Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 10-11-2010   Homicídio negligente. Punibilidade da contra-ordenação causal. Cúmulo material da sanção acessória.
I. Os artºs 24º e 25º do Código da Estrada protegem mediatamente o bem jurídico vida, porque visam diminuir o perigo que a condução de veículos implica. Por essa razão, a tutela fornecida por aquelas normas do Código da Estrada é abrangida pela do art. 137° do Código Penal, existindo, por isso, uma relação de subsidariedade implícita com o crime de homicídio negligente. Assim, de acordo com o disposto no art. 136° do Código da Estrada, não há lugar à aplicação de coima pela prática das contra-ordenações causais do crime de homicídio negligente.
II. Em caso de concurso de contra-ordenações, há lugar à realização do cúmulo material das respectivas sanções (artº134º, nº3 do Código da Estrada) pelo que deve proceder-se ao cúmulo material das sanções acessórias de inibição de conduzir veículos motorizados.
Proc. 655/08.8GHVFX.L1 3ª Secção
Desembargadores:  Jorge Raposo - Sérgio Corvacho - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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Recurso 655/08.8GHVFX.L1
1º Juízo Criminal de Vila Franca de Xira

Acordam – em conferência – na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I – RELATÓRIO
Nos presentes autos, T, filho de A e de M, natural da freguesia de P, concelho de Sabrosa, nascido no dia 00-00-00, casado, motorista de pesados, residente no B, Camarate, em Sacavém, foi:
 Condenado pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo art. 137º nº 1 do Código Penal, na pena de duzentos dias de multa, à razão diária de nove euros, no total de € 1.800,00;
 Absolvido da prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 21.º, n.º s 1 e 3 do Código da Estrada.
 Condenado na coima de € 220,00 (duzentos e vinte euros), pela prática da contra-ordenação, p. e p. pelo art. 24.º, n.º s 1 e 3 do Código da Estrada na coima de duzentos e vinte euros, pela prática da contra-ordenação, p. e p. pelo art. 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 do Código da Estrada e na coima de duzentos e vinte euros, pela prática da contra-ordenação, p. e p. pelo art. 35º, n.º s 1 e 2 do Código da Estrada, no total materialmente acumulado de € 660,00.
 Condenado, nos termos dos art.s 138º nº 1, 145º nº 1 al. e) e 147º nº 1 e 2 todos do Código da Estrada, na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 24º nºs 1 e 3 do Código da Estrada; na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo art. 25º nºs 1 al. f) e 2 do Código da Estrada; na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de três meses pela prática de uma contra-ordenação p. e p. pelo art. 35º nºs 1 e 2 do Código da Estrada.
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Inconformado, o arguido interpõe o presente recurso, concluindo:
I - Tendo sido o arguido/recorrente condenado pelo crime de homicídio por negligência p. p. pelo art. 137° n.º 1 do CP numa pena de multa, deveria ter sido excluída a aplicação de qualquer coima no que às contra ordenações se refere;
II- Ao ter condenado o arguido nas coimas pelas contra - ordenações, a decisão em crise violou o 'princípio non bis in idem' e as disposições conjugadas dos artigos 134°, do Código da Estrada e 137°, 40° e 71°, todos do Código Penal;
III- A assim não se entender, não tendo sido assegurada ao arguido a possibilidade de pagamento voluntário, nos termos do disposto no artigo 50º-A do RGCC, deveria, ter-se fixado nos valores mínimos legais os montantes das coimas aplicáveis às contra-ordenações;
IV- No que à pena acessória diz respeito, considera o, ora Recorrente que, também esta é excessiva.
V - Atendendo aos limites mínimos e máximos legalmente definidos para a determinação da medida da pena acessória, esta verifica-se atendendo aos critérios gerais constantes do art. 71° do CP, pois a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral.
VI - Certo é que fazendo a aproximação deste entendimento, e analisando meticulosamente o caso do recorrente, verificamos que estamos muito longe de possuir elementos conducentes a aplicação de uma pena acessória de inibição de conduzir em 9 meses.
VII - O princípio da proporcionalidade em sentido amplo, maxime o subprincípio da necessidade acolhido no art. 18.° da CRP, impede a utilização de meio mais oneroso para os direitos, liberdades e garantias, quando os fins visados com a lei podem ser obtidos por meios menos onerosos, o que implica que deve aplicar-se a sanção acessória menos grave ou até ser suspensa na sua execução.
VIII- A sanção acessória de inibição de condução pode ser reduzida para o seu limite mínimo correspondente a 1 (mês) por cada contra - ordenação, cumulada materialmente em 3 (três) meses, que atendendo às circunstâncias do caso, com implicações a nível profissional e familiar, e à personalidade do arguido deverá ser suspensa na sua execução.
IX- A manter-se a sanção de inibição de conduzir fixada em 9 meses, a mesma deverá ser suspensa na sua execução, atendendo também às circunstâncias especiais do caso.
Nestes termos e, louvando-nos quanto ao mais, nos factos constantes nos autos, somos de parecer que o presente recurso merece provimento e nos mais de direito que doutamente serão supridos, deverá ser revogada a douta decisão na parte ora em crise.
Assim se fazendo inteira e sã Justiça!
O Ministério Público apresentou resposta, sustentando a manutenção da decisão recorrida.
O recurso foi admitido.
