Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 15-12-2016   Crime de receptação. Indícios suficientes. Pronúncia.
1- Ainda que os factos ocorram no âmbito da actividade comercial de compra e venda de objectos usados de ouro e naturalmente sujeitos a uma acentuada desvalorização, tem de se considerar que a aquiescência do arguido a todos os montantes sugeridos pela compradora, a enorme discrepância de valores das transacções ocorridas em dias sucessivos, ao longo de quase um mês e abrangendo cerca de duas dezenas de fios, anéis e alianças em ouro não podia deixar de levar a arguida a criar uma particular suspeita quanto à proveniência dos artigos.
2- Indiciando-se, ainda que o arguido na ocasião era consumidor habitual de heroína circunstância passível de causar sinais no seu aspecto físico e na forma de comunicação e que os sinais constantes de duas alianças não deviam deixar de criar alguma suspeita de que todos aqueles objectos eram afinal pertença de pessoas diferentes, uma valoração conjunta segundo regras normais de experiencia comum e critérios de razoabilidade, tais elementos probatórios disponíveis nesta fase do procedimento e referentes às concretas condições das transacções, onde se incluem a quantidade de artigos e o valor negociado, conduzem forçosamente à conclusão de que a arguida omitiu o dever de se assegurar da origem licita de todos aqueles artigos: e sabia que esses mesmos arguidos provinham de furto, roubo ou de outro crime contra o património.
3- Estes elementos probatórios constituem assim indícios suficientes dos factos descritos na acusação pública e permitem configurar uma probabilidade séria de condenação da arguida pelo cometimento em autoria material e em concurso real dos seis crimes de receptação, previstos e punidos no artigo 231° n° 2 do Código Penal de foi acusada, assim se justificando o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento.
Proc. 11/12.3PCAGH 3ª Secção
Desembargadores:  João Lee Ferreira - Nuno Ribeiro Coelho - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Processo 11/12.3PCAGH.L2
Acordam em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa,
1. Nestes autos de processo comum n° 11/12.3PCAGH, o Exm° juiz da Secção Criminal da Instância Local de Angra do Heroísmo proferiu em 12/05/2016 a seguinte decisão instrutória (transcrição):
Declaro encerrada a instrução. O tribunal é o competente.
Não existem nulidades, quaisquer outras questões prévias ou incidentais de que cumpra conhecer e que obstem à apreciação do mérito da causa.
O Ministério Público proferiu, a fls. 182/192, acusação imputando aos arguidos:
-J..., a prática, em autoria material, de seis crimes de receptação, previstos e puníveis pelo art. 231°, n° 1 do Código Penal e
-S..., a prática, em autoria material, de seis crimes de receptação, previstos e puníveis pelo art. 231°, n° 2 do Código Penal.
Notificada da prolação do despacho acusatório, veio a arguida requerer a abertura da instrução, sustentando estarem erradas as premissas em que se baseia o libelo acusatório.
E, designadamente, que, por um lado, e no que respeita à diferença entre o valor pago no acto de compra do ouro e o valor das peças de ourivesaria, a, à data, entidade patronal da arguida (à semelhança das demais empresas que operam neste ramo) adquiria ouro para fundir (desconsiderando as jóias ou o trabalho artístico de ourivesaria incorporado nas peças que lhe eram vendidas), de acordo com o valor do ouro à data de cada uma das aquisições e com as determinações da empresa titular da marca franchisada (ficando a dita entidade patronal com uma margem de lucro máxima de dois euros por grama de ouro).
Mais refere que a avaliação às peças de ourivesaria em causa nos presentes autos teve em consideração, não estritamente o ouro nelas incorporado (como interessa às empresas de estrita compra de ouro), mas igualmente as jóias e o trabalho artístico que evidenciam.
A arguida alega, ainda, que a circunstância de o co-arguido, aquando dos actos de compra e venda do ouro, não ter negociado o valor por si indicado, resulta, tão-só, do facto de aquele valor ser o máximo que o estabelecimento podia oferecer.
Por outro lado, refere, ainda, a arguida, no requerimento de abertura da instrução, que, aquando dos actos de compra e venda de ouro, o co-arguido a informou de que o ouro era pertença de uma irmã sua, que estaria hospitalizada, sendo a venda destinada a fazer face a despesas pessoais e familiares, facto de que a arguida nunca duvidou, até porque não raro as pessoas pedem a terceiros que procedam às vendas, com receio de ficarem socialmente mal vistos.
Relativamente à circunstância de o co-arguido se ter deslocado, por seis vezes, ao estabelecimento onde, à data, trabalhava a arguida, não lhe causou a mesma qualquer surpresa ou dúvida, porquanto é
justamente o que ocorre com a maioria dos clientes, que vão vendendo o ouro de que dispõem, precisamente em função das suas necessidades. Bem pelo contrário, a reiteração dos actos de compra e venda reforçam a confiança na relação empresa/cliente.
Mais é referido que o co-arguido se apresentou, no estabelecimento onde trabalhava a arguida, sempre com bom aspecto, limpo e bem vestido, com um discurso coerente, pausado e calmo, nunca tendo esta suspeitado da condição de toxicodependente daquele.
Destes actos de compra de ouro alega, ainda, a arguida sempre ter dado o devido conhecimento à Policia Judiciária, bem como à PSP (comunicação esta que esteve, aliás, na origem da detecção do das peças em questão nos presentes autos).
Foi proferido despacho a determinar a abertura da instrução. Procedeu-se à produção da prova requerida e a debate instrutório, com observância do formalismo legal.
Estatui o n° 1 do art. 286° do Código de Processo Penal que «a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito em ordem a submeter ou não a causa a julgamento.»
E estabelece o art. 308° n° 1 do Código de Processo Penal, que a pronúncia ou não pronúncia depende da recolha de indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança (...).
Tal como ensina Figueiredo Dias, in Direito Processual Penal, p. 133, os indícios só são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.
Os indícios devem colher-se de toda a actividade probatória produzida nos autos, quer na fase de inquérito, quer na fase de instrução.

