Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 26-10-2016   homicídio na forma tentada. Condenação em pena de prisão efectiva. Necessidade de prevenção geral.
Independentemente do juízo que se fizer quanto à necessidade de pena para satisfazer a finalidade de prevenção especial, a prevenção geral impõe que, num caso em que, na sequência de um pequeno desaguisado de trânsito, com uma grande ligeireza, se utiliza uma arma e com ela se atinge uma zona vital de uma outra pessoa, a pena a aplicar só possa ser a de prisão, única que no caso concreto constitui uma reacção contrafáctica adequada e pode contribuir para a pacificação social.
Proc. 73/15.1POLSB 3ª Secção
Desembargadores:  Carlos Almeida - João Moraes Rocha - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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Processo n.° 73/15. 1 POLSB. L 1 - 3.ª Secção
Relator: Carlos Rodrigues de Almeida
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO
1 - O arguido J... foi julgado na 1.a Secção da Instância Central de Lisboa da Comarca de Lisboa e aí condenado, por acórdão de 3 de Maio de 2016, pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, conduta p. e p. pelos artigos 131.°, 22.°, 23.° e 73.° do Código Penal, na pena de 8 anos de prisão.
Nessa peça processual o tribunal considerou provado que:
1. No dia 18 de Janeiro de 2015, pelas 16 horas e 50 minutos, o ofendido R... procedia ao abastecimento do veículo automóvel de matrícula 23-30-SM, pertencente a J…, sua irmã, no Posto de Abastecimento da Rede Energia, sito na Avenida de Pádua, 14, em Lisboa.
2. A J… encontrava-se no local.
3. O arguido J..., que já havia abastecido o veículo automóvel de matrícula …, marca Audi, modelo A3, ficou incomodado por não conseguir sair do local e buzinou por três vezes.
4. Pelo que, nessa altura, começou a interpelar J….
5. De seguida, quando o ofendido R... se dirigiu ao seu veículo automóvel de matrícula … que se encontrava ali estacionado, o arguido dirigiu-se-lhe e desferiu-lhe um murro, tendo-se ambos envolvido em agressões físicas.
6. Nessa ocasião, o arguido retirou do bolso das calças uma faca de características não apuradas e desferiu-lhe um golpe que o atingiu nas costas.
7. Após, colocou-se em fuga no veículo automóvel acima identificado.
8. O ofendido R... foi prontamente assistido no Serviço de Urgência do Hospital de São José - Centro Hospitalar de Lisboa Central e Serviço de Cirurgia Torácica do Hospital da CUF Descobertas.
9. Em consequência das agressões de que foi vítima, o ofendido R... sofreu traumatismo do hemotórax direito que lhe determinaram 30 dias para a consolidação, com afectação da capacidade de trabalho geral (10 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (30 dias).
10. Lesões idóneas a produzir a morte do mesmo caso a conduta médico-cirúrgica não tivesse suprido a situação de forma imediata e tempestiva.
11. O arguido quis atingir o ofendido R..., sabendo que a faca cujas características não foi possível apurar, era um instrumento particularmente perigoso.
12. Sabia ainda que tal conduta era susceptível de provocar lesões graves ou a morte do R..., conformando-se com a possibilidade da sua conduta poder causar a morte à vítima.
13. O arguido agiu sempre de forma deliberada, livre e consciente, bem sabendo que a conduta que assumia era punível e proibida por lei.
14. O arguido J... é o mais velho de uma fratria de sete elementos, de um casal de origem cabo-verdiana, que veio da ilha de São Tomé e Príncipe para Portugal, quando o arguido era bebé, em busca de melhores condições de vida.
15. A dinâmica familiar e conjugal é avaliada pelo arguido como harmoniosa e estruturada, sendo transmitidos à fratria valores associados ao trabalho.
16. A subsistência do agregado era assegurada pelos rendimentos do trabalho dos progenitores, a mãe como empregada de limpeza e o pai na área da construção civil.
17. A família residiu na Quinta dos Cravos, zona de habitação precária.
18. Mais tarde foi realojada no Bairro de Chelas, onde se processou a socialização do arguido.
19. A nível escolar, o arguido obteve o 8.° ano, tendo abandonado os estudos para se integrar laboralmente, com o objectivo de colaborar financeiramente no sustento da família.
20. Inicialmente exerceu funções como paquete, tendo mais tarde encetado um negócio de cabeleireiro e uma empresa de lavagem de carros.
