peso bruto das embalagens de estupefaciente, com recurso à Portaria que fixa valores para o princípio activo e não para a substância apreendida (e muito menos para a embalagem da mesma).
O que autos indiciam é a pose do arguido de 26 doses individuais de heroína, sendo que cada uma dessas doses corresponde, normalmente, à dose consumida numa determinada ocasião e não àquela consumida num dia inteiro. A versão do arguido de que consumia cinco a seis 'bolas' de heroína não é contrariada por regras de experiência normal, tanto mais quando dos objectos apreendidos resulta que o arguido consome heroína fumada e não injectada, caso em que provavelmente consumiria quantidade menor.
Dessa forma, considero indiciado que o arguido detinha estupefaciente em quantidade inferior àquela que habitualmente consome no período de 10 dias, pelo que não considero indiciada a prática de qualquer crime, mas de mera contra-ordenação. A investigação pode chegar a resultados diferentes, mas, salvo melhor opinião, terá que obter melhor prova indiciária que a avaliação do grau de pureza da droga a 'olho nu' ou a ligação da posse de três telemóveis a actividade ilícita, num país onde é precisamente essa a média de telemóveis por pessoa, mesmo incluindo crianças, deficientes e pessoas sem posses para ter um qualquer aparelho.
Termos em que, face ao exposto e ao abrigo no disposto dos artigos 174.º, n.º 2 e n.º 5, al. b), 176.º, 177.º, n.º 3, al. a), 254.º, n.º 1, al. a), 255.º, n.º 1, al. a) e 256.º, n.º 1, todos do CPP:
a) Valido a detenção do arguido e a busca domiciliária efectuada;
b) Não aplico ao arguido qualquer medida de coacção;
c) Notifique e restitua o arguido à liberdade.

2 – O Ministério Público interpôs recurso desse despacho.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:
I. Nos autos com o NUIPC 5/11.6GACLD, que corre termos nos Serviços do Ministério Público de Caldas da Rainha, foi A, detido e presente a primeiro interrogatório judicial para aplicação de medida de coacção diversa do TIR.
II. O Meritíssimo JIC considerou no seu despacho que 'não pode aceitar-se é que se avalie o grau de pureza de estupefaciente 'a olho', que se considere o peso do estupefaciente embalado como sendo o peso líquido da heroína ou que, ignorando a existência de embalagens individuais, se calcule o número de doses individuais com base no peso bruto das embalagens de estupefaciente, com recurso à Portaria que fixa valores para o princípio activo e não para substância apreendida (e muito menos para a embalagem da mesma).
Dessa forma, considero indiciado que o arguido detinha estupefaciente em quantidade inferior àquela que habitualmente consome no período de 10 dias, pelo que não considero indiciada a prática de qualquer crime, mas de mera contra-ordenação.
III. Do teor do despacho do Meritíssimo JIC, retira-se que os limites diários fixados na Portaria 96/94 têm por base a quantidade do princípio activo do produto estupefaciente.
IV. Ora, salvo melhor opinião, tal entendimento não tem o mínimo de reflexo na lei, porquanto quer o artigo 1.º, al. c), da Portaria, quer o artigo 9.º se referem a 'limites quantitativos' sem fazer alusão a qualquer princípio activo das substâncias em causa.
V. Embora o artigo 10.º, n.º 1, do mesmo diploma diga que o perito deve quantificar o princípio activo, daqui não se pode concluir que o peso constante da tabela tenha de corresponder em quantidade a esse mesmo princípio activo.
VI. Conforme dispõem o n.º 2 do artigo 9.º do Código Civil, não pode ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência, tendo de presumir-se que o legislador se soube exprimir correctamente (artigo 9.º, n.º 3 do CC.).
VII. Por outro lado, considerou, o Meritíssimo JIC, no seu despacho, que não se pode avaliar a 'olho nu' o grau de pureza do produto estupefaciente apreendido, contudo também não pode fundamentar a sua falta de pureza apenas nas declarações prestadas pelo arguido, e dessa forma concluir por um grau de pureza de tal forma baixo que em 18,7 gramas de produto não se encontrasse pelo menos um grama de heroína pura (o equivalente à dose diária permitida para 10 dias segundo a Portaria).
VIII. Resulta ainda do teor do despacho do Meritíssimo JIC que a quantidade de produto estupefaciente necessária para o consumo médio individual, durante um período de 10 dias, depende da quantidade desse produto que um consumidor, em concreto, consome habitualmente nesse período.
IX. Se assim fosse, o preenchimento do crime de consumo, p. e p. pelo artigo 40.º, n.º 2, da Lei 15/93, ficaria dependente da quantidade de estupefaciente que cada indivíduo consome habitualmente num período de 10 dias, o que significava introduzir na lei critérios subjectivos e indeterminados, variáveis de pessoa para pessoa e consoante o grau de pureza do produto adquirido, o que não pode aceitar-se, porque claramente violador do princípio da legalidade.
X. Assim, no caso em apreço, existem indícios suficientes da prática pelo arguido do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, pois o grau de pureza da droga apreendida em nada influi no preenchimento do crime em causa, cujos elementos objectivos não dependem desse grau de pureza.
XI. Por outro lado, ainda que o arguido tivesse afirmado que consome, em média, 5/6 pacotes de heroína por dia, e que os vinte seis pacotes que lhe foram apreendidos lhe custaram € 150,00 (cento e cinquenta Euros), daí se retira que seriam necessários no mínimo € 600,00 (seiscentos euros) mensais para aquele sustentar o seu vício, valor que o arguido não aufere, tanto mais que os quinhentos euros que referiu receber se referem aos meses em que tem trabalho.
XII. Pelo que decorre das regras da experiência e do normal acontecer das coisas que parte do produto encontrado na posse do arguido se destinava a ser vendido, de forma a que o mesmo pudesse obter dinheiro para sustentar o seu vício.
XIII. Face ao exposto, pese embora a fase embrionária da investigação, entendemos que os indícios dela constantes são suficientes para se considerar indiciado o crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, atenta as precárias condições económicas do arguido e a sua dependência de produto estupefaciente, pelo que as medidas de coacção promovidas são adequadas, necessárias e proporcionais às exigências cautelares que no caso se fazem sentir.
Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente, e em consequência ser a decisão recorrida revogada, sendo aplicadas as medidas de coacção promovidas a fls. 39, porque adequadas, necessárias e proporcionais às exigências cautelares que no caso se fazem sentir.
V. Ex.as, porém, e como sempre, farão Justiça.

