1. Indicia-se que o arguido praticou contra a sua mãe factos que integram um crime de violência doméstica agravado previsto e punido pelo artigo 152.°, n.°s 1, alínea d), e 2, do Código Penal (CP) e um crime de sequestro previsto e punido pelo artigo 158.°, n.°s 1 e 2, alínea e), do mesmo diploma.
2. A prova recolhida indicia também que o arguido tem grande ascendência sobre a vítima, sua mãe.
3. Nos casos de violência doméstica é ambivalente a relação entre o agressor e a vítima e é frequente o recurso à manipulação por parte do primeiro sobre a segunda.
4. A situação de prisão preventiva em que o arguido se encontra limita em muito as possibilidades de contactos entre este e a vítima, mas não impede que ela o visite na prisão ou o contacte por telefone, quer por sua iniciativa quer a pedido do arguido, o que a acontecer propicia o risco sério de o arguido pressionar a ofendida a alterar o seu depoimento no sentido de o ilibar.
5. A proibição de contactos entre arguido e vítima afecta necessariamente o direito de contacto desta. Mas não será esse facto que impede a sua aplicação quando justificado pela necessidade de evitar que o arguido se sirva do contacto para afectar a aquisição, conservação ou a veracidade da prova, e contribuir para a boa administração da justiça no caso concreto.
6. É, pois, admissível a cumulação da obrigação de não contactar a vítima com a prisão preventiva.
Proc. 56/16.4PHSNT-A.L1 9ª Secção
Desembargadores: Cláudio Ximenes - Almeida Cabral - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Processo n.° 56/16.4PHSNT.L1
Acórdão da 9.ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
I. O Ministério Público, através da Sra. Procuradora-Adjunta no Tribunal da Comarca de (…), recorre da decisão que não atendeu à promoção de cumular a obrigação de não contactar com a vítima com a prisão preventiva que foi aplicada ao arguido (…).
Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1. Por decisão proferida a 02.03.2016 em 1° interrogatório de arguido detido para aplicação de medida de coação, foi alterada a qualificação jurídica quanto aos factos apresentados bem como indeferida a cumulação das medidas de coação promovidas pelo Ministério Público de prisão preventiva com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinada pessoa, que in casa a ofendida, o Tribunal a quo, alterou a qualificação jurídica e indeferiu a cumulação requerida.
2. Tal como refere Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Universidade Católica Editora, 2008, na pág. 405, ponto 6. Também são vítimas do crime as pessoas particularmente indefesas, isto é, aquelas que se encontram numa situação de especial fragilidade atendendo à sua idade precoce ou avançada, deficiência, doença física ou psíquica, gravidez ou dependência económica do agente (por exemplo, a empregada doméstica que resida no mesmo domicílio do agressor). Estas pessoas têm de coabitar com o agente.
3. De facto não existe qualquer norma no Código Penal que indique a partir de que idade se entende ser idade avançada. Pelo que, não podemos concordar com a posição do Mm.° Juiz quando refere que não foram alegados, nem resultam dos meios de prova constantes dos autos a verificação de factos integradores do elemento típico pessoa particularmente indefesa.
4. Tal como referimos, entendemos que a vítima tem idade avançada, uma vez que o Código Penal não indica em concreto a partir de que idade se pode entender idade avançada, tal como faz relativamente aos menores, resultando da lei que são os menores de 18 anos de idade.
5. Decorre do disposto no artigo 200°, n° 1 Se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, o Juiz pode impor ao arguido, cumulativa ou separadamente, as obrigações de: (...) d) Não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas ou não frequentar certos lugares ou certos meios.
6. Assim como, nos termos do disposto no artigo 202°, que se reporta à medida de prisão preventiva, nada nos diz que a mesma não pode ser cumulada com a de proibição de contactos.
7. Aliás o Mm.° Juiz invoca o artigo 201 °, n° 2 do Código de Processo Penal, no qual prescreve que: A obrigação de permanência na habitação é cumulável com a obrigação de não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas. Mas nada refere quanto à cumulação da prisão preventiva com a proibição de contactos.
8. Também não decorre de nenhum outro artigo enunciado que a medida de prisão preventiva não possa ser cumulada com a proibição de contactos.
9. Tal como sufragado por Maia Costa in Código de Processo Penal Comentado por António Henriques Gaspar, José António Henriques dos Santos Cabral, Eduardo Maia Costa, António Jorge de Oliveira Mendes, António Pereira Madeira e António Pires Henriques da Graça, 2014, na sua anotação ao artigo 202°, pág. 877, ponto 10. A prisão preventiva é apenas cumulável com o TIR, com a suspensão do exercício de profissão, função, atividade ou direitos (art.° 199) e também com a proibição de contactar determinadas pessoas por interpretação extensiva do art.º 201 °, n° 2.
