Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 14-12-2011   Crime de difamação agravado em que é visada um figura pública.
I. Genericamente, a honra resolve-se no direito que cada cidadão tem de exigir que, a seu respeito, não sejam emitidos juízos ou imputações imerecidas, vilipendiosas ou degradantes. Por isso, todos têm direito à protecção jurídica da sua honra e consideração, bem como da sua privacidade, palavra e imagem.
II. Porém, para as ‘pessoas da história do seu tempo’, ou seja, para aqueles que ocupam a boca de cena no palco da vida política, cultural ou desportiva, a tutela daqueles bens pessoais é mais reduzida e fragmentada do que no caso do cidadão comum, atendendo a que essas pessoas se encontram, necessariamente, sujeitas a críticas mais intensas.
III. No caso, as expressões utilizadas consubstanciam uma contra-crítica, que acautela interesse público legítimo, que não põe em causa a honorabilidade e credibilidade do visado na sua esfera privada mas que apenas crítica, com veemência, a forma como este se exprime e como actua no exercício das suas funções, não caindo na calúnia pessoal nem ultrapassando os limites estabelecidos pelas próprias declarações do visado que critica.
IV. Assim, atento o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra, estando em causa interesses públicos relevantes relativos a figura pública proeminente, prevalece o direito à livre expressão do pensamento pela palavra porque foram respeitadas as fronteiras intocáveis da esfera da vida privada. A dignidade da pessoa humana (art. 1º da CRP), o seu bom nome e reputação (art. 26º nº 1 da CRP), neste conflito de direitos, estiveram salvaguardados pela intangibilidade do seu núcleo essencial.
Proc. 1213/04.1TAFUN.L1 3ª Secção
Desembargadores:  Jorge Raposo - Fernando Ventura - -
Sumário elaborado por Ivone Matoso
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Proc. 1213/04.1TAFUN.L1
1º Juízo Criminal do Funchal


Acordam em conferência na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa:

I. RELATÓRIO
Nos presentes autos P, solteiro, advogado, filho de I, natural de Angola, onde nasceu em …, e residente à Rua …., concelho do Funchal, foi julgado em processo comum com intervenção do Tribunal Singular e, a final, condenado pela prática, em autoria material, de um crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.s 180°, nº 1, 182°, 183° n° 2 e 184° do Código Penal, na pena de duzentos e cinquenta dias de multa, à taxa diária de € 10, no montante global de € 2.500; e condenado a pagar ao demandante A a quantia de dois mil euros, a título de indemnização por danos não patrimoniais.
Inconformado, o arguido interpôs recurso apresentando as seguintes conclusões:
1 – A recorrida sentença só foi depositada na secretaria, para os efeitos do disposto no art. 372º nº5 do Código de Processo Penal, em 21 de Fevereiro de 2011 (cf. fls. 360 dos autos).
2 – Hialinamente, ao tê-la entregue para depósito imperioso decorridos mais de 24 meses após o decurso da sessão de julgamento em que foi produzida a prova e proferidas alegações, o Meritíssimo Juiz, com todo o respeito, que é muitíssimo, violou frontalmente, e de modo intolerável, o disposto no nº5 do art. 372º do CPP.
3 – Não prevendo a lei a leitura da sentença “por apontamento”, e apenas interessando, para efeito de recurso, o seu depósito, perdeu assim eficácia a prova produzida e limitou-se, insanavelmente, o direito de recurso do arguido, em exercício pleno das garantias de defesa, tal como consagrado no art. 32º nº1 da Constituição da República Portuguesa.
4 – Pelo exposto aquela deve ser tida por inexistente e se impõe a repetição do julgamento (vd. Acs. da Relação de Lisboa de 23/06/2005, de 12/01/2005 e de 28/11/2001, e anotação 15 ao art. 373 do CPP., Paulo Pinto de Albuquerque – Comentário do CPP – pág. 925).
5 – O corpo do delito imputado ao arguido consubstancia-se numa simples carta de leitor, de sua confessada autoria, publicada no Diário de Notícias …., nº 41627, de 11 de Agosto de 2004.
6 – Através dela, limitou-se o arguido a exercer os seus inalienáveis direitos de liberdade de expressão e de intervenção civíco-politica, exprimindo e divulgando livremente o seu pensamento pela palavra escrita (cf. nº1 do art. 37º da CRP), acerca de um peculiar comportamento público de Sua Excelência o Presidente do Governo Regional (…).
7 – E fê-lo, hialinamente, de um modo satírico, jocoso e caricatural.
8 – É questão consabida do conflito de direitos com idêntica consagração constitucional (CRP) e internacional (CEDH).
9 – Tratou-se da expressão de juízos de valor, dela estando ausente qualquer crítica caluniosa.
10 – Não soube, nem por uma linha, a sentença recorrida trazer ao debate a consagração jurisprudencial e doutrinária clara e abertamente favorável à maximização do campo da intervenção lícita por via do exercício do direito à liberdade de expressão como causa de justificação do reverso estreitamento da tutela penal da honra.