3 – O arguido respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 47 a 55).

4 – Esse recurso foi admitido pelo despacho de fls. 56.

II – FUNDAMENTAÇÃO
5 – O Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, na sua versão originária, na linha, de resto, do Decreto-Lei n.º 430/83, de 13 de Dezembro, que o antecedeu, punia tanto o tráfico como o consumo de droga, quaisquer que fossem as quantidades de substâncias ou preparações que fossem objecto de cada uma destas actividades.
O artigo 21.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, estabelecia a punição como tráfico de droga da prática dolosa e não autorizada de qualquer uma das 18 modalidades de conduta que o preceito descrevia, desde que essa prática tivesse por objecto alguma das substâncias incluídas nas tabelas I a IV a ele anexas.
O cultivo, a aquisição e a mera detenção para consumo dessas mesmas substâncias ou preparações (para além do próprio consumo) eram puníveis de uma forma significativamente atenuada pelo artigo 40.º do mesmo diploma, independentemente da quantidade das substâncias ou preparações envolvidas no acto.
Exemplificando.
A venda dolosa a terceiro de 1 grama de diacetilmorfina (heroína) constituía um acto de tráfico, punível dentro das molduras penais estabelecidas, consoante a situação, pelos artigos 21.º ou 25.º daquele diploma, enquanto a detenção de 10 gramas do mesmo produto para consumo próprio era punível nos termos do artigo 40.º (no caso, n.º 2) daquele Decreto-Lei.
O que distinguia os dois tipos incriminadores, para além do leque de actos tipificados, que era compreensivelmente muito mais amplo no artigo 21.º, era um elemento subjectivo especial da ilicitude, o propósito de destinar a substância a consumo próprio, que tinha de se encontrar presente para a conduta ser punível como um acto de consumo.

