Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 01-02-2017   Arresto. Embargos de terceiro. Legitimidade. Requisitos
A qualidade de terceiro e o estado de boa-fé não se presumem, sendo ónus do interessado a sua alegação e prova.
O disposto no artº 392º nº 2, do cód. Procº civil, que exige a demonstração da viabilidade uma impugnação pauliana deduzida contra o adquirente dos bens, não assume qualquer relevância no âmbito do decretamento do arresto preventivo no âmbito do direito processual penal.
Não tendo a Sociedade embargante a qualidade de terceiro, e não estando de boa fé, dado que as pessoas físicas que a integravam ou pelo menos uma, era acionista, com poderes de decisão e gestão, e é arguido no processo-crime e por consequência poderia muito bem ver os lesados interporem acções judiciais que visassem o seu património e da própria sociedade de que era um dos donos, e uma vez que se alega terem sido alienados diversos bens após o desencadear do processo, é de concluir pela legitimidade do Ministério Público em requerer o arresto e de julgar totalmente improcedentes os embargos de terceiro interpostos.
Proc. 324/14.0TELSB-C.L2 3ª Secção
Desembargadores:  Augusto Lourenço - João Lee Ferreira - -
Sumário elaborado por Isabel Lima
_______
Acordam, em conferência, os Juizes da 3.ª Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa

RELATÓRIO
No âmbito do processo nº 324/14.OTELSB-C, que corre termos no Tribunal Central de Instrução Criminal, veio a requerente, C... - Administração de Bens Móveis e Imóveis, SA, deduzir oposição ao arresto de bens, por meio de embargos de terceiro, ao abrigo do disposto no artº 342º n
1 do cód. Procº civil, contra o Estado Português, representado pelo Departamento Central de Investigação Criminal do Ministério Público.

Autuados os autos, o Sr. Juiz a quo, remeteu os mesmos ao Ministério Público para se pronunciar - cfr. fls. 28, vindo o mesmo a promover o seguinte:
- Rejeição liminar dos embargos nos termos do art° 345º do cód. proc civil;
- Que fosse dado cumprimento ao disposto no art° 139º nº 6 do cód. proc civil, porquanto os mesmos foram deduzidos no primeiro dia útil após o termo do prazo legal e por consequência impunha-se o pagamento da multa;
- Que se indefira o pedido de suspensão dos termos do arresto.
Caso não fossem Iiminarmente rejeitados, que o Ministério Público fosse notificado para os contestar.
Seguidamente o Sr. Juiz proferiu o seguinte despacho (cfr. fls. 34):
- «Recebo os presentes embargos. Cumpra-se o disposto no artº 139º nº 6 do cód. Procº civil.
- Nos termos e com os fundamentos de facto e de direito, que corroboro, mencionados na promoção versaste, indefiro liminarmente o pedido do embargante, no sentido de serem declarados suspensos os termos do apenso de arresto.
- Como se promove».
Deste despacho veio ora embargante, C..., SA a interpor recurso para este Tribunal, tendo oficiosamente sido declarada a nulidade do despacho de fls. 34 e ordenado a remessa dos autos à 1ª instância para sanar os vícios detectados.
Cumprido este formalismo veio o Tribunal recorrido a receber os embargos e tendo conhecido do mérito, decidiu o Sr. Juiz o seguinte:
- «Consequentemente, face aos fundamentos supra aduzidos, deferindo ao doutamente promovido pelo detentor da acção penal, atenta a existência de fumus boni iuri e o periculum in mora, de modo a acautelar que a vantagem da actividade criminosa aqui em investigação, assim como as garantias de pagamento de eventuais penas pecuniárias e outros créditos, se dissipem, ordeno o arresto à ordem dos presentes autos, dos imóveis abaixo identificados, para garantia do pagamento de valor de cerca de 1.835 milhões de euros (correspondentes a: 200 milhões de euros relativos a papel comercial
E..., 800 milhões de ouros relativos a mais valias com as operações com as obrigações B... de cupão zero, 256 milhões de caros relativos à recompensa pelo B... de divida própria e 379 milhões de euros
relativos a papel comercial da R..., em retalho) - ex vi das disposições conjugadas nos
artºs 111º, nºs 2, 3 e 4, do cód. penal, 228º do cód. Procº penal e 391º a 393º do cód. Procº civil.
Consequentemente, julgo improcedentes os presentes embargos de terceiro, assim como determino o indeferimento do requerimento de suspensão do processo onde os mesmos se enquadram, e concludentemente, pela manutenção do arresto preventivo sobre o bem em causa e que infra se identifica, sob o ponto 23, nos exatos termos em que o mesmo foi decretado, ordenando-se o prosseguimento dos ulteriores termos processuais
Bens a Arrestar:
Todos os indicados na decisão inicial que se dá por reproduzida neste tocante e designadamente o mencionado sob o ponto 23, (...).
B.
BENS IMÓVEIS:
23. C... - ADMINISTRAÇÃO DE BENS MÓVEIS E IMÓVEIS, SA (et: fls. 145 e ss., do vol. 5, do anexo 4, do apenso X);
Prédio urbano sito na Vila de Cascais, Rua da …, nº…, inscrito na matriz sob o artigo …, e descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de C…, freguesia de Cascais, sob o nº…».
Inconformado com tal decisão, a embargante, C..., SA interpôs o recurso de fls. 348 a 368, concluindo nos seguintes termos:
«1. Os presentes autos tiveram origem no conhecimento, por parte da Recorrente, de que havia sido arrestado o prédio urbano sito na R…, no concelho e freguesia de C…, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de C… sob o nº … da freguesia de C…, e inscrito na correspondente matriz predial sob o artigo … da freguesia de C… e E….
2. A Recorrente é proprietária do prédio identificado na Conclusão 1ª desde 15.04.1993, facto de que fez prova plena nos presentes autos.
3. O arresto em causa foi decretado nos autos principais de que os presentes embargos constituem Apenso, e que consubstanciam um inquérito criminal em que são Arguidos os antigos Administradores de várias empresas do denominado G....
4. A Apelante nunca teve qualquer relação com as empresas do G..., surgindo a medida de conservação imposta sobre o seu património em virtude das relações que a Recorrente manteve com J..., Arguido nos autos principais e antigo accionista e Administrador da mesma Recorrente.
5. A Recorrente é, assim, terceira relativamente ao processo em que foi decretado o arresto.
6. Apesar de demonstrado plenamente o direito de propriedade da Apelante sobre o imóvel identificado na Conclusão 1ª, os embargos de terceiro deduzidos por aquela foram julgados improcedentes, com fundamento nas especificidades do arresto preventivo de natureza penal, previsto no arte 228º do cód. Procº penal.
7. Tais particularidades que, supostamente, exigiriam uma ponderação distinta da imposta pelo arte 342º/1 do cód. Procº civil, residiriam na proximidade de J... com a Recorrente, no facto de o mesmo J... ser suspeito de desvio de fundos de empresas do G..., na circunstância de a Apelante estar (...) sujeita à satisfação dos interesses patrimoniais de J... (...), bem como na hipotética possibilidade de esta mesma pessoa alienar ou por qualquer forma dissipar o prédio arrestado para o subtrair à acção dos credores.
8. Ao contrário do que resulta da sentença impugnada, a discussão nos presentes autos centra-se na verificação da existência do direito de propriedade da Recorrente sobre o bem imóvel apreendido, e na aventada possibilidade de tal direito ser atingido por um procedimento em que a Apelante é terceira.
9. A decisão recorrida confundiu, na sua fundamentação, requisitos para decretamento do arresto com o funcionamento e os fins da oposição mediante embargos
de terceiro, ao trazer à discussão questões relativas à suposta proximidade entre a
Recorrente e a J..., aliás não consubstanciadas.
10. Em face do disposto no artº 392º/2 do cód. Procº civil, nunca os autos de inquérito criminal e a matéria aí apurada permitiriam arrestar um bem de terceiro (a Recorrente), dado que as condutas em apreciação nesses autos principais são, todas elas, muito posteriores à data em que a Recorrente adquiriu o direito de propriedade sobre o prédio arrestado (15.4.1993).