10. Também Paulo Pinto de Albuquerque in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem 2.º edição atualizada, na sua anotação ao artigo 202°, pág. 569, ponto 5. A prisão preventiva é cumulável com:
d) Com o termo de identidade e residência (artigo 196°, n° 4)
e) Com a suspensão do exercício (artigo 199° n° 1) com qualquer outra medida de coação
f) Com a obrigação do artigo 200°, n° 1, al. d) (por interpretação extensiva do artigo 201 °, n° 2).
11. Ora, salvo o devido respeito pelo Tribunal a quo, afigura-se-nos que a decisão recorrida não procedeu à aplicação das normas legais, o que impunha que se cumulasse a medida de prisão preventiva com a proibição de contactos.
12. Aliás, a signatária no âmbito do processo n° 1639/ 14.2PCSNT, da l.ª Secção Instrução Criminal - J3, da Comarca de (…), recorreu do indeferimento da aplicação da cumulação da medida de coação de prisão preventiva e da proibição de contactos sendo que o Acórdão da Relação de Lisboa deu provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido e determinando que, em sua substituição, seja proferido outro que aplique em cumulação com a prisão preventiva a proibição de contactos com a vítima por qualquer meio.
13. Tal como sufragado no referido Acórdão Entendemos, porém, ser procedente a pretensão do Ministério Público, já que a lei nada nos diz que a prisão preventiva não pode ser cumulada com a de proibição de contactos. (...) Na verdade, estipula o artigo 200°, n° 1 que: Se houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de máximo superior a 3 anos, o juiz pode impor ao arguido, cumulativa ou separadamente, as obrigações de: (...) d) Não contactar, por qualquer meio, com determinadas pessoas ou não frequentar certos lugares ou certos meios. Por outro lado, nos termos do disposto no artigo 202°, que se reporta à medida de prisão preventiva, nada nos diz que a mesma não pode ser cumulada com a de proibição de contactos.
14. De facto, in casu, verifica-se que o arguido possui grande ascendente sobre a vítima, sua mãe, pelos laços de sangue que os unem. A vítima pode a todo o momento solicitar visitas ao arguido no estabelecimento prisional onde, este se encontra, pois é seu filho, mesmo depois de ter sido vítima deste.
15. O Ministério Público tem receio que o arguido exerça pressão sobre a ofendida para que esta altere o seu depoimento de forma a ilibá-lo. O que nos parece muito provável suceder.
16. Entendemos por isso que no caso concreto se verifica preenchido o requisito previsto no art.° 204° al. b), ou seja, perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo, e nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova, pelo que se promoveu se cumulasse com a prisão preventiva a proibição de contacto com a vítima por qualquer meio, tudo nos termos do disposto no art.º 200° n° 1 ° al. d), do Código de Processo Penal.
Termos em que, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, revogada a decisão recorrida nos moldes acima referidos e substituída por outra que aplique em cumulação com a prisão preventiva. a proibição de contactos com a vítima por qualquer meio e se entenda que a qualificação jurídica promovida, é a adequada, pelo menos por ora, atentos os elementos de prova.
O arguido não respondeu às alegações do recorrente.
O Sr. Procurador-Geral-Adjunto neste Tribunal de Relação defende que o recurso não deve ser atendido dizendo:
Apenas queremos deixar expresso que idêntica questão de direito foi decidida no sentido pedido pelo M°P° na 1.ª instância, mais precisamente no processo citado nas motivações de recurso (com a seguinte correcção - o processo tem o n.° 1639/14.2PCSNT-B.Ll da 5.a Secção desta Relação), conforme acórdão de 2 de Junho de 2015, já transitado, ou seja, de que é possível a cumulação de medidas de coacção com a prisão preventiva.
No entanto, entendemos que a cumulação de prisão preventiva com outra medida de coação só é possível se, só com aquela, não se consegue impedir que se concretizem os perigos a que se refere o art.° 204.°, als. b) (perigo de perturbação do inquérito, perturbação que pode ocorrer se, por exemplo, o detido puder contactar outros através de meios electrónicos, justificando-se, pois, que com a prisão preventiva lhe seja imposta igualmente a obrigação de não contactar com determinadas pessoas) (se o crime puder ser praticado por via electrónica ou telefónica, justificando-se igualmente a proibição de contactar, por exemplo, co-arguidos ou pessoas que o ajudem a levar a cabo a sua actividade ilícita), sendo que o perigo restante evita-se com a prisão preventiva.
Por outras palavras, a cumulação da prisão preventiva só deve ser permitida nos casos em que o arguido, através de meios electrónicos e/ou telefónicos, possa perturbar o inquérito e/ou continuar a actividade criminosa.