Factualidade indiciada e não indiciada
Dos factos descritos na acusação e imputados à arguida, resulta suficientemente indiciado que:
1. No dia 30 de janeiro de 2012, a hora não concretamente apurada, o arguido deslocou-se ao estabelecimento de ourivesaria Ourinvest situada na Rua do Galo, n° 137, área desta comarca;
2. Uma vez ali presente, o arguido foi atendido pela arguida, funcionária do referido estabelecimento, a quem propôs a venda dos seguintes artigos:
A) 1 fio em ouro (colar) de 14 quilates, em malha 3+1, com 56 cm de comprimento (danificado), com o pesode 6,1 gramas;
B) 1 fio em ouro (pulseira), em malha bismark, com 12,50 cm de comprimento (danificado), com o peso de 3,4 gramas;
C) 1 pingente em ouro (berloque), em forma de circunferência, com rebordo trabalhado, possuindo no centro desenho de um trevo, com o peso de 1,3 gramas;
3. A arguida ofereceu, pelos referidos objetos, o preço global de 195 euros, valor que o arguido, sem negociar, prontamente aceitou;
4. Tais objetos encontram-se globalmente avaliados em 415 euros, nos seguintes termos:
A) Colar: 244 euros;
B) Pingente/berloque: 52 euros e
C) Pulseira: 119 euros;
5. A transação efetuada entre os dois arguidos, supra, foi titulada pelo recibo/declaração de venda n° 3000447, emitida pela arguida em nome do arguido e por este assinada, dele constando, além do mais, a discriminação das peças vendidas, nos seguintes termos:
Características/Metal/Peso (gr)/Classif icação ouro colar/ouro 19.2 kt800/6.24/C ouro pulseira/ouro 19.2 kt800/3.38/P ouro berloque/ouro 19 kt375/1.63/DV
6. No dia 01 de fevereiro de 2012, a hora não concretamente apurada, o arguido deslocou-se novamente à ourivesaria Ourinvest e propôs a venda à arguida dos seguintes artigos:
D) 1 fio em ouro, de malha fina, com 61 cm de comprimento e o peso de 9,3 gramas;
E) 1 fio em ouro (danificado), possuindo efeito de três esferas, sendo uma de maiores dimensões, com o peso de 1,4 gramas;
F) 1 medalha em ouro de 10 kilates, em forma retangular, trabalhada, possuindo em relevo dois peixes, com o peso de 4,6 gramas e um fecho em ouro, pesando 5,2 gramas;
G) 1 aro em ouro, em forma oval, com 4,6 gramas de peso;
H) 1 libra em ouro com a face da Queen Elisabeth II;
7. A arguida ofereceu, pelos referidos objetos, o preço global de 620 euros, que o arguido, sem negociar, prontamente aceitou;
8. Tais objetos foram avaliados no montante global de 1.177,50 euros, nos termos seguintes:
D) Fio: 465 euros.
E) Fio: 49 euros;
F) Medalha: 180 euros e respetivo fecho de 260 euros (440 euros); &) Aro:184 euros; H) Libra: 299,50 euros;
9. A referida venda foi titulada pelo recibo/declaração de venda n° 3000471, emitida pela arguida em nome do arguido e por este assinada, dele constando, além do mais, a discriminação das peças vendidas, nos seguintes termos:
Caracteristícas/Metal/Peso (gr)/Classificação ouro cordão/ouro 19.2 kt800/9.73/C
ouro berloque/ouro 19.2 kt800/1.59/DV ouro berloque/ouro 19 kt375/10.23/DV ouro aro/ouro 19.2 kt800/4.74/DV ouro libra moeda/ouro 22 kt/7.97/MO;
10. No dia 9 de fevereiro de 2012, a hora não concretamente apurada, o arguido deslocou-se urna vez mais, à referida ourivesaria Ourinvest e propôs a venda à arguida dos seguintes artigos:
1) 1 par de brincos em ouro, em forma retangular, pesando 3,2 gramas; J) 1 par de argolas em ouro, de dimensões médias, pesando 1,2 gramas; K) 1 aro oval em ouro, de reduzidas dimensões, com o peso de 2,6 gramas; L) 1 argola em ouro, de reduzidas dimensões, com o peso de 0,3 gramas;
11. A arguida ofereceu, pelos referidos objetos, o preço global de 150 euros, que o arguido, sem negociar, prontamente aceitou;
12. Tais objetos foram avaliados no montante global de 406,50 euros, nos termos seguintes: 1) Brincos: 192 euros; J) Argolas: 64 euros; K) Aro: 140 euros; L) Argola: 10,50 euros;
13. A referida venda foi titulada pelo recibo/declaração de venda n° 3000528, emitida pela arguida em nome do arguido e por este assinada, dele constando, além do mais, a discriminação das peças vendidas, nos seguintes termos:
Características/Metal/Peso (gr)/Classif icação ouro par argolas/ouro 19.2 kt800/3.24/AS ouro par argolas/ouro 19.2 kt800/1.23/AS ouro berloque/ouro 19.2 kt800/2.59/DV ouro sucata/ouro 19.2 kt800/0.34/SU;
14. No dia 14 de fevereiro de 2012, a hora não concretamente apurada, o arguido deslocou-se, como já era habitual, à referida ourivesaria Ourinvest, nesta comarca, tendo sido atendido pela arguida, a quem propôs a venda dos seguintes artigos:
M) 1 pulseira em ouro de 14 kilates, em malha batida e larga, com o peso de 17,6 gramas;
N) 1 anel em ouro de 14 kilates, com mesa trabalhada, possuindo cinco pedras incolores, com o peso de 4,8 gramas;
15. A arguida ofereceu, pelos referidos objetos, o preço global de 100 euros, que o arguido, sem negociar, prontamente aceitou;
16. Tais objetos foram avaliados globalmente em 1.163 euros, nos termos seguintes: M) Pulseira: 968 euros; N) Anel: 195 euros;
17. A referida venda foi titulada pelo recibo/declaração de venda n° 3000572, emitida pela arguida em nome do arguido e por este assinada, dele constando, além do mais, a discriminação das peças vendidas, nos seguintes termos:
Características/Metal/ Peso (gr)/Classificação ouro pulseira/ouro 14.1 kt585/17.82/P ouro anel/ouro 9 kt375/4.5/A;
18. No dia 17 de fevereiro de 2012, a hora não concretamente apurada, o arguido deslocou-se novamente à Ourinvest e propôs à arguida a venda das seguintes peças:
O) Par de brincos em ouro, de forma hexagonal, com o peso de 2,8 gramas;
P) /Aliança em ouro com a gravação Isabel 26/1/75, com o peso de 4,4 gramas;
Q) Anel de ouro, com mesa possuindo efeitos laterais em forma de folha e com pedra incolor e no centro pedra de cor verde, com o peso de 1,6 gramas;
R) Anel em ouro com mesa trabalhada, possuindo nas laterais efeito em cor prateada e no centro pedra de cor branca, com o peso de 3 gramas;
19. A arguida ofereceu pelas referidas peças o preço global de 230 euros, que o arguido, sem negociar, prontamente aceitou;
20. Tais objetos foram avaliados no montante global de 496 euros, nos termos seguintes:
O) Brincos: 160 euros;
P) Aliança Isabel 26/1/75: 176 euros;
Q) Anel:75 euros;
R) Anel: 85 euros;
21. A referida venda foi titulada pelo recibo/declaração de venda n° 3000591, emitida pela arguida em nome do arguido e por este assinada, dele constando, além do mais, a discriminação das peças vendidas nos seguintes termos:
Características/Metal/Peso (gr)/Classif icação ouro par argolas/ouro 19,2 kt800/2,87/AS ouro aliança/ouro 19,2 kt800/4.5/AL ouro anel/ouro 19,2 kt800/1,6/A ouro anel/ouro 19,2 kt800/2,7/A;
22. No dia 21 de fevereiro de 2012, após prévio contacto telefónico, o arguido deslocou-se à sucursal da ourivesaria Ludicavisão - Unipessoal sita na Rua dos Remédios, n° 12, na Praia da Vitória, para se enconirar com a arguida, que ali era, também, funcionária e propôs a venda das seguintes peças:
S) 1 pingente em ouro em forma de papiro, com o peso de 0,4 gramas;
1) 1 pingente em ouro em forma de trevo, trabalhado, possuindo no centro pedra de cor verde e na zona envolvente 12 pedras incolores, com o peso de 1,3 gramas;
U) 1 aliança fula em ouro, de reduzidas dimensões, com o peso de 0,5 gramas;
V) 1 anel em ouro, possuindo mesa simples com pedra de cor verde, com o peso de 0,5 gramas;
X) 1 aliança em ouro, com a gravação «Alberto 26/1/75, com o peso de 3,4 gramas;
Z) 1 anel em ouro de 14 kilates, com mesa em forma de flor, com sete brilhantes;
23. A arguida dispôs-se a comprar as referidas peças pelo preço global de 165 (uros, que o arguido, sem negociar, prontamente aceitou;
24. Tais objetos foram avaliados em 699,50 euros, nos termos seguintes:
S) Pingente:25 euros;
T) Pingente: 35 euros; U) Aliança: 22 euros; V) Anel: 37,50 euros; X) Aliança: 180 euros; Z) Anel: 400 euros;
25. A referida venda foi titulada pelo recibo/declaração de venda n° 3100079, emitida pela arguida em nome do arguido e por este assinada, dele constando, além do mais, a discriminação das peças vendidas nos seguintes termos:
Características/Metal/Peso (gr)/Classificação ouro aliança/ouro 19,2 kt800/0,46/AI
ouro aliança/ouro 19,2 kt800/3,38/AL ouro anel/ouro 19,2 kt800/1,86/A ouro anel/ouro 19,2 kt800/2,7/A ouro berloque/ouro 19,2 kt800/1,25/DV ouro medalha/ouro 19,2 kt800/0,42/M;
