1- Para o caso de concurso de crimes, regem apenas as regras contidas nos artigos 14°, n°2, alínea b), 15° e 16°, n°3 do CPP.
2- Da interpretação conjugada destas três normas resulta que compete, em caso de concurso, ao Tribunal Colectivo julgar os processos que respeitem a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável for superior a 5 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime, salvo se o Ministério Público entender que, no caso concreto não deve ser aplicada pena superior aquela.
3- Nos casos em que o limite mínimo da pena abstracta é superior a 5 anos não pode o M.P. requerer que os ilícitos sejam julgados por Tribunal Singular, porque o seu poder de condicionar a pena máxima e determinar a competência do Tribunal Singular, não envolve o de baixar a pena mínima abstracta.
4- Traduzir-se-ia esta situação numa verdadeira violação das regras da competência material do tribunal e do princípio da separação de poderes, na medida em que extravasava do intervalo de penas fixado pelo legislador, criando uma punição diferente
5- Tal não sucede quando os crimes são punidos com pena de prisão de 2 a 5 anos podendo o limite mínimo da moldura abstracta deste concurso ser de 2 anos
6- Em tais casos, não há utilização imprópria da faculdade prevista no artigo 16°/3 do Código de Processo Penal pelo M.P, na medida em que não há uma utilização que acarrete a redução da pena mínima abstracta aplicável.
Proc. 71/12.7GCTVD-A.L1 3ª Secção
Desembargadores: Ana Paula Grandvaux - Conceição Gomes - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Processo n° 71/12.7GCTVD-A.L1 - 3° Secção
Relatora: Ana Paula Grandvaux Barbosa
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO
1 - O Ministério Público junto do Tribunal de Instãncia Local de Torres Vedras, ao abrigo do disposto no artigo 16° n°3 do CPP, requereu o julgamento, em processo comum e por Tribunal Singular, do arguido A..., imputando-lhe a prática, em autoria material e em concurso efectivo, de três crimes de violência doméstica agravados, p.p. pelos artigos 152°, n°1, al. d) e n°2 do Código Penal, a que corresponde, em abstracto, por cada um deles, pena de prisão de 2 a 5 anos, atenta a redacção deste preceito do C.P introduzida pela Lei n° 59/2007 de 4.9, em vigor aquando da dedução da acusação em 5.4.2013 - sendo que a conduta do arguido descrita na acusação se estende desde meados de 2002 (vde facto indicado em 29) até 2012 (vde factos indicados na acusação em 15), 16) e 28).
2 - Distribuídos os autos à Meritíssima Juiz 2 da Secção Criminal da Instância Local do Tribunal de Torres Vedras (Comarca de Lisboa Norte, esta, por despacho proferido em 3.6.2013, recebeu a acusação deduzida pelo M.P contra A..., para ser julgado perante Tribunal Singular, tendo designado para a realização da audiência o dia 20 de Setembro de 2013, pelas 9h30m horas, ou, em caso de adiamento, o dia 27.9.2013 pelas 9h30m do mesmo mês e ano (cfr. fls. 402 v° e 403 do processo).
3 - Posteriormente, no âmbito já do processo Comum Singular n° 71/12.7GCTVD que correu os seus termos no 2° Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Torres Vedras (hoje secção criminal J2 do Tribunal de Instância Local de Torres Vedras) pelo Sr. Juiz titular do processo, foi em 22.11.2013 proferido um despacho, adiando sine die a audiência de julgamento, em virtude da realização de perícia psiquiátrica ao arguido, por ele requerida.
4 - Subsequentemente, após a junção aos autos do relatório da avaliação psicológica do arguido, por despacho proferido no processo em 18-12-2015, o Sr. Juiz titular do processo considerou ser legalmente inadmissível, neste caso, o uso do artigo 16°, n°3 do Código de Processo Penal e, consequentemente, a sujeição do arguido a julgamento com intervenção do Tribunal Singular e decidiu que só o Tribunal Colectivo tinha competência para julgar este processo face ao preceituado no art° 14°12 ai b) do C.P.P.
