1. O crime de abuso de confiança fiscal tem como um dos seus elementos objectivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária o que, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária ou seja se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente.
2. O tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, pelo que só existe desvalor da acção (rectius, desvalor de omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária e temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efectivamente recebido
3. Se é certo que antes da fixação de jurisprudência, com base em posições jurídicas que chegaram a ser comuns, algumas acusações e sentenças podiam nao fazer referência ao efectivo recebimento do montante da prestação tributária, actualmente, sendo posição jurisprudencialmente fixada e praticamente unânime na doutrina3 que esse é um elemento objectivo do tipo, nao pode deixar de se concluir que, uma acusação, definidora dos limites e objecto do processo que nao contem a descrição de todos os elementos do tipo nao pode ser recebida, porquanto da ausência daqueles factos decorre que os factos descritos nao constituem crime - o objecto da acusação define e delimita o objecto da cognição e decisão do tribunal.
4. Estando tal elemento objectivo do tipo suficientemente especificado na acusação, esta não pode deixar de ser recebida
Proc. 1049/14.1IDLSB 3ª Secção
Desembargadores: Jorge Raposo - Margarida Ramos de Almeida - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
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Proc. 1049/14.1IDLSB.L1
Acordam em conferência na 3ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa: I. RELATÓRIO.
No encerramento do inquérito, o Ministério Público acusou F... e C..., S.A. pela prática, em co-autoria, de um crime de Abuso de Confiança Fiscal, p. e p. pelo art. 105° n.°s 1, 4 e 7 da Lei 15/2001 de 5 de Junho (R.G.I.T.).
Ao proferir o despacho de saneamento, nos termos do art. 311° n° 2 ai. a) e n° 3 ai. d) o Juiz de julgamento rejeitou a acusação por manifestamente infundada.
Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso formulando as seguintes conclusões:
1. O princípio da acusação impõe que o juiz apenas deve controlar os vícios estruturais graves da acusação, referidos no art. 311° n° 3 do Código de Processo Penal.
2. A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na ai. d) do n° 3 do art° 311° do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime, sendo que a previsão da ai. d) do n° 3 do art° 311° nao pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a nao qualificação dos factos como penalmente relevantes.
3. No caso dos presentes autos, a acusação de fls. 159 e ss., foi deduzida após a análise de toda a prova indicada a fls. 162, sendo que a mesma descreve todos os pressupostos do crime imputado aos arguidos e permite inferir, de forma clara, em nosso entender, a existência de indícios suficientes de que os arguidos praticaram os factos que lhes são imputados e constituem crime.
4. De facto, resulta da conjugação dos artigos 5° a 14° da acusação que o arguido agiu em nome e no interesse da sociedade arguida, ao não entregar nos cofres do Estado, o IVA por si liquidado e recebido dos seus clientes (pelo menos 12.587,23 Euros), deduzido nos termos da lei durante o período tributário constante dos art. 5° a 7° (isto é até ao termo do prazo legal), integrando na sua esfera patrimonial e da sociedade que representava a prestação tributária deduzida nos termos da lei.
5. Por outro lado e no que respeita ao elemento subjectivo do crime imputado aos arguidos, resulta que os mesmos ao praticarem os factos descritos na acusação de fls. 159 e ss. agiram de forma livre, voluntária e conscientemente, com o propósito concretizado de nao liquidar, nem pagar as contribuições mencionadas, sabendo as suas condutas proibidas e punidas por lei, apesar de saberem que tinham obrigação de entregar a importância supra descriminada à Fazenda Nacional e que a mesma nao era sua pertença, quiseram fazê-la sua e integrá-la no seu património, delapidando aquele organismo nas importâncias correspondentes e obter, por via disso, vantagem patrimonial indevida.
6. Nao se poderá, portanto, em nosso entender, concluir, como se fez no despacho recorrido, que, no que respeita ao elemento subjectivo do crime imputado ao arguido, a acusação é manifestamente infundada, uma vez que contém a descrição dos componentes volitivo e intelectual do elemento subjectivo dos crimes imputados ao arguido (note-se que ao referir-se a contribuições mencionadas faz remissão para os art. 5° a 8° da acusação), nao exigindo tais crimes a verificação de um dolo específico.