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Subidos os autos a esta Relação, a Ex.ma Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer em que conclui pela parcial revogação da sentença recorrida, determinando-se a condenação do arguido pela prática de um crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137° nº 1 do Código Penal com referência às contra-ordenações estradais p. e p. pelos arts. 24° nº 1 e 3, 25° n° 1 al. f) e nº 2 e 35° nº 1 e 2 do Código da Estrada, na pena de 200 dias de multa, à razão diária de 9 €, no tal de 1.800 € e na sanção acessória de inibição de conduzir pela prática de tais contra-ordenações estradais pelo período, cumulado materialmente, de 9 meses, suspenso na sua na sua execução pelo período de um ano.
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Foram observadas as formalidades legais, nada obstando à apreciação do mérito do recurso (arts. 417º nº 9, 418º e 419º, nºs. 1, 2 e 3, al. c) do Código de Processo Penal na versão introduzida pela Lei 48/07 de 29.8).

II – FUNDAMENTAÇÃO
As relações reconhecem de facto e de direito, (art. 428º do Código de Processo Penal) e, in casu, não foi interposto recurso sobre a matéria de facto
É jurisprudência constante e pacífica que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal) .
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Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões do Recorrente, as questões a decidir são as seguintes:
1. Se as contra-ordenações estradais foram causais do acidente de viação que causou a morte da vítima.
2. Concurso aparente do crime de homicídio por negligência p. e p. pelo art. 137° nº 1 do Código Penal com as contra-ordenações causais.
3. Medida das sanções acessórias e suspensão da sua execução.
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É a seguinte a matéria de facto assente na sentença recorrida:
1. No dia 09 de Dezembro de 2008, cerca das 13 horas e 55 minutos, o arguido T conduzia o veículo pesado de mercadorias, com a matrícula 00-00-00, pela Variante de Vialonga, no sentido Granja de Alpriatre – Alverca do Ribatejo, à velocidade aproximada de 58 km/horários.
2. Ao chegar ao cruzamento dessa variante com a via que dá acesso ao centro de Vialonga, onde se encontra localizado o supermercado PINGO DOCE, o arguido mudou de direcção à esquerda de modo a entrar na referida via e seguir em direcção ao centro de Vialonga.
3. Ao efectuar tal manobra, a frente esquerda do seu veículo colidiu com a frente lateral esquerda do veículo ligeiro de passageiros de matrícula 00-00-00, conduzido por J, que circula no sentido Alverca do Ribatejo -Granja de Alpriatre, cuja linha de trânsito o arguido cruzou.
4. O local do acidente configura recta com boa visibilidade, a estrada é uma variante com duas vias de circulação, com sentidos de circulação separados por perfis móveis de betão, a largura da faixa de rodagem é de 7 metros e a largura da via de circulação é de 3,5 metros.
5. A viatura conduzida pelo arguido deixou uma marca de travagem na via com cerca de 2,20 metros.
6. A faixa de rodagem no local tem uma marca rodoviária com linha longitudinal descontínua a dividir as vias de trânsito.
7. O pavimento encontrava-se em bom estado de conservação e o estado do tempo era bom.
8. No local, o trânsito é regulado por sinalização luminosa, que, no momento, funcionava, atento o sentido de marcha do arguido, com luz laranja intermitente.
9. O arguido conduzia nas descritas circunstâncias com uma TAS de 0,78 g/l.
10. Devido ao embate, a vítima J sofreu lesões traumáticas meningo-encefálicas e torácicas, designadamente, fractura da base do crânio, hemorragia subdural e subaracnoideia, focos de contusão cerebrais, rotura do folheto pericárdio e focos de contusão miocárdicos e foco de contusão pulmonar, que foram causa directa e necessária da sua morte.
11. Ao mudar de direcção, o arguido avançou no cruzamento cuja linha de trânsito passou, sem se certificar ou prestar atenção ao trânsito que circulava em sentido contrário ao seu e que, com ele, se iria cruzar.
12. Com a sua conduta, o arguido actuou sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz de observar, pois, não se certificou, como podia e devia, do trânsito que circulava em sentido contrário ao seu e que, com ele, se iria cruzar, tendo representando como possível a verificação de um facto que preenchia um tipo de crime com a produção do resultado morte, mas tendo actuado, porém, sem se conformar com a produção desse resultado.
13. Ao assumir a condução do veículo após a ingestão de bebidas alcoólicas, previu o arguido como possível que pudesse apresentar uma TAS superior a 0,5 g/l e conformou-se com esse resultado.
14. Actuou livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
15. O arguido confessou integralmente e sem reservas os factos.
16. Demonstrou arrependimento sincero e formulou um pedido de desculpas em audiência de julgamento.
17. Ao arguido não são conhecidos antecedentes criminais.
18. O arguido é titular de carta de condução de veículos ligeiros e de pesados de mercadorias desde 17/09/1974, nunca antes tendo sido interveniente em acidente de viação.
19. Vive com a esposa e tem uma filha, de 37 anos de idade.
20. Vive em casa arrendada, da qual paga € 174,00 (cento e setenta e quatro euros) de renda.
21. Aufere mensalmente € 760,00 (setecentos e sessenta euros).
22. A esposa encontra-se desempregada e não aufere qualquer subsídio.
23. Como habilitações literárias tem a 4.ª classe.
24. O arguido é pessoa estimada social e profissionalmente.
25. Do seu registo individual de condutor consta uma infracção praticada em 09/12/2004, por desrespeito à obrigação de parar ante a luz vermelha de sinalização de trânsito.