11. Quer a verificação dos pressupostos para o decretamento do arresto, quer os presentes embargos, são regulados pelo direito civil, pelo que será de recusar qualquer motivação para a decisão a proferir nestes autos que se sustente, exclusivamente, nas especificidades do direito penal, já que, embora o acto atentatório da propriedade da Recorrente provenha de necessidades de natureza jurídico-criminal, certo é que o funcionamento do mecanismo de defesa consubstanciado nos embargos de terceiro se situa, exclusivamente, no âmbito civil.
12. O Tribunal a quo Ignorou os parâmetros identificados na Conclusão 11 ª, tendo argumentado no sentido de as especiais exigências do direito penal exigirem o que redunda numa desconsideração da personalidade colectiva da Recorrente, sob as vestes de uma suposta sujeição da mesma (...) à satisfação dos interesses patrimoniais de J... (...), nunca adequadamente demonstrada nos autos.
13. Da desconsideração da personalidade colectiva da Apelante e da consequente separação e autonomia patrimonial da mesma, resulta a supressão de qualquer efeito útil da dedução dos embargos de terceiro nos presentes autos, unia vez que, provados que estavam os requisitos para a respectiva procedência (direito de
propriedade sobre o prédio arrestado; não intervenção da Recorrente no processo em que a medida foi ordenada), a decisão recorrida foi em sentido inverso.
14. A sentença impugnada sustentou, na conjugação das várias vertentes da sua fundamentação, a inaplicabilidade ao processo penal da oposição mediante embargos de terceiro, o que não encontra qualquer eco em normas legais vigentes ou na jurisprudência - sendo que, aliás, o Tribunal a quo expressamente, e por duas vezes
(antes e depois de o Tribunal da Relação de Lisboa se pronuncia sobre anterior recurso da aqui
Apelante), recebeu os embargos.
15. A interpretação ínsita na decisão recorrida, no sentido da desconsideração da personalidade colectiva da Recorrente, que redunda, na prática, na impossibilidade de dedução de embargos de terceiro no campo penal, constitui violação do disposto no artº 62º/1 da C.R.P., por eliminar o núcleo essencial do artº 342º/1 do cód. Procº civil, que é a sua aptidão à defesa da posse, do direito de propriedade, e de quaisquer direitos e interesses atendíveis que sejam indevidamente atingidos por medidas judiciais ablativas.
16. A Recorrente expressamente invoca a inconstitucionalidade por violação do disposto no arte 62º/1 da C.R.P., para efeitos de um eventual recurso para o Tribunal Constitucional, nos termos dos artº 70º/1, b) e 72º/2 da Lei do Tribunal Constitucional.
17. A decisão recorrida violou, pelos motivos constantes das Conclusões que antecedem, o disposto nos artigos 342º/1 e 392º/2, ambos do cód. Procº civil, no artº 158º do cód. civil, no art° 5º do Código das Sociedades Comerciais e no artº 62º/1 da C.R.P.
18. Pelo exposto, deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se a sentença impugnada e substituindo-se a mesma por decisão judicial que, com base no direito de propriedade da Recorrente sobre o imóvel identificado na Conclusão 12, e na circunstância de a mesma não ser visada no inquérito criminal de que depende o arresto desse imóvel, julgue procedentes os embargos de terceiro nestes autos deduzidos e, em consequência, ordene o levantamento do arresto preventivo sobre o prédio urbano sito na Rua … nº…, no concelho e freguesia de C…, descrito na 1ª Conservatória do Registo Predial de … sob o nº … da freguesia de C…, e inscrito na correspondente matriz predial sob o artigo … da freguesia de C… e E…, e restitua a posse do mesmo à Recorrente».
O Ministério Público em 1ª instância respondeu ao recorrente, nos termos de fls. 375 a 408, tendo concluído nos seguintes termos:
«1. Apesar do caráter simbólico da declaração de perda da própria vantagem, em espécie, a verdade é que a sua concretização nem sempre é possível. Tal não impede, todavia, a sua quantificação e a ablação do respetivo valor no património lícito do visado, já que a relevância penal da vantagem não decorre da possibilidade ou da impossibilidade de a apreender mas de ter, ou não, caráter patrimonial.
2. A mesma solução deverá ser aplicada àqueles casos em que a vantagem inicial tenha sido transferida para um terceiro de boa fé, circunstância em que, em vez da própria coisa, deverá ser declarado perdido o seu valor.
3. A substituição da perda da vantagem em espécie pela perda do seu valor é hoje uma realidade nos fora internacionais, incluindo a União Europeia, cujas diretrizes Portugal se comprometeu a observar.
4. O art. 111º, nº 4, do cód. penal, admite a possibilidade de, não sendo possível a perda da vantagem em espécie, a perda ser substituída pelo pagamento ao Estado do respectivo valor.
5. A abrangência do confisco de vantagens do crime e a possibilidade indiscutível de arresto do valor correspondente às vantagens do crime permitem a conclusão de que o bem arrestado tem, ainda, ali cabimento, atendendo a que poderá vir a ser chamado a responder ao confisco do valor das vantagens auferidas pelo crime.
6. O confisco das vantagens do crime assenta sobre premissas densificadas na própria legitimação do ius imperii do Estado, materializado entre outros no seu ius puniendi enquanto concretização de um interesse público que antes de mais reivindica
a manutenção de um espaço de liberdade e segurança (assim o impõe o art. 1º, da Constituição da República Portuguesa, e que assume como tarefa primordial o empenho na construção de uma sociedade livre, justa e solidária).
7. A concretização das finalidades subjacentes ao confisco das vantagens do crime poderá erigir-se segundo uma lógia de confluência de dois vectores primaciais:
uma marcada finalidade preventiva (no sentido demonstrar que o crime não gera benefícios) e
outra finalidade de natureza restaurativa (no sentido de reafirmar o equilíbrio de uma economia e de um sistema financeiro não viciados por riscos de concorrência desleal no mercado).
8. A área de aplicação do arresto previsto no art. 228º, do Código de Processo Penal é, assim, muito vasto e mais ambicioso, não sendo o escopo do mesmo redutível àquele que subjaz à tutela de meras obrigações civis, estando em causa garantir (logo de forma cautelar) que o crime não compensa.
9. As iniciativas legislativas comunitárias em matéria de confisco das vantagens (assim como as iniciativas convencionais internacionais) acompanham esta matriz, quer da existência daquela dupla finalidade, quer de reconhecimento inequívoco da preponderância das finalidades de estrutural interesse público almejadas por este instituto do confisco sobre outros interesses privatísticos nomeadamente o direito de propriedade.
10. O ordenamento jurídico-penal estabeleceu um conjunto particular de regras aplicáveis ao confisco de vantagens do crime, e, bem assim, às providências que cautelarmente possam ser determinadas para garantir antecipadamente a sua concretização, cuja consagração aniquila, desde logo, qualquer possibilidade de convocar a aplicação analógica de outro ramo do direito, não sendo, por isso, admissível que se formule um mero exercício de importação acrítica das regras adjetivas do ordenamento juscivilista, independentemente da remissão operada pelo art. 228º, do Código de Processo Penal.
11. O ordenamento jurídico nacional impõe o confisco de bens que estejam na disponibilidade/titularidade de terceiros, sendo esta imposição legal apenas refreada pela salvaguarda dos direitos dos terceiros que não se encontrem em qualquer das condições elencadas no art. 110°, nº 2, do Código Penal; para os demais, a contrario senso, continuam a valer integralmente as regras relativas ao maior confisco admissível num Estado de Direito.
12. A transferência das vantagens em espécie ou mesmo a transferência da totalidade do património para entidades terceiras são manobras que, ditam as regras da experiência, visam estabelecer uma distância segura entre o bem ou o património e o seu real proprietário (aquele que deténs materialmente o seu controlo e que goza e frui diretamente da sua disponibilidade), por forma a que, sendo esse o caso, este possa, com alguma segurança, alegar não ter com aqueles qualquer vínculo jurídico, apesar de manter intactos todos os seus poderes sobre os mesmos.