Em conformidade, julgou nulo todo o processado respeitante ao julgamento perante o Tribunal Singular (com excepção de alguns actos
processuais que ressalvou expressamente nesse seu despacho) e determinou que
os autos fossem reenviados para tramitação sob outra forma processual - processo comum colectivo, após baixa na distribuição, o que foi efectuado, tendo os autos, sido redistribuídos para julgamento na secção Criminal J2 do Tribunal de Instância Central de Loures (vde ofício de fls 39 proveniente do Tribunal de Instância Central de Loures onde se encontra agora pendente o processo).
5 - Inconformado com tal despacho judicial, o arguido dele recorreu finalizando a sua motivação com as seguintes (transcritas) conclusões:
1- O Despacho de 18-12-2015 faz tábua rasa do Principio da Oportunidade que propicia discricionariedade ao Ministério Público para que resolva determinados casos, os arquive ou não lhes dê seguimento - arts. 277° segs. do CPP - com a possibilidade de, em certas situações, não deduzir acusação e não obedecer ao princípio da legalidade; a única forma de controlar a Legalidade é através da chamada intervenção hierárquica - art° 278° CPP.
2- tal Principio faculta ao M. Publico a faculdade de dispor do processo no âmbito do poder discricionário para resolver desde logo o processo, arts. 277° e 280° CPP- que visa descongestionar os tribunais colectivos de processos que, em abstracto, cairiam na sua esfera de competência - v. Simas Santos/Leal Henriques, in C. P. Penal Anotado, I vol., 2& edição, em anotação ao artigo 16°, fls. 143.
3- ao configurar o julgamento em processo singular - decidida pelo M. Público há muito e transitada em julgado - o Douto Despacho é nulo e de nenhum efeito; tendo o M. P. usado da prerrogativa - julgamento singular - o Tribunal não pode nem deve modificar a qualificação jurídica dos factos e, ou, achar pena superior a 5 anos ... pelo que se o M. Publico entendeu não ser aplicável pena superior a 5 anos, deve ser o caso apreciado perante Juiz singular ...
4- ao aferir como competente o Tribunal Colectivo para o julgamento dos factos sem prévia revogação do Despacho que transitou em julgado há muito, ocorreu nulidade insanável - art° 119° e) do C.P.P.; só e apenas o Ministério Publico produz um juízo de adequação pelo que não pode o Tribunal controlar o mesmo! só o superior hierárquico o poderia revogar!!!!
5- o art° 16-3 CPP viola os arts 205° CRP e 6° Convenção Europeia dos Direitos do Homem na hermenêutica expendida no Douto Despacho, face ás regras do trânsito em julgado e do Principio da legalidade, com a excepção consignada pelo Legislador no tocante à opção do Ministério Publico pelo julgamento em Tribunal Singular.
6- o Douto Despacho ao consignar que provando-se o teor da acusação, e mesmo respeitando o limite mínimo da pena de prisão .... esta sempre excederá os seis anos (sic) incorreu em violação do fair trial - art°, 6° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem- sem ponderar que o arguido não tem antecedentes e pode ser absolvido ou condenado em pena suspensa !
Foram violados os arts 118°-1, 119°-e), 16°-3 e 14° 2 do CPP, 205° CRP e 6° CEDH pelo que declarando nulo o Douto Despacho recorrido se fará a mais Lídima Justiça!
6 - Este recurso foi admitido nos autos por despacho proferido em 23.2.2016 (fls 2).
7 - O M.P respondeu à motivação apresentada (fls 22 a 27) defendendo a improcedência do recurso e concluindo a sua resposta
com as seguintes (transcritas) conclusões: o facto de se declarar que o
Tribunal é competente no despacho que recebe a acusação não impede o Tribunal a quo de posteriormente voltar a analisar a questão da sua (in)competência ( ..)
O Juiz não pode questionar a adequação da decisão do M.P recorrer ao mecanismo previsto no art° 16°/3 do C.P.P. ou seja mesmo que discorde da opção, por entender que deveria ser aplicada pena superior a cinco anos de prisão, nada pode fazer, sob pena de cometer a nulidade insanável prevista no art° 119° alínea e) do C.P.P.
Mas pode controlar a legalidade da utilização daquela faculdade e em especial verificar se in casu foram ou não violadas as regras da competência dos tribunais.
(..) E foi isso que sucedeu no despacho recorrido.