26. O arguido pagou a coima referente à contra-ordenação perpetrada neste processo, por ter conduzido, nas circunstâncias acima descritas, com uma TAS de 0,78 g/l sangue.
FACTOS NÃO PROVADOS:
Da acusação, inexistem.
Sobre as causas do acidente e da morte, diz-se na sentença recorrida:
Com a sua conduta, o arguido actuou sem o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz de observar, pois, não se certificou, como podia e devia, do trânsito que circulava em sentido contrário ao seu e que, com ele, se iria cruzar, não tendo adequado a velocidade a esse mesmo trânsito, tendo representando como possível a verificação de um facto que preenchia um tipo de crime com a produção do resultado morte, mas tendo actuado, porém, sem se conformar com a produção desse resultado.
Ao assumir a condução do veículo após a ingestão de bebidas alcoólicas, previu o arguido como possível que pudesse apresentar uma TAS superior a 0,5 g/l e conformou-se com esse resultado.
Com a sua conduta, violou o arguido as normas estradais a que se reportam os artigos 24.º, n.º s 1 e 3, 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 e 35.º, n.º s 1 e 2, todos do Código da Estrada.
O arguido actuou deliberada e conscientemente e sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Do exposto, resulta que o arguido incorreu na violação de regras estradais e violou o dever de cuidado, interno e externo, a que estava obrigado, ou seja, o dever de observância de adequar a velocidade às características da via, condições meteorológicas, intensidade do trânsito e outras circunstâncias relevantes, bem como o dever de moderar especialmente a velocidade em cruzamento, ao mudar de direcção de trânsito, assumindo, ao invés, uma postura, na condução, leviana e descuidada, circulando a velocidade que se situava a cerca de 58 km/hora.
Além do mais, conduzia sob a influência do álcool, bem sabendo que o mesmo descoordena as capacidades de descentração físicas e psíquico-motoras no que concerne à circulação rodoviária em segurança.
Assim, actuou o arguido com negligência consciente, na forma simples.
A conduta do arguido é culposa, porque censurável ético-socialmente.
Incorreu, pois, o arguido na prática de um crime de homicídio por negligência, p. e p. pelo artigo 137.º, n.º 1 do Código Penal.
Inexistindo causas de exclusão da ilicitude ou da culpa, restará aferir da espécie e medida da pena a aplicar.
O Tribunal a quo fundamentou a responsabilidade contra-ordenacional do arguido nos seguintes termos:
Ao arguido é imputada, ainda, a prática das contra-ordenações, p. e p. pelos artigos 21.º, n.º s 1 e 3, 24.º, n.º s 1 e 3, 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 e, 35.º, n.º s 1 e 2, todos do Código da Estrada.
Estatui o artigo 21.º, n.º 1 do Código da Estrada que «Quando o condutor pretender reduzir a velocidade, parar, estacionar, mudar de direcção ou de via de trânsito, iniciar uma ultrapassagem ou inverter o sentido de marcha, deve assinalar com a necessária antecedência a sua intenção.»
Adita o n.º 3 do mesmo comando normativo que, quem infringir o acima disposto é sancionado com coima de € 60 a € 300.
Por outra banda, estatui o artigo 24.º, n.º s 1 e 3 do Código da Estrada, que:
«1-O condutor deve regular a velocidade de modo que, atendendo às características e estado da via e do veículo, à carga transportada, às condições meteorológicas ou ambientais, à intensidade do trânsito e a quaisquer outras circunstâncias relevantes, possa, em condições de segurança, executar as manobras cuja necessidade seja de prever e, especialmente, fazer parar o veículo no espaço livre e visível à sua frente.
3-Quem infringir o disposto nos números anteriores é sancionado com coima de € 120 a € 600.»
Por seu turno, o artigo 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 do Código da Estrada, rezam assim:
«1-Sem prejuízo dos limites máximos de velocidade fixados, o condutor deve moderar especialmente a velocidade nos cruzamentos (…).»
2-Quem infringir o disposto no número anterior é sancionado com coima de € 120 a € 600.»
Segundo o artigo 35.º, n.º 1 do mesmo compêndio legal, o condutor só pode efectuar as manobras de ultrapassagem, mudança de direcção ou de via de trânsito, inversão do sentido de marcha e marcha atrás em local e por forma que da sua realização não resulte perigo ou embaraço para o trânsito.
Segundo o n.º 2 do mesmo comando normativo, quem infringir o acima descrito, é sancionado com coima de € 120,00 a € 600,00.
Desde logo, ao nível do dever objectivo de cuidado, verifica-se que a circulação rodoviária é, em si mesma, perigosa para determinados bens jurídicos; porém, é permitida, atenta a sua utilidade social, pelo que se impõem especiais precauções e o escrupuloso cumprimento das normas da condução rodoviária pelos condutores, de forma a evitar a concretização do perigo.
Ora, não resultam dúvidas que o arguido, com a sua conduta, violou o dever de observar a velocidade adequada às características da via, à intensidade do trânsito existente, às condições meteorológicas, aos obstáculos encontrados na via, ao perigo assinalado, bem como o dever de circular a velocidade especialmente moderada em cruzamento, no qual não parou e não se certificou de que o poderia atravessar, tendo efectuado manobra de mudança de direcção à esquerda da qual resultou perigo para o trânsito, tendo incorrido na práticas das contra-ordenações, p. e p. pelos artigos 24.º, n.º s 1 e 3, 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 e 35.º, n.º s 1 e 2, todos do Código da Estrada.