13. Nestes casos, o confisco ainda é admissivel, já que, em rigor não se está sequer perante reais terceiros, mas perante alguém que se identifica ou se arroga corno tal.
14. O estado de boa fé para efeitos de confisco e de arresto preventivo tem os seus critérios bem definidos, não lhe sendo aplicável o correspondente conceito civilístico: jamais poderão considerar-se de boa fé os terceiros que tiverem concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem retirado vantagens ; ou ainda quando os objectos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a sua proveniência (cf artº,110º, nº 2 doCódigo Penal).
15. A recorrente, ainda que pudesse considerar-se, neste âmbito, um terceiro, não reúne em si as características que permitem considerá-la de boa fé, atendendo desde logo às circunstâncias económico financeiras em que o imóvel em causa se mantém no seu património.
16. A qualidade de terceiro e o estado de boa fé não se presumem, sendo ónus do interessado a sua alegação e prova, sendo que a recorrente nada revelou nos autos que permitisse demonstrar a sita qualidade de terceiro e de terceiro de boa fé, não sendo, por isso, possível encará-la como terceiro ou conto terceiro de boa fé, e, consequentemente, daí retirar qualquer consequência jurídica que coloque em crise o arresto preventivo decretado.
17. Ainda que se considere que o art. 392º, nº 2, do Código de Processo Civil,
exige a demonstração da provável procedência de uma impugnação pauliana deduzida contra o adquirente dos bens, tal circunstância não assume qualquer relevância no âmbito do decretamento do arresto preventivo.
18. O arresto preventivo é uma medida de garantia processual penal, pelo
que, pese embora a remissão para as regras do processo civil, a sua tramitação ocorrerá no âmbito do processo penal, sujeita aos princípios e à ortodoxia próprias deste ordenamento jurídico (de acordo, aliás, com o princípio da suficiência do processo penal, conforme o mesmo se mostra proclamado no art. 7º, nº 1, do Código de Processo Penal).
19. No âmbito do arresto preventivo mantém-se o critério de aplicar apenas e tão só as normas do processo civil que se harmonizem com o processo penal, nos termos do que dispõe o art. 4º, do Código de Processo Penal.
20. A legitimação do arresto preventivo no presente caso não assenta sobre a pré-existência de um crédito. Este conceito de crédito, marcadamente civilista, não se confunde com a imposição que cabe ao Estado de confiscar todas as vantagens do facto ilícito, ainda que ambos possam, a final, implicar urna transferência de valores para o requerente do arresto.
21. Exigir-se que se demonstre que foi impugnada a aquisição, o que em bom rigor não é sequer exigido pelo art. 392º nº 2, do Código de Processo Civil, representa uma regra que não se harmoniza com as regras do processo penal, considerando que, nos termos do art. 228º, do Código de Processo Penal, jamais se poderia considerar que o arresto foi requerido contra o adquirente de bens do devedor, seja porque o agente do crime não é devedor, seja porque os bens que integram as vantagens do crime não são, em qualquer circunstância, bens do devedor (do agente do crime), seja ainda porque o conceito de adquirente de bens do devedor não é aplicável no âmbito penal, sendo a sua regulação absorvida pelo tratamento do conceito de terceiros.
22. Os embargos de terceiro assumem-se como um meio de reação contra qualquer ato judicialmente ordenado de apreensão ou entrega de bens, que se fundamenta na ofensa da posse ou de qualquer direito de terceiro que é total ou
parcialmente incompatível com esses atos, visando impugnar a legalidade dos mesmos com fundamento nessa ofensa.
23. In casa, a recorrente lançou mão deste instituto por entender que o arresto preventivo decretado sobre o bem em causa ofendeu o seu direito de propriedade sobre o imóvel.
24. Os referidos embargos de terceiro foram recebidos, procedeu-se à realização das diligências processuais pertinentes e foi proferida decisão, através da qual o tribunal a quo julgou improcedentes os deduzidos embargos de terceiro, por considera,' indiciado, de forma processualmente relevante, que a recorrente embargante, milito embora formalmente um terceiro em relação a J..., se encontrou, de facto, sujeita à satisfação dos interesses patrimoniais deste (sendo, aliás, proprietária do imóvel que serve de habitação àquele), considerando ter-se verificado uma mera transferência formal elo direito de propriedade do imóvel em referência para a embargante, ora recorrente, com a mediatização da respetiva posse através da sociedade, porém, de facto, sempre mantida e exercida pelos seus anteriores proprietários, entre os quais, J....
25. Ora, o teor decisório da sentença proferida nos presentes autos é, por si só, reveladora da per feita operacionalidade da norma contida no art. 342º, nº 1, do Código de Processo Civil, porquanto não só os embargos foram, corno, entende-se, não poderiam deixar de ser, admitidos, como o tribunal sobre os mesmos se pronunciou em substância.
26. Diferente de coartar a aptidão normativa do art. 342º, nº 1, do Código de Processo Civil, nos termos em que o recorrente invoca, é a circunstância que se surpreende no caso em apreço: a não demonstração, de facto e de direito, das razões aduzidas pelo embargante para sustentar unia decisão de procedência do seu pedido.
27. No caso, inexiste razão para que os embargos de terceiro em questão tivessem outro desfecho, atendendo a que a recorrente não logrou colocar em crise, de forma processualmente relevante, os indícios de que mais não é do que unta extensão do âmbito patrimonial material de J..., formalmente autónoma do património nominalmente por aquele titulado.
28. Na discursividade argumentativa da decisão em causa não se vislumbra qualquer indício da interpretação da norma contida no art. 342º, nº 1, do Código de Processo Civil, que a recorrente alega ter sido adotada, por forma a ter sido coartado a sua operacionalidade normativa.
29. Esclareça--se que, no contexto axiológico da Constituição da República Portuguesa, o direito de propriedade não se apresenta como um direito absoluto, havendo que recorrer na análise densificadora do direito de propriedade privada, talqualmente acontece com os demais direitos e garantias fundamentais assegurados pela Lei Fundamental, à concordância prática entre este e os demais.
30. O direito à segurança é igualmente constitucionalmente garantido, sendo por esta via que o Estado concretiza o interesse público, igualmente com assento constitucional, de manutenção de um espaço de liberdade e segurança (cf. art. 10, da Constituição da República Portuguesa).
31. No feixe de compressão e alargamento da densidade de cada um dos direitos fundamentais garantidos pela Constituição, a aplicação de sanções reconduzíveis a restrições de direitos e liberdades fundamentais derivada da criminalização de uma ação ou omissão é constitucionalmente admissivel, quando tal ação ou omissão, legalmente tipificada como crime, lesar ou for suscetível de provocar lesão em direitos ou valores igualmente protegidos pela Constituição da República
32. A ablação das vantagens geradas pelo crime, ou do seu correspondente valor, traduz-se numa restrição de direitos e liberdades fundamentais que se inscreve no espectro da conformidade constitucional porquanto se apresenta como uma reação a uma conduta ofensiva de bem jurídico com dignidade penal.
33. Por tudo o exposto, entende-se que a norma invocada, assim como a decisão em questão, não padece do vício de inconstitucionalidade que lhe aponta a recorrente, pelo que não deve o presente recurso, nesta parte, merecer provimento.
Pelo exposto, o presente recurso não merece provimento, devendo a decisão recorrida ser mantida, nos seus precisos termos, fazendo-se, deste modo, a costumada justiça».
Neste Tribunal, o Ex.mo Procurador-Geral Adjunto não emitiu qualquer parecer, limitando-se à aposição do respectivo visto nos termos do arte 416 nº 1 do cód. proc° penal e a mera referência de anuir à posição do Ministério Público em 1='instância na resposta ao recurso interposto - (fls. 418).
O recurso foi tempestivo, legítimo e correctamente admitido. Colhidos os vistos, cumpre decidir.
FUNDAMENTOS
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões, extraídas pelo recorrente, da respectiva motivação, que, no caso sub judice, se circunscreve à apreciação dos pressupostos que permitem ou não a procedência dos embargos de terceiro relativamente ao imóvel arrestado e devidamente identificado.