Na verdade, o que a Mma Juiz a quo entendeu foi que estando em causa 3 (três) crimes de violência doméstica agravados e punidos cada um deles no mínimo com uma pena de 2 (dois) anos de prisão cujo somatório atinge os 6 (seis) anos de prisão, não poderia socorrer-se do mecanismo previsto no art° 16°/3 do C.P.P.
Logo porque o que está em causa é um controlo da legalidade do recurso à faculdade prevista no art° 16°/3 do C.P.P e não um controlo da adequação do juízo formulado pelo M.P. não se verifica qualquer nulidade nem tão pouco a violação das normas legais invocáveis pelo recorrente.
Pelo exposto porque os argumentos invocados não são suficientes para por em causa a decisão recorrida, deverá confirmar-se o despacho recorrido e consequentemente negar-se provimento ao recurso interposto pelo arguido
8 - Subidos os autos, neste Tribunal a Sr' Procuradora Geral Adjunta quando o processo lhe foi com vista nos termos do art° 416° do C.P.P, emitiu o parecer de fls 35 a 37, subscrevendo a posição defendida pelo arguido, concluindo assim que o despacho recorrido é nulo nos termos do art° 119 alínea e) do C.P.P e que o recurso deve ser julgado procedente, na linha
do decidido no Acórdão do TRP de 2.3.2016 no processo n° 331/ 13.OTDPRT-A.P1 disponível em www.dgsi.pt aderindo à argumentando aí defendida que reproduz em síntese: Não estando em
causa o julgamento de crimes da exclusiva competência do tribunal colectivo (art° 14°/2/a) do C.P.P) o uso pelo M.P da faculdade concedida pelo art° 16°/3 do C.P.P, atributiva da competência para julgamento ao tribunal singular, não é judicialmente sindicável.
9 - Procedeu-se a exame preliminar, foram colhidos os vistos legais, após o que foram os autos à conferência, por dever ser o recurso aí julgado, de harmonia com o preceituado no art° 419°/3 do C.P.P, cumprindo agora apreciar e decidir.
II- Fundamentação
Delimitação do Objecto do recurso (questões a decidir):
10 - Do art° 412°/ 1 do C.P.P resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso cf. Germano Marques da Silva em Curso de Processo Penal III edição 2° edição, 2000 pág. 335 e Ac. do S.T.J de 13.5.1998 em B.M.J 477° 263), exceptuando aquelas que sejam do conhecimento oficioso (cf. art° 402°, 403°/ 1, 410° e 412° todos do C.P.P e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J de 19.10.1995 in D.R I - A série, de 28.12.1995).
11 - Assim atentas as conclusões apresentadas pelo arguido recorrente, as questões a apreciar por este Tribunal ad quem são as seguintes:
A) Qual o momento processualmente adequado para fixar a competência material do Tribunal?
B) A prerrogativa conferida pelo art° 16.º/3 do C.P.P sendo embora da exclusiva competência do M.P, pode ser sindicada pelo Juiz?
III - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
A Decisão Recorrida
Em 18.12.2015 foi proferido o seguinte despacho, ora recorrido, cujo conteúdo aqui se deixa reproduzido:
Nos presentes autos o arguido A... vem acusado, em autoria material consumada e em concurso efectivo, da prática de três crimes de violência doméstica agravados, previstos e punidos pelos Arts°s 152°, n°s 1 al. d) e 2 do Código Penal, tendo os autos sido remetidos à distribuição como processo comum singular, socorrendo-se o Ministério Público da faculdade prevista no Art° 16°, n° 3 do Código de Processo Penal.
Foi designada data para julgamento, tendo o tribunal aferido pela positiva todos os pressupostos de facto e direito, de modo genérico e tabelar.
O julgamento supra referido foi adiado, tendo sido ordenada a realização de exame pericial ao arguido.
Constata-se no entanto e apenas nesta data, que a moldura penal abstracta em que incorre o arguido ultrapassa os seis anos de prisão, uma vez que os ilícitos em apreço são apenas punidos com pena de prisão, sendo que na sua forma agravada, o limite mínimo da pena de prisão abstractamente aplicável para cada um desses crimes se cifra em 2 anos.
Assim, provando-se o teor da acusação, e mesmo respeitando o limite mínimo da pena a aplicar ao arguido para cada um dos crimes, esta sempre excederá os seis anos,
E nesta sede, a faculdade exercida pelo Ministério Público ao abrigo do disposto no art° 16°, n° 3 do Código Penal não pode ultrapassar o legislador penal.