No caso em apreço, o que parece resultar da pretensão do M°P° é que se evitem contactos entre vítima (mãe do arguido) e o arguido, pois este terá algum ascendente psicológico sobre aquela e, portanto, proibindo-se o arguido de a contactar, evita-se (conforme alega o M°P° na 1.ª instância) que a mesma possa mudar o seu depoimento em defesa do arguido. Tal argumento, porém, não nos convence, posto que a mãe, se quiser, nem presta depoimento - art.° 134.° do CPP - e, além disso, não se estaria a impor uma obrigação ao arguido, mas sim à vítima, já que esta só entra em contacto com o arguido preso se quiser (por via das visitas ou pelo telefone, se permitido). E não seria com a imposição ao arguido de não contacto com a vítima que se iria evitar que este voltasse a insultar a mãe (quando bastaria a esta desligar o telefone) ou que este a convencesse a, por exemplo, nem sequer falar em julgamento, quando tal pode sempre ocorrer aquando da advertência que o tribunal julgador tem de lhe fazer de que não é obrigada a depor...
Daí que não vejamos qual a utilidade da pretensão do M°P° na 1.ª instância no caso em apreço e só não desistimos do recurso - art. ° 415.º do CPP - na medida em que outro pode ser o entendimento do venerando tribunal ad quem.
O arguido adere à posição do Sr. Procurador-Geral-Adjunto.
II. De acordo com as conclusões da motivação, temos que decidir neste recurso se se justifica impor ao arguido que se encontra em prisão preventiva a obrigação de não contactar com a vítima para além da medida de coacção a que ele está sujeito.
O recorrente argumenta que a lei não proíbe que se cumule com a prisão preventiva outra medida de coacção e que o possui grande ascendente sobre a vítima, sua mãe, pelos laços de sangue que os unem.
As medidas de coacção destinam-se a satisfazer exigências de natureza cautelar no processo penal numa fase em que o arguido ainda não está condenado por decisão transitada em julgado e, como tal, se presume inocente.
Por isso, o CPP condiciona a sua aplicação à verificação de requisitos apertados, uns necessários à aplicação de qualquer medida de coacção e outros específicos de aplicação de cada uma delas. Os pressupostos gerais da aplicação de qualquer medida de coacção, estão previstos nos artigos 191.°, 192.°, 193.°, n.°s 1 e 4, e 204.° do CPP e os pressupostos específicos para a aplicação da prisão preventiva estão previstos nos artigos 193.°, n.° 2, e 202.° do CPP.
As disposições conjugadas dos artigos 191.°, n.° 1, 193.°, n.° 1, e 204.° do CPP impõem que as medidas de coacção só se podem aplicar quando os factos indiciados na prova recolhida permitem razoavelmente pensar que elas são necessárias e adequadas para prevenir (a) a fuga ou perigo de fuga; (b) o perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou (c) o perigo de o arguido continuar a actividade criminosa ou perturbar gravemente a ordem e a tranquilidade públicas. Impõem ainda que as medidas de coacção aplicadas não podem ultrapassar a medida necessária para essa prevenção.
Não temos dificuldade em aceitar a cumulação da prisão preventiva com outras medidas de coacção quando tal seja necessário e adequado para se conseguir os objectivos para que estão dirigidas as medidas de coacção.
Estamos perante um caso em que a prova recolhida indicia que o arguido praticou contra a sua mãe factos que integram um crime de violência doméstica agravado previsto e punido pelo artigo 152.°, n.°s 1, alínea d), e 2, do Código Penal (CP) e um crime de sequestro previsto e punido pelo artigo 158.°, n.°s 1 e 2, alínea e), do mesmo diploma. A prova recolhida indica também que o arguido tem grande ascendência sobre a vítima, sua mãe. Apesar de a prisão preventiva em que o arguido se encontra limitar em muito as possibilidades de contactos entre este e a vítima, nada impede que ela vá à prisão visitá-lo ou que contacte com ele por telefone, por iniciativa dela ou a pedido do arguido - o que, a acontecer, propicia o risco sério de o arguido pressionar a ofendida a alterar o seu depoimento no sentido de o ilibar. Sabemos como é ambivalente a relação entre o agressor e a vítima nos casos de violência doméstica e a frequência do recurso à manipulação por parte do primeiro sobre a segunda.
A proibição de contactos entre arguido e vítima afecta necessariamente o direito de contacto desta. Mas não será esse facto que impede a sua aplicação quando justificado pela necessidade de evitar que o arguido se sirva do contacto para afectar a aquisição, conservação ou a veracidade da prova, e contribuir para a boa administração da justiça no caso concreto.
Portanto, a decisão recorrida deve ser alterada no sentido de se sujeitar o arguido à obrigação de não contar com a vítima por qualquer meio.
II. Pelo exposto, deliberamos, por unanimidade,
a) Julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público;
b) Alterar a decisão recorrida no sentido de se impor também ao arguido a obrigação de não contactar com a vítima por qualquer meio.
Lisboa, 15 de Setembro de 2016
Os Desembargadores
Relator - Cláudio de Jesus Ximenes
Adjunto - Manuel Almeida Cabral