6 – A determinação da quantidade de produto, para além de poder ter reflexos na eventual qualificação do crime de tráfico, se fosse esse o caso, e na pena concreta aplicada, apenas era relevante como indício que contribuía para a distinção dos actos de consumo dos de tráfico.
De acordo com as regras de experiência comum, podia inferir-se que a detenção de uma elevada quantidade de droga se destinava ao tráfico, ao passo que a detenção, em determinadas circunstâncias, de uma pequena quantidade do mesmo produto, indiciava que a droga se destinava a consumo próprio.
Para além disso, a lei delimitava alguns tipos incriminadores ou a medida da pena aplicável a certas condutas atendendo ao facto de a substância ou preparação em causa exceder ou não o «necessário para o consumo médio individual» durante determinado período de tempo (artigos 26.º, n.º 3, e 40.º, n.º 2).
Embora o conceito de «consumo médio individual» não fosse completamente rígido (artigo 71.º, n.º 3), era um conceito objectivo que não variava segundo os consumos mais ou menos elevados de cada utilizador do produto.
Para esse efeito, a lei previu a publicação de uma Portaria que estabelecesse «os limites quantitativos máximos de princípio activo para cada dose média individual diária das substâncias ou preparações constantes das tabelas I a IV de consumo mais frequente» – alínea c) do n.º 1 do artigo 71.º.
Foi no cumprimento dessa injunção que veio a ser publicada a Portaria n.º 94/96, de 26 de Março. Do seu artigo 9.º e do mapa que se lhe refere resulta que o valor diário a considerar quanto ao consumo médio individual de diacetilmorfina (heroína) é de 0,1 grama.
Parece desnecessário dizer que só depois de determinado o peso líquido da substância e o seu grau de pureza se pode ver se uma determinada porção desse produto excede ou não um determinado limite.
No caso concreto, o produto apreendido tinha um peso bruto de 18,550 gramas e um peso líquido de 16,726 gramas. Sendo o grau de pureza de 16,8%, conclui-se que o arguido detinha 2,81 gramas de dacetilmorfina, o que corresponde aproximadamente ao necessário para o consumo médio individual durante 28 dias.

7 – A descriminalização do consumo, aquisição e detenção para consumo próprio das plantas, substâncias e preparações compreendidas nas tabelas I a IV anexas ao Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, operada pela Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro (artigos 2.º e 28.º), não alterou a distinção entre os actos de tráfico e de consumo a que atrás se fez referência.
Depois da publicação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 8/2008, de 25 de Junho de 2008, a aquisição e a detenção para consumo próprio de plantas, substâncias ou preparações incluídas nas tabelas I a IV do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, constituirá contra-ordenação (artigo 2.º da Lei n.º 30/2000, de 29 de Novembro) ou crime (artigo 40.º, n.º 2, do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro) consoante o produto não exceda ou exceda «a quantidade necessária para o consumo médio individual durante o período de 10 dias».
Se a aquisição ou a detenção não se destinarem ao consumo próprio estaremos perante actos de tráfico, independentemente da quantidade de plantas, substâncias ou preparações que estiverem em causa.

8 – No caso dos autos, enquanto se aguarda que a investigação eventualmente apure o destino que o arguido pretendia dar à substância que lhe foi apreendida, apenas podemos tomar em consideração a quantidade efectiva da droga, as circunstâncias fortuitas da sua apreensão, o preço aproximado que ela tem no mercado clandestino, a situação económica do arguido e o facto de ele ser um consumidor do produto, tendo-lhe sido apreendido inclusivamente um cachimbo para esse efeito.
Em face destes elementos apenas podemos, em nosso entender, imputar ao arguido a prática de um crime de detenção de droga para consumo, conduta prevista no citado n.º 2 do artigo 40.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro, e punível com prisão até 1 ano ou multa até 120 dias.

9 – Tendo em conta o crime imputado, a medida abstracta da pena prevista e a circunstância de ser consensual o entendimento de que existe perigo de continuação da actividade criminosa [artigo 204.º, alínea c), do Código de Processo Penal], apenas poderiam ser aplicadas ao arguido, para além do termo de identidade e residência, as medidas de coacção previstas nos artigos 197.º e 198.º do Código de Processo Penal, ou seja, a caução e a obrigação de apresentação periódica.
Se a primeira parece estar fora de causa pelos fracos e inconstantes rendimentos do arguido e pela apreensão de quase tudo o que aparentemente lhe pertencia, a segunda parece não ser minimamente adequada à contenção do consumo de heroína (artigo 193.º, n.º 1, do Código de Processo Penal).
Por isso, entendemos que, enquanto a investigação não puder esclarecer os propósitos do arguido, ele se deve manter sujeito apenas a termo de identidade e residência, que se vê dos autos já ter sido prestado.

III – DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.ª secção deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso interposto pelo Ministério Público.
Sem custas.



Lisboa, 7 de Dezembro de 2011

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(Carlos Rodrigues de Almeida)

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(Horácio Telo Lucas)