Todavia, tal como resulta do art° 32°, n° 1 do Código de Processo Penal, o conhecimento da incompetência do tribunal é por este conhecida e declarada oficiosamente até ao trânsito em julgado da decisão final.
Aliás, vem sendo entendimento da doutrina e jurisprudência que o despacho a que alude o art° 311 ° do Código de Processo Penal e que a decisão judicial genérica sobre os pressupostos processuais, nulidades e irregularidades, questões prévias ou incidentais não faz caso julgado formal - v. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, 33 edição, Univ. Católica Editora, p, 799 e ss. e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17a edição, 2009, p. 729 e ss. e Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ n0 3/2002, de 12-06).
Por outro lado e com relevo para a situação sub Júdice, consagra o Art° 14°, n° 2, al. a) do Código de Processo Penal na actual redacção e aplicável à data da prática dos factos que
( ... ) compete ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes: a) dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa;
b) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime ( .. ).
Mais consagra o art° 16°, n° 3 do supra mencionado código que ( ... ) compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na al. b) do n° 2 do art° 14°, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos( ... ), constituindo inclusivamente e para o juiz do julgamento uma limitação.
Ora os crimes que vém imputados ao arguido são graves, tanto mais que motivou que o próprio Ministério Público deduzisse pedido de indemnização civil a favor das vítimas, tendo sido solicitada a elaboração de relatório social já na fase de julgamento.
Assim sendo, o julgamento de tal crime pelo tribunal singular, porque materialmente incompetente, configura uma nulidade insanável, de conhecimento oficioso, que o tribunal deverá declarar de imediato, sanando dessa forma o processo, independentemente da respectiva fase processual, nos moldes previstos pelos Arts 118°, n° 1 e 119°, al. e), ambos do Código de Processo Penal.
Pelo exposto, declaro este tribunal singular materialmente incompetente para o julgamento do teor da acusação pública patente nos autos, ao abrigo do disposto no Art° 14°, n° 2, al. b) do Código de Processo Penal, e em consequéncia, julgo nulo todo o processado respeitante ao julga.nnento perante o Tribunal singular, aproveitando-se apenas as notificações para efeito de interrupção e suspensão dos prazos processuais, a admissão da contestação, outros repuerinten.tos e despachos que sobre eles recaíram e o despacho que ordenou a realização de exame pericial, determinando que os presentes autos sejam reenviados para tramitação sob outra forma processual - processo comum colectivo - após baixa na distribuição, aproveitando-se os actos processuais acima enunciados.
Analisando
Antes de mais, não pode desde logo deixar de referir que sobre esta matéria se pronunciou já o Tribunal da Relação de Évora, por Acórdão de 12.4.2016 tendo por relator o Sr. Desembargador Fernando Ribeiro Cardoso, no âmbito de um conflito negativo de competência; e bem assim o Tribunal da Relação do Porto por Acórdão de 21.6.2006, tendo por Relator Joaquim Arménio Correia Gomes no processo n° 4179/04 acessível in www.colectaneadejurisprudencia.com e por Acórdão de 2.3.2016 proferido no processo n° 331 / 13.OTDPRT-A.P1, tendo por relator o Sr. Desembargador Artur Oliveira, em termos que se têm por inequivocamente correctos e que merecem a nossa inteira concordância, cuja fundamentação se irá seguir de perto, por a ela aderirmos na sua globalidade
A) Da questão da fixação da competência material do Tribunal
Como é sabido, o conhecimento da incompetência do Tribunal é conhecida e declarada por este até ato trânsito em julgado da decisão final - art° 32°/ 1 do C.P.P.
Porém, quanto à fixação da competência material para a realização do julgamento parece-nos que dúvidas também não existem de que a dedução de uma acusação não só fixa ou delimita o objecto do processo, como torna tendencialmente estáveis os sujeitos do mesmo, assim como a competência do Tribunal.
No caso concreto, o Ministério Público assumiu [entendeu] que face aos factos que descreve na acusação e respectiva subsunção jurídica-penal, não deveria ser aplicada ao arguido pena de prisão superior a 5 anos, caso este viesse a ser condenado e se optasse pela aplicação de uma pena de prisão.