Não se apurou, todavia, que o arguido não tenha assinalado, com a necessária antecedência, a intenção de mudança de direcção à esquerda, pois não resultou provada qualquer factualidade nesse sentido.
Assim, o arguido terá, necessariamente, que ser absolvido pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 21.º, n.º s 1 e 3 do Código da Estrada.
Com a sua conduta, violou os artigos 24.º, n.º s 1 e 3, 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 e 35.º, n.º s 1 e 2, todos do Código da Estrada., infracções pelas quais irá ser punido a título de contra-ordenação.
Com a sua condução, o arguido não procedeu com o cuidado a que estava obrigado e de que era capaz, tendo actuado com negligência.
Estatui o artigo 145.º, n.º 1, alíneas e) e f) do Código da Estrada que o trânsito com velocidade excessiva para as características do veículo ou da via, para as condições atmosféricas ou de circulação, ou nos casos em que a velocidade deve ser especialmente moderada, bem como o desrespeito de regras relativas à mudança de direcção, constituem contra-ordenações graves, o que se verificou com a infracção ao disposto nos artigos 24.º, n.º 1, 25.º, n.º 1, alínea f) e 35.º, n.º s 1 e 2, todos do Código da Estrada.
As contra-ordenações graves são sancionadas com coima e com sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados (artigo 138.º, n.º 1 do Código da Estrada).
O arguido praticou três contra-ordenações, a título negligente, de natureza grave, violando o dever de cuidado a que estava adstrito no exercício da condução de veículos automóveis na via pública, que passa, necessariamente, pela cautela que se pretende seja assegurada.
Nas contra-ordenações rodoviárias, a negligência é sempre sancionada (artigo 133.º do Código da Estrada).
Nos termos do artigo 139.º do Código da Estrada, a medida e o regime de execução da sanção determinam-se em função da gravidade da contra-ordenação e da culpa, tendo-se, ainda, em conta, os antecedentes do infractor, bem como a sua situação económica.
As contra-ordenações praticadas pelo arguido, em violação dos artigos 24.º, n.º s 1 e 3 e 25.º, n.º 1, alínea f) e 2 e 35.º, n.º s 1 e 2, todos do Código da Estrada, são qualificadas como graves.
A culpa do arguido é elevada, assim como é elevada a violação do dever de cuidado que lhe sabia assistir.
O arguido aufere quantia mensal cifrada em € 760,00 (setecentos e sessenta euros).
Tem antecedentes pela prática de infracções ao Código da Estrada, uma cometida na data dos factos aqui em apreciação (por crime de condução de veículo sob a influência do álcool) e uma por desrespeito à obrigação de parar ante a luz vermelha reguladora do trânsito, que data já de 2004.
Tudo sopesado e ponderado, o tribunal reputa, por justa, adequada e proporcional, a condenação do arguido:
-na coima de € 220,00 (duzentos e vinte euros), pela prática da contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 24.º, n.º s 1 e 3 do Código da Estrada;
-na coima de € 220,00 (duzentos e vinte euros), pela prática da contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 do Código da Estrada;
-na coima de € 220,00 (duzentos e vinte euros), pela prática da contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 35º, n.º s 1 e n.º 2 do Código da Estrada;
Não há lugar a cúmulo jurídico de coimas em caso de concurso de contra-ordenações (artigo 134.º, n.º 3 do Código da Estrada, na redacção aplicável), pelo que as mesmas serão materialmente acumuladas, no total de 660,00 (seiscentos e sessenta euros).
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Da sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados:
Nos termos do artigo 147.º, n.º 2 do Código da Estrada, a sanção de inibição de conduzir tem a duração mínima de um mês e máxima de um ano, ou mínima de dois meses e máxima de dois anos, consoante seja aplicável às contra-ordenações graves ou muito graves, respectivamente, e refere-se a todos os veículos a motor.
Ponderadas as circunstâncias do caso concreto, o tribunal reputa por justa, adequada e proporcional a condenação do arguido, nos termos dos artigos 24.º, n.º s 1 e 3, 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2, 35.º, n.º s 1 e 2, 145.º, n.º 1, alínea e) e f) e 147.º, n.º 1 e 2, todos do Código da Estrada:
-na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses, pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 24.º, n.º s 1 e 3 do Código da Estrada;
-na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses, pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 25.º, n.º 1, alínea f) e n.º 2 do Código da Estrada;
-na sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) meses, pela prática de uma contra-ordenação, p. e p. pelo artigo 35.º, n.º s 1 e 2 do Código da Estrada;
Não há lugar a cúmulo jurídico das sanções em caso de concurso de contra-ordenações (artigo 134.º, n.º 3 do Código da Estrada, na redacção aplicável), pelo que as mesmas serão materialmente acumuladas, no total de 9 (nove) meses.
As sanções acessórias de inibição de conduzir ora aplicadas não serão suspensas na sua execução, nos termos do artigo 141º, n.º s 1, 2, 3 e 4 do Código da Estrada, porquanto as exigências de prevenção positiva, do ponto de vista negativo e positivo, elevadas, o desvalor da acção e do resultado perpetrado, não nos permitem concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável no sentido de a suspensão da execução das sanções acessórias serem suficientes ao afastamento do arguido na incursão futura de infracções a regras estradais (vide artigo 50º, n.º 1 do Código Penal).
*
1.