7. Por todo o exposto e por considerarmos que a acusação deduzida no âmbito dos presentes autos não é manifestamente infundada, tanto mais que resulta claro e evidente, salvo o devido respeito, que os factos nela descritos preenchem o tipo legal de crime imputado ao arguido, deverá, em nosso entender, ser revogada a decisão recorrida e substituída por outra que determine a admissão da supra referida acusação e a designação de data para julgamento dos arguidos, no âmbito dos presentes autos.
V. Exas., porém, melhor decidirão e farão, como sempre, a costumada JUSTIÇA! Respondeu ao recurso o arguido F..., concluindo:
1 - O Douto Despacho recorrido nao merece qualquer censura.
2 - Numa acusação pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, tem de constar o facto de o imposto efectivamente recebido ter tido lugar até à data prevista para a sua entrega.
3 - A referida alegação consubstancia um elemento objectivo do ilícito criminal em apreço (...).
4 - No caso dos presentes autos, nao tendo, o Ministério Público aduzido tal factualidade no despacho de acusação, torna-se indubitável concluir que a factualidade descrita na acusação é inconsequente em termos criminais, ou seja, nao traduz a prática de um crime.
5 - Acresce que, quanto ao elemento subjectivo, nao se encontra descrito na acusação que o arguido tinha conhecimento de que a sociedade recebeu efectivamente o supra aludido valor de imposto até à data legal prevista para a sua entrega e que era sua obrigação, como legal representante da sociedade, diligenciar pela entrega do imposto até tal data.
6 - O facto do arguido ter efectivamente recebido as quantias de IVA em causa antes do termo do prazo para a sua entrega ao Fisco é elemento constitutivo do crime, que tem de constar na acusação, por força do Princípio da Acusação, sob pena desta improceder. - Ac. TRG, 31/03/2014, disponível na internet www.dgsi.pt.Proc° 250/12.7IDBRG.G1, Relator Dr. Juiz Desembargador Fernando Monterroso.
7 - Bem andou o Tribunal a quo ao decidir rejeitar a Douta Acusação de fls. 159 e ss dos autos porquanto o RECORRENTE não alegou, como lhe competia, que o recebimento do IVA, a ter ocorrido, se verificou em período anterior ao da obrigação de entrega à Fazenda Nacional.
8 - No mesmo sentido bem andou o Tribunal a quo ao entender nao resultar da Douta Acusaçao deduzida que o ARGUIDO F... tinha conhecimento de que a sociedade arguida havia recebido o IVA liquidado até ao momento da entrega à Fazenda Nacional porque a mesma é nisso omissa - sibi imputet!!!
9 -Nao consta em nenhum dos artigos da Douta Acusaçao de fls. 159 e ss dos autos, designadamente tal nao se pode inferir dos artigos indicados pelo Ministério Público, ou seja, 5° a7°e12°e14°.
10 - A prova junta aos autos, ainda que em sede de audiência de discussao e julgamento, nao é suficientemente bastante para condenar o ARGUIDO visto que reporta a Extractos de Conta, de programa de contabilidade, facturas sem correspondente demonstraçao de efectivo recebimento das mesmas e, mais que recebimento, recebimento até ao termo do prazo legal de entrega à Fazenda Nacional.
11 - Decidiu bem o Tribunal a quo ao entender rejeitar a Douta Acusaçao deduzida, nos termos em que efectivamente o foi, ou seja, por manifestamente infundada nos termos conjugados do disposto na ai. a) do n° 2 do art° 311° e ai. d) do n° 3 do art° 311° do CPP.
TERMOS EM QUE, nos mais de Direito - do Douto suprimento de V. Exas. - deverá ser dado integral provimento à presente resposta e, em consequência, mantido o Douto Despacho recorrido in totum, assim se fazendo JUSTIÇA.