A formulação de tal juízo pelo MP pressupõe uma compreensão e avaliação prévias da dignidade penal e da gravidade do caso objecto de acusação, situando-os em concreto, com fundamento em motivação objectiva, dentro de uma sub-moldura da pena inferior à moldura prevista para o respectivo tipo legal de crime.
Como salienta o Exmo. Senhor Conselheiro A. Henriques Gaspar, no Código de Processo Penal, Comentado, Almedina, a fls.77, em anotação ao artigo 16°: O art.º 3 constitui uma norma de determinação concreta de competência, com base em critérios que são próprios do Ministério Público como titular da acção penal e limão da acusação, carnpreendida ainda como manifestação directa do princípio acusatório: o MP no uso dos poderes, processuais, e estatutários, de sujeito processual na conformação material da acusação, determina a fixação de um máximo para a medida da pena aplicável perante as circr.enstáncias do caso.
Os crimes imputados ao arguido (de violência doméstica agravados previstos no art° 152°/1/al d) e n° 2 do C.P na redacção deste diploma legal em vigor aquando da dedução da acusação), são punidos com uma moldura penal abstracta de 2 a 5 anos e não são da competência exclusiva do Tribunal Colectivo (alínea a) do n° 2 do artigo 14° do C.P.P, única situação em que, a verificar-se, o Sr. Juiz Singular deveria declarar-se incompetente) e admitem a atribuição de competência ao Tribunal Singular (n° 3 do citado art° 16°).
No caso dos presentes autos, o Sr. Juiz do Tribunal a quo no âmbito dos poderes que lhe são atribuídos legalmente recebeu a acusação deduzida pelo M.P contra o arguido A..., proferindo o despacho a que alude o art° 313° do C.P.P, no qual veio reiterar a competência do Tribunal Singular para a realização do julgamento.
Não se ignora naturalmente, tal como foi bem sublinhado no despacho recorrido ser entendimento da doutrina e jurisprudência que o despacho a que alude o art° 311 ° do Código de Processo Penal e que a decisão judicial genérica sobre os pressupostos processuais, nulidades e irregularidades, questões prévias ou incidentais não faz caso julgado formal» - v. neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário ao Código de Processo Penal, 33 edição, Univ. Católica Editora, p, 799 e ss. e Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 17a edição, 2009, p. 729 e ss. e Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ nO 3/2002, de 12-06).
Mas não obstante essa jurisprudência e sem prejuízo da mesma, a verdade é que uma vez ultrapassado o momento da prolação do despacho do art° 311° do C.P.P, em que se impõe ao Sr. Juiz que aprecie entre outras a questão da competência do Tribunal, não pode o Juiz do julgamento alterar (por meio de despacho no processo) a competência do Tribunal que já se encontrava previamente fixada, sob pena de cometer uma ilegalidade (como sucedeu no caso presente), só o podendo fazer em sede de audiência de julgamento (logo no início aquando do saneamento de questões prévias ao abrigo do art° 338° do C.P.P) ou uma vez iniciada esta, apenas em sede de sentença final.
B) Do controlo jurisdicional da prerrogativa conferida ao M.P pelo art° 16°/ 3 do C.P.P
Diz a Lei - artigo 16°, n° 3, do Cód. Proc. Penal: (...) Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do n° 2 do artigo 14°,
mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação,
ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos».
Diz o recorrente (arguido) que a lei não atribui competência ao Sr. Juiz do Tribunal a quo para sindicar a decisão que no caso presente o M.P tomou de requerer o seu julgamento perante Tribunal Singular, fazendo uso do n° 3 do art° 16° do C.P.P.
E a razão está do seu lado.
De facto - e ao contrário do que é referido no despacho recorrido - o entendimento do Ministério Público quando faz uso do n°3 do artigo 16,° do CPP', impõe-se ao juiz de julgamento, não podendo este rejeitar a competência assim fixada (a qual no caso presente até foi aceite expressamente no despacho que recebeu a acusação e designou dia para a realização do julgamento ao abrigo do art° 313° do C.P.P).
Trata-se de um poder-dever do Ministério Público, e não de uma faculdade arbitrária, que deve ser usada quando ...entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a cinco anos. É a manifestação desse entendimento pelo Ministério Público, pelo meio e no momento próprios (na acusação, ou em requerimento quando seja superveniente o conhecimento do concurso) que determina a competência do Tribunal Singular.