Da análise dos factos e do excerto reproduzido da sentença sobre as causas do acidente resulta inequívoco que a causa do embate foi que vitimou J foi o facto do arguido não se ter certificado, como podia e devia, do trânsito que circulava em sentido contrário ao seu e que, com ele, se iria cruzar, não tendo adequado a velocidade a esse mesmo trânsito. Assim, como sustenta o Recorrente e a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta, a sentença recorrida considerou que as contra-ordenações praticadas pelo arguido p. e p. pelos art.s 24º nº 1, 25º nº 1 al. f) e 35º nº 1 do Código da Estrada foram causais do acidente de viação, sendo ao mesmo imputável a prática do crime de homicídio por negligência. Não se pode contudo encontrar o mesmo nexo de causalidade relativamente à contra-ordenação de condução sob influência do álcool, que foi objecto de processo contra-ordenacional autónomo, como resulta do despacho de encerramento do inquérito (fls. 190).
2.
No sentido de que as contra-ordenações causais de acidentes de viação se encontrarem numa relação de concurso aparente com o crime de homicídio por negligência que das mesmas resultaram, dado que esses delitos contra-ordenacionais consubstanciam em tais casos a violação do dever de cuidado na condução estradal que levou à qualificação do seu comportamento como negligente, importará assinalar, para além dos acórdãos referidos pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta no seu douto parecer os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 3.6.98 e 18.6.03 e da Relação de Évora de 31.3.09 .
Em sentido contrário encontram-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 11.12.02 e da Relação de Coimbra de 27.1.99, 4.5.05 e 20.2.08 .
Partem estes do raciocínio utilizado para a análise da relação de consumpção entre crimes e dos diferentes valores protegidos pelas normas para afirmar que “os factos integrantes das ditas contra-ordenações não constituem crime, embora sejam elementos da negligência causal do crime de homicídio. Elementos que porém não esgotam, consumindo-os, o significado e o efeito infraccional dessa contra-ordenação, na medida em que visam a protecção do perigo de uma série indeterminada de bens jurídicos que não só os da vida e da integridade física efectivamente ofendidos com a pratica do crime de homicídio negligente”.
Porém, a menor ressonância ética do ilícito contra-ordenacional e a existência de normas específicas como o art. 20º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas e o art. 134º do Código da Estrada exigem uma análise mais aprofundada, já que “a eficácia da consunção de normas criminais está dependente não só da circunstância de os bens jurídicos tutelados se encontrarem de uma relação de mais para menos, mas também de, no caso concreto, a protecção visada por uma delas ficar esgotada ou consumida pela outra” .
Por isso, em sintonia com o que consta do acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 9.3.04 (reprodução da sentença de 1ª instância), citado pela Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta considera-se que no art. 137° do Código Penal compreende-se um crime de dano, que tutela cabalmente e de forma mais intensa o bem jurídico que as normas em causa do Código da Estrada visam proteger. Como aí se afirma:
No domínio do anterior Código da Estrada, aprovado pelo DL 39672, de 20 de Maio de 1954, a este propósito regia o art. 58º, nº 9, segundo o qual à punição pelos crimes acrescia sempre a punição pelas contravenções que lhe fossem conexas, o que se entendia como contravenções causais, ou seja, aquelas de que os crimes são efeito, as únicas que têm conexão com o crime, pois que são as que constituem meio necessário à sua prática.
A luz do Código da Estrada, aprovado pelo DL 114/94, de 3 de Maio, bem com na redacção dada pelo DL 2/98, de 3 de Janeiro, e no Código da Estrada em vigor, as infracções estradais têm a natureza de contra-ordenações, sendo puníveis e processadas nos termos da respectiva lei geral, com as adaptações constantes deste código, “salvo se constituírem crimes, sendo então puníveis e processadas nos termos gerais da lei penal” (cfr. art. 133°, n°s l e 2, do referido código).
Em paralelo com estes dispositivos constata-se a inexistência no actual código de uma disposição equivalente àquele art. 58°, n° 9. Mas será que daqui podemos concluir, como se faz no Ac. da Relação de Évora, de 2/12/97 (in www/csmagistratura/jurisp), que tal “aponta para que sejam punidos como crime os factos que lhe sejam conexos, operando-se a consumpção da contra-ordenação pelo crime, sob pena de violação do princípio non bis in idem”!
Para que possamos responder a esta pergunta importa ter presente o que se estatui no art. 136° do Código da Estrada, aliás, em repetição do que se dispõe na lei geral sobre contra-ordenações (cf. art. 20° do DL 433/82, de 27 de Outubro). Dispõe o n° l deste artigo que: “Se o mesmo facto constituir simultaneamente crime e contra-ordenação, o agente é punido sempre a título de crime, sem prejuízo da aplicação da sanção acessória prevista para a contra-ordenação.”
Importa assim determinar qual o sentido que se deve atribuir à palavra facto.
Tal como a norma penal, a norma contra-ordenacional visa regular comportamento humanos, que valora negativamente, cominando-os com uma sanção: a coima. “A conduta, o comportamento humano, é a base, o ponto de partida, da construção da contra-ordenação. Como o nosso direito penal, também o direito contra-ordenacional é um direito de facto, não de autor”, só assim, podendo ser este direito controlado e limitado democraticamente: “salvo a possibilidade excepcional de tipos de ilícito baseados exclusivamente em atitudes habituais, modos de ser, só uma conduta humana traduzida em actos externos pode ser qualificada como contra-ordenação e justificar a aplicação de uma coima”.