26. Pelo menos à data dos referidos factos, o arguido era toxicodependente, consumindo designadamente heroína.
Não resultam indiciados quaisquer outros factos para além ou contrariamente aos que antecedem e, designadamente, que:
1. A data da concretização das vendas, o aspecto e a indumentária do arguido, concretamente não apurados, não fossem alheios à circunstância de o mesmo ser toxicodependente;
2. A arguida tenha actuado com o propósito de obter ganhos, quer para si, quer para terceiros, que sabia não terem sustento legal e que eram totalmente imerecidos, procurando desse modo obter uma vantagem patrimonial à custa dos legítimos donos das peças de ouro, o que logrou;
3. A arguida não pudesse ignorar pela disparidade entre o preço proposto e o real, que o referido ouro era produto de um furto, roubo ou qualquer outro meio ilícito;
4. Conhecedora do preço real daquele ouro no mercado oficial, a arguida tenha querido adquiri-lo ao arguido por um valor manifestamente inferior ao seu valor real;
5. Soubesse, igualmente, a arguida que o negócio que fizera com a sua compra não era válido e não tinha sido transferida para a sua esfera jurídica patrimonial ou, para a esfera jurídica da Ourinvest ou da Ludicavisão, a propriedade dos valores furtados, designadamente quando adquiriu alianças gravadas com os nomes dos respectivos proprietários Isabel e /Alberto e viu que o arguido, sem negociar e sem colocar qualquer objecção, aceitava os valores por si propostos, abaixo do seu preço em cerca de 3/5, quer ainda, pela condição de toxicodependente do arguido;
6. A arguida tenha desconfiado que estava a adquirir peças em ouro que não pertenciam ao arguido e que tinham proveniência ilícita;
7. A arguida tenha agido livre, deliberada e conscientemente, com vista a obter um benefício de natureza económica, quer para si, quer para terceiros, que sabia não lhe ser permitido por lei, agindo deste modo com plena consciência de que a sua conduta era proibida e punida por lei criminal;
8. A arguida tenha tido perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida e punida criminalmente.
Motivação do juízo de indiciação e não indiciação da matéria de facto
Na formulação do juízo de indiciação e não indiciação acima reflectido no critério selectivo da matéria de facto foram tidos em consideração os seguintes meios de prova:
- documentos de fls. 28/33, os quais documentam as compras da Ludicavisão, Unipessoal, Lda (através da arguida, sua funcionária) ao co-arguido, comunicadas, por aquela, à Policia Judiciária;
auto de exame directo de fls. 35/37, no qual M... procede, na qualidade de ourives, à avaliação dos artigos apreendidos, atribuindo-lhes o valor comercial global de quatro mil, seiscentos e dezassete euros e cinquenta cêntimos;
- auto de reconhecimento de objectos de fls. 39/40, no qual os artigos ali referidos são reconhecidos, pela própria, como sendo propriedade de I...;
termo de entrega (de fls. 41) dos artigos ali referidos ao proprietário, A...;
- declarações de responsabilização do co-arguido, por este subscritas aquando dos actos de compra e venda de ouro junto da Ludicavisão (f Is. 62 a 67 e 147/152);
- informações prestadas pelo ofendido A... aquando da formulação da denúncia de fls. 11:
- declarações da arguida, a fls. 161, confirmando a sua intervenção nos actos de compra e venda com o co-arguido;
- declarações do co-arguido, a fls. 176/177, que, além do mais, confirmou ter vendido o ouro (que não lhe pertencia e que sabia ser provindo de furtos) à mesma empresa, sendo sempre atendido pela arguida, bem como que, na altura, era consumidor de heroína;
- depoimento de H..., sócio gerente da Ludicavisão e, por essa via, entidade patronal da arguida, à data da ocorrência dos factos sob apreciação. Pelo mesmo foi referido que a franchisada Ourinvest (o estabelecimento explorado pela Ludicavisão) adquiria ouro dentro das tabelas definidas pela franchisadora. As pedras preciosas eram devolvidas aos clientes, uma vez que as peças de ourivesaria adquiridas eram sempre consideradas como sucata, no sentido de que apenas lhes interessava o ouro, e já não as pedras preciosas ou o trabalho artístico de ourivesaria nelas integrados. A Ourinvest franchisadora era quem comunicava a esta sua franchisada qual a cotação do ouro do dia e a tabela de compra, com uma determinada margem. O depoente tentava sempre que se comprasse o mais barato possível dentro desta margem, uma vez que quanto, mais barato comprasse, maior seria a margem de lucro. As compras eram introduzidas num software fornecido pela franchisadora, sendo airawés do mesmo que se procedia às comunicações à Policia Judiciária. Quer o depoente, quer a arguida, receberam formação da Ourinvest para ficarem habilitados a avaliarem tecnicamente a qualidade do ouro. Sempre que houvesse alteração do preço de compra estipulado o depoente telefonava à arguida a comunicar. Esta só dispunha de margem de manobra de entre cinquenta cêntimos e um euro sobre o valor indicado pelo depoente. Caso o cliente não aceitasse o preço oferecido (contrariamente ao que era comum acontecer), a arguida telefonava ao depoente e este poderia, pontualmente, autorizar que fosse aceite um valor ligeiramente superior. Nunca era a arguida a decidir qual o valor a oferecer pelo ouro. Por outro lado, de acordo com o depoente, existia, ao dispor da arguida, uma lista, fornecida e regularmente actualizada pela PSP, com a identidade dos indivíduos que deveriam suscitar-lhe dúvidas se e quando se lhe apresentassem a propor a venda de peças em ouro, sendo que o nome do ora co-arguido não constava de tal lista em nenhum dos momentos em que se concretizaram as operações de compra e venda em causa nestes autos. Mais referiu ser habitual que os proprietários dos objectos em ouro, querendo manter reservada a circunstância de deles se desfazerem, pediam para serem atendidos fora do horário de expediente ou faziam-se representar por terceira pessoa;
- depoimento de D..., o qual referiu ter sido gerente de um estabelecimento de compra de ouro, similar àquele onde exerceu funções a arguida, tendo-a conhecido aquando da frequência, por ambos, de uma acção de formação. Esclareceu que o preço de compra do ouro era sempre fixado pela franchisadora, com um limite mínimo, embora tivesse uma pequena margem de manobra, fixando sempre, à sua então funcionária, um preço máximo de compra. A empresa franchisadora recebia informações sobre pessoas suspeitas e divulgava-as pelas f ranchisadas;