21. Posteriormente, foi proprietário da Obra Própria, empresa de montagem e instalação de tectos falsos, que encerrou em 2012.
22. Ao nível afectivo, o arguido manteve uma relação amorosa, de cuja união nasceu uma filha.
23. O casal separou-se um ano depois tendo a criança ficado aos cuidados do arguido.
24. O arguido foi preso em 26/ 03/ 1999 tendo sido libertado a 04/08/2003 pela prática de crime de tráfico de estupefacientes.
25. Não se verificaram, no presente, alterações significativas no contexto familiar do arguido desde a data da ocorrência dos alegados factos.
26. O arguido, de nacionalidade cabo-verdiana, actualmente com 43 anos, reside com os pais, ambos reformados, e três irmãos que se encontram integrados laboralmente.
27. Os restantes encontram-se autonomizados da família de origem.
28. A filha do arguido, actualmente com seis anos, integra o agregado que reside em habitação camarária em Chelas.
29. A casa possui condições de habitabilidade para todos os elementos da família.
30. No plano laboral, o arguido refere a compra de bens, nomeadamente veículos automóveis, que revende em Cabo Verde, onde se desloca regularmente.
31. Retira um valor mensal irregular, compreendido entre 1.000, 00 e 1.500, 00 euros.
32. Contribui para as despesas quotidianas da casa da família.
33. O arguido transmite não ter historial aditivo além de consumo de bebidas alcoólicas, ao nível social.
34. Assume um bom estado de saúde no global.
35. No que diz respeito à ocupação de tempos livres, permanece em casa, dedicando-se ao visionamento de filmes.
36. Refere também o apoio à filha, que carece de apoio e vigilância médica ao nível da saúde.
37. O presente processo não teve também impacto na sua vida pessoal, familiar ou laboral.
38. O arguido não tem antecedentes criminais.

O tribunal fundamentou a decisão de facto nos seguintes termos:
A decisão de facto teve por base quanto à questão da culpabilidade a ponderação de todos os meios de prova produzidos ao longo do processo e em sede de julgamento, designadamente, os depoimentos das testemunhas, a prova documental e a prova pericial.
Declarações de arguido:
No início da audiência o arguido prestou declarações, admitiu ter entrado em confronto físico com o ofendido, mas negou que o tenha atingido com uma faca. Afirmou que nenhuma outra pessoa interveio no confronto físico e confrontado com o ferimento do ofendido apresentou com causa possível do mesmo o embate das costas do ofendido no poste cuja fotografia se encontra a fls. 34.
Testemunhal:
A testemunha R... prestou depoimento com conhecimento directo dos factos, por ter sido o ofendido.
Descreveu os factos de forma objectiva e consistente. Começou por afirmar que entrou em confronto físico com o arguido devido a uma disputa automobilística. O arguido saiu do veículo automóvel em que se fazia transportar e desferiu-lhe um soco, entraram em luta e foram separados pelos transeuntes.
Na luta viu o arguido tirar uma faca ponta e mola do bolso e com ela perfurar-lhe as costas. Após o que a voltou a enfiar no bolso.
Depois de ter sido esfaqueado, tropeçou e bateu com a cabeça no poste da bomba de abastecimento de combustíveis.
Começou logo a ter dificuldades respiratórias e dores.
Foi sujeito a intervenções cirúrgicas.
A testemunha M… depôs com conhecimento directo dos factos, na medida em que presenciou a luta entre arguido e ofendido, tentou ajudar este último, tomou nota da matrícula do veículo automóvel do arguido e fez a chamada para o 112.
Quando vinha a sair do local de trabalho passou pela bomba de abastecimento de combustíveis e assistiu à situação passada entre o arguido e o ofendido.
Viu-os envolvidos um com o outro, o arguido a desferir uma facada no ofendido, após o que enfiou algo no bolso e foi embora.
As testemunhas T… e L…, agentes da Polícia de Segurança Pública, compareceram no local onde os factos ocorreram, a primeira assistiu o ofendido fazendo compressão na ferida e apontou a matrícula do veículo automóvel do arguido, informação que lhe foi fornecida pela irmã do ofendido; a segunda limitou-se a descreveu aquilo que presenciou quando chegou ao local dos factos, o ofendido estava no interior do veículo automóvel da irmã e tinha uma ferida nas costas.