Mas estará aqui em causa facto enquanto acontecimento histórico unitário ou, diversamente, o facto como realidade normativa, isto é, não o facto enquanto mera ocorrência ou alteração operada no mundo real, mas enquanto desvalor, enquanto realidade lesiva de certo bem jurídico?
Para que possamos responder a esta indagação, impõe-se que prescrutemos as razões da instituição do ilícito de mera ordenação social e a distinção entre crime e contra-ordenação.
A criação na RFA em 1949 da figura jurídica da Ordnungswidrigkeit (contra-ordenação) foi a expressão legislativa de estudos e recomendações feitas por Eb. Schmidt, procurando pôr cobro à expansão de uma “administração conformadora” com a sua tendência para ameaçar com penas a violação de zonas cada vez mais alargadas da ordem jurídica, numa onda de hipercriminalização e de hipertrofia do direito penal, com o correlativo aumento maciço das decisões dos tribunais.
Também em Portugal, a introdução em 1979 do ilícito de mera ordenação social, através do DL 232/79, de 24 de Julho, visou: (a) retirar do âmbito do direito penal infracções sem relevância ética, na senda do movimento generalizado de descriminalização, expressão dos princípios da subsidariedade e do mínimo ético do direito penal (Jellineck); (b) reservar o conteúdo ético das sanções penais, mesmo quando correspondam basicamente a exigências de prevenção, a comportamentos eticamente relevantes, distinguindo estes daquelas outras situações que devem ser ameaçadas com meras advertências sociais, coimas ou sanções ordenativas, pois está em causa apenas a infracção a regras que visam, em primeira linha, tão-só, permitir uma convivência saudável e cooperante, visando o bem-estar, atenuando o risco implicado em certas actividades e ordenando novos domínios da actuação subjectiva a que o Estado intervencionista estendeu a sua acção conformadora; (c) possibilitar o processamento de tais infracções com especificidades que permitissem a aplicação de sanções por agentes administrativos, que tivessem a seu cargo a fiscalização e controlo das respectivas actividades. Ora, precisamente porque o ilícito de mera ordenação social e a correspondente reacção não são directamente fundamentáveis num plano ético-jurídico, não estão eles sujeitos aos princípios e corolários do direito penal (cf. Eduardo Correia – Direito Penal e Direito de Mera Ordenação Social” in Sep. BFDUC, 1973, p. 28), se bem que se venha notando uma crescente aproximação com a transposição para o direito contra-ordenacional das garantias constitucionais atribuídas ao direito penal, nomeadamente, os princípios da legalidade, da tipicidade e da culpa.
Daqui concluir-se-á necessariamente que a referência feita nos supra citados arts. 136° do Código da Estrada e 20° do DL 433/82, de 27 de Outubro, ao facto é apenas naturalística, tratando-se, portanto, de um conceito não normativo, porque alheio aos valores e bens jurídicos que se visa proteger? Não nos parece que tal seja razoável.
Porquanto, como escreve José Gonçalves da Costa, acolhendo a posição de Costa Andrade e Hassemer, não é fácil aceitar-se que “qualquer violação do direito seja, sem mais eticamente neutra: a elevação de uma conduta à dignidade de juridicamente imposta ou proibida confere à respectiva omissão ou prática uma irrecusável carga ética”.
Assim, acolhendo o que também escreve Figueiredo Dias a este propósito, entendemos que inexiste um ilícito eticamente indiferente, sendo necessário que a “indiferença ética” se dirija, não imediatamente aos ilícitos, que supõem já realizada a valoração legal -, mas às condutas que o integram, sem prejuízo de, uma vez conexionadas com a proibição legal, passarem a constituir substracto idóneo de um desvalor ético-social.
Daqui resulta que aquele conceito de facto se há-de reportar primeiramente ao facto enquanto realidade material, mas também se deverá ter em conta a relação funcional com os bens jurídicos protegidos. O bem jurídico protegido pela contra-ordenação, ainda que de forma muito mediata e antecipada, tem de ser o mesmo que é protegido pela norma do crime, ainda que este numa forma mais intensa de lesão. Se a contra-ordenação se destinar a proteger, para além do bem jurídico tutelado na incriminação penal, outros, justificar-se-á, a punição em concurso efectivo, na medida em que não estaremos perante o mesmo facto.
Ora, no caso vertente, temos que o facto a que se referem os preceitos do Código da Estrada violados é a velocidade, estando subjacente às prescrições impostas naqueles normativos a noção de que a condução é uma actividade potencialmente perigosa, especialmente devido à velocidade que os veículos podem atingir e o maior ou menor perigo que esta implica em certas circunstâncias e lugares. Portanto, o que se visa é evitar ou reduzir precisamente o perigo de embate ou colisão com outros veículos ou demais utentes das vias, permitindo um maior tempo e espaço de reacção e, designadamente, de travagem ao condutor, face a qualquer obstáculo que lhe possa surgir na via. Já, por seu turno, para o art. 137° do Código Penal o facto que se proíbe é a morte de alguém, tutelando-se claramente, pois, o bem jurídico vida. Mas, então, independentemente do que se disse atrás, parece que não haveria lugar à aplicação deste art. 136° do Código da Estrada, desde logo porque não está em causa o mesmo facto material.
Não podemos obviamente aceitar esta afirmação, porque se no art. 137° do Código Penal está em causa um conceito normativo, o que se proíbe é a morte de alguém causada negligentemente, e para que possamos no caso concluir que existe negligência tivemos que valorar os factos causais daquele resultado, portanto, a desatenção à via e aos seus utentes e o excesso de velocidade em relação a essa desatenção, facto contido nas previsões do Código da Estrada, porque a tutela penal e o juízo de censura que esta implica abrangem toda essa realidade, só sendo possível imputar o evento ao agente na estrita medida em que verificámos a existência de um dever de cuidado que foi violado e que causou aquele fatídico desfecho.