- depoimento de M..., a qual referiu ter-se deslocado ao estabelecimento onde trabalhava a arguida, no intuito de proceder à venda de ouro. A arguida solicitou-lhe documento de identificação e questionou-a acerca do motivo da venda, explicando-lhe que o valor oferecido decorria de tabelas diárias fixadas. Esclareceu, ainda, que foi vendendo gradualmente o ouro de que era proprietária;
- declarações da arguida, prestadas nesta fase instrutória, dizendo que, quando atendeu o arguido, não notou nada nele de anormal, o qual se apresentou com um vestuário normal e manteve sempre um registo de tranquilidade. O arguido, na ocasião, referiu que as peças eram de uma irmã sua que se encontrava hospitalizada e apresentou-lhe, como motivo da venda, a circunstância de essa sua irmã lhe ter pedido para que se desfizesse desses bens, uma vez que o arguido tinha, nessa fase, a seu cargo, os sobrinhos. A compra foi feita pelo preço tabelar, que foi aceite, não sem que, antes, a arguida, no intuito de avaliar a reacção do arguido, o informasse de que existia uma lista facultada pela PSP àquele estabelecimento e relativa às pessoas suspeitas de poderem vender ouro de proveniência ilícita. Na primeira venda, a arguida, nas suas palavras, apertou com o arguido, para, nas demais, confiar na sua pessoa, notando que, em todas elas, o arguido evidenciava alguma tristeza, compatível com a versão que apresentara. Na ocasião, referiu, tinha pouco mais de um mês de experiência e esta acabou por ser a sua primeira situação problemática, pelo que veio a ocorrer;
- documentos de fls. 212/213 (declaração de venda e nota de compra relativas ao cliente J...) e 214/216 (relativos aos critérios de fixação do valor de compra do ouro, cumpridos pela Ourinvest).
Discutindo os meios de prova:
A circunstância de o arguido se apresentar perante a arguida propondo a venda do ouro que trazia consigo, na perspectiva de quem exerce funções num estabelecimento daquela natureza, não assume, a nosso ver, qualquer excepcionalidade, sendo, ao invés, um acto dotado de normalidade.
As quantidades de peças em ouro que o arguido lhe apresentou de cada uma das vezes que ali se deslocou não eram, igualmente, de molde a suscitar qualquer suspeita, porquanto se enquadram dentro de um padrão de normalidade do cliente tipo destes estabelecimentos comerciais.
E, por outro lado, a reiteração com que o arguido ali compareceu era, ainda, compatível com o perfil de um número frequente de clientes, até de acordo com as regras da experiência comum.
De facto, é conforme às regras de uma certa normalidade da vida, que o cidadão necessitado de liquidez, para fazer face a necessidades mais ou menos imperiosas, opte por alienar, tão-só gradualmente, as peças em ouro que possui, até porque tal circunstância representará, não raro, um acto penoso em termos emocionais.
Tudo isto foi consistentemente descrito e sustentado pelos depoentes H... e D..., os quais evidenciaram uma válida razão de ciência ora da prática habitual naquele estabelecimento (H...), ora da prática em geral (D...).
Por outro lado, a manifesta escassez de elementos que se prendem com a descrição das circunstâncias em que o arguido se lhe apresentou, não permite consistentemente afirmar que a mesma terá formulado uma suspeita sobre a origem dos bens.
E certo que, hoje, a imagem do arguido sugere um passado de toxicodependência.
Desconhece-se, porém, qual a aparência do arguido nas, aliás já distantes, datas do início do ano de 2012, ainda que já então fosse consumidor de heroína.
Com efeito, não se apurou, em sede indiciária, se a condição de toxicodependência do arguido era, ou não recente, podendo, em caso positivo, não se repercutir minimamente na sua aparência e indumentária.
De todo o modo, ainda que lográssemos apurar qual a imagem do arguido à data dos factos, tal circunstâtieia seria, a nosso ver, inidónea para, desacompanhada de outras, fundar um grau de suficiente indiciação de que a arguida representou a possibilidade da proveniência ilícita dos bens.
Não resultou, pois, da factualidade indiciariamente apurada nestes autos que o arguido evidenciasse, à data dos factos, uma imagem que impusesse à arguida suspeitar da sua condição de toxicodependente e, por essa via, da proveniência das peças de ouro.
Igualmente nada se apurou sobre se o comportamento que, naquelas ocasiões, o arguido teve deixou transparecer qualquer espécie de nervosismo ou intranquilidade, sendo, ao invés, referido pela arguida (que, é certo, tinha interesse na causa), que o mesmo apresentou uma versão (a respeito de se apresentar a vender em nome de outrem) que aquela já tinha por plausível, pelo contacto mantido com outros clientes.
Acresce que, de acordo com a própria arguida (corroborada aqui com os depoentes H... e D...), era habitual a venda fraccionada, uma vez que muitos clientes procuram evitar desfazer-se de todo o ouro que possuem.
Não resultam, pois, apuradas circunstâncias que permitam considerar que, em razão da condição do arguido (aparência, comportamento, versão dos factos subjacentes aos actos de venda), a arguida tenha suspeitado da proveniência ilícita dos bens.
Acresce que, de acordo com o depoimento de M..., a arguida mantinha uma conduta diligente e cuidadosa na abordagem aos potenciais clientes interessados em vender ouro, indagando acerca do motivo da venda. Referiu, ainda, esta depoente, ter vendido o seu ouro de forma igualmente gradual.
Por fim, é manifesta a existência de uma disparidade entre o valor atribuído no auto de exame directo e avaliação de fls. 35/37 e aquele pelo qual os objectos foram adquiridos, com intermediação da arguida como funcionária do estabelecimento.
Porém, tal discrepância, e designadamente os valores oferecidos pela Ourinvest e, em geral, pelos estabelecimentos de compra de ouro, resultaram consistentemente esclarecidos.
De facto, o valor proposto correspondeu à habitual ordem de grandeza de valor oferecido, em função da cotação do ouro e das tabelas diariamente fixadas pela franchisadora, bem como pelo facto de, nas lojas de compra de ouro, apenas se proceder à avaliação do ouro que as peças integram, e não já das pedras preciosas ou trabalho artístico de ourives que venha incorporado (os quais são considerados como verdadeira sucata).