Pericial:
Relatório de perícia de avaliação do dano corporal de fls. 77-78 e 102-103.
Documental:
As fotografias de fls. 34-36, a informação clínica de fls. 39-40 e 96-97, o auto de visionamento dos registos de imagem de fls. 50-55 captados pelo sistema de videovigilãncia da bomba de abastecimento de combustíveis.
Em face da compatibilidade e coerência dos depoimentos do ofendido e da testemunha M…, o tribunal colectivo não teve dúvidas em afirmar que os factos se passaram tal como se encontra descrito. Com efeito, entre o arguido e o ofendido ocorreu uma altercação devido a uma desavença automobilística, ambos entraram em confronto físico, no meio do termo do qual o arguido desferiu uma facada nas costas do ofendido. Só a penetração de uma faca nas costas do ofendido explica o ferimento por ele apresentado.
Ao contrário do que o arguido afirmou, este ferimento não poderia ser causado pelo embate das costas do arguido no poste da bomba de abastecimento de combustíveis.
A saliência que o poste apresenta não é susceptível de perfurar o corpo humano, pois se trata de uma saliência romba, sem lâmina nem ponta afiada.
Assim sendo, tomando como boa a afirmação do arguido que ninguém mais interveio na luta, só ele poderia ter causado a perfuração das costas do ofendido.
Os ferimentos e consequências sofridas pelo ofendido emergem com clareza do relatório de avaliação do dano corporal.
Quanto à questão da determinação da sanção foi tido em consideração o relatório social e o CRC.

2 - O arguido interpôs recurso desse acórdão.
A motivação apresentada termina com a formulação das seguintes conclusões:

Âmbito do Recurso
1. O presente recurso é interposto do acórdão que condenou o recorrente, como autor de um crime de homicídio, na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131.°, 22. °, 23.° e 73.° do Código Penal, na pena de prisão de 8 (oito) anos;
2. Solicita a reapreciação da matéria de facto e de direito, nos termos dos artigos 410. °, n.° 2, alíneas a) e c), e 412. °, n.° 3, alíneas a) e b), do Código de Processo Penal.
Analisando o acórdão
3. Quanto aos factos que condenaram o Recorrente como autor de um crime de homicídio na forma tentada.
Para isso, considerou provado que:
- Na sequência de uma luta corporal, o arguido desferiu uma facada nas costas do ofendido;
- Em consequência das agressões de que foi vítima, o ofendido sofreu traumatismo do hemotórax direito que lhe determinaram 30 dias para a consolidação, com afectação da capacidade de trabalho geral (10 dias) e com afectação da capacidade de trabalho profissional (30 dias);
- Lesões idóneas a produzir a morte do mesmo caso a conduta médico-cirúrgica não tivesse suprido a situação de forma imediata e tempestiva.
- Assim sendo, ao desferiu uma facada nas costas do ofendido, o arguido desencadeou um processo causal susceptível de tirar a vida ao ofendido.
- O que não aconteceu devido ao tempestivo socorro médico que salvou a vida ao ofendido.
4. Contudo, não pode o recorrente concordar com a mesma, visto que a convicção do tribunal baseou-se quanto à questão da culpabilidade na ponderação de todos os meios de prova produzidos ao longo do processo e em sede de julgamento, designadamente, os depoimentos das testemunhas, a prova documental e a prova pericial e não considera o recorrente suficiente para aplicação da pena em causa.
5. O recorrente pretende impugnar o facto considerado provado de que desferiu uma facada nas costas do ofendido.
6. Assumindo desde já que de todo ficou provado tal facto, pois, para ter existido um golpe perfurante produzido por uma faca, tem de existir a faca, tem de existir testemunhas oculares que tenham visto a faca, tem de existir testemunhas que tenham presenciado o acto de perfuração pelo agente/recorrente no ofendido, e tem acima de tudo de existir a consciência por parte do ofendido da própria perfuração.
7. É verdade que estes dois se envolveram inicialmente em discussão verbal, que se veio a arrastar até ao confronto físico.
8. Nessa sequência veio a apresentar um traumatismo no hemotórax direito e entende o recorrente que não ficou provado que esta tenha sido provocada por um desferimento de uma faca pelo recorrente contra o ofendido.