Esta possibilidade é uma concretização da relevância constitucional do princípio da oportunidade.
Como se diz no acórdão n° 339/92 do Tribunal Constitucional, O Ministério Público, ao usar daquela faculdade, condiciona a fixação concreta da pena, mas ao proceder assim, actua enquanto porta-voz que é do poder punitivo do Estado e no exercício de um poder expressamente previsto na lei, não invadindo por qualquer forma a competência do juiz ou limitando a sua independência.
Em resumo e concluindo, podemos pois ter por assente que a lei em vigor não atribui ao juiz poderes para sindicar a prorrogativa ora em análise: tal atribuição cabe ao superior hierárquico, oficiosamente [Circular n.° 6/2002, da PGR] ou no âmbito da intervenção hierárquica requerida pelo arguido, pelo assistente ou pelo denunciante com faculdade de se constituir assistente [artigo 278° do Cód. Proc. Penal e artigo 32°, n° 1, da CRP].
Idêntico entendimento tem sido defendido na doutrina - veja-se, por exemplo, Paulo
Pinto de Albuquerque em anotação ao art° 16°/3 do C.P.P: O tribunal singular não pode, em regra, controlar a adequação do juízo do MP da determinação concreta da competência do tribunal singular, sob pena de nulidade insanável do despacho judicial (artigo 119° al. e), do CPP). Com efeito, a disposição do artigo 16°, n.° 3, é a mais importante regra em matéria de competência dos tribunais e a respectiva violação pelo juiz é castigada com a mais severa das nulidades.
Também Simas Santos e Manuel Leal-Henriques, in Código de Processo Penal
Anotado, Vol. I: A opção do M°P°, uma vez tomada, é vinculativa para o tribunal, não apenas no que toca à competência daí decorrente (o juiz não pode rejeitar o requerido), como ainda no que respeita ao teto sancionatório a cumprir pelo tribunal (em julgamento não poderá ser aplicada pena superior aos limites fixados na lei - cf n.° 4 do artigo) [nota 4 ao cit. art.].
No mesmo sentido, o Tribunal Constitucional ao decidir que não é inconstitucional a omissão do controlo judicial da adequação da decisão do Ministério Público que aplica o artigo 16°, n° 3, do Cód. Proc. Penal [v.g., Ac. TC n.° 393/89 e 265/951.
No sentido de que a faculdade prevista no art° 16°/3 do C.P.P se trata (...) de um poder-dever do Ministério Público que deve ser exercitado sempre que entender que, no caso concreto, não deve ser aplicada pena de prisão superior a cinco anos. Uma vez assumida essa decisão não podem juiz, assistente ou mesmo arguido exprimir entendimento diferente veja-se a Decisão de 04.10.2012, do Presidente da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa (Trigo Mesquita) - disponível em www dgsi.pt.
Ou ainda o sumário do Acórdão desta Relação de Lisboa de 21.06.2006 relatado por Joaquim Gomes e o Ac. da Relação do Porto de 2.3.2016 no processo n° 331/13. OTDPRT-A.P1.
Por tudo o acima exposto, não estando em causa nenhum dos crimes assinalados no artigo 14°/ 1 e 2 do Código de Processo Penal que obrigatoriamente são julgados pelo Tribunal Colectivo, ó Sr. Juiz do Tribunal de Tnstância local, no caso presente, não podia ter recusado a competência do Tribunal Singular, uma vez que após a acusação do Ministério Público, onde se fez uso fundamentado da faculdade prevista no artigo 16°, n°3 do C.P.Penal e sem que ocorra qualquer situação superveniente que agrave os factos e qualificação aí efectuada, fica a partir desse momento, cravada a competência material e funcional do Tribunal Singular para o julgamento da factualidade aí descrita.
E nem se diga, como fez o M.P na Ia instância, na sua resposta ao recurso, que no despacho recorrido, não foi feito um controlo da adequação do juízo formulado pelo M.P, mas apenas um controlo da legalidade do recurso pelo M.P a esta faculdade prevista no art° 160/3 do C.P.P.
É claro para nós que com o recurso ao art° 16°/3 do C.P.P nos presentes autos, não foram violadas as regras que definem a competência dos Tribunais. Senão vejamos.