Nesta instancia, a Ex.ma Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do recurso, sustentando:
Emitindo parecer, entendemos que o elemento do tipo legal que, segundo o despacho recorrido, seria omisso na acusaçao, mostra-se vertido nos factos constantes dos artigos 5° e 8° da acusaçao nas expressões «liquidou e recebeu o IVA» e «os arguidos deveriam ter procedido à entrega do IVA deduzido e recebido no valor de ... ». Nao é necessário grandes elucubrações ou conhecimentos linguísticos para se concluir que o montante de IVA em causa foi efectivamente recebido antes da entrega da declaraçao a que respeitava (Fevereiro de 2014).
O mesmo se devendo concluir quanto ao elemento subjectivo.
Sobre a rejeiçao da acusação, é unânime a jurisprudência no sentido de correspondência entre o manifestamente infundada com manifestamente não constituir crime.
Citam-se os seguintes acórdaos:
Ac. TRP de 11-07-2012 : I. Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusaçao nao constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusaçao manifestamente infundada e rejeitá-la, II. Os factos nao constituem crime quando entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinçao do procedimento ou se a factualidade em causa nao consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado. III. Se a questao focada na acusaçao for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311° do CPP nao pode considerar a mesma (acusaçao) manifestamente improcedente.
Ac. TRP de 21-10-2015: I. Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam da acusação não constituem crime é que o tribunal ao abrigo do art° 311° 3 d) Código de Processo Penal, pode rejeitar a acusação. II. Havendo divergências na jurisprudência sobre a integração dos factos descritos na acusação como constituindo crime, só após o julgamento o tribunal pode tomar posição sobre a qualificação dos factos como integrando ou não o crime imputado.
Em consequência, emite-se parecer no sentido da procedência do recurso, o qual deverá ser conhecido em conferência (art. 419° n° 3 alínea c) do CPP).
Em resposta ao parecer o arguido F... concluiu nos exactos termos da sua resposta ao recurso.
Foram colhidos os vistos, após o que o processo foi à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II. FUNDAMENTAÇÃO
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusies formuladas na motivação (art.s 403° e 412° do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410° n° 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secçóes criminais do Supremo Tribunal de Justiça de 19.10.95, publicado no DR I° série A, de 28.12.95).
Sendo o âmbito do recurso delimitado pelas conclusões dos Recorrentes, a questão a decidir é a de saber se a acusação podia ser rejeitada (por nao conter todos os elementos objectivos do crime em apreço).
A acusação deduzida pelo Ministério Público descreve a seguinte factualidade: (...) porquanto indiciam suficientemente os autos que:
1.° A arguida C..., 5.A., matriculada na Conservatória do Registo Comercial de Lisboa sob o n …, é uma sociedade comercial anónima, que tem sede na Avenida da Igreja, n. …, Lisboa, e se dedica à indústria e comércio por grosso e a retalho de confeitaria, pastelaria, café e cervejaria, com o CAE 561ü1-R3.
2.° Constituiu-se em 04.10.1950 e obriga-se com a assinatura do presidente do conselho de administração; conjunta de dois administradores; conjunta de um administrador e um procurador; de um administrador ou de um procurador com poderes especiais e específicos para o acto, sendo que o presidente do conselho de administração é o aqui arguido F....
3.° A sociedade arguida encontra-se registada para efeitos de IVA em regime mensal.
4.° Pelo que, estava a sociedade arguida obrigada a enviar aos serviços de administração do IVA as declarações periódicas com o IVA apurado.
5.° No exercício da sua actividade, a arguida, representada pelo seu administrador, o aqui arguido F..., emitiu as facturas referentes aos serviços por si prestados no período correspondente ao mês de Fevereiro de 2014, nas quais liquidou e recebeu o IVA, no valor de € 12.587,23 (doze mil quinhentos e oitenta e sete euros e vinte e três cêntimos) como lhe competia, bem como o valor dos serviços constantes dessas mesmas facturas.
6.° Enviou posteriormente aos Serviços de Administraçáo do IVA, a declaração periódica mensal relativa a tal período.
7.° No entanto, apesar do envio da declaraçáo periódica do mês de Fevereiro de 2014, aquela não foi acompanhada do respectivo meio de pagamento.
8.° Os arguidos, deveriam ter procedido à entrega do IVA deduzido e recebido, no valor de € 12.587,23 (doze mil quinhentos e oitenta e sete euros e vinte e três cêntimos).