9. O acórdão que foi baseado (também) no depoimento da testemunha R…, aqui ofendido, indicou que o mesmo foi prestado de forma objectiva e consistente ora não pode concordar de forma alguma o recorrente com esta afirmação, pois as declarações do ofendido foram prestadas de forma inconsistente, e acima tendenciosa no sentido de levar à condenação do arguido.
10. O ofendido acabou por ter um depoimento atabalhoado no que respeita ao relato dos factos concretos.
11. O acto em si que provocou a lesão ao ofendido não ficou de esclarecido nem por qualquer documento junto aos autos, nem por nenhum depoimento testemunhal, incluindo o do próprio ofendido.
12. No entanto nas declarações prestadas pelo ofendido em sede de audiência de julgamento e ainda que este tenha feito crer o contrário o depoimento acabou por ser contraditório por diversas vezes.
13. Na opinião do ofendido apresentou um discurso planeado para de alguma forma atribuir a culpa ao arguido por todo o desfecho que se veio a verificar.
14. O ofendido não se apercebeu que havia sido esfaqueado.
15. Mas quando confrontado com o momento exacto em que se apercebeu que estava ferido acabou por confirmar que foi alertado para isso.
16. Existe desconexão em todo o depoimento prestado, atingindo uma falta de razoabilidade, a partir do momento em que descreve o momento antes e durante a suposta facada.
17. O ofendido diz que foram ambos agarrados por cerca de 10 pessoas.
18. Adiante muda o discurso e diz que não foram agarrados mas sim separados.
19. A questão essencial aqui não tem necessariamente que ver com o facto de o arguido ter sido agarrado ou não, tem a ver com a demonstração da incoerência e: da manipulação do discurso no sentido de ir ao encontro do que pretende o ofendido, o que efectivamente conseguiu, que mais não foi do que a condenação pesada do arguido.
20. O ofendido relata ainda que após a facada, houve tempo para uma 'pequena conversa em que o arguido lhe diz que lhe deu a facada porque este mereceu, pondo-se de seguida em fuga.
21. Quanto à demais matéria de facto dada como provada, também há a referir de onde foi retirada a faca, pois se no ponto 6 dos factos dados como provados foi dito que o arguido tirou a faca do bolso das calças, ora isto não pode ser considerado correcto, visto que o ofendido diz que foi do bolso do casaco.
22. O tribunal a quo também assentou a sua convicção no depoimento da testemunha M…,
23. No essencial esta testemunha refere que assistiu de longe à briga entre ofendido e o ora aqui recorrente, mas não se inibe em afirmar que o ofendido foi esfaqueado, apesar de não ter visto nem faca nem instrumento nenhum cortante.
24. Apesar de ter dito muita coisa, nunca disse de .forma clara, transparente e indubitável que o recorrente estava munido de uma faca, nem podia porque não a viu.
25. Existe um facto, incontestável, carreado para os autos em fase de inquérito a considerar que será o relatório médico apresentada pelo hospital, que refere a lesão do ofendido.
26. Em relatórios apresentados, não ficou provado que:
- A lesão apresentada pelo ofendido apenas pode ser compatível com uma faca.
- Se a lesão do ofendido poderia ser compatível com outro material cortante, que não uma faca.
- E que se o ofendido não socorrido prontamente poderia ter morrido, ou ficado com alguma sequela.
27. Nesta sequência não pode o tribunal dar como provado os factos, que:
- O arguido retirou do bolso das calças uma faca de características não apuradas e desferiu um golpe que atingiu o ofendido nas costas.
- E que em consequência das agressões de que foi vitima, o ofendido sofreu traumatismo do hemotórax direito.
- Lesões idóneas a produzir a morte do ofendido caso a conduta médico-cirúrgica não tivesse suprido a situação de forma imediata e tempestiva.
- Que o arguido quis atingir o ofendido R….
- E que consequentemente quis o arguido provocar lesões graves ou a morte,
conformando-se com a possibilidade da sua conduta causar morte ã vítima.
28. E certo que o ofendido tinha uma lesão na zona das costas, isso é inegável e encontra-se documentado nos autos, aqui a questão é saber o que provocou tal lesão.
29. O ofendido apesar de dizer que viu uma faca, também diz de forma clara que apesar se tudo não sentiu a facada, apenas se apercebeu que estava ferido.
30. O arguido também não consegue arranjar uma explicação certa para o que provocou aquela perfuração nas costas, apenas pode supor que durante a luta que os dois se envolveram tenha batido com as costas num pilar existente nas bombas que se encontra documentado a fls. 34.