Dispunha o artigo 16° do CPP, na redacção em vigor à data da dedução da acusação (em 5.4.2013), que:
1 - Compete ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie.
2 - Compete também ao tribunal singular, em matéria penal, julgar os processos que respeitarem a crimes:
a) Previstos no capítulo ii do título v do livro ii do Código Penal; ou b) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão.
c) Que devam ser julgados em processo sumário.
3 - Compete ainda ao tribunal singular julgar os processos por crimes previstos na alínea b) do n° 2 do artigo 14°, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o Ministério Público, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.
4 - No caso previsto no número anterior, o tribunal não pode aplicar pena de prisão superior a 5 anos.
Por sua vez, o artigo 14° do mesmo diploma legal, na redacção que vigorava na mesma data, preceituava:
1 - Compete ao tribunal colectivo, em matéria penal, julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal do júri, respeitarem a crimes previstos no título III e no capítulo I do título V do livro II do Código Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário.
2 - Compete ainda ao tribunal colectivo julgar os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal singular, respeitarem a crimes:
a) Dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa e não devam ser julgados em processo sumário; ou
b) Cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja superior a 5 anos de prisão mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime e não devam ser julgados em processo sumário.
A lei n° 1/2016, de 25 de Fevereiro, introduziu alterações a estes preceitos, mas sem relevo para a decisão a proferir, pois limitou-se a revogar a alínea c) do n°2 do artigo 16°, bem como a alterar a redacção das alíneas a) e b) do n° 2 do artigo 14°, por forma a se suprimir a possibilidade de julgamento em processo sumário de crimes que seriam da competência do Tribunal Colectivo, na sequência da declaração de inconstitucionalidade, com força obrigatória geral, da norma do artigo 381°, n.° 1, do Código de Processo Penal, na redacção introduzida pela Lei n° 20/2013, de 21 de Fevereiro, na interpretação segundo a qual o processo sumário aí previsto é aplicável a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável é superior a cinco anos de prisão, por violação do artigo 32°, n°s 1 e 2, da Constituição - cf. acórdão n°174/2014, publicado no DR, 1.a série - N.° 51 - 13 de Março de 2014.
Pela sistematização contida no Código de Processo Penal, podemos concluir que, em termos de competência em matéria penal, o regime legal vigente, estruturou a sua atribuição, pelas várias hipóteses, definindo-as, no artigo 13°, quanto ao Tribunal de júri, que ao caso não interessa, no artigo 14°, quanto ao Tribunal colectivo e no artigo 16°, quanto ao Tribunal singular.
Compete, então, ao Tribunal Colectivo julgar:
- os processos que, não devendo ser julgados pelo tribunal de júri, respeitarem a crimes previstos no Título III e no capítulo I do título V do Livro II do C Penal e na Lei Penal Relativa às Violações do Direito Internacional Humanitário, n°. 1;
- os processos que não devendo ser julgados em tribunal singular, respeitarem a crimes, dolosos ou agravados pelo resultado, quando for elemento do tipo a morte de uma pessoa, ou, cuja pena máxima, abstractamente aplicável, for superior a 5 anos de prisão, mesmo quando, no caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime.
No que se reporta à competência do Tribunal Singular, resulta, então, que lhe compete julgar:
- os processos que por lei não couberem na competência dos tribunais de outra espécie, júri ou colectivo;
- os processos que respeitarem a crimes previstos no capítulo II do Título V do Livro II do C Penal;
- os processos cuja pena máxima, abstractamente aplicável, seja igual ou inferior a 5 anos de prisão;
- os processos por crimes previstos no artigo 14°, n°2, alínea b) do Código Penal, mesmo em caso de concurso de infracções, quando o MP, na acusação, ou, em requerimento, quando seja superveniente o conhecimento do concurso, entender que não deve ser aplicada, em concreto, pena de prisão superior a 5 anos.
A competência do Tribunal Singular surge, então definida, de forma residual.
Compete ao Tribunal Singular julgar todos os processos que não couberem na competência dos Tribunais de outra espécie, de Júri ou Colectivo.
As regras acabadas de analisar sobre a competência, digamos funcional, dos tribunais judiciais, em matéria penal, traçam o quadro legal em que a competência é definida, para o caso de unidade criminosa ou de um único crime, a ser julgado em cada processo.