9.° Porém nao o fizeram, apropriando-se do mesmo, apesar de disporem dos meios financeiros para o fazer e saberem que a isso estavam obrigados.
10.° Em 08,10.2014 e 12.11,2014 foram os arguidos notificados nos termos e para os efeitos previstos no art. 105.° n.° 4, alínea b) do RGIT, não tendo procedido ao pagamento do valor devido a título de IVA correspondente ao mês de Fevereiro de 2014.
11.° Os arguidos agiram com intenção de obter para si um benefício que sabiam indevido, à custa da defraudação da Fazenda Nacional, sendo certo que estavam obrigados a entregar aos cofres do Estado os montantes do IVA que haviam deduzido e recebido.
12.° Embora soubessem que tinham obrigação de entregar a importância supra descriminada à Fazenda Nacional e que a mesma nao eram sua pertença, quiseram fazê-la sua e integrá-la no seu património, delapidando aquele organismo nas importâncias correspondentes.
13.° Os arguidos, ao decidir sobre a afectação dos meios financeiros que recebiam, actuaram com o propósito de fazer integrar o montante deduzido e recebidos a título de IVA, no seu património e obter, por via disso, vantagem patrimonial indevida.
14.° Os arguidos agiram deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de nao liquidar, nem pagar as contribuições mencionadas, sabendo as suas condutas proibidas e puníveis por lei.
A decisáo recorrida é a seguinte: (...)
Da rejeição da acusação deduzida pelo Ministério Público:
A fls. 159 a 166 e 264, o Ministério Público deduziu acusação contra a sociedade arguida constituída sob a firma C..., 5.A. e contra o arguido F..., imputando-lhes a prática, em co-autoria, de um crime de abuso de confiança fiscal, previsto e punido nos termos dos artigos 7° (este apenas para a sociedade arguida) e 105°, n.° 1, n.° 4 e n.° 7, do R.G.I.T., por, alegadamente, não terem entregado ao Estado Português (Autoridade Tributária), a quantia de € 12.587,23, relativa a IVA liquidado no mês de Fevereiro do exercício do ano de 2014, que foi efectivamente recebida.
Dispõe o artigo 105° do Regime Geral das Infracções Tributárias:
1 - Quem nao entregar à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a (euro) 7500, deduzida nos termos da lei e que estava legalmente obrigado a entregar é punido com pena de prisão até três anos ou multa até 360 dias (redacção introduzida pelo artigo 113° da Lei 64-A/2008, de 31 de Dezembro, com entrada em vigor em 01.01.2009 - artigo 174° da Lei 64-A/2008).
2 - Para os efeitos do disposto no número anterior, considera-se também prestação tributária a que foi deduzida por conta daquela, bem como aquela que, tendo sido recebida, haja obrigação legal de a liquidar, nos casos em que a lei o preveja.
3 - É aplicável o disposto no número anterior ainda que a prestação deduzida tenha natureza parafiscal e desde que possa ser entregue aytonomamente.
4 - Os factos descritos nos números anteriores só sao puníveis se:
a) Tiverem decorrido mais de 90 dias sobre o termo do prazo legal de entrega da prestação;
b) A prestação comunicada à administração tributária através da correspondente declaração não for paga, acrescida dos juros respectivos e do valor da coima aplicável, no prazo de 30 dias após notificação para o efeito. (redacção introduzida pelo artigo 95° da Lei 53-A/2006, com entrada em vigor em 01.01.2007 - artigo 163° da Lei 53-A/2006).
5 - Nos casos previstos nos números anteriores, quando a entrega nao efectuada for superior a € 50 000, a pena é a de prisão de um a cinco anos e de multa de 240 a 1200 dias para as pessoas colectivas.
6 - (Revogado pelo artigo 115° da Lei 64-A/2008, de 31.12).
7 - Para efeitos do disposto nos números anteriores, os valores a considerar sao os que, nos termos da legislação aplicável, devam constar de cada declaração a apresentar à administração tributária.