31. O recorrente coloca a hipótese de que durante o confronto o ofendido tenha batido com as costas noutro local e o arguido nem se ter apercebido, nada garante também que não existissem vidros no chão e que algum pudesse ter perfurado a zona lesionado.
32. Conclui-se que o tribunal a quo não privilegiou nem a descoberta da verdade, nem a legalidade do meio de obtenção de prova, e isto porquê? Por mera economia de meios. Isto acaba por ser entendido como uma afronta ao Estado de Direito, onde não existem nem regras nem prioridades definidas, tornando-se tudo uma verdadeira anarquia.
33. Com o devido respeito afigura-se o cometimento do vício da alínea a) do n.° 2 do artigo 410.° do Código de Processo Penal - insuficiência da matéria de facto provada, o que significa que a prova produzida é insuficiente para a condenação do recorrente pela prática de um crime de homicídio na forma tentada.
34. Houve igualmente erro notório na apreciação da prova e como tal deve ser revogado o acórdão recorrido, substituindo-o por outro que, com base nos elementos de prova junto aos autos, absolva o recorrente - J..., quanto muito o recorrente deveria ter beneficiado do princípio do in dubio pro reo.
35. Não se afasta a hipótese que na convicção do tribunal pudesse subsistir a dúvida do que aconteceu, mas a dúvida em relação à existência ou não de determinado facto deve ser resolvida em favor do imputado.
36. Assim se conclui que todo o arguido é presumido inocente uma vez que ainda decorre um processo não transitado em julgado com sentença condenatória.
37. O que é que sucedeu nos presentes autos? O douto tribunal inverteu o princípio e com a condenação optou por criar um novo princípio (inexistente no processo penal português) o in dubio contra reo;
38. Assim deverá ser o recorrente absolvido, que desde já se requer que seja ordenado pelo Venerando Tribunal da Relação de Lisboa.
Direitos Violados
- Princípio da Proibição da Atribuição do ónus da Prova ao Arguido
- Artigo 410.°, n.° 2, alíneas a) e c), ambos do Código de Processo Penal
- Artigo 32.° da Constituição da Republica Portuguesa
- Princípio da Presunção de Inocência
39. Caso assim não se entenda, e por cautela de patrocínio, ainda se dirá que
40. O ora recorrente foi condenado a uma pena de prisão efectiva pelo crime de homicídio na forma tentada, previsto e punido pelos artigos 131. °, 22.° e 23.° do Código Penal, na pena de prisão de 8 (oito) anos.
41. O crime de homicídio, na forma tentada, é punível com pena de prisão de 1 ano 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses de prisão.
42. Uma vez que o Tribunal ao aplicar pena de prisão efectiva ao ora recorrente teve em consideração essencialmente o aspecto punitivo e não ponderou, como devia, o aspecto pedagógico que deve estar presente na aplicação de qualquer pena.
43. De acordo com o número 1, parte final, do artigo 40.° do Código Penal, a pena a aplicar visa a reintegração do agente na sociedade, logo, a aplicação da referenciada pena a quem está integrado social, familiar e profissionalmente, certamente contraria a ratio deste preceito legal e do verdadeiro fim das penas.
44. Por sua vez, o numero 1 do artigo 71.° do Código Penal estipula que a determinação da medida da pena é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção devendo, conforme previsto no seu número 2, atender-se às circunstâncias que deponham a favor do agente ou contra ele, nomeadamente às aí enumeradas.
45. Deve existir uma exigência de proporcionalidade entre a gravidade da pena e a gravidade do facto praticado; a graduação da medida concreta da pena deve ser efectuada em função da culpa do agente e das exigências de prevenção no caso concreto.
46. Na determinação da medida da pena o Tribunal deverá atender a todas as circunstâncias que depuserem a favor do agente, designadamente as que a título exemplificativo vêm espelhadas nas alíneas do n.° 2 do artigo 71.° do Código Penal e que, considerando a conduta do agente, devem ser consideradas e são aplicáveis ao caso concreto.
47. O Tribunal de recurso deverá considerar os factos juntos aos autos, corrigir o acórdão recorrido, aplicando a J… uma decisão diferente, visto:
- Estar enquadrado social, familiar e profissionalmente;
- Residir com a sua família de origem, tendo de prover para o sustento da casa e essencialmente pelo exercício das responsabilidades parentais da filha.