Para o caso de concurso de crimes, regem apenas as regras contidas nos artigos 14°, n°2, alínea b), 15° e 16°, n°3, únicas daquele universo, onde a situação está prevista.
Assim, da interpretação conjugada destas três normas resulta que compete, em caso de concurso, ao Tribunal Colectivo julgar os processos que respeitem a crimes cuja pena máxima abstractamente aplicável for superior a 5 anos de prisão, mesmo quando, n.o caso de concurso de infracções, seja inferior o limite máximo correspondente a cada crime, salvo se o Ministério Público entender que, no caso concreto não deve ser aplicada pena superior aquela.
E concorda-se que nos casos em que o limite mínimo da pena abstracta é superior a 5 anos, não poderia o M.P. requerer que os ilícitos em causa fossem julgados por Tribunal Singular, porque o seu poder de condicionar a pena máxima e determinar a competência do Tribunal Singular, não envolve o de baixar a pena mínima abstracta.
Traduzir-se-ia esta situação, aqui sim, numa verdadeira violação das regras da competência material do tribunal e do princípio da separação de poderes, na medida em que extravasava do intervalo de penas fixado pelo legislador, criando uma punição diferente
Só que no caso presente tal não se verifica.
Ao arguido A… são imputados pelo M.P três crimes de violência doméstica agravados previstos no art° 152°/1/d) e n° 2 do C.P sendo que a cada um desses crimes corresponde em abstracto pena de 2 a 5 anos de prisão, na redacção do C.P em vigor aquando da dedução da acusação.
De acordo com as normas estabelecidas no artigo 77°/2 do Código Penal para a punição do concurso de crimes, a pena aplicável ao concurso de crimes tem corno limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
Como os crimes em questão são punidos com pena de prisão de 2 a 5 anos, o limite mínimo da moldura abstracta deste concurso pode ser de 2 anos (se o Tribunal de julgamento viesse a entender ser essa a pena parcelar a aplicar em concreto, para cada um dos três ilícitos).
Mas mesmo que o Tribunal de julgamento viesse a punir algum dos crimes imputados ao arguido com a pena concreta de 5 anos, seria essa a pena mínima aplicável ao concurso isto é a pena mínima da moldura legal do cúmulo jurídico (e nunca poderia pois ser a pena de 6 anos de prisão).
Já a pena máxima aplicável ao concurso seria aquela que resultasse da soma de todas as penas parcelares que em concreto viessem a ser aplicadas - sendo que a pena única teria que ser encontrada entre essas duas balizas (mínimo de 5 anos e máximo equivalente à somas das 3 penas parcelares concretas).
Contrariamente ao referido pelo Sr. Juiz da secção criminal do Tribunal de Instância Local de Torres Vedras, não houve, assim, utilização imprópria da faculdade prevista no artigo 16°/3 do Código de
Processo Penal pelo M.P, o mesmo é dizer que não houve uma utilização que acarretasse a redução da pena mínima abstracta aplicável.
Nesta conformidade, não podendo os autos serem submetidos a julgamento perante o Tribunal de estrutura colectiva, impõe-se a conclusão de que o recurso do arguido merece provimento.
O despacho recorrido infringiu o disposto nos artigos 16°/3 do C.P.P e 77°/2 do C.P pois que a competência para o julgamento do arguido cabe ao Tribunal Singular (Instância local) e não ao Tribunal Colectivo (Instância Central).
Assim tudo visto, este Tribunal da Relação de Lisboa, declara a incompetência do Tribunal Colectivo/Instância Central de Loures para a tramitação e julgamento dos presentes autos e revoga o despacho recorrido (por ser manifestamente ilegal), determinando que o mesmo seja substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos no Tribunal Singular, com designação da data para julgamento, anulando-se todo o processado posterior.
IV - DISPOSITIVO
Face ao exposto, acordam os juízes da 3a secção deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso do arguido e consequentemente:
a) Revogar o despacho recorrido, determinando-se a baixa do processo à 1a instância para que aí seja substituído por outro que ordene o prosseguimento dos autos com designação de data para o julgamento em Tribunal Singular, por ser o Tribunal materialmente competente, anulando-se todo o processado posterior ao despacho recorrido.
b) Sem custas.
Lisboa, 15 de Dezembro de 2016
(Ana Paula Grandvaux Barbosa)