11 – Nos termos da qual admissibilidade da crítica em relação a personalidades políticas agindo no domínio da sua actividade é maior e mais amplos os limites do exercício da liberdade de expressão.
12 – A sentença recorrida, ao condenar o Recorrente pelo crime de difamação agravada e ao pagamento de uma indemnização àquele político, desrespeitou aquelas jurisprudência e doutrina, que antes determinam a absolvição do Recorrente.
13 – A sentença recorrida violou o nº1 do art.37º da CRP. e o art.10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Termos em que, pelas razões e fundamentos sumariamente expostos supra, deve ser considerada inexistente a sentença recorrida por apenas depositada em 21 de Fevereiro de 2011 e ordenada a repetição do julgamento, e, se tal por mera hipótese assim não fosse entendido, sempre considerado procedente o presente recurso, revogando-se a sentença condenatória recorrida e substituindo-a por outra absolutória do Recorrente, assim fazendo V. Exas. inteira e melhor Justiça.
O Ministério Público respondeu ao recurso, sintetizando as razões da improcedência do recurso, dizendo:
1 - O recorrente apenas recorre de direito pelo que a matéria fixada na sentença tem de se dar como provada;
2 - O recurso agora apresentado levanta duas questões:
A) -Defende a inexistência da sentença, por a mesma só ter sido depositada cerca de 24 meses depois de ter sido, alegadamente, lida por apontamento,
B) - Considera que deve ser absolvido, pois considera que apenas exerceu o seu direito de manifestar livremente os seus pensamentos e opiniões, consagrado pela Constituição da República Portuguesa;
3 - Pelo facto (verdadeiro) da sentença ter sido depositada muito depois de ter sido lida, não se segue que esta seja inexistente ou nula e não há, no processo, qualquer confirmação de que tal sentença foi lida por apontamento;
4 - O depósito tardio da sentença é uma mera irregularidade e a mesma não foi arguida em tempo - cfr. art° 123°, do CPP;
Assim, nesta parte, deve improceder o recurso;
B Relativamente à segunda questão:
5 - A liberdade de opinião e de expressão é um pilar da democracia e um direito fundamental dos cidadãos;
6 - O respeito pela pessoa humana na sua integralidade, incluindo no que diz respeito ao seu património moral, é também um pilar da democracia e do Estado de Direito e também é um direito fundamental dos cidadãos;
7 - Ambos estes direitos fundamentais têm consagração constitucional, designadamente nos art°s 26°, n° 1 e 37°, nº 1, da CRP e ambos têm aplicação directa e se impõem às entidades públicas e privadas, por via do art° 18° da mesma constituição;
8 - Estando perante um conflito de direitos fundamentais com igual valor, ambos têm de sofrer uma compressão em medida que dependerá da ponderação do peso relativo de cada um dos valores em colisão. Esta compressão executa-se mediante o recurso simultâneo a um critério de proporcionalidade na distribuição dos custos do conflito -cfr. Ac. Tribunal da Relação do Porto com o número convencional JTRP00043934 in base de dados da DGSI;
9 - O exercício da liberdade de opinião e de expressão que contenha uma mera ofensa pessoal, desnecessária, inadequada e desproporcional não pode sobrepor-se ao direito fundamental que emerge da dignidade da vida e da pessoa humana que é o direito à honra e à consideração pessoal;
10 - No caso dos autos, o arguido, aqui recorrente podia fazer a sua crítica às opções políticas e até à personalidade do ofendido, sem chamar à colação as suas características físicas, etárias, ou a sua vida sexual;
9 - O facto de o ter feito e a forma como o fez, com marcada intenção de achincalhar e meter a ridículo, deve ser sancionado pelo direito penal, conforme sucedeu.
Assim, pelo exposto, também nesta parte deve o recurso improceder e manter-se a sentença recorrida, v. Exªs farão, porém, a costumada Justiça
O recurso foi admitido.
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Neste Tribunal, foi cumprido o disposto no art. 416º nº 1 do Código de Processo Penal.
Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
As relações reconhecem de facto e de direito, (art. 428º do Código de Processo Penal) e, no caso em apreço, o Recorrente não manifesta o propósito de interpor recurso sobre a matéria de facto.
É jurisprudência constante e pacífica1 que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas na motivação (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal2).
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Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões dos recorrentes, as questão a decidir são as seguintes:
1. Inexistência da sentença por ter sido lida por apontamento e depositada cerca de dois anos depois;
2. Inexistência de crime.
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Na decisão sob recurso é a seguinte a matéria fáctica provada e não provada:
1. Foi publicado na edição nº 41627, de 11 de Agosto de 2004, do 'Diário de Notícias da ….', na página três, na secção das 'Cartas do Leitor', um artigo de opinião, escrito pelo arguido.
2. Tal artigo era do seguinte teor:
'Nove conselhos para o Dr ….
'Mandei multar, sim senhor, uma cidadã estrangeira', 'Quem recorre ao inimigo, inimigo se assume e ... viva a polarização!' 'comunas da folha' ( ... ) 'vão vocês àquela parte'. A… in JN-M de 8/8/04.