48. Assim, e considerando as atenuantes que acima se referem, não será descabido, nem resultará qualquer dano gravoso para a sociedade ou pelo menos prejudicial em demasia para a mesma, a aplicação de uma pena suspensa, seja ela em que medida for, afigurando-se adequado aos fins das penas e proporcional ao grau de ilicitude.
49. Para além da suspensão da pena, poderá o recorrente pagar a título de compensação um valor monetário ao ofendido, por forma a minimizar o impacto que as lesões provocaram ao ofendido.
50. As lesões foram consequência de uma briga por motivo insignificante, que infelizmente terminou mal tanto para o ofendido como para o recorrente.
51. E por essa razão sente-se o recorrente com o dever de alguma forma compensar o ofendido financeiramente com um valor que o Tribunal da Relação possa considerar justo e razoável.
52. O valor a designar deverá ser pago num determinado período de tempo sob pena da pena suspensa ser revogada e o recorrente ter de cumprir a pena efectiva.
53. Com isto, entende-se que uma medida deste género responderá melhor tanto a uma punição como a uma prevenção da conduta do agente/recorrente.
54. Não parece razoável e nem muito coerente que se aprisione o recorrente por 8 anos quando na verdade nem provado ficou que este quis matar alguém.
55. Não podia o Tribunal a quo ter decidido como decidiu condenando o arguido a uma pena efectiva de oito anos, afastando assim a possibilidade da suspensão da execução da pena, por falta de um dos requisitos formais.
56. Ao decidir como se vem descrevendo o tribunal colectivo não fez uma interpretação correcta dos princípios e normas contidos no número 1 do artigo 71. °, ambos do Código Penal.
57. Tudo ponderado, tendo em vista as necessidades da prevenção geral e especial e por se verificarem preenchidos os pressupostos do artigo 50.° do Código Penal, deverá ser suspensa a pena na sua execução pelo tempo, em cumulação com o pagamento de um indemnização compensatória a pagar ao ofendido que o Venerando Tribunal da Relação entenda por conveniente, ainda que seja sujeita a cumprimento de deveres ou a regime de prova.
Direito Violado
- Artigos 40. °, 50. °, 52. °, 53. °, 70. °, 71. °, 72.° e 73. °, todos do Código Penal
- Artigos 1. °, n.°s 1 e 2, 2.° e 4. °, todos do Decreto-Lei 410/ 82, de 23 de Setembro
- Princípio da Adequação e da Proporcionalidade
Nestes termos, deve o Douto Acórdão ora recorrido ser revogado e substituído por outro que:
- Absolva o ora recorrente da prática do crime homicídio na forma tentada;
- Ou, caso assim não se entenda, por mera cautela de patrocínio, seja proferido Acórdão de condenação, suspensa na sua execução, cumulando um pagamento de uma indemnização ao ofendido.
Assim fazendo esse Venerando Tribunal da Relação de Lisboa a tão acostumada justiça.
3 - Este recurso foi admitido pelo despacho de fls. 272.
4 - O Ministério Público respondeu à motivação apresentada defendendo a improcedência do recurso (fls. 277 a 287).
5 - A Sra. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer sustentando que o recurso interposto pelo arguido apenas merecia provimento no que respeita à medida da pena aplicada, a qual deve ser reduzida.

II - FUNDAMENTAÇÃO
6 - O arguido, embora confundindo, a nosso ver, a impugnação da decisão de facto com a invocação dos vícios a que aludem as alíneas a) e c) do n.° 2 do artigo 410.° do Código de Processo Penal, sustentou que o acórdão recorrido padecia de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada e de erro notório na apreciação da prova.
Tais vícios, conforme diz expressamente o corpo do citado preceito legal, têm de resultar do texto da decisão recorrida, só por si ou conjugada com as regras da experiência comum, circunstância que nem o próprio recorrente entende verificar-se. Para ele, os invocados vícios resultariam da prova produzida na audiência, o que é coisa bem diferente.
Isto bastaria para concluir pela improcedência desse fundamento do recurso.
Importa no entanto acrescentar que a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada não tem o alcance que o recorrente lhe atribui. Esse vício não relaciona a prova produzida, examinada e lida na audiência com a decisão com base nela tomada pelo tribunal, mas a matéria de facto assente com a decisão jurídica proferida.