A respeito da atitude da arguida perante o arguido, no sentido de apurar as razões da venda e demais circunstâncias atinentes à origem da coisa, apenas se colheram as declarações da arguida, sustentando a suficiência e amplitude de tal abordagem, nenhuma outra prova resultando dos autos (nem decorrendo de uma visão de conjunto da mesma) no sentido de que o não tenha feito.
Em face, pois, destas considerações, impôs-se formular um juízo de não indiciação dos factos supra descritos, remanescendo os demais factos de dimensão objectiva (compra e venda e características das peças, admitidas pela arguida, e respectiva avaliação, com base no auto de exame directo; condição de toxicodependente do arguido, por este assumida).
Enquadramento jurídico
Isto posto, importa proceder a um breve excurso pela estrutura típica do crime que nestes autos vem imputado à arguida.
Dispõe-se no n° 2 do art. 231° do Código Penal que quem, sem previamente se ter assegurado da sua legítima proveniência, adquirir (...) coisa que, pela sua qualidade ou pela condição de quem lhe oferece, ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente suspeitar que provém de facto ilícito típico contra o património é punido com pena de prisão até seis meses ou com pena de multa até 120 dias.
O preenchimento deste tipo legal verifica-se, na sua vertente objectiva, com a aquisição ou recebimento, a qualquer título, de coisa que, em razão da sua qualidade e preço, bem como da condição de quem lhe oferece, gera uma suspeita razoável (juízo formulado pelo homem
medianamente sagaz e diligente) de que provém de facto ilícito típico contra o património (arts. 202° e ss. do Código Penal), sem que o agente se assegure, de antemão, da sua legítima proveniência.
Em sede de elemento subjectivo, divergem os autores entre a configuração deste tipo de Crime como de dolo eventual (Pedro Caeiro, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Volume II, 1999, p. 486) OU negligente (Simas Santos e Leal-Henriques, in Código Penal Anotado, II Volume, Editora Rei dos Livros 2000, pp. 983/985; José António Barreiros, in Os Crimes Contra O Património, Universidade Lusíada 1996, pp. 239/240, ponto n ° 8; Maia Gonçalves, in Código Penal Anotado, comentário ao art. 231°, p. 714. Mas também Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, Lisboa, Universidade Católica Portuguesa, 2007, p. 717).
A jurisprudência dos tribunais superiores vem acolhendo a tese de que o crime de receptação é de natureza exclusivamente dolosa, sendo o tipo previsto no n° 2 de natureza dolosa eventual (nesse sentido, vide os Acórdãos da Relação de Coimbra de 2005.04.27, da Relação de Guimarães de 2009.09.14, da Relação do Porto de 2003.05.07, da Relação de Lisboa de 2002.07.02, da Relação do Porto de 2007.11.28, da Relação de Lisboa de 2010.04.13 e da Relação do Porto de 2013.04.03, todos disponíveis em www.dgsi.pt).
Seguimos esta última doutrina, na esteira do último dos citados arestos, considerando a clareza e validade das razões expendidas, e, designadamente, que, desde logo pela literalidade da lei, se depreende que a natureza dolosa do crime, sendo, ademais, certo que só é punível o facto praticado (...) nos casos especialmente previstos na lei, com negligência (cf r. o art. 13° do Código Penal) -o que não é o caso do art. 231°, n° 2 do Código Penal.
Acresce, ainda, dizer que o dever de informação incumbido ao agente não é compatível com a configuração negligente do tipo, nos casos em que aquele actua com negligência inconsciente. O dever de informação só se coaduna com os casos em que o agente suspeita da proveniência ilícita da coisa.
Assim, em sede de elemento subjectivo, o agente, além de representar intelectualmente as demais circunstâncias do elemento objectivo do tipo, representa, ainda, a possibilidade de os bens serem de proveniência ilícita, conformando-se com essa possibilidade.
Aqui chegados, importa referir que, feita a ponderação dos meios de prova adquiridos nos presentes autos, quer durante o inquérito, quer já no decurso da instrução e elencados os factos suficientemente indiciados e bem assim os não suficientemente indiciados, é manifesto serem os primeiros insusceptíveis de integrarem os supra referidos elementos do tipo de crime pelo qual a arguida vem acusada.
Com efeito, não resultaram suficientemente indiciados factos susceptíveis de sustentar que a qualidade da coisa, a condição do arguido e o montante do preço proposto/aceite, fossem de molde, no concreto contexto em que os factos ocorreram, a fazerem razoavelmente suspeitar que proviessem de facto ilícito contra o património.
Não resultou, ainda, suficientemente indiciado que a arguida não tenha diligenciado minimamente no sentido de, tanto quanto lhe era possível apurar, se assegurar da proveniência ilícita da coisa.
Deste modo, perante a constatação da insuficiência/inexistência dos indícios respectivos, impõe-se a prolação de decisão de não pronúncia da arguida relativamente à prática do crime de que vem acusada.
Assim, de todos os elementos carreados para os autos evidencia-se inexistirem indícios suficientes que permitam vislumbrar como provável a futura condenação da arguida ou que um tal sentido decisório é mais provável do que o de sentido absolutório.
Dispositivo
Em face do exposto, decide-se, nos termos do disposto no art. 308° n° 1 do Código de Processo Penal, não pronunciar a arguida S..., pelos factos descritos na acusação, integradores da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de seis crimes de receptação, previsto e punível pelo art. 231°, n° 2 do Código Penal.
Os autos prosseguem para a fase de julgamento, com intervenção do tribunal singular, relativamente ao arguido J..., com referência aos factos descritos na acusação (que aqui se dão por reproduzidos, nos termos do disposto no art. 307°, n° 1 do Código de Processo Penal), os quais integram, em abstracto, a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso real, de seis crimes de receptação, previstos e puníveis pelo art. 231°, n° 1 do Código Penal.
Notifique.
Nos termos do disposto no art. 40°, alínea b) do Código de Processo Penal, e uma vez que presidi ao debate instrutório, declaro-me impedido de intervir no julgamento da causa objecto dos presentes autos.
Remeta os autos à distribuição.
O Ministério Público, por intermédio da magistrada junto do Tribunal Judicial de Angra do Heroísmo, interpôs recurso e da motivação extraiu as seguintes conclusões (transcrição):
1. O presente recurso limita-se à discordância da decisão instrutória, na parte em que despronunciou a arguida pela prática dos 6 crimes de recetação, de p.p. pelo art° 231°, n° 2 do Código Penal, de que vinha acusada;
2. A decisão de isentar a arguida de um julgamento é, face aos elementos que constam dos autos, extremamente prematura e compromete irremediavelmente a possibilidade de um amplo e concentrado controlo judicial dos factos narrados na acusação, com audição e exame crítico de TODOS os meios de prova (da defesa e da acusação).
3. O arguido - em auto de interrogatório presidido perante Magistrado do Ministério Público e com a advertência a que alude o art°141° do CPP - assumiu que à data dos factos era toxicodependente ( de heroína) e que estava disposto a aceitar - como aceitou - qualquer quantia monetária que a arguida estivesse disposta a dar, em troca das jóias pertencentes aos aqui queixosos (auto de fls. 176 e 177).