Caro Dr … como se pode constatar pelas suas declarações, você está à beira de um ataque de nervos, e até há já quem ponha em causa a sua sanidade mental. Agora que vai de férias permita-me que lhe dê alguns conselhos. 1) Não perca tempo a tentar amedrontar quem exprime livremente as suas opiniões. Repare que se o fazem é porque não têm medo de si; 2) Compre um dicionário e leia cinquenta vezes até aprender os significados das palavras: Democracia e Liberdade; 3) Leia a história 'Pedro e o Lobo'. Este menino gritava sempre 'ai o lobo, ai o lobo'. V. Exa. grita constantemente 'comunas, comunas'. Repare que já ninguém acredita no Pedro nem em si; 4) Pare de faltar ao respeito às outras pessoas. Use os seus 'termos carinhosos' apenas para os seus amigos, familiares ou colaboradores mais chegados. Se persistir nesses maus modos corre o risco de ser tratado como um tonto malcriado ou um idiota lunático; 5) Não insista em mandar polícias passar multas, olhe que corre o risco de ser acusado de abuso de poder ou apelidado de ... tiranete; 6) Não ameace os cidadãos com represálias por parte da Administração Pública. Os funcionários públicos não são seus 'jagunços' e nem trabalham para si. E lembre-se que, em última análise, V. Exa. também é um funcionário pago por todos nós; 7) Quando passear no Porto Santo vista a camisa, ninguém quer que a sua barriga apareça associada àquela maravilhosa praia e deixe os guarda-costas em casa. Se tem medo de andar sozinho compre um cão; 8) Faça ginástica. Vai ver que melhora a sua vida sexual e descarrega esse ódio que já lhe sai pelos olhos; 9) Relaxe. Não vale a pena morrer já. É que depois ... ficávamos sem circo. Com votos de boas férias'.
3. Ao escrever tal artigo, o arguido sabia que o mesmo continha juízos de valor sobre a pessoa do demandante que o ofendiam, como ofenderam, na sua honra e consideração pessoal e pública, como Presidente do Governo da Região Autónoma …, designadamente as expressões 'há já quem ponha em causa a sua sanidade mental', 'não perca tempo a tentar amedrontar quem exprime livremente as suas opiniões', 'compre um dicionário e leia cinquenta vezes até aprender os significados das palavras: Democracia e Liberdade', 'corre o risco de ser tratado como um tonto malcriado ou um idiota lunático', 'corre o risco de ser acusado de abuso de poder ou apelidado de ... tiranete', 'os funcionários não são seus 'jagunços', 'quando passear no Porto Santo vista a camisa, ninguém quer que a sua barriga apareça associada àquela maravilhosa praia', 'faça ginástica ( ... ) vai ver que melhora a sua vida sexual e descarrega esse ódio que já lhe sai pelos olhos', e 'relaxe ( ... ) não vale a pena morrer já ( ... ) é que depois ... ficávamos sem circo'.
4. O jornal 'Diário de Notícias' da … é um jornal regional muito lido na RA, com uma tiragem média de 19.123 exemplares, em Julho de 2004.
5. O arguido agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
6. O arguido não tem antecedentes criminais.
7. O arguido aufere, com a sua actividade profissional, cerca de € 0000 mensais; vive com uma companheira; o casal espera o nascimento do primeiro filho; vive em casa própria, pela qual paga cerca de € 000 mensais de prestação ao Banco; possui a licenciatura em Direito.
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Provaram-se, também, os seguintes factos, constantes do pedido de indemnização civil formulado:
8. Ao lado do artigo escrito pelo arguido, foi publicada uma fotografia do demandante.
9. O arguido bem sabia que o artigo em causa seria lido por milhares de leitores.
10. O demandante sentiu-se ofendido e afectado com o texto em causa, difundido pelo jornal mais lido nesta Região.
11. Tal artigo causou perturbação na vida do demandante, nas suas vertentes pessoal, social, política e institucional.
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Não se provaram outros factos.
Com a seguinte fundamentação de direito:
Enquadramento jurídico-penal dos factos:
Comete o crime de difamação quem, dirigindo-se a terceiro, imputar a outra pessoa, mesmo sob a forma de suspeita, um facto, ou formular sobre ela um juízo, ofensivos da sua honra ou consideração, ou reproduzir uma tal imputação ou juízo -180°, n° 1, do CP.
À difamação e à injúria verbais são equiparadas as feitas por escrito, gestos, imagens ou qualquer outro meio de expressão -182°, do CP.
A difamação é agravada for cometida através de meio da comunicação social e, bem assim, quando a vítima é Presidente do Governo Regional …., no exercício das suas funções ou por causa delas -184°, do CP.
Valorando os factos provados, verifica-se que o arguido, ao escrever um artigo na imprensa regional, sabia que o mesmo continha juízos de valor sobre a pessoa do demandante que o ofendiam, como ofenderam, na sua honra e consideração pessoal e pública, como Presidente do Governo da Região Autónoma …..