Pressuposto indispensável para que um arguido pratique o crime em apreço é que não seja entregue à administração tributária, total ou parcialmente, prestação tributária de valor superior a € 7.500,00 que tenha efectivamente deduzido (n.° 1 do citado artigo 105°, aplicável às situações de IRS) ou recebido (n.° 2 do citado artigo 105°, aplicável às situações de IVA), sendo que, no caso de a nao entrega ser superior a € 50.000,00, verifica-se uma agravação da pena. Com efeito, A omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n°1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido. (Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixaçao de jurisprudência n.° 8/2015, de 29.04.2015, publicado no Diário da República r.° 106, Série I, de 02.06.2015), sendo que esta jurisprudência é extensível ao IRS.
Igualmente pressuposto da prática do crime em apreço é que a nao entrega, isto é, o facto negativo do ilícito em apreço, se tenha verificado até à data em que a declaração tem de ser apresentada e a prestação paga (no caso do IVA, e actualmente, até ao dia 10 do segundo mês seguinte àquele a que respeitam as operações e até ao dia 15 do segundo mês seguinte ao trimestre do ano civil a que respeitam as operações - artigo 41°, n.° 1, alíneas a) e b), do Código do Imposto Sobre o Valor Acrescentado) ou até à data do respectivo pagamento (no caso do IRS, e actualmente, até ao dia 20 do mês seguinte àquele em que foram deduzidas - artigo 98°, n.° 3, do Código de Imposto Sobre Rendimento de Pessoas Singulares).
Na verdade, de harmonia com o disposto no artigo 5°, n.° 2, da Lei 15/2001 As infracções tributárias omissivas consideram-se praticadas na data em que termine o prazo para o cumprimento dos respectivos deveres tributários.. Deste modo, se o valor do IVA for recebido após a data da entrega da declaração nao pode tal recebimento ser contabilizado como IVA efectivamente recebido, para efeitos de criminalizaçao (No mesmo sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Evora de 25.03.2014, processo n.° 86/10.OIDSTB.E1, cujo relator foi o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Carlos Berguete Coelho e cujo sumário se transcreve para alumiar esta questão: IV - O momento relevante para esse recebimento é, em concreto, a data até à qual a declaração periódica tivesse de ser apresentada., Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19.12.2013, processo n.° 388/11.8IDFAR.E1, cujo relator foi o Exmo. Sr. Desembargador João Gomes de Sousa, e que igualmente se transcreve para alumiar a mesma questão: I - O momento da consumação criminosa no crime de abuso de confiança fiscal é o momento em que a prestaçáo tributária deveria ter sido paga, II - O mero pagamento parcial no âmbito da condição da alínea b) do n. 4 do artigo 105° do RGIT nao exclui a punibilidade. E nao exclui essa punibilidade mesmo que o montante ainda em divida nesse momento [no final do prazo de 30 dias da ai. b)] seja inferior aos 7.500 € previstos no n° 1 do preceito. III - Ou seja, consumado o crime, só o pagamento integral das indicadas quantias e no prazo da ai. b) do n° 4 do artigo 105° do RGIT afasta a punibilidade da conduta. IV - Isto porquanto os 7.500 euros são um patamar do tipo de ilícito e este verificava-se - estava preenchido - no momento da consumação do ilícito criminal. Assim, o momento chave para fazer operar o ri° 1 do preceito (logo, para verificar o requisito 7.500 €) é o momento da consumação do crime e nao o momento de verificação da condição objectiva de punibilidade, já que estas são duas realidades distintas. e Acórdão do Tribunal da Relação de Evora de 10.09.2013, processo n.° 346/09.2IDSTB.E1, cujo relator foi o Exmo. Sr. Desembargador António Latas, e que igualmente se transcreve para alumiar a mesma questão: I - Para o cometimento do crime de abuso de confiança fiscal, quando se trate de prestações tributárias referentes a IVA, é necessário que fique demonstrado o efectivo recebimento do correspondente montante pelo sujeito passivo obrigado á sua entrega ao Estado até ao momento da entrega das respectivas declarações periódicas à Autoridade Tributária. II Não tendo o tribunal diligenciado pelo apuramento das concretas datas do recebimento parcial ou total do IVA com referência ao momento estabelecido para a entrega de cada uma das sobreditas declarações e do imposto devido, incorreu no vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Trata-se de um tipo de ilícito doloso, pois que se exige que o agente tenha actuado com intenção de vir a incorporar num determinado património a prestação não entregue, ou, pelo menos, que tivesse representado essa incorporação como consequência necessária ou possível da sua conduta, tendo-se, neste último caso, conformado com tal possibilidade.