Em rigor, não há aqui que invocar o princípio constitucional do non bis in idem, pois que este, como é fácil de constatar pela redacção do art. 29°, n° 5, da Constituição República Portuguesa apenas proíbe que alguém seja julgado e, portanto, condenado, mais do que uma vez pela prática do mesmo crime. Ora, aqui não se cumula qualquer juízo de censura penal, antes está em causa, por um lado, um juízo de censura penal, com uma condenação admonitória que tem em vista a preservação e promoção do bem-estar, advertindo-se o infractor de que tem de respeitar certas proibições de perigo. O que, em bom rigor, aquele art. 136° do Código da Estrada, bem como o art. 20° do regime geral das contra-ordenações fazem é reconhecer a desnecessidade de uma dupla intervenção do Estado na esfera jurídica privada, censurando criminalmente e advertindo, quando a sanção penal, atento o seu grau e as suas finalidades, é susceptível de absorver as finalidades da sanção contra-ordenacional, não exigindo a tutela dos bens jurídicos protegidos a cumulação das punições.
Trata-se de fazer operar algo paralelo com a consumpção, ainda que não possamos falar propriamente em tal figura, precisamente porque não estamos no domínio do concurso aparente de infracções criminais. E é paralelo, porque constatamos estar em presença de normas que estão numa relação de mais e menos, consumindo uma potencialmente a protecção que a outra visa.
E isto é tanto mais verdadeiro, quanto nos arts. 24° e 25° do Código da Estrada estão em causa tipos de perigo presumido (abstracto) e no art. 137° do Código Penal compreende-se um crime de dano, sendo que este tutela de forma mais intensa o bem jurídico que vimos ainda se visar naqueles outros normativos.
Nestes termos, ainda que não possamos apelar para o princípio non bis in idem, por força das considerações interpretativas que atrás expendemos, podemos afirmar que é inadmissível cumular-se a punição antecipada do perigo criado para um bem jurídico, ainda que a título contra-ordenacional, com a punição pela lesão efectiva do mesmo que enforma o crime de dano verificado, desde que neste se efective plenamente a tutela do bem jurídico a que se reporta o perigo.
A não ser assim estar-se-ia a violar o art. 18°, n° 2, da CRP, segundo o qual as restrições a direitos, liberdades e garantias se limitarão ao “necessário para salvaguardar outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos”.
Tendo isto em mente, forçoso é concluir que protegendo mediatamente o bem jurídico vida, porque visam diminuir o perigo que a condução de veículos implica, a tutela fornecida por aqueles arts. 24° e 25° é abrangida pela do art. 137° do Código Penal. Existe uma relação de subsidariedade implícita com o crime de homicídio negligente, pelo que, de acordo com o disposto no art. 136° do Código da Estrada, o arguido vê afastada a possibilidade de ser punido com a coima prevista para a infracção estradal que cometeu.
*
Suscita-se ainda, oficiosamente, a questão do concurso aparente entre o disposto no art. 24º e 25º nº 1 al. f) do Código da Estrada.
A esse propósito, importa não olvidar que o art. 402º do Código de Processo Penal consagra o princípio do conhecimento amplo do recurso e que, por aplicação da regra da reformatio in melius pode o arguido vir a ser absolvido de um crime por que vinha condenado, não obstante não ter havido recurso dessa matéria, já que os poderes de cognição do Tribunal Superior em matéria de indagação e aplicação do direito só são limitados pela proibição da reformatio in pejus . Efectivamente, o tribunal de recurso não está impedido de oficiosamente conhecer de todos os erros que não impliquem reformatio in pejus, mesmo os não especificados, visto que no processo penal rege o princípio da verdade material e, quando está em jogo a liberdade do cidadão cuja inocência é protegida constitucionalmente até ao trânsito em julgado da condenação, não há que impor entraves formais para evitar o erro judiciário .
Regressando à questão:
Encontramos também uma relação de concurso aparente – de especialidade – entre as normas dos art.s 24º nº 1 e 25º al. f) do Código da Estrada. O art. 24º nº 1 contém os princípios gerais relativos à regulação da velocidade, enquanto o art. 25º nº 1 impõe uma especial moderação da velocidade em determinadas situações que especifica, designadamente “nas curvas, cruzamentos, entroncamentos, rotundas, lombas e outros locais de visibilidade reduzida”.
Assim, é manifesto que a realização do tipo especial (art. 25º al. f) do Código da Estrada) esgota a valoração jurídica da situação.
Consequentemente, pela violação do disposto no art. 25º al. f) do Código da Estrada (em concurso aparente com o disposto no art. 24º do mesmo Código) cometeu o ora Recorrente uma e não duas contra-ordenações causais, como a sentença recorrida consignava.
Assim, ao Recorrente devem ser aplicadas duas sanções acessórias previstas para as contra-ordenações estradais, as quais são materialmente cumuláveis, em face do disposto no nº3 do art. 134° do Código da Estrada. Aliás, o Recorrente não questiona a imposição desse cúmulo material.
3.