Acresce que o elemento subjectivo do crime de injúrias basta-se com o dolo genérico, em qualquer das suas modalidades: é suficiente que o agente aja consciente de que a sua conduta é adequada a ofender a honra e consideração de alguém, sem necessidade de qualquer dolo específico (animus injuriandi) - cfr. acórdão da Relação de Lisboa, de 12.07.2006, processo 5316/2006-3, in www.dgsi.pt.
E fê-lo deliberada, livre e conscientemente (dolo directo), bem sabendo não ser permitida a sua conduta (ilicitude)
Estão assim preenchidos os elementos do crime de difamação agravado imputado ao arguido.
Enquadramento jurídico-civil dos factos:
Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes da violação. Só existe obrigação de indemnizar quando há culpa do agente. Fora disso, a obrigação só existe nos casos taxativamente estipulados na lei – artº 483°, do Cód. Civil- de que serão todos os que se referirem sem indicação do diploma a que pertençam.
A culpa deve ser determinada e apreciada segundo a diligência de um bom pai de família em face das circunstâncias de cada caso, salvo a existência de qualquer outro critério legal – artº 487°, nº 2.
Ao lesado incumbe provar a culpa do autor da lesão, salvo se a seu favor tiver alguma presunção legal – artº 487°, n°1.
A indemnização compreende não só os danos emergentes mas também os lucros cessantes – artº 564°.
A indemnização dos danos patrimoniais deverá conseguir-se, se possível, através da restauração natural do património do lesado. Não sendo isso possível, haverá que fixá-la em dinheiro. Na fixação do montante, deverá o Tribunal atender à diferença entre a situação patrimonial do lesado na data mais recente e aquela que teria, nesta mesma data, se não se tivesse verificado o acidente – artº 566°.
A indemnização em dinheiro deve ser fixada não só, quando pela restauração natural não seja possível reparar integralmente os danos causados, mas ainda quando essa reparação se torne excessivamente onerosa para o devedor - 566°.
Os danos reparáveis são todos aqueles que sejam uma consequência adequada -normal e adequada -, mas também são só esses e não também quaisquer outros – artº 563°.
Responsáveis pelo pagamento da indemnização são os causadores do acidente, ou sejam, aqueles que tenham contribuído para a verificação dos danos, e beneficiários dela são os lesados - art' 483°.
Tem igualmente obrigação de indemnizar aquele que violar qualquer disposição legal destinada a proteger interesses alheios. A violação dessas disposições determina a existência de culpa por parte do agente, salvo provando que não a teve – artº 483°.
Apreciemos os danos morais causados pelo arguido.
É sabido que os danos não patrimoniais têm uma dimensão que não obedece aos critérios correntes de avaliação.
O artº 496°, nº 1, do Cód. Civil, limita-se a fornecer um critério com alguma elasticidade, mas inspirado numa razão objectiva, sobre a qual há-de assentar o juízo de equidade. Nessa perspectiva objectiva, só são atendíveis os danos não patrimoniais que, pela sua gravidade, mereçam a tutela do direito.
Ora, um dano grave é aquele que sai da mediania, que ultrapassa a fronteira da banalidade.
É um dano considerável que, no seu mínimo, espelha a intensidade duma dor, duma angústia, dum desgosto, dum sofrimento moral que, segundo as regras da experiência e do bom senso, se torna exigível em termos de resignação. Para a dor moral ou psíquica é impossível estabelecer escalas peremptórias: dentro do critério da gravidade, seguir-se-ão os ensinamentos da experiência humana em termos de afectividade e sentimento, segundo um prudente arbítrio de indemnização.
Importa, neste caso, encontrar o adequado quantitativo em dinheiro, através do qual se alcance uma compensação que neutralize a dor sofrida.
Ficou provado que:
- ao lado do artigo escrito pelo arguido, foi publicada uma fotografia do demandante;
- o arguido bem sabia que o artigo em causa seria lido por milhares de leitores;
- o demandante sentiu-se ofendido e afectado com o texto em causa, difundido pelo jornal mais lido nesta Região;
- tal artigo causou perturbação na vida do demandante, nas suas vertentes pessoal, social, política e institucional.
Com base nos critérios enunciados, o tribunal fixa compensação pelos danos morais sofridos pelo demandante na quantia peticionada, isto é, em € 2.000.
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Inexistência da sentença
O Recorrente sustenta que ao proceder ao depósito da sentença cerca de dois anos após o decurso da sessão de julgamento em que foi produzida a prova e proferidas alegações, ocorreu violação do disposto no nº 5 do art. 372º do Código de Processo Penal, pelo que, sendo irrelevante a leitura por apontamento, perdeu eficácia a prova produzida e limitou-se o direito de recurso do arguido e as garantias de defesa consagradas no art. 32º nº 1 da Constituição da República Portuguesa. Conclui pela inexistência da sentença e pela necessidade de repetição do julgamento.
O Digno Magistrado do Ministério Público, na sua resposta sustenta que o depósito tardio não significa que a sentença tenha sido lida por apontamento, o que não é confirmado por nenhum elemento do processo e é uma mera irregularidade que não foi arguida em tempo (art. 123° do Código de Processo Penal).