Por fim, cumpre evidenciar que, A jurisprudência, reiteradamente, vem afirmando que o crime de abuso de confiança fiscal é um crime omissivo puro que se consuma no momento em que o agente nao entregou a prestação tributária que devia, ou seja, consuma-se no momento em que o mesmo nao cumpre a obrigação tributária a que estava adstrito, haja ou nao haja entrega da declaração tributária. (Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 17.04.2013, disponível na Internet, processo n.° 496/11.5IDLSB.L1-3).
Assim, face ao imediatamente ante exposto, é inequívoco que numa acusação pela prática de um crime de abuso de confiança fiscal, tem de constar o facto do imposto efectivamente recebido ter tido lugar até à data legal prevista para a sua entrega, isto é, a referida alegação consubstancia um elemento objectivo do ilícito criminal em apreço (No mesmo sentido, vide Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 31.03.2014, disponível na Internet, www.dgsi.pt. processo n.° 250/12.7IDBRG.G1. cujo relator foi o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Fernando Monterroso, e que cujo trecho do sumário se transcreve para alumiar a questão a decidir: II - O facto do arguido ter efectivamente recebido as quantias de IVA em causa antes do termo do prazo para a sua entrega ao Fisco é elemento constitutivo do crime, que tem de constar da acusação, por força do «princípio da acusação», sob pena de esta improceder.
Por conseguinte, não tendo, no caso em apreço, o Ministério Público aduzido tal factualidade no despacho de acusaçaao, toma-se indubitável concluir que a factualidade descrita na acusação é inconsequente em termos criminais, ou seja, nao traduz a prática de um crime, tanto mais que, e no que tange ao elemento subjectivo, talqualmente nao se encontra descrito na acusação que o arguido tinha conhecimento de que a sociedade arguida recebeu efectivamente o supra aludido valor de imposto até à data legal prevista para a sua entrega e que sabia que era sua obrigação, como legal representante da sociedade, diligenciar pela entrega do imposto até tal data.
Estatui o artigo 311 ° do Código de Processo Penal:
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) Rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada:...
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente
infundada:
d) Se os factos não constituírem crime.
Conforme supra evidenciado, os factos descritos na acusação nao constituem crime, razão pela qual a mesma é manifestamente infundada.
Sendo manifestamente infundada, acusação deve ser rejeitada, por tal motivo. Termos em que, ao abrigo do preceituado no artigo 311°, n.° 2, alínea a), e n.° 3, alínea d), do Código de Processo Penal, se rejeita a acusação deduzida pelo Ministério Público, por se considerar que a mesma é manifestamente infundada.
Sem custas.
A consequência de uma acusação que nao contenha todos os elementos do tipo de crime é a improcedência porque nesse caso a acusação é inepta para fundar o julgado'. Essa ineptidão corresponde à constatação de que os factos constantes da acusação são insuficientes para, sem que ocorra uma alteração substancial sustentar a condenação numa sintonia entre a acusação e a sentença, impondo-se a apreciação jurídica da verificação de todos os elementos do tipo e da suficiente delimitação espácio-temporal da factualidade.
Nos autos, a questão prende-se única e exclusivamente com a jurisprudência fixada pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de fixação de jurisprudência n.° 8/2015, de 29.04.20152 que consagrou que, a omissão de entrega total ou parcial, à administração tributária de prestação tributária de valor superior a € 7.500 relativa a quantias derivadas do Imposto sobre o Valor Acrescentado em relação às quais haja obrigação de liquidação, e que tenham sido liquidadas, só integra o tipo legal do crime de abuso de confiança fiscal, previsto no artigo 105 n°1 e 2 do RGIT, se o agente as tiver, efectivamente, recebido.