FACTOS QUE FUNDAMENTARAM O ARRESTO
1. O G..., à data dos factos que infra serão descritos, era um grupo económico português, de base familiar e que exercia a sua actividade em diversos países, entre eles, Portugal, o Luxemburgo e a Suíça.
Mostrava-se estruturado num conjunto de holdings em relação de domínio e num conjunto de sociedades operacionais, entre as quais se contam, na área financeira, a E... S.A., o B... S.A., o B..., a E… S.A., o E…, e o B… SA e, na área não financeira, a EB..., S.A. (…), a E... Ltd (…), a E…, S.A. (…), a R..., S.A. (…) e a E... (…).
A E..., sedeada no Luxemburgo, até 2014 era a holding da área financeira do G…, possuindo interesses financeiros nos sectores da banca e dos seguros, na qual se incluíam, para além do mais, o B…, com sede em Portugal, o B..., com sede na Suíça, a E..., com sede no Luxemburgo, e o E..., com sede no Panamá.
A E… era uma sociedade com sede no Luxemburgo, e tratava-se da holding que agregava as posições accionistas da família E… e, pelo menos até Fevereiro de 2014, detinha uma participação na E… que oscilou entre os 53/prct. e os 57/prct..
A E… era uma sociedade comercial de responsabilidade limitada (societé anos nie), cuja constituição e actividade estava sujeita à legislação luxemburguesa que regula as sociedades de detenção de participações financeiras. Era a holding que agrupava as restantes sociedades da área financeira e não financeira do grupo, tendo como principais activos a E... (na qual detinha uma participação, directa e indirecta, que variou entre os 43/prct. e os 49/prct.), a ESR e a R..., detidas a 100/prct. por aquela.
A E…, desde a sua constituição e até 2009, ocupou a posição de holding de topo do ramo não financeiro do G….
Ao longo do tempo, e a partir de Setembro de 2009, o número e valor dos activos sob G...tão da E… foi-se reduzindo, por transferência para a R..., sociedade anónima luxemburguesa constituída em 2007. A constituição da R... foi um dos primeiros passos da reestruturação do ramo não financeiro do G..., vindo esta sociedade a concentrar as participações e activos publicamente mais reconhecíveis do ramo não financeiro do grupo, tais como a ES Saúde (principal accionista do Hospital da Luz), a E… Hotéis (que reunia as participações do grupo na T…), a E… (sub-holding que controlava as participações do G… na T…), a H… e, até ao início de 2013, a O…, S.A.
O B… era uma instituição de crédito portuguesa.
Detinha uma participação correspondente a 89,99/prct. do capital social da E… - E…, S.G.P.S., S.A. (…), que, por sua vez, detinha uma participação correspondente a 100/prct. do capital social da E… – E…, S.A. (doravante, E...), esta uma sociedade Gestora de fundos de investimento mobiliário.
A E... constituía, assim, uma holding, de subsidiárias detentoras de investimentos significativos e com ligações tanto ao ramo financeiro, como ao ramo não financeiro do G....
Esta sociedade não apresentou contas consolidadas, como lhe era imposto pelas normas de direito luxemburguês, contas essas preparadas na Suíça pela ESS. Além do mais, era urna sociedade gerida por uma estrutura administrativa incipiente.
No enquadramento temporal que infra se descreve, R… (doravante, R...), J... (J..., em diante) e A… (A..., de ora em diante), para além dos demais, eram membros da Comissão Executiva do B... (composta pelos administradores executivos que têm assento no Conselho de Administração) e membros do conselho de
administração da ESAF.
No mesmo período, R... e J... eram membros da administração da E..., assim como eram, simultaneamente, membros do conselho de administração da E....
J... era, também, presidente do conselho de administração do B…, fazendo, igualmente, parte da direcção do B...V. Além disso, exercia, juntamente com os demais, funções dirigentes na E…, na E… e na E….
Sem prejuízo do que ainda se vier a apurar em sede de investigação relativamente a outros administradores, dirigentes e outros colaboradores do grupo, indicia-se para já que, no período em causa nos autos, ou seja entre os anos de 2008 e 2014, R... centrou em si a Gestão efectiva de todo o G... (área financeira e não financeira do grupo), através do
exercício de, entre outros, dos cargos de administrador executivo da E..., de presidente da comissão executiva do B... e de presidente do conselho de administração da E....
No exercício dessas funções, dispôs dos poderes necessários no grupo para decidir e fazer implementar todas as suas decisões, contando, para esse efeito e concretamente, no que se refere aos factos em investigação, com a colaboração, entre outras pessoas, de A…, de J… e de I… (doravante I...), tendo a intervenção de todos sido decisiva na prática dos factos que infra serão descritos e na consequente obtenção dos resultados criminosos visados.
Entre 2005 e 2014, A... exercia o cargo de administrador financeiro do B..., na Comissão Executiva do banco.
I..., no período em causa nos autos, e desde 2004, foi directora coordenadora do Departamento Financeiro e de Mercados do B... (doravante DFME), que reportava a A....
O DFME era o departamento do B... responsável pela gestão do financiamento do banco (incluindo a originação da emissão de dívida própria, uma das suas atribuições) assim como pela área dos mercados financeiros, definindo e gerindo a actuação do banco no mercado, seja na perspectiva da desintermediação financeira, seja na perspectiva de gestão de riscos, seja ainda na perspectiva da gestão de carteiras de investimento próprias ou seja enquanto agente de estruturação de produtos financeiros.
A desintermediação financeira corresponde à estruturação e oferta comercial de produtos de investimento a clientes, não garantida pelo balanço do banco.
2. Os elementos reunidos nos autos permitem afirmar que a actividade económica e financeira do G..., desde pelo menos 2001 ou 2002, encontrou-se suportada, fundamentalmente, em financiamentos obtidos através da emissão de dívida.
Para tal resultado, por determinação expressa dos órgãos de governo do G..., designadamente, de R... e de J..., entre outros, foi utilizada a rede comercial da área financeira do grupo, designadamente, o B... e o BPES, onde, por determinação dos órgãos do governo das instituições de crédito foi colocada massivamente e preferencialmente dívida G....
Revelam ainda os autos que, desde aquela data, o G..., no desenvolvimento dessa actividade, contou com a activa e estreita colaboração de um grupo societário suíço, a E… SA (E…), constituído por múltiplas sociedades que se dedicam à intermediação financeira e à prestação de serviços de consultoria financeira e de investimento.
Existem elementos que permitem suspeitar que os negócios da EUROFIN estiveram associados a toda a actividade que se pretendeu fora do balanço das entidades do G..., e fundamentalmente, do das entidades do ramo financeiro, de modo a impedir a detecção pelos mecanismos de supervisão e controlo da actividade bancária.
Esta afirmação é suportada não só na origem da EUROFIN, com elementos que pertenceram a uma entidade designada de g…, empresa do G... que lhe antecedeu em tais tarefas (cf., designadamente, o depoimento de F...), bem como na evidência já recolhida de que foi usada deliberadamente nos actos que se descrevem adiante.
Na verdade, existem indícios de que, desde pelo menos a data da sua fundação, a EUROFIN prestou serviços ao G..., ao que tudo indica, através de sociedades-veículo por si detidas e criadas de acordo com interesses ditados pelos elementos do governo do G..., designadamente, R....
Destaca-se a actuação da EUROFIN como contraparte em investimento em títulos de divida emitidos pela E..., assim como entidade emissora, por via de sociedades veículo por si nominalmente detidas, de títulos de dívida que, através das instituições financeiras do G... foram colocados em investimentos de clientes.
Revelam, além disso, os autos que a EUROFIN assumiu, no interesse do G..., a titularidade de determinados investimentos e participações sociais, surgindo ora como entidade financiadora da actividade do grupo, ora como sociedade financiada, através da colocação de dívida emitida pelas suas sociedades-veículo escoada para o ramo financeiro do G..., sem qualquer espécie de controlo de qualidade ou avaliação de rating.
Suspeita-se que a interacção entre o G... e a EUROFIN terá sido assegurada através do DFME, sob instruções conjuntas de R..., A... e I....