A questão essencial não é a da forma como a sentença foi tornada pública no acto de leitura, nos termos do art. 372º nºs 3 e 4 do Código de Processo Penal – por apontamento, de memória ou com base num documento acabado ou quase acabado – porque não foi suscitada atempadamente qualquer irregularidade por o acto público de leitura não ter observado os requisitos do nº 3 do art. 372º do Código de Processo Penal.
O problema é o tempo decorrido entre esse acto e o seu depósito.
Concordamos com o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12.10.20113, quando sustenta que “a perda de eficácia de prova ocorre apenas quando se intervale cada sessão de prova por mais de 30 dias e não quando, terminada a discussão, estando a prova gravada ou documentada, a leitura se faça mais de 30 dias depois após o encerramento da referida discussão”. Essa é, aliás, a posição consolidada do Supremo Tribunal de Justiça e do Tribunal Constitucional (como resulta da jurisprudência citada).
Consequentemente, a prova produzida não perdeu efeito.
Também não se verifica qualquer compressão do direito ao recurso nem das garantias de defesa do arguido, tendo em atenção que – de acordo com a jurisprudência constitucional – quando a data do depósito não coincide com a data da leitura da sentença, tem esta de ser notificada, o que aconteceu in casu, de tal sorte que o arguido pôde, tempestivamente exercer os seus direitos e recorrer da sentença4.
A necessidade de depósito é, aliás, o garante de que os direitos dos arguidos não são ofendidos, como salienta o referido acórdão do Tribunal Constitucional 275/2006: com a imposição do depósito como momento inicial da contagem do prazo de recurso, pretendeu-se evitar que esse prazo começasse a correr com a sentença «dada» por apontamento verbal quando só depois – às vezes bem depois – a sentença era escrita, depositada e junta ao processo. Com o prazo a correr contra eles, os sujeitos processuais não tinham o instrumento essencial que pretendiam atacar. E daí consignar-se que o momento de referência era o do depósito na secretaria, porque, então, a peça processual estava à disposição.
Subsistirão, é certo, duas questões que não podem nem devem ser aqui apreciadas e decididas: a da eventual responsabilidade disciplinar (como também se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça supra referido) e do Estado Português pelo hiato temporal aparentemente injustificável que mediou entre a leitura da sentença e o seu depósito.
Importa, por fim, abordar a questão aflorada pelo Recorrente, da inexistência da sentença. Certamente que a sentença que não é escrita não existe e, logo, não produz efeitos jurídicos. É no entanto esse um caso de inexistência material, daquilo que não aconteceu5. Aliás, no caso dos autos, não há evidência de que se tivesse pretendido atribuir qualquer efeito jurídico à sentença antes desta ser reduzida a escrito e inserida no processo6.
Mas mesmo que se entendesse que a sentença era juridicamente inexistente enquanto não foi junta aos autos, ainda assim, com a junção aos autos da sentença escrita, ter-se-ia procedido à renovação do acto nos termos legais7, previstos para as nulidades (art. 122º nº 1 do Código de Processo Penal), não existindo qualquer acto afectado que urgisse repetir.
Porém, na situação dos autos não ocorre qualquer inexistência juridicamente relevante: vício tão grave que impede a formação de caso julgado. Ocorreu, outrossim, uma atraso substancial no depósito da sentença, em violação ao disposto no nº 5 do art. 372º do Código de Processo Penal que constitui irregularidade que se encontra sanada pela junção aos autos e depósito da sentença escrita.
Consequentemente, não se verifica o vício apontado.
Inexistência do crime
Ao proceder ao enquadramento jurídico-penal dos factos, a sentença recorrida não ponderou a existência de conflito entre o direito à honra e a liberdade de expressão.
É precisamente isso que o Recorrente pretende: invoca o exercício dos seus inalienáveis direitos de liberdade de expressão e de intervenção cívico-politica, de um modo satírico, jocoso e caricatural, sem qualquer crítica caluniosa e a necessidade de maximizar o campo da intervenção lícita por via do exercício do direito à liberdade de expressão como causa de justificação do reverso estreitamento da tutela penal da honra em relação a personalidades políticas agindo no domínio da sua actividade, tendo em atenção o nº 1 do art. 37º da Constituição da República Portuguesa e o art. 10º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
Em resposta, o Ministério Público, embora reconheça a existência desse conflito, sustentou que está em causa uma mera ofensa pessoal, desnecessária, inadequada e desproporcional que não pode sobrepor-se ao direito fundamental que emerge da dignidade da vida e da pessoa humana que é o direito à honra e à consideração pessoal, considerando que o arguido podia fazer a sua crítica às opções políticas e até à personalidade do ofendido, sem chamar à colação as suas características físicas, etárias, ou a sua vida sexual e que a forma como o fez, mostra uma intenção de achincalhar e meter a ridículo que deve ser sancionada pelo direito penal.
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Genericamente, a honra é o direito que cada cidadão tem de exigir o respeito dos outros de forma a que estes não emitam juízos ou imputações imerecidamente vilipendiosos e degradantes.