Evidenciando-se do libelo acusatório, de forma clara e suficiente, o concreto tipo de peças em ouro que foram compradas pela arguida, algumas das quais, marcadas com o nome das vítimas qualidade das coisas); a sua venda por um heroinómano, com aspeto de toxicodependente ( condição de quem a ofereceu), disposto a receber qualquer valor que lhe fosse entregue ( montante do preço proposto), não poderia deixar de se concluir pela existência de fortes indícios da arguida ter razoavelmente suspeitado da proveniência ilícita dos objetos e de ter representado a possibilidade de tais peças provirem de um crime contra o património de terceiros, tendo em conta que tais transacções duraram cerca de um mês.
Tentar demonstrar que a arguida, atento o ramo de negócio em que trabalhava- compra e venda de ouro - não tinha como criar qualquer suspeita em relação a qualquer dos elementos típicos do art° 231°, n°2 do Código Penal, a saber: a qualidade das coisas; a qualidade de quem oferece o montante do preço proposto, no limite, levaria a excluir do âmbito de aplicação n°2 do art° 231 do Código Penal, todas as casas de negócio de compra e venda ouro - e os seus administradores, gerentes e funcionários - de forma inadmissível e discriminatória, como se concebe na decisão instrutória.
6. Não se oferecem dúvidas de que o crime previsto no n° 2 do artigo 231.- do Código Penal é um crime comum, podendo, como tal, ser cometido por qualquer pessoa.
7. Não se vê como - e porquê - a aplicação do n.°2 do artigo 231° do Código Penal aos referidos estabelecimentos e seus funcionários , deva processar-se em termos diferentes dos impostos ao cidadão comum. O legislador, no referido preceito incriminador, não concede um tratamento diferenciado às empresas em causa, dado que se aplica a todos, - sem excepção -, a quem se não assegurar da legítima proveniência das coisas adquiridas, nas circunstâncias referidas. E, ao fazê-lo, respeitou as citadas normas fundamentais (artigos 17° e 18°, 47°a e 61° da CRP). (...) Perante uma suspeita da prática do referido crime, não pode (não deve) o Ministério Público deixar de proceder às diligências adequadas a determinar se o agente se assegurou (previamente) da legítima proveniência da coisa transaccionada. (...) Os motivos da suspeita estão tipificados no referido preceito incriminador - a qualidade do objecto, a condição de quem oferece e o montante do preço proposto (pedido).
(Pontos 6 a 8 citados do Parecer da Conselho Consultivo da PGR, datado de 1995, com o ns2711995 - documento PPA19950706002700)
8. O Mm° Juiz de Instrução ao formar a sua convicção sobre os factos narrados na acusação não podia, sem mais, decidir-se pela inocência da arguida, com base apenas no depoimento desta (parcial e com interesse direto no desfecho da causa) e inviabilizou que à acusação pudesse ser dada a oportunidade de, numa audiência de julgamento, ao abrigo dos princípios da imediação e da oralidade que a caracterizam, confrontar as versões dos factos carreadas para os autos, violando desta forma a decisão a quo os princípios da imediação e da oralidade, previstos no artigo 355.º do Código Processo Penal.
9. Ao considerar que não resultam indícios suficientes de que o arguido evidenciasse uma imagem que impusesse à arguida suspeitar da sua condição de toxicodependente, quando o próprio confessou que à data era consumidor de heroína - a mais devastadora das drogas duras - e quando os elementos policiais que procederam à sua detenção e os ofendidos, para quem o arguido fez alguns biscates, todos arrolados como testemunhas, poderão esclarecer qual era o seu aspeto na altura, incorreu o Mm° Juiz em manifesta contradição entre a fundamentação e a decisão - art° 410°, n°2, al.b) do CPP.
10. O Mm° Juiz a quo formou a sua convicção por via da apreciação de não-factos, do que não existe, do que se desconhece se aconteceu ou não, ao invés de, munindo-se dos factos concretamente indiciados, enquadrá-los juridicamente e verificar se os mesmos preenchem algum tipo objectivo de ilícito, para concluir pela probabilidade de aplicação de uma pena à arguida em sede de julgamento.
11. Existindo bastos indícios para se proferir um despacho de pronúncia, a fundamentação (ou falta dela) do tribunal a quo, contraria as mais elementares regras da experiencia comum, incorrendo em erro notório da apreciação da prova e violação das regras da experiencia -art° 410°, n°2, al.c) do CPP.
12. O presente processo traduziu um uso anormal da fase de instrução na qual , se violando as regras da experiencia comum, descredibilizou-se sem motivo sério a prova constante do inquérito e da acusação, tratando-a como se de uma audiência de discussão e julgamento se tratasse e coartou o direito da acusação/Estado ao contraditório típico da fase de julgamento, violando, pelo exposto o art° 287°, n°2 e art° 327° e seguintes, ambos do Código Processo Penal.
13. A arguida deverá, assim, ser pronunciada pela prática dos 6 crimes de recetação, p. e p. no artigo 231°, n°2 do Código Penal, e ser levada a julgamento, revogando-se a decisão instrutória.
A arguida formulou resposta concluindo nos seguintes termos (transcrição) :
A) A fase da instrução visa precisamente apurar se os indícios recolhidos pelo M.P. durante o inquérito justificam a sujeição de alguém a julgamento por a probabilidade de condenação ser muito elevada ao ponto de ser admissível fazer um cidadão passar pelo ordálio do processual penal, evitando-se, por outro lado, o arrastar de processos, como este, em que a aparência de ilegalidade soçobra ante uma observação objetiva e imparcial dos ditos indícios.
B) Aliás, na esteira do Prof. Doutor Figueiredo Dias, citada pelo Meritíssimo Juiz a quo, in Direito Processual Penal, p. 133, os indícios só são suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição.
C) A acusação estriba-se nos três elementos do tipo do n.° 2 do art.° 2310 do CP. que fariam presumir a i/legítima proveniência do artigo adquirido, a saber: a qualidade da coisa, a condição de quem a oferece e/ou o montante do preço proposto.
D) Ora, em primeiro lugar quando a qualidade da coisa a arguida era, à data dos factos, funcionária de uma empresa franchisada de compra de ouro (entretanto encerrada), Ludicavisão - Unipessoal Lda., cabendo-lhe, no exercício das respetivas funções, comprar ouro para vender à empresa franchisadora Ourinvest - comprador exclusivo no âmbito do contrato às franchising - nos termos do contrato de franchising celebrado entre ambas.
E) Pelo que, sendo a compra de ouro a única atividade realizada pela entidade patronal da arguida, não é estranho que o público em geral se desloque às instalações que a mesma tinha abertas àquele para, precisamente, vender ouro que caberia à arguida comprar.