Com efeito, terá sido no DFME que foi assegurada a alocação de activos para os produtos de investimento apresentados aos clientes na G...tão de carteiras sob seu domínio, na G...tão de entidades sob o seu domínio e nas propostas que suportaram as decisões tomadas pelos órgãos competentes na colocação de dívida em clientes.
Existe suporte nos autos que admite a afirmação de que a EUROFIN não se comportou como um vulgar broker ou intermediária das operações de mercado de venda de activos realizada pelo B..., antes tendo sido a actividade e liquidez necessárias a tal papel monitorizados através da documentação periodicamente remetida ao DFME, por via informática, para controlo e validação superior, designadamente, por I...,
A... e R... (cf. o que resulta dos depoimentos de N… e P…).
3. Desde finais de 2008, a E... passou a acumular prejuízos, tendo-se verificado uma acentuada degradação da sua situação financeira entre esse ano e finais do ano de 2012 (cf. o que resulta do depoimento de F...).
Existem indícios de que, desde aquela data, os investimentos e custos operacionais da área não financeira do G... foram suportados, para além dos demais e do já descrito, pela constante emissão de títulos de dívida (notes e papel comercial), entre outros, pela E..., posteriormente pela R... e por suas subsidiárias (como a E… S.A., actual designação da sociedade E… – E…, SGPS, S.A.), e consequente colocação da mesma junto de clientes das instituições financeiras da E... (pelo menos, do B... e suas sucursais e do B...).
Os indícios reunidos apontam para que tais propósitos tenham sido conseguidos, desde 2008, com condutas desenvolvidas em Portugal e na Suíça (na ESS) conducentes à dissimulação do real estado das contas da E... e das sociedades por esta dominadas directa ou indirectamente, a fim de iludir aforradores e investidores (clientes institucionais e de retalho das instituições financeiras da E...), junto de quem continuaram a ser colocados, até Fevereiro de 2014, títulos de dívida emitidos pela E... e pelas suas subsidiárias.
Tais condutas incluíram, ao que indicam os elementos recolhidos nos autos, a reavaliação fictícia (desvalorização) do montante de dívida no final de cada ano (tendo este sido manualmente subavaliado, inclusive, por via de falsificação de contratos de venda de sociedades com grande expressão no passivo), a realização de lançamentos contabilísticos pelos quais era creditada a conta de resultados por contrapartida da conta de passivo, e valorizações artificiais de activos.
Indiciam os autos que o sucesso desta actividade contou com o conhecimento e colaboração conjugada, na concepção e concretização de acções necessárias à obtenção do resultado intencionalmente pretendido: constante financiamento do G... à custa da instrumentalização da vontade dos clientes do ramo financeiro e independentemente do real estado das contas das emitentes de dívida.
Indiciam os autos que esta actividade foi prosseguida com base em instruções de R..., com o conhecimento de J…, de A... e de I... que, conjunta e coordenadamente, aderiram a esse propósito e implementaram as concretas acções cujo desenvolvimento se mostrou necessário a fim de se obterem os resultados visados.
Para tanto, a título de pressuposto necessário, ocorreu manipulação de contas da E..., repercutida nas demonstrações contabilísticas anuais e nos registos informáticos da contabilidade dessa emitente que, desde 2008, não espelhavam a verdade.
O montante do passivo ocultado nas demonstrações financeiras da E..., resultante da actividade descrita, passou do valor de €180 milhões de euros, em 2008, para o valor de cerca de €1.377 milhões de euros em 2012 (relativo a divida emitida), sendo que essas operações de dissimulação de passivo, no final de 2013, implicaram a reexpressão do passivo real da E... para o valor de cerca de €4.700 mil euros (cf. relatórios KPMG juntos com a participação feita pelo Banco de Portugal, e informação a ela anexa, tudo impresso no Apenso K, e o que resulta dos
depoimentos de F... e de P...).
4. Tendo por base os relatórios e contas da E... elaborados nos termos já explanados, no período compreendido entre, pelo menos, os inícios de 2008 e os finais de 2013, o B... e a E..., esta última através de dois fundos que geria, comercializaram, directa e indirectamente, um valor muito significativo de títulos de dívida da sociedade E... e suas subsidiárias.
A comercialização destes títulos pela E... foi efectuada através da colocação junto dos seus clientes de unidades de participação de dois fundos especiais de investimento que se encontravam sob a sua gestão - o E… e o E… (este criado em 2011) - de cujas carteiras de investimentos constavam títulos de divida da E....
Em 30-06-2013, a E… havia colocado nos seus clientes, através da comercialização das referidas unidades de participação, cerca de €1.038 milhões de euros (cf. documento que constitui o WB5).
Por seu turno, e simultaneamente, de acordo com o que indicam os elementos constantes dos autos, e no que ao B... diz respeito, foi colocada dívida da E... e suas subsidiárias, de diversas tipologias (obrigações e papel comercial), nos seus clientes através, essencialmente, de três modos: colocação de notes em clientes institucionais, colocação directa de papel comercial - através da emissão de european comercial paper - ECP - e de domestic comercial paper - DCP (cf. relatório anexo à participação efetuada pelo banco de Portugal, junta ao Apenso K) e colocação indirecta através da comercialização de acções preferenciais (estruturadas em produtos financeiros designados por séries comerciais ou por operações sobre títulos - OST) de três special purpose vehicules - SPV - detidos na sua totalidade por clientes, formalmente custodiados no Crédit Suisse, mas materialmente geridos pelo B....
Aos clientes, de acordo com os elementos reunidos nos autos, não foi fornecida qualquer informação acerca da natureza do activo subjacente ao produto em que investiam e não lhes foi comunicado a real situação financeira da E... e das suas subsidiárias, e da qual estavam bem cientes os responsáveis do E..., do B... e das sociedades emitentes acima identificados.
Em todo o caso, o risco dos produtos comercializados terá corrido por conta dos clientes como veio a demonstrar o colapso do B....
O processo de colocação desta dívida passava, no caso de notes, por um contacto directo entre a administração da E... ou da sua subsidiária emitente e os clientes em causa, surgindo R... e J… como os principais ou únicos interlocutores com os elementos decisores das instituições clientes.
A colocação de papel comercial processou-se, em síntese, através da estruturação de produtos financeiros no DFME do B..., sob instruções de A... e I..., e fundou-se em notas informativas que serviam de base à proposta de comercialização do produto na rede comercial do B..., preparadas conjuntamente pela sociedade emitente e o promotor da emissão em causa (cf. relatório produzido pelo Banco de Portugal, anexo à participação, e que se encontra impresso no Apenso K), sem qualquer análise de risco (cf. o que resulta dos depoimentos de Nuno Escudeiro e de Pedro Pinto).
Já em 2013, com a entrada em vigor, em 07-09-2013, do Decreto-Lei n 63-A/2013, de 10-05, que aprovou o Novo Regime Jurídico dos Organismos de Investimento Colectivo, os fundos especiais de investimento geridos pela E... foram obrigados a reduzir o investimento em títulos de dívida emitidos pela E..., de modo a respeitar o novo limite de 20/prct. do valor líquido global máximo de exposição a activos emitidos ou garantidos por entidades em relação de domínio ou de grupo.
Face a esta contingência, e por determinação directa de R..., o B... desviou os investimentos dos títulos de dívida da E... que faziam parte da carteira dos dois fundos de investimento da E... para clientes B.... O valor colocado em clientes da E... viu-se, assim, reduzido para o montante de € 582 milhões de euros, à data de 30-09-2013 (cf. realidade descrita no relatório do DAI nº 92.00/2014 junto ao apenso T, fls. 69 ss).
5. Indiciam, também, os autos que a EUROFIN prestou serviços ao G..., essencialmente, ao que tudo indica, através de sociedades-veículo por ela
detidas (como será, entre outros, o caso da Z... e da M... - cf. o que resulta dos depoimento de N... e de P...), actuando como contraparte de alguns dos investidores que haviam adquirido títulos de dívida emitidos pela E..., remunerando-os pelos investimentos realizados, nos moldes acordados com a área comercial, e independentemente das condições efectivas de mercado para a transacção de activos subjacentes às aplicações dos clientes (dívida G..., directa ou indirectamente).