E este valor tem assumido diversos recortes históricos que ora o atiram para um plano objectivo-social, ora para um plano subjectivo-pessoal, sempre extremando o conteúdo deste bem jurídico (ou o conceito de si ou o conceito dos outros quanto a alter), mas nunca o divorciando do contexto casuístico em que a tensão honra/liberdade ocorre. Por isso se diz que todo o cidadão tem direito à protecção jurídica da sua honra e consideração, bem como da sua privacidade/intimidade, palavra e imagem. Porém, para as 'pessoas da história do seu tempo', ou seja, para aqueles que ocupam a boca de cena no palco da vida política, cultural, desportiva, etc., a tutela dos bens pessoais em questão é mais reduzida e fragmentada do que no caso do cidadão comum.
É neste ponto que interessa ao tema o confronto da plêiade de direitos e valores com assento na Constituição e a ideia de necessidade, proporcionalidade e adequação que o Texto Fundamental consagra para todos os capítulos relativos às restrições dos direitos fundamentais (art. 18º da Constituição da República Portuguesa).
Com efeito, os direitos ao desenvolvimento da personalidade, ao bom-nome e reputação, à imagem e à palavra - posições subjectivas merecedoras de tutela (art. 26º da Constituição da República Portuguesa) - e a restrição de outros em nome daquela protecção não ocorre sem a concreta ponderação daquele princípio geral da proporcionalidade.
O Tribunal Constitucional, no seu Acórdão nº 81/848, a propósito dos conflitos no binómio liberdade de expressão-direito à honra afirma:
“A liberdade de expressão - como, de resto, os demais direitos fundamentais - não é um direito absoluto, nem ilimitado. Desde logo, a protecção constitucional de um tal direito não abrange todas as situações, formas ou modos pensáveis do seu exercício. Tem, antes, limites imanentes. O seu domínio de protecção pára, ali onde ele possa pôr em causa o conteúdo essencial de outro direito ou atingir intoleravelmente a moral social ou os valores e princípios fundamentais da ordem constitucional (v. neste sentido: J.C. Vieira de Andrade, Os Direitos Fundamentais na Constituição Portuguesa de 1976, Coimbra, 1983, pp. 213 e segs.) Depois, movendo-se num contexto social e tendo, por isso, que conviver com os direitos de outros titulares, há-de ele sofrer as limitações impostas pela necessidade de realização destes. E, então, em caso de colisão ou conflito com outros direitos - designadamente com aqueles que se acham também directamente vinculados à dignidade da pessoa humana [v.g. o direito à integridade moral (artigo 25.º, n.º 1) e o direito ao bom nome e reputação e à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26.º, n.º 1)] -, haverá que limitar-se em termos de deixar que esses outros direitos encontrem também formas de realização.
Dizer isto é reconhecer que, sendo proibida toda a forma de censura (artigo 37.º, n.º 2), é, no entanto, lícito reprimir os abusos da liberdade de expressão
O artigo 37.º aponta - segundo cremos - no sentido de que se não devem permitir limitações à liberdade de expressão para além das que forem necessárias à convivência com outros direitos, nem impor sanções que não sejam requeridas pela necessidade de proteger os bens jurídicos que, em geral, se acham a coberto da tutela penal. Mas, não impede que o legislador organize a tutela desses bens jurídicos lançando mão de sanções de outra natureza (civis, disciplinares...)”.
A jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem em matéria de conflito destes dois direitos, quando está em causa a protecção da privacidade, do bom nome, da reputação e da honra de “figuras públicas”9 salienta a necessidade destas revelarem um maior grau de tolerância à crítica e admite amplas restrições àqueles direitos quando está em causa a liberdade de expressão e de imprensa, desde que: (1) justificadas numa necessidade social imperiosa e (2) sejam proporcionais aos fins prosseguidos.
No Acórdão do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem de 28.9.00 que condenou o Estado Português a indemnizar quem se viu condenado pelos tribunais portugueses por crime contra a honra em situação que esse Tribunal considerou ilegítima afirma-se:
“A liberdade de expressão é um dos fundamentos essenciais de uma sociedade democrática e uma das principais condições para o seu progresso e para o desenvolvimento de cada indivíduo (…)
Quanto aos limites da crítica admissível, estes são mais alargados quando referentes a um político agindo na sua qualidade de figura pública, do que quando se referem a um simples particular. De forma inevitável e consciente, o político expõe-se a um controlo atento dos seus actos e gestos, quer por parte dos jornalistas, quer pela massa dos cidadãos (…)”.
No mesmo sentido se orienta a jurisprudência do Tribunal Constitucional, como se viu e a generalidade da jurisprudência dos nossos Tribunais, salientando-se o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.0310, onde se escreve:
“Como é sabido e geralmente aceite, os cidadãos que exercem cargos públicos, nomeadamente políticos, como os exercidos pelas Partes neste processo, estão sujeitos à crítica, quer das colectividades pela satisfação de cujos interesses devem pautar o exercício das respectivas funções, quer dos titulares de entidades que tutelem interesses conflituantes, do ponto de vista da sua própria perspectiva de satisfação do bem comum.