Tendo em atenção o supra exposto quanto ao concurso aparente entre o crime de homicídio negligente e as contra-ordenações causais e entre a contra-ordenação do art. 24º nº 1 e 25º nº 1 al. f) do Código da Estrada, ao Recorrente, para além da pena de multa aplicada pelo crime em que foi condenado e que não é questionada, sobejaria a condenação em duas sanções acessórias de inibição de conduzir de três meses por cada uma e de seis meses em cúmulo material pela prática das contra-ordenações causais p. e p. pelos art.s 25º nºs 1 al. f) e 2 e 35º nºs 1 e 2 do Código da Estrada.
Invoca o Recorrente que a sanção acessória deve ser reduzida ao mínimo, atendendo aos limites mínimos e máximos legalmente definidos para a determinação da medida da pena acessória e aos critérios gerais constantes do art. 71° do Código Penal porque a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral. Invoca o princípio da proporcionalidade em sentido amplo, maxime o subprincípio da necessidade acolhido no art. 18° da Constituição da República Portuguesa , e conclui pela redução da sanção acessória de inibição de condução para o seu limite mínimo e que atendendo às circunstâncias do caso, com implicações a nível profissional e familiar, e à personalidade do arguido deverá ser suspensa na sua execução.
No seu parecer a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta sustenta que os fundamentos que levaram à decisão de não suspensão da sanção acessória estão em contradição com os fundamentos que levaram o tribunal a optar pela aplicação de uma pena de multa pela prática do crime de homicídio negligente e conclui pela suspensão da execução da sanção acessória pelo período de um ano.
Não se vislumbra a aludida contradição tendo em atenção que a aplicação de uma pena privativa da liberdade a um cidadão socialmente inserido que pratica um crime negligente de que resulta a morte da vítima é substancialmente diferente da aplicação de uma inibição de conduzir temporária.
Afigura-se como perfeitamente adequada a fixação do período de inibição de conduzir em três meses por cada uma das contra-ordenações, atendendo às circunstâncias e consequências da prática dessas infracções. Efectivamente, na determinação da medida da sanção deve ponderar-se a gravidade da contra-ordenação, a culpa, os antecedentes e os especiais deveres de cuidado que recaem sobre o condutor, designadamente quando este conduza veículo pesado de mercadorias (art. 139º nºs 1 e 3 do Código da Estrada).
In casu, a gravidade das infracções resulta patente nas nefastas consequências que o comportamento do Recorrente provocou (uma morte), a culpa consiste numa negligência consciente simples, conforme consta da sentença recorrida, importando ainda ponderar que exactamente 4 anos antes o Recorrente já havia cometido uma infracção (contra-ordenação considerada muito grave pelo art. 146º al. l) do Código da Estrada) de desrespeito à obrigação de parar ante a luz vermelha de sinalização de trânsito (facto provado 25) e que sobre si impendia o especial dever de cuidado inerente à condução do veículo pesado de mercadorias.
Assim, o critério justo mas benevolente na fixação da medida das sanções acessórias aceita-se, tendo em atenção que, como consta da sua identificação, o Recorrente é motorista de profissão.
Quanto à suspensão da execução da sanção acessória, atendendo à gravidade das infracções praticadas, patente nas suas consequências (uma morte) imputáveis ao arguido a título de negligência consciente, não é aconselhável a dispensa nem a suspensão da inibição de conduzir até por respeito pelos princípios da proporcionalidade e da necessidade invocados pelo Recorrente. Se associarmos aos fundamentos supra expostos a constatação de que o Recorrente foi condenado por contra-ordenação muito grave importa concluir, como a sentença recorrida que “as exigências de prevenção positiva, do ponto de vista negativo e positivo, elevadas, o desvalor da acção e do resultado perpetrado, não nos permitem concluir pela formulação de um juízo de prognose favorável no sentido de a suspensão da execução das sanções acessórias serem suficientes ao afastamento do arguido na incursão futura de infracções a regras estradais (vide artigo 50º, n.º 1 do Código Penal)”.
Assim, não se encontram fundamentos bastantes para o juízo de prognose inerente à suspensão da execução da sanção, nem para afirmar que esta realiza “de forma adequada e suficiente as finalidades da punição” (art. 50º nº 1 do Código Penal).

III – Dispositivo
Nestes termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os Juízes da 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento parcial ao recurso interposto por T e, consequentemente, altera-se a sentença recorrida, nos seguintes termos:
 Não se aplica qualquer coima pela prática das contra-ordenações causais do crime de homicídio negligente pelo qual o Recorrente foi condenado;
 Pela prática da contra-ordenação p. e p. pelo art. 24º nºs 1 e 3 do Código da Estrada, que está em relação de concurso aparente com a contra-ordenação p. e p. pelo art. 25º nºs 1 al. f) e 2 do Código da Estrada aplica-se a esta, nos termos do art. 134º nº 2 do Código da Estrada a sanção acessória de inibição de conduzir por três meses;
 Em cúmulo material, nos termos do art. 134º nº 3 do Código da Estrada, com a contra-ordenação p. e p. pelo art. 35º nºs 1 e 2 do Código da Estrada, tem o Recorrente seis meses de sanção acessória de inibição de conduzir veículos motorizados para cumprir;
No mais mantém-se a sentença recorrida.
Custas pelo Recorrente, pela improcedência parcial, fixando-se a taxa de justiça devida em 3 UC.
Lisboa, 10 de Novembro de 2010
(elaborado e revisto pelo relator e rubricado
e assinado por este e pelo Ex.mo Adjunto)

(Jorge Raposo)

(Sérgio Corvacho)