Esta actividade terá gerado a acumulação de deficit nas contas das entidades nominalmente geridas pela EUROFIN, suspeitando-se que tais deficits tenham sido suportados com fluxos financeiros procedentes do G..., designadamente, por via da colocação também de dívida junto de clientes da área financeira do G... (cf., entre outros o relatório KPMG junto ao apenso K, em relação a rubrica ativos Eurofin, o que resulta do depoimento de F...).
Acresce que se suspeita também que outras entidades nominalmente detidas pela EUROFIN foram dominadas, ou assumiram, no interesse do G..., a titularidade de determinados investimentos e participações sociais e o financiamento de operações de entidades com ligações ao grupo, incluindo o pagamento de comissões (cujos custos, ao que tudo indica, foram repercutidos e pagos por clientes da E... através da colocação de títulos de
dívida) - cf. documento 527, do apenso de busca 38, retratada no auto de fls. 1140 a 1213.
A esta realidade dirá respeito, também, o uso de urna conta bancária domiciliada no 13YES, titulada pela entidade E…, alimentada por entidade com a designação E..., por seu turno financiada por fluxos procedentes do G... com origem em dívida colocada nos clientes (cf. o que resulta do depoimento de P…, documento 527 já referenciado e pressupostos de cooperação judiciária suscitada junto das autoridades suíças).
Neste contexto, teve intervenção decisiva um conjunto de pessoas administradores e quadros do B... e da EUROFIN, entre os quais A... e I..., cabendo a última palavra sobre a matéria a R....
Suspeita-se que a referida conta titulada pela E… terá sido usada para as mais diversas finalidades, incluindo remunerações pelos actos ilícitos conseguidos de colaboradores do B... para que todos os propósitos fraudulentos em torno da colocação de dívida G... em clientes do banco fossem conseguidos (terá sido o caso de I... - cf. as declarações por si prestadas nos autos - e também o caso de A… de acordo com os argumentos que se avançam infra).
6. Para além dos modos de financiamento descritos, indiciam os autos a adopção de outra prática, pelo G..., para obtenção de meios financeiros para a sua actividade, através da instrumentalização do B....
Tal prática passou pela colocação em clientes da E... do produto financeiro acima referido, designado por séries comerciais e operações sobre títulos (OST) em acções preferenciais emitidas pelos SPV dominados pelo B..., ainda que nominalmente enquadrados no Credit Suisse (Poupança Pias, Euroaforro e Top Renda) - cf. o que resulta dos depoimentos de N... e P....
A G...tão de activos de tais veículos foi feita pelo DFME e nos quais foi predominantemente colocada dívida emitida pelo G....
Desde 01-01-2011 até finais de Abril de 2014, o B... colocou cerca de € 10.000 milhões de euros destes produtos junto dos seus clientes.
A adopção de tal conduta, aprovada por R... e concretizada através do DFME, sob instruções de A... e I..., determinou, uma vez mais, que os clientes do B... investissem em produtos financeiros que tinham, em grande parte, como subjacente, em última análise, títulos de dívida emitidos pelo G..., acumulando os montantes de dívida G... que, pela falsificação de contas, foi omitida a todos os que nela investiram.
7. Indiciam também os autos que, sob o pretexto de amortização periódica dos financiamentos da EUROFIN perante o G..., e deste perante os clientes da E... (detentores de títulos de dívida emitidos pela ES! e suas subsidiárias), a partir de 2009 e, em especial, em 2014, foi promovido, no B..., um conjunto de emissões de obrigações próprias, com cupão ou de cupão zero (em 2014), tendo em vista a geração de mais-valias que viriam a ser canalizadas para sociedades-veículo da EUROFIN. Estas, por sua vez, com tal valor, também procederam à amortização de dívida G... emitida e colocada junto de clientes da E..., especificamente, aquela colocada nos já mencionados SPV do Credit Suisse, às quais os clientes se encontravam expostos por via da subscrição de séries comerciais em acções preferenciais ou de OST.
O esquema concretizado, de acordo com os elementos reunidos nos autos, passou pela aquisição das obrigações, em mercado primário, até 2014, por parte da carteira de clientes geridas pela B... Vida, entidade do ramo de seguros do G... e, em 2014, por parte de um fundo pertencente a clientes da E..., o F..., gerido pela E..., e a sua recompra, mais tarde, por clientes da E..., com a intermediação de sociedades-veículo da EUROFIN.
Esta actividade foi desenvolvida com base em instruções, para além dos demais, de A... e de I..., aprovadas por R..., envolvendo a prévia definição dos termos da colocação das obrigações no mercado e das suas características (yield, valor global), assim como o cálculo prévio das condições (yield, preço e prazo de maturidade) com que os títulos haveriam de ser comercializados junto das sociedades-veículo da EUROFIN e colocados, a final, novamente, junto dos clientes tendo em vista a obtenção das mais-valias necessárias para os fins que eram pretendidos (cf. participação realizada pela CMVM e o que resulta dos depoimentos de N... e de P...).
Indiciam os autos que, de 2009 a 2013, os fundos obtidos através desta actividade serviram para amortizar dívida emitida por entidades do G... e da EUROFIN, que foi, desta forma substituída por dívida própria do B....
Em síntese, o balanço do B... eliminou dívida do balanço de um conjunto de entidades que funcionaram no interesse do G..., concretamente para satisfação de interesses de, entre outros, R... e J..., passivo que as entidades em causa nunca liquidaram.
Durante o ano de 2014, de acordo com os elementos já reunidos nos autos, este esquema permitiu a geração de uma mais-valia de cerca de €880 milhões de euros (fruto da diferença entre o preço de compra das obrigações, pelas sociedades-veículo EUROFIN - cerca de €468 milhões de euros - e o preço a que estas as venderam aos clientes da G...tão discricionária de carteiras do 5E5 - cerca de €1.268 milhões de euros), valor que, ao que tudo indica, foi obtido com engano de clientes e do B... (cf. participação feita nos autos pela CMVM), e empregue em benefício do G... na amortização de dívida G... colocada nos SPV do Credit Suisse.
Na definição de todo este procedimento, incluindo o destino a dar às mais-valias geradas, teve intervenção decisiva um conjunto de pessoas quadros do B... (incluindo as acima referenciadas), da E..., da EUROFIN e do C….
A partir da segunda semana de Julho de 2014, por razões ainda não concretamente descortinadas, o B... procedeu à recompra de uma parcela significativa destas obrigações a preços de aquisição significativamente superiores aos valores de mercado, o que originou perdas no valor total de C256 milhões de euros (cf. relatórios da KPMG de Julho de 2014 e da PriceWaterhode Agosto de 2014 juntos aos autos com a participação do Banco de Portugal).
8. Os factos descritos são, perfunctoriamente, passíveis de configurar a comissão dos seguintes crimes:
o falsificação de documento, p. e p. pelo disposto no art. 256``-', do Código Penal;
o falsidade informática, p. e p. pelo disposto no art. 3`-', da Lei do Cibercrime (Lei 109/2009, de 15-09);
o burla qualificada, p. e p. pelo disposto nos art.s 217º e 218º, com referência ao disposto no art. 282º, al. b), do Código Penal;
o infidelidade, p. e p. pelo disposto no art. 224º, do Código Penal;
o abuso de confiança, p. e p. pelo disposto no art. 205º com
referência ao disposto no art. 202º, al. b), do Código Penal.
o corrupção no sector privado p. e p. nos termos do disposto no arte
8º nº 1, da Lei 20/2008, de 21-04, com referência ao disposto nas alíneas d) e e), do art. 2º, do mesmo diploma.
9. O conjunto da actividade descrita foi causa necessária à acumulação de dívida do universo E... em clientes da rede de balcões do B.... A par de outros períodos temporais, a moldes que admitem responsabilidade criminal no acima identificado enquadramento, entre Setembro e Dezembro de 2013, essa dívida ascendia a cerca de €1.700 milhões de euros (cf. documentação junta ao apenso T, designadamente, fls. 80, e fls. 142, do doc. 18, do apenso 39-A).