(…)
as pessoas que ocupam lugares de relevância política ou altos cargos na administração pública estão sujeitas a figurar como alvos de mais e de mais intensas críticas que os demais cidadãos, provenham elas de seus pares ou não.
Em democracia, a tutela da honra pessoal e reputação dos políticos é, por isso, também menos intensa que a dos cidadãos em geral”.
“O interesse público” relevante escreve Fernando Mantovani estima que “mais precisamente, o interesse público-social (que não pode ser confundido com a «curiosidade pública») subsiste quando os factos apresentam: a) um interesse público-social imediato, porque contrastam com uma intrínseca relevância público-social (por ex. actividade do governo, dos representantes da coisa pública, graves factos criminosos); b) um interesse público-social mediato, indirecto, porque, ainda que tendo em conta a vida privada pessoal, assumem um preciso e especifico interesse público-social, na medida em que se encontrem incindivelmente conexos, em concreto, a situações, acontecimentos, de interesse públicos (por ex. notícias sobre a sua vida privada relevante para fins da prova de um álibi, veracidade de um testemunho, caracterização de movimentos criminosos, confirmação de crimes e dos seus autores). Ou quando a conduta do singular passa a fazer parte da esfera pública pela sua inserção não casual, mas funcional nos factos, acontecimentos, cerimónias, públicas (por ex. comportamento ou modo de vestir não conforme ao decoro da situação ou função); ou porque a informação sobre determinados factos da vida privada pode constituir a base de valoração social da personalidade pública do sujeito e da sua idoneidade para desenvolver uma certa função (por ex. Estar de forma geral alcoolizado).
O interesse público-social, pelo contrário, não subsiste quando os factos apresentem um interesse exclusivamente privado, não possuindo qualquer relevância, ao menos mediata, com respeito a qualquer coisa que transcenda a privacidade, qualquer que seja a personalidade, privada ou pública, desconhecida ou notória, a que os factos respeitem. […] Se não pode desconhecer-se que quanto mais ampla deve ser «a zona de luminosidade» mais ampla é a [ex]posição pública da pessoa é ainda assim incontestável que também o «homem público» possui uma intangível esfera de honorabilidade e que a sua integridade moral não pode ser indiscriminadamente agredida, em razão do carácter público da sua particular actividade e opinião”11 .
Como afirma Marcello Sparo, na obra “La diffamazione a Mezzo Stampa. Profili di rissarcimento del danno”, pg. 89 e 90, “o uso de uma linguagem abstractamente insultuosa não lesa o direito à reputação se funcionalmente conexo com o juízo critico manifestado. É consentido no âmbito da contenda de natureza política ou sindical, exprimir-se em tom e modo de desaprovação e reprovação, ainda que de forma muito áspera, dado que a crítica não reverta num ataque pessoal, vale dizer conduzido directamente à esfera privada do ofendido, ou numa contumélia lesiva da honorabilidade do adversário como pessoa singular”12.
Nestes casos devem considerar-se atípicos os juízos de apreciação e valoração crítica, quando não se ultrapassa o âmbito da crítica objectiva, sendo que a atipicidade da crítica objectiva não depende do acerto, da adequação material ou da 'verdade' das apreciações subscritas, as quais persistirão como actos atípicos seja qual for o seu bem fundado ou justeza material, para além de que o correlativo direito de crítica, com este sentido e alcance, não conhece limites quanto ao teor, à carga depreciativa e mesmo à violência das expressões utilizadas, isto é, não exige do crítico, para tornar claro o seu ponto de vista, o meio menos gravoso, nem o cumprimento das exigências da proporcionalidade e da necessidade objectiva. Ponto é que o agente não incorra na crítica caluniosa ou na formulação de juízos de valor aos quais subjaz o exclusivo propósito de rebaixar e de humilhar13.
*
No contexto dos autos, o arguido escreve a sua carta de leitor que foi publicada no Diário de Notícias … em crítica ao posicionamento público do ora ofendido quando afirmou (JN-M de 8/8/04):
'Mandei multar, sim senhor, uma cidadã estrangeira', 'Quem recorre ao inimigo, inimigo se assume e ... viva a polarização!' 'comunas da folha' ( ... ) 'vão vocês àquela parte'.
Perante estas declarações de quem era e é Presidente do Governo Regional …, democraticamente eleito, o direito à crítica e à expressão livre da opinião e à reacção a expressões que não são consensuais é evidente. Trata-se, pois, de uma contra-crítica14, importando apreciar também se esta excede os próprios termos das frases proferidas pelo ofendido.
A forma satírica, jocosa e caricatural, num registo paternalista e aparentemente amigo, é evidente:
• Na forma escolhida: “nove conselhos”;
• No motivo da carta: se uma figura pública proeminente usa aquela linguagem é porque “está à beira de um ataque de nervos” e a sua “sanidade mental” é posta em causa e o arguido sugere formas de o evitar;
• Nos conselhos dados;
• Nas referências ao que o arguido considera ser o estilo próprio do ofendido;
• Nos “votos de boas férias”;
É certo que a sátira e a caricatura podem ser sentidas como achincalhantes e humilhantes e, no caso, assim terá sido sentido pelo ofendido, como ficou a constar da factualidade provada. Porém, sem razão.