F) Em segundo lugar, quanto ao preço proposto foi cabalmente explicado o mecanismo de formação do preço através da cotação diária do ouro nos mercados internacionais e das margens por que deveria o mesmo ser adquirido (com uma margem de manobra de apenas 0,5 estipuladas pela franchisadora Ourinvest através das tabelas de preços fornecidas por esta às empresas franchisadas e praticadas nos dias apontados na acusação para efeitos de se demonstrar, como foi o caso, que os valores praticados eram os únicos que a arguida estava autorizada, nos termos do respetivo contrato de trabalho e de franchising da sua entidade patronal, a praticar.
G) Em terceiro lugar relativamente à condição de quem lhe oferece, a arguida explicou que, à data dos factos, o co-arguido não se encontrava então referenciado pela venda de ouro de proveniência ilegítima, sendo que reportou todas as seis aquisições à Polícia Judiciária e à P.S.P. e que em caso algum foi avisada por nenhuma dessas entidades da conduta ilícita do arguido e, por conseguinte, da eventual proveniência ilegítima das peças em ouro que lhe adquiriu (note-se que entre a primeira aquisição e a última não mediaram os 30 dias quarentena legal).
H)O fator preço proposto - no caso vertente não proposto mas oferecido pela Ludicavisão - Unipessoal Lda. através da arguida - não pode ser posto em causa, como pretende o M.P., pela avaliação de um ourives não comprador de ouro que avalia a peça tendo em conta o trabalho artístico revelado, a moda e tendências do mercado para esse tipo de peça e a pedraria inclusa, mas sim de acordo com o preço do ouro - e do ouro como metal apenas - determinado pela cotação diária do ouro nos mercados internacionais.
1)Pelo que os valores praticados, determinados objetivamente por critérios diferentes, são naturalmente diversos dos encontrados pelo dito ourives, não podendo, portanto, senão também através de critérios do mercado da compra do ouro, apurar-se se os valores foram de tal modo baixos que deveriam permitir supor que aquele teria uma proveniência ilegítima.
J) Quanto ao tipo de peças em ouro adquiridas pela arguida e à sua quantidade cumpre esclarecer que a sua compra pela arguida foi contextualizada pelo discurso credível apresentado pelo co-arguido em relação ao qual o M.P. só produziu especulações.
K) A arguida atendia os clientes da sua entidade patronal num ambiente discreto e reservado, pois a maior parte dos clientes sentia-se profundamente constrangida por desfazer-se de peças de ouro, suas ou de família, pelos sinais que transmitiam de carestia financeira, especialmente num meio tão pequeno como o da ilha Terceira.
L) Por essa mesma razão, muitas das pessoas que vendiam peças de ouro faziam-no em representação e a pedido de familiares ou amigos que não queriam ser vistos a entrar ou sair de uma loja de venda de ouro pela impressão social que tal causava, logo não é de todo estranho, no ramo de negócio em que trabalhava a arguida, como aliás foi referido pelas diversas testemunhas inquiridas em sede de instrução, que surjam clientes a vender peças de familiares a pedido destes, como foi o caso apresentado pelo co-arguido de modo convincente.
M) O facto de o número de peças ter variado e de o co-arguido ter realizado seis vendas de ouro à arguida também não é de modo a gerar as suspeitas que o M.P. quis ver reconhecidas precisamente
pelas características da atividade da entidade patronal da arguida (facto atestado pela testemunha M...), ou seja: os clientes só se desfazem das peças consoante as suas necessidades, logo não o fazem de uma só vez mas sim ao longo do tempo vendendo as peças de menor valor até chegarem às de maior valor, quer material quer sentimental, sendo que a relação de confiança que se estabelece com o comprador vai diminuindo a vergonha que sentem por estarem a vender esses artigos.
N) Quanto à razão apontada pelo co-arguido para estar a vender o ouro - o ter a irmã hospitalizada e ter de fazer face a diversas despesas por conta desta -note-se que a irmã, de acordo com a versão apresentada por aquele à arguida foi não só credível como temporalmente consistente. Como já se referiu, as vendas foram realizadas no espaço de um mês, caso se houvessem arrastado por diversos meses aí sim seria de estranhar tão longo internamento hospitalar.
O) O M.P. sugeriu ativamente que o co-arguido deveria ter apresentado um aspeto de toxicodependente de tal modo evidente que a arguida deveria suspeitar da proveniência dos artigos, contudo esta sempre afirmou que o mesmo apresentou-se vestido de um modo normal, limpo, apresentando um bom aspeto geral e exibido sempre um comportamento calmo e um discurso coerente, sendo que o M.P. não logrou provar o contrário, não podendo a especulação justificar a sujeição da arguida a julgamento, mais que não fosse em homenagem ao princípio do in dúbio pro reo corolário do princípio da presunção de inocência.
P) O M.P. procurou utilizar as declarações prestadas pelo co-arguido perante si contra a arguida, contudo olvidou que tais declarações não podem ser tidas, desprovidas de outros meios de prova que as corroborem autonomamente, em consideração (como é o caso).
Q) E inadmissível a tentativa encetada pelo M.P., a fls. 590e 591 das suas doutas alegações, de trazer à colação, como prova, declarações que a arguida terá prestado à P.S.P. em sede de inquérito, declarações, essas a fls. 56, cuja leitura e utilização é inadmissível (art.° 356° n.° 1 alínea b, a contrario, do C.P.P.).
R) As circunstancias da atividade profissional da arguida, à data dos factos, exige, no que tange aos deveres do bónus pater famílias, uma dupla adequação pois há que encontrar a conduta expectável não só do homem médio comum mas do homem médio comum que exerça funções idênticas às da arguida atento o circunstancialismo factual sub judice. E é aqui que cai a pretensão acusatória do M.P..
S) A arguida agiu com os cuidados que lhe eram exigidos tendo sido enganada pelo co-arguido, pelo que, pelo não preenchimento do tipo subjetivo do crime imputado à arguida e pela manifesta falta de culpa da mesma, bem andou o Meritíssimo Juiz a quo em não pronunciar a arguida, não merecendo a sua decisão qualquer reparo.
Termos em que, por não provado, deve o presente recurso ser julgado improcedente e mantido o douto despacho de não pronúncia da arguida recorrido.
No momento processual a que se reporta o artigo 416° do Código de Processo Penal, o Ministério Público junto do Tribunal da Relação de Lisboa, por intermédio da Exma procuradora-geral adjunta, emitiu parecer no sentido da procedência do recurso.
A arguida formulou resposta ao parcer renovando a posição anteriormente expressa nos autos.
Recolhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
2. Como tem sido entendimento unânime, o objecto do recurso e os poderes de cognição do tribunal da relação definem-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, onde deve sintetizar as razões da discordância do decidido e resumir de forma precisa e clara as razões do pedido - artigos 402°, 403.° e 412.°, n.° 1 do Código de Processo Penal, naturalmente que sem prejuízo das matérias de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 1994, p. 320; Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 3° ed. 2009, pag 1027 e 1122, Simas Santos, Recursos em Processo Penal, 7.a ed., 2008, p. 103; entre outros os Acs. do S.T.J., de 25.6.1998, in B.M.J. 478, p. 2/12; de 3.2.1999, in B.M J. 484, p. 271; de 28.04.1999, CJ/STJ, Ano VII, Tomo II, p. 196).