Tal valor, em Maio de 2014, por força da amortização de dívida G..., também através da colocação de dívida própria do B... geradora de uma mais-valia de €800 milhões de euros (cf. participação feita pela CMVM nestes autos),
foi reduzido para cerca de €200 milhões de euros, valor pelo qual os clientes B... permanecem prejudicados (cf. documento de fls. 80 do Apenso T a estes autos).
Na sua globalidade (incluindo clientes de retalho e segmento private), as descritas condutas determinaram um prejuízo no valor de, pelo menos, cerca de €1.000 milhões de euros, neles se incluindo os repercutidos no balanço do B... por conta das operações com obrigações de cupão zero (€800 milhões de euros de mais-valias com as operações EUROFIN com obrigações de cupão zero B... de 2014 em operações com contornos fraudulentos) e €200 milhões de euros do valor da dívida E... nos clientes do B... a Maio de 2014 (desconhecedores da real situação desta entidade, por via da falsificação das suas contas).
Aos montantes a contabilizar para efeitos de responsabilidade criminal, e tendo em vista os efeitos pretendidos com o presente requerimento, acrescerá o valor de 0256 milhões de euros com a recompra de dívida própria
pelo B... (relatório KPMG e PriceWaterhouse, de Julho e Agosto de 2014, juntos com a participação efectuada pelo Banco de Portugal - cf. apenso K), operações que se suspeita
terem sido concretizadas no intuito de impedir o conhecimento público de todos os factos em causa e dos demais que condicionaram o fim da instituição bancária, com privilégio de determinados clientes em detrimento de outros.
Parte desses fundos, gerados através da colocação de papel comercial, através dos mecanismos de financiamento estabelecidos entre o G... e a EUROFIN, e parte das mais-valias apropriadas pela EUROFIN, tiveram como destino fins ainda não totalmente esclarecidos, existindo suspeitas alicerçadas nos elementos que constam dos autos de que os mesmos foram canalizados, entre outros, para investimentos, aplicações e comissões realizadas no interesse do G..., dos membros da família Espírito Santo ou de indivíduos pessoal e negocialmente próximas desta, através de sociedades
(com actividade inexistente ou desconhecida no contexto do G...) directamente geridas, entre outros, por R... e J....
Serviram, além disso, e ao que neste momento se suspeita, para pagamento de remunerações/ prémios a administradores e dirigentes do B... e do G..., e demais desvios de dinheiro que serão evidenciáveis com a obtenção dos elementos bancários relativos à conta titulada pela E… no B…, já acima mencionada.
10. De acordo com os elementos reunidos nos autos, em 2009, a posição da E… como hoIding de topo dos investimentos não financeiros do G..., foi substituída pela sociedade R... (cf. o que resulta do depoimento de F...).
Terá sido propósito desta operação, como supra referido, dos lideres do G..., designadamente de R... e de J..., a obtenção de uma nova fonte de financiamento para a actividade do grupo com urna reestruturação empresarial e passagem dos activos relevantes das subsidiárias da ESR para urna nova entidade que colocaria consequentemente divida nova.
Foi o que sucedeu com a R..., para cuja esfera foram transferidos os activos pertencentes ao universo ESR, para valorização desta nova entidade (cf. o que resulta do depoimento de F...).
De acordo com elementos recolhidos nos autos, as operações que envolveram a valorização da R... foram conseguidas quer por contrapartida patrimonial no balanço das empresas do universo ESR (mantendo-se devedora a tais entidades), quer financeiramente suportadas através de quantias obtidas com a colocação de divida em clientes (cf. o que resulta do depoimento de F... a fls. 383 ss.).
Como era hábito nos G... estas operações não assentavam em avanço de capitais próprios por parte dos beneficiários efetivos da actividade das empresas que compunham o grupo, mas sim através da captação de aforro de clientes da E... (cf. o que resulta do depoimento de F...).
Aliás, neste contexto, a R... viria a emitir dívida a partir de Outubro de 2013, que foi colocada em clientes B..., a qual se cifrava, em Maio de 2014, no montante de €379 milhões (empresas, private e retalho, fora os valores colocados em clientes institucionais).
A R..., com sede no Luxemburgo passou a integrar, por via da referida operação ocorrida em 2009, investimentos em diferentes sectores de actividade não financeira, corno sejam a actividade imobiliária, o turismo, a agro-pecuária, a saúde, e energia e outras participações em empresas diversificadas e detinha uma participação indirecta de 49/prct. na E..., ativos que estavam na sua esfera com base em dívida contraída e que, note-se, deixaram de garantir a dívida emitida pela E... em prejuízo dos clientes dela tomadores.
Entre outros, são activos da R...:
• 100/prct. das participações sociais da E… SGPS S.A. (E…), que até Outubro de 2013 tinha a denominação social de E…, SGPS, S.A.
(cf. fls. 401, do apenso Q14);
• 56/prct. das participações sociais da H… - Actividades Agrosilvícolas e Turísticas, SA (…) - cf. 28, do apenso K;
• 100/prct. das participações sociais da E… SGPS, SA (E…) - cf. fls. 6 ss., do anexo 9, do apenso X.
A E…, por sua vez, detém, a 100/prct., um conjunto de sociedades operacionais entre as quais se contam:
• a C… - Empreendimentos Imobiiários, S.A. (…) - cf. fls. 37 e 38, do apenso Q14;
• a Cerca da A… S.A. (cf. fls. 37 e 38, do apenso Q14, e fls. 4, do vol. 2, do anexo 4, do apenso X);
n a M…, Sociedade Compra e Venda e Administração de Propriedades S.A. (cf. fls. 291, do vol. 2, do anexo 4, do apenso X);
• a E...M - Espírito Santo Imobiliário, S.A. (cf. fls. 37, 38 e 54, do apenso Q14 e fls. 193, do vol. 1, do anexo 4, do apenso X);
• a A… - Sociedade para o Desenvolvimento Turístico, SA (cf.
fls. 390, do apenso Q14);
• a G... – E…, S…, S.A. (...) - cf . fls. 37, 38 e 63, do apenso QI4.
Por sua vez, a CIMENTA detém o capital social das seguintes sociedades:
• L… - Empreendimentos Imobiliários. S.A (cf. fls. 37 e 38, do apenso Q14);
• Q… - Empreendimentos Imobiliários S.A, na proporção de
S7,80/prct. (cf. fls. 37 e 38, do apenso Q14, e fls. 66, do vol. 5, do anexo 4, do apenso X);
n A…, S.A. (…) cf. fls. 37, 38 e 65 a 71, do apenso Q14;
A sociedade H… é detentora da totalidade das participações sociais da sociedade S… - EMPREENDIMENTOS E TURISMO, SA (cf. fls. 28, do apenso K).
A sociedade E… é accionista única da sociedade Hotéis Tivoli, SA (HOTÉIS TIVOLI).
A sociedade H…, por seu turno, detém:
• a totalidade das participações sociais da Coimbra jardim Hotel - Sociedade de Gestão Hoteleira, SA (cf. fls. 8 e ss., do anexo 9, do apenso X);
n 99,9/prct. das participações sociais da M… - Sociedade de Promoção e Construção de Hotéis, SA (…) - cf. fls. 10 e ss., do anexo 9, do apenso X.
A sociedade M… é detentora da totalidade do capital
social da sociedade Hotelagos, SA (cf. fls. 13 e ss., do anexo 9, do apenso X).
A sociedade R... é, ainda, titular da totalidade das unidades de participação de dois fundos de investimento imobiliário (o F… - FUNDO DE INVESTIMENTO IMOBILIÁRIO FECHADO e o F… 11) geridos pela sociedade G... (cf. fls. 395 e 467, do apenso Q14).
11. A factualidade descrita permite o juizo indiciário de que os activos presentemente detidos pela R... (e, indirectamente, através das suas identificadas sociedades dependentes) resultam em parte, se não no seu todo, da utilização de quantias obtidas através das condutas ilícitas acima perfunctoriamente descritas, constituindo nessa medida a sua vantagem.
A par da perda de vantagem do crime sancionada em termos penais, de acordo com o disposto no art. 117º, a qual abrange os direitos a que faz referência o disposto nos nºs 3 e 4 desse preceito, do Código Penal, é correcta a afirmação de que tal possibilidade coexiste com a séria probabilidade de subsistirem créditos que assistem a clientes porventura ofendidos, bem como a investidores do antigo B....