Também por isso, esta pretensão do recorrente não poderia ter acolhimento.
7 - Para além de arguir os indicados vícios do acórdão, o arguido impugnou também a decisão proferida quanto a parte do que é narrado nos pontos 6, 9, 10, 11 e 12 da matéria de facto provada, pretendendo que este tribunal a considere como não provada.
Como fundamento dessa sua pretensão, o recorrente invocou algumas pequenas desarmonias e imprecisões existentes nas declarações do ofendido e alguma insuficiência do declarado pela testemunha M…, desconsiderando, no entanto, por completo o cerne dessas declarações e a restante prova produzida e examinada na audiência.
Na verdade, para além de as citadas testemunhas terem declarado que tinha sido o arguido a desferir o golpe nas costas do ofendido com um instrumento perfurante de características não concretamente determinadas, que o ofendido disse ser uma navalha de ponta e mola, a utilização de um tal tipo de instrumento, que produziu um orifício profundo mas de pequena extensão, resulta também das fotografias da roupa do ofendido, que constam de fls. 35, e da documentação clínica e pericial junta aos autos. Um tal golpe não poderia, de forma alguma, ser produzido pelo embate no poste, cuja fotografia se encontra a fls. 34, nem por uns supostos vidros no solo, que ninguém afirmou ter visto.
Torna-se, por isso, manifesto, que a prova indicada pelo recorrente não impõe decisão diversa da proferida, razão pela qual improcede também este fundamento do recurso.
8 - Resta-nos apreciar a questão da escolha da pena e determinação da sua medida.
O arguido foi condenado pela prática de um crime de homicídio na forma tentada, conduta prevista nos artigos 131.°, 22.° e 23.° do Código Penal, a qual, em conjugação com o artigo 73.° do mesmo diploma, é punível, em abstracto, com prisão de 1 ano, 7 meses e 6 dias a 10 anos e 8 meses.
Para a graduação da pena, o tribunal deve atender aos seguintes factores:
- A gravidade das lesões provocadas pela ofensa e o tempo de doença e de incapacidade para o trabalho daí resultantes;
- O facto de o arguido ter utilizado uma arma branca;
- A primitiva agressão a soco por parte do arguido;
- A actuação do arguido com dolo eventual de homicídio;
- A circunstância que esteve na origem do conflito, que tem a ver com o impedimento da passagem do automóvel conduzido pelo arguido numa bomba de gasolina;
- O confronto físico que, na sequência da primitiva agressão, surgiu;
- A integração familiar, laboral e social do arguido;
- A ausência de antecedentes criminais.
Os quatro primeiros factores contribuem para a graduação da ilicitude, que é mediana, e, por essa via, para a determinação do grau de culpa e das necessidades de pena para satisfazer a finalidade de prevenção geral.
Os dois factores seguintes ajudam a explicar a actuação do arguido, mitigando, se bem que ligeiramente, a sua culpa.
Os restantes factores são relevantes em termos de prevenção especial, apontando para não serem muito elevadas, embora não despiciendas, as necessidades neste campo.
Tudo ponderado, entende este tribunal dever graduar em 5 anos a pena concreta a aplicar ao arguido.
9 - Sendo esta a dimensão da pena a aplicar, importa saber se a sua execução deve ser suspensa, nos termos do artigo 50.° e ss. do Código Penal.
Nesta sede há que dizer que, independentemente do juízo que se fizer quanto à necessidade de pena para satisfazer a finalidade de prevenção especial, a prevenção geral impõe que, num caso como este, em que, na sequência de um pequeno desaguisado de trânsito, com uma grande ligeireza, se utiliza uma arma e com ela se atinge uma zona vital de uma outra pessoa, a pena a aplicar só possa ser a de prisão, única que no caso concreto constitui uma reacção contrafáctica adequada e pode contribuir para a pacificação social.
Por isto, entende este tribunal não dever suspender a execução dessa pena de prisão.
III - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3.a secção deste Tribunal da Relação em julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo arguido J..., alterando a pena que lhe foi aplicada, que passa a ser a de 5 (cinco) anos de prisão, mantendo, em tudo o mais, o decidido pelo tribunal de 1.a instância.
Sem custas.
Lisboa, 26 de Outubro de 2016
(Carlos Rodrigues de Almeida)
(João de Moraes Rocha)