Concretizemos:
O propósito da carta expresso no seu intróito e os seis primeiros conselhos são críticas directas ao inusitado das expressões usadas pelo ofendido e ao desrespeito pelos valores da democracia, da liberdade e de urbanidade que representam e no que deixam transparecer quanto à forma de administração da coisa pública, na perspectiva do arguido, sendo patente que a referência a “tiranete” aparece em contraponto a “comunas” e a referência a “jagunços”, por referência a “mandei multar…”.
Relativamente ao 7º conselho, importa recordar que as características físicas associadas aos políticos proeminentes (o nariz de Cleópatra, a estatura de Napoleão, a massa corporal de Churchill) são parte integrante da sua figura e, como decorre do supra exposto não são intocáveis. Ainda assim, o que se critica no ponto 7 não são as características físicas do ofendido mas um seu comportamento social: que, enquanto Presidente do Governo Regional passeie no Porto Santo em tronco nu, acompanhado de guarda-costas. Trata-se de uma crítica directa a uma conduta pública considerada singular (modo de vestir não conforme ao decoro da situação ou função) que faz parte da esfera pública pela sua inserção não casual, mas funcional em factos, acontecimentos ou cerimónias.
Quanto ao 8º conselho, é um facto indesmentível que ginástica e vida sexual estão associadas, na cultura popular, na publicidade e até na ciência médica e não conseguimos descortinar qualquer referência ou pessoalização – velada que seja – sobre a vida sexual do ofendido que constitua uma intromissão na esfera intocável da sua vida privada. Hodiernamente, a mera referência genérica a essa parte da vida não pode ser considerada tabu nem tem qualquer carga injuriosa. A alusão ao ódio é uma referência à carga negativa que resulta das expressões proferidas pelo ofendido, tratando-se de sentimentos que também se atenuam com o exercício físico.
No que toca ao 9º conselho, nada leva a crer que lhe esteja subjacente uma qualquer alusão malévola. A associação entre a política e o circo remonta à Antiguidade Clássica15 e à política panis et circenses (pão e jogos circenses ou pão e circo) e, no enquadramento do texto, constitui claramente a emissão de uma opinião (legítima apesar de obviamente negativa) sobre determinada forma de fazer política. Essa relação entre a política e o circo é, aliás, recorrente mesmo na actualidade política regional16 e nacional17, em que expressões como a do texto são entendidas como uma crítica a posturas políticas, mas sem nenhum sentido injurioso subjacente.
Assim, analisadas as expressões em causa verifica-se que com esta contra-crítica se visa acautelar interesse público legítimo, que não é posta em causa a honorabilidade e credibilidade do visado na sua esfera privada mas que apenas se critica com veemência a forma como se exprime e como actua no exercício das suas funções, não caindo o arguido na calúnia pessoal nem ultrapassando os limites estabelecidos pelas próprias declarações do visado que critica.
A carta do leitor não contém afirmações ofensivas da honra do visado. A linguagem usada, embora em estilo satírico que sempre foi usado na crítica política, mantém o respeito devido pela esfera da vida privada do ofendido e limita-se a pôr em causa as suas afirmações e aquilo que o arguido considera ser a sua forma de fazer política.
O interesse público-social da questão e o facto do ofendido ocupar um alto cargo político e, por isso, sujeito à mais intensa crítica, exige que se ponha a tónica na liberdade de expressão. Em democracia, a tutela da honra pessoal e reputação dos políticos é, também, menos intensa que a dos cidadãos em geral, como refere o supra citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 14.10.03.
A carta em causa constitui um artigo de opinião e um exercício da liberdade de expressão e é inapta para, por si só, beliscar o bom nome do visado.
Perante o conflito entre a liberdade de expressão e o direito à honra patente nos autos, por estarem em causa interesses públicos relevantes relativos a figura pública proeminente prevalece o direito à livre expressão do pensamento pela palavra porque foram respeitadas as fronteiras intocáveis da esfera da vida privada. A dignidade da pessoa humana (art. 1º da Constituição da República Portuguesa), o seu bom nome e reputação (art. 26º nº 1 da Constituição da República Portuguesa), neste conflito de direitos, estiveram salvaguardados pela intangibilidade do seu núcleo essencial.
Do supra exposto decorre a atipicidade da conduta do arguido
III. DECISÃO
Nestes termos, acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença recorrida e, consequentemente, absolvendo o arguido P da prática do crime de difamação agravado, p. e p. pelos art.s 180°, nº 1, 182°, 183° n° 2 e 184° do Código Penal pelo qual havia sido condenado e absolvendo-o do pedido de indemnização civil deduzido.
Por consequência, vai o arguido absolvido da condenação em custas criminais e cíveis e vai o Demandante condenado nas custas cíveis.
Sem custas
Lisboa, 14 de Dezembro de 2011
(elaborado, revisto e rubricado pelo relator
e assinado por este e pelo Ex.mo Adjunto)
(Jorge Raposo)
(Fernando Ventura)