Na sua fundamentação afirma-se que o crime de abuso de confiança fiscal tem como um dos seus elementos objectivos a dedução ou o recebimento da prestação tributária o que, no âmbito do imposto sobre o valor acrescentado (IVA), significa que o devedor tributário só pode praticar esse crime se tiver recebido o montante da prestação tributária ou seja se esta lhe tiver sido entregue pelo adquirente. O pressuposto do qual se arranca, e constitui denominador comum, é o de que, se o tipo legal do abuso de confiança fiscal pressupõe necessariamente a existência de uma relação fiduciária que se estabelece entre o Estado e os agentes económicos, então só existe desvalor da acção (rectius, desvalor de omissão) quando um agente económico que liquida, recebe e detém precária e temporariamente o imposto, omite a entrega ao Estado-Fisco do IVA efectivamente recebido (sublinhado nosso).
Se é certo que antes da fixação de jurisprudência, com base em posições jurídicas que chegaram a ser comuns, algumas acusações e sentenças podiam nao fazer referência ao efectivo recebimento do montante da prestação tributária, actualmente, sendo posição jurisprudencialmente fixada e praticamente unânime na doutrina3 que esse é um elemento objectivo do tipo, nao pode deixar de se concluir que, uma acusação, definidora dos limites e objecto do processo que nao contem a descrição de todos os elementos do tipo nao pode ser recebido, porquanto da ausência daqueles factos decorre que os factos descritos nao constituem crime - o objecto da acusação define e delimita o objecto da cognição e decisão do tribunal.
In casu, tal elemento objectivo do tipo está suficientemente especificado na acusação, bem como a descrição dos elementos cognitivos e volitivos do dolo (sublinhados nossos):
5.° No exercício da sua actividade, a arguida, representada pelo seu administrador, o aqui arguido F..., emitiu as facturas referentes aos serviços por si prestados no período correspondente ao mês de Fevereiro de 2014, nas quais liquidou e recebeu o IVA, no valor de € 12.587,23 (doze mil quinhentos e oitenta e sete euros e vinte e três cêntimos) como lhe competia, bem como o valor dos serviços constantes dessas mesmas facturas.
8.° Os arguidos, deveriam ter procedido à entrega do IVA deduzido e recebido, no valor de € 12.587,23 (doze mil quinhentos e oitenta e sete euros e vinte e três cêntimos).
9.° Porém não o fizeram, apropriando-se do mesmo, apesar de disporem dos meios financeiros para o fazer e saberem que a isso estavam obrigados.
11.° Os arguidos agiram com intenção de obter para si um benefício que sabiam indevido, à custa da defraudação da Fazenda Nacional, sendo certo que estavam obrigados a entregar aos cofres do Estado os montantes do IVA que haviam deduzido e recebido.
Encontramos devidamente especificado na acusação o elemento objectivo do tipo em apreço e bem assim, a actuação dolosa do arguido Francisco Costa que foi, aliás, quem emitiu as facturas.
Por outro lado, dos art.s 5° e 11° da acusação decorre de forma suficiente que o IVA havia sido recebido anteriormente, no período correspondente ao mês de Fevereiro de 2014, ou seja, seguramente antes do termo do prazo para a sua entrega ao Fisco. De qualquer forma, subsistindo dúvidas no espírito do julgador, pode este, sem alterar substancialmente os factos e sem exceder os limites da acusação, especificar ou definir com maior precisão o momento em que o IVA foi efectivamente recebido pelos arguidos.
Terá, é certo, que ficar demonstrado em julgamento que os valores de IVA em causa foram recebidos no período correspondente ao mês de Fevereiro de 2014, antes do termo do prazo para a suo entrega ao Fisco. Porém a prova dessa factualidade terá de ser efectuada em julgamento já que a acusação especifica de forma bastante esse elemento objectivo do tipo, permitindo o prosseguimento dos autos.
Em conclusão, na procedência do recurso interposto pelo Ministério Público, deve ser revogada a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine o recebimento da acusação e a designação de data para julgamento dos arguidos.
III. DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam em conferência os juízes do Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e em revogar a decisão recorrida que deverá ser substituída por outra que determine o recebimento da acusação e a designaçao de data para julgamento dos arguidos.
Sem custas.
Lisboa, 25 de Janeiro de 2017
(texto elaborado, revisto e rubricado pelo relator
e assinado por este e pela Ex.ma Adjunta)
Jorge Raposo
Margarida Ramos de Almeida