O problema colocado à apreciação deste tribunal de recurso consiste fundamentalmente em saber se as adequadas normas processuais autorizam e os indícios fácticos recolhidos permitem a pronúncia da arguida pelo cometimento de um crime de receptação, previsto e punido no artigo 231° n° 2 do Código Penal.
3. Concluída a instrução e para decidir sobre o prosseguimento dos autos, o juiz tem de proceder a uma análise objectiva e conjunta da credibilidade e da consistência dos meios de prova disponíveis, à luz das regras normais da vivência comum e de critérios de lógica e de razoabilid~de.
Vale aqui em toda a sua extensão o princípio da livre apreciação da prova, com o concomitante dever de fundamentação das decisões jurisdicionais e será com base nessa análise ou valoração que o juiz terá de concluir na decisão instrutória se aqueles elementos de prova recolhidos até ao momento, uma vez produzidos e/ou examinados (repetido.') em audiência de julgamento e sujeitos ao contraditório pleno, oralidade e imediação, permitem um juízo de probabilidade séria de condenação do arguido, para lá de toda a dúvida razoável'.
Só em caso de resposta positiva a esta questão, o juiz deve pronunciar o arguido, decidindo submetê-lo a julgamento
4. A conduta típica prevista no artigo 231° n° 2 do Código Penal consiste na aquisição ou recebimento, por qualquer título, de coisa que pela sua qualidade ou pela condição de quem a oferece ou pelo montante do preço proposto, faz razoavelmente supor que provém de facto ilícito contra o património, sem que o agente tenha cumprido o seu dever de informação sobre a proveniência legítima da coisa.
São as concretas circunstâncias que rodeiam a sua aquisição que devem ser de molde a fazer suspeitar de que a coisa provém de facto ilícito típico contra o património. Os factores susceptíveis de suscitar a suspeita relevante são elementos típicos e encontram-se descritos na lei de forma taxativa. São eles a qualidade da coisa, a condição de quem a oferece e o montante do preço proposto.
Como refere Pedro Caeiro2 muitas vetes o carácter suspeito da coisa resultará da conjugação destes três factores (..). Na verdade, a coisa pode ser suspeita por força da relação qualidade preço, ou da relação qualidade-condição de quem a oferece, embora nenhum desses factores, de per si, faça suspeitar de uma proveniência ilícita.
Por outro lado, ao preenchimento do tipo objetivo não basta a aquisição de uma coisa que, por força das referidas características, faça suspeitar de que provém de facto típico ilícito contra o património: é essencial que, perante esse quadro o agente não se assegure da legítima proveniência da coisa. Perante a oferta de uma coisa que, pelos motivos referidos no tipo - e só por esses , se mostre uma coisa suspeita - e só relativamente às coisas nestas condições , deve o eventual comprador promover as diligências exigíveis ao homem médio, naquela concreta situação para afastar a suspeita que tal oferta criou, de forma a poder afirmar-se que adquiriu a coisa com a fundada convicção de que ela não provinha de um facto ilícito típico contra o património.
No caso vertente, está em apreciação a realização de vendas de artigos de ouro em seis ocasiões compreendidas num espaço temporal de menos de um mês, devendo relevar-se fundamentalmente o valor do preço proposto ou, melhor, o preço sempre aceite pelo vendedor sob proposta da adquirente.
Nesta fase do processo, o tribunal dispõe das indicações da avaliação pericial como de mercado para cada um dos bens, presumindo-se que se o dono desses mesmos artigos em ouro os pretendesse transaccionar poderia obter como contrapartida os valores relacionados pelos peritos.
Naturalmente que os típicos deveres de informação sobre a proveniência da coisa e a proibição de aquisição de provinda de crime contra o património se impõem genericamente a todas pessoas, independentemente do tipo de negócio onde se inserem.
Afigura-se-nos como particularmente impressionante a indiciária diferença entre o valor comercial dos artigos e o valor da aquisição pela arguida nas transacções que a arguida efectuou.
Saliente-se que a proporção entre o valor da aquisição e o valor de mercado oscila entre cerca de um meio (por exemplo os dois fios de ouro e um pingente negociados em 30/1/2012 têm um valor de mercado, naquelas condições concretas, de 415 € e a arguida ofereceu 195 €, que o arguido prontamente aceitou; os fios de ouro, a medalha o ouro e a libra que valiam 1177 €, foram transaccionados por 620 E), e menos de um décimo do preço pericialmente considerado como de mercado (a pulseira e o anel em ouro de 14 kilates que o arguido aceitou vender por 100 euros, teriam um valor comercial superior a 1100 €).
Para o conjunto dos artigos adquiridos pela arguida das mãos do arguido José Francisco Teixeira, o valor fixado pericialmente como de mercado ascende a cerca de 4350 € e o valor proposto a 1460 E.
Ainda que se tenha em devida conta que os factos ocorreram no âmbito da actividade comercial de compra e venda de objectos usados de ouro e naturalmente sujeitos a uma acentuada desvalorização, teremos de considerar que a aquiescência do arguido a todos os montantes sugeridos pela compradora, a enorme discrepância de valores das transacções ocorridas em dias sucessivos, ao longo de quase um mês e abrangendo cerca de duas dezenas de fios, anéis e alianças em ouro não podia deixar de levar a arguida a criar uma particular suspeita quanto à proveniência dos artigos. Segundo se indicia, a arguida, embora cumprindo as obrigações genéricas da actividade, não procedeu a nenhuma comunicação concreta à autoridade policial quanto as condições concretas do arguido e a propriedade dos artigos.
Indicia-se, até pela suas próprias declarações em inquérito, que o arguido na ocasião era consumidor habitual de heroína e é razoável inferir, com base em elementos extraídos de muitas outras situações semelhantes, que essa circunstância causasse sinais no aspecto físico e na forma de comunicação de José Francisco Teixeira. Acresce ainda que os sinais constantes de duas alianças não deviam deixar de criar alguma suspeita de que todos aqueles objectos eram afinal pertença de pessoas diferentes.
Numa valoração conjunta segundo regras normais de experiencia comum e critérios de razoabilidade, os elementos probatórios disponíveis nesta fase do procedimento e referentes às concretas condições das transacções, onde se incluem a quantidade de artigos e o valor negociado, conduzem-nos forçosamente à conclusão de que a arguida omitiu o dever de se assegurar da origem licita de todos aqueles artigos: e sabia que esses mesmos arguidos provinham de furto, roubo ou de outro crime contra o património.
Estes elementos probatórios constituem assim indícios suficientes dos factos descritos na acusação pública e permitem configurar uma probabilidade séria de condenação da arguida pelo cometimento em autoria material e em concurso real dos seis crimes de receptação, previstos e punidos no artigo 231° n° 2 do Código Penal de foi acusada, assim se justificando o prosseguimento dos autos para a fase de julgamento.
Termos em que a decisão de não pronúncia tem de ser revogada e procede o recurso do Ministério Público.
5. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso do Ministério Público e em revogar a decisão instrutória que deve ser substituída por decisão de pronúncia da arguida S... pelos factos e disposições legais constantes da acusação pública de fls. 182 a 192.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2016.
João Lee Ferreira Nuno Coelho