Sucede que, desde, pelo menos, janeiro de 2014, se constata que ocorreu movimentação de activas detidos pela R....
Assim aconteceu, como é público, em Setembro de 2014, tendo a R... fechado um acordo com a sociedade suíça S…, SA para a venda da …, e, em Outubro de 2014, com a alienação da E…, SA à F… - COMPANHIA DE SEGUROS, SA.
Além disso, em janeiro de 2014 e junho de 2014, e conforme se mostra indiciado pelo teor e posição assumida a fls. 39, 41, 135 e 136, do apenso Q14, os responsáveis da R..., com conhecimento da situação em que se encontrava esta sociedade, decidiram a transferência de €6.750.000 euros e €6.825.000 euros para a ES PROPERTY, a pretexto de dívida, no valor total de €39.056.000,00 euros, alegadamente fundada na alienação da participação da então E… na O…, S.A. à sua accionista única, a sociedade R..., e que só parcialmente fora paga. Esta operação teve por base um contrato de compra e venda de acções datado de 31-12-2010, celebrado entre a E… e a R..., referente à aquisição de acções da O… pela segunda.
Sucede que em tal documento, se refere expressamente, na cláusula terceira que [o] preço da supra mencionada compra será liquidado até ao dia trinta de Abril de 2011 - cf. fls. 84, verso, do apenso Q14 - facto que permite supor que a transferência em causa foi convenientemente feita com o intuito de retirar liquidez à R... nas datas em causa.
Por seu turno, os responsáveis da E…, com os fundos obtidos por esta via, com origem na sociedade R... (assim como com os fundos obtidos através da emissão própria de papel comercial), efectuaram transferências tendo em vista o financiamento da aquisição de imóveis pela sociedade A…, entidade que, apesar de integralmente detida pela C…, que por sua vez é detida a 100/prct. pela primeira, não deixa de ter um património autónomo que, corno tal, não só não responderá pelo pagamento de responsabilidades financeiras das primeiras, como poderá ser livremente alvo de transferência para terceiros.
Acrescente-se que a E… tem vindo a desenvolver esforços no sentido de criar, ao que se suspeita de modo artificial, encargos na sua esfera patrimonial, tendo em vista a transferência de verbas para a disponibilidade de terceiros, eventualmente contando, nessa actividade, com a colaboração activa de sociedades com as quais mantém relações comerciais.
É o caso da alegada dívida que a E… alegou manter perante os proprietários do que designa por prédio da Avenida da Liberdade 71-79. Os documentos que fundamentam esta alegação, juntos a fls. 230 a 254, do apenso Q14, não fornecem justificação jurídica nem racionalidade económica aparente para a operação que se indicia ter sido deliberadamente criada com o propósito de descapitalizar a sociedade em causa.
Saliente-se, por fim, que existe notícia de que a E… se encontra em processo de venda (que alegadamente incluirá os fundos de investimento imobiliário acima referenciados, detidos, integralmente pela R... - cf. fls. 516 e ss., do apenso Q14).
A concretizar-se o mesmo, o património desta sociedade, bem como a liquidez que se suspeita ter tido origem na R... (sociedade que, por seu turno, foi alimentada em moldes que se suspeitam ilícitos, de acordo com o enquadramento que já foi feito), ficarão fora do alcance da acção da justiça penal que porventura venha a implicar a perda de vantagens de comportamentos de índole criminal, e concomitantemente com lesão dos credores que se encontrem financeiramente prejudicados pelos mesmos.
No que à E… e suas subsidiárias diz respeito, constata-se que, entre finais de 2014 e inícios de 2015, foi promovida e realizada a alienação de diversos imóveis onde se mostravam instaladas algumas unidades hoteleiras com a marca Hotel Tivoli (cf. fls. 219 e ss. do vol. 5 e vol. 6, do anexo 4, do apenso X). Esta circunstância denota, do ponto de vista da manutenção das garantias patrimoniais, urna franca probabilidade de os restantes imóveis onde se mostram instaladas outras unidades hoteleiras daquela marca poderem vir a ser igualmente alienados, tornando o património das respectivas sociedades mais fungível e, desse modo, mais facilmente transferível para a esfera de terceiros com idênticas consequências no plano da reacção penal e direitos de ofendidos.
Quanto à esfera patrimonial da H…, foi detectada, pelo menos, um movimento financeiro cuja justificação e racionalidade económica escasseia. Concretamente, detectou-se que aquela sociedade transferiu para L..., no dia 11-07-2014, a quantia de € 3.800.000,00 ouros, sem demonstração de contrapartida (cf. fls. 2503 a 2514, do apenso F1). Em Julho de 2014, a sociedade H… transferiu, a título que importa ainda dilucidar, a quota (aliás, maioritária) que detinha na sociedade P…, S.A (de quem era igualmente - e ainda é - sócio Leonid Ranchinskiy) para a sociedade R…, L.DA, de que é sócio majoritário o mencionado L… (cf. fls. 14, 170 a 174, 178 e 179, do vol. 7, do anexo 4, do apenso X).
Estes factos evidenciam duas operações no mesmo sentido, não podendo uma ser contrapartida da outra, uma vez que ambas beneficiam o mesmo universo jurídico. A assim ser, concretiza-se o juízo de que estarão a ser desenvolvidas operações que têm por escopo retirar património do alcance de possíveis consequências penais por factos indiciariamente criminosos.
Quanto a R..., o mesmo constitui-se no principal suspeito beneficiário de todos os factos supra descritos, e para efeitos do disposto no art`-' 1ns 2, 3 e 4, do Código Penal.
O património imobiliário que serve os seus interesses (designadamente, o imóvel que é a sua residência) encontra-se colocado na esfera patrimonial da S…, SA, cujos accionistas são actualmente M… (seu cônjuge), C…, J… e R… (seus filhos).
Desde Julho de 2013 R... foi-se desfazendo da posição acionista que detinha nesta sociedade (cf. fls. 38, do vol. 7, do apenso 38).
A 22-7-2013 essa posição era de 46,25/prct. do capital social da sociedade.
Em 02-06-2014, R... não tinha participações sociais nesta sociedade, pese embora mantivesse a posição de presidente do Conselho de administração até tal data, ao abrigo da nomeação que foi feita para o quadriénio 2012-2015.
Este facto evidencia a manutenção de pertinência da actividade da sociedade em causa aos seus interesses pessoais.
A sua posição nominal nos órgãos de governo da P… ocorreu no dia 02-06-2014, nas vésperas da tomada pública de posições que resultariam no seu afastamento dos órgãos de G...tão do B....
Desde esta data, M… passou a assumir a presidência do conselho de administração desta sociedade (fls. 15 ss., do Anexo 9 do Apenso x), o que evidencia que a mesma continua a servir interesses directos de R....
Quanto a esta sociedade mencione-se que, em 2005, adquiriu a R…, filho de R..., uma fracção autónoma de um prédio urbano sito em Santa Isabel, Lisboa.
Este bem ingressou na esfera jurídica de J…, igualmente filho de R..., a título de dação em cumprimento, no dia 27 de Agosto de 2013 (cf. fls. 479 e ss., do vol. 1, do anexo 2, do apenso x) por alegados suprimentos feitos à sociedade a que se vem fazendo referência.
Elementos nos autos permitem a afirmação contraditória de que os suprimentos em causa, a terem acontecido, foram feitos não por J…, mas por R... (cf. fls. 35 e ss., do vol. 7, do apenso 38), numa operação cujos contornos desafiam a respectiva compreensão em virtude de uma aparente desconexão de datas (cf. data aposta no doc. de fls. 35, no doc. de fls. 37 e a data de celebração da escritura de dação em cumprimento).
Quanto a J..., o mesmo constitui-se como suspeito beneficiário de todos os factos supra descritos, e para efeitos do disposto no arte 111, ns 2, 3 e 4, do Código Penal.
Mantém parte do seu património imobiliário (designadamente, o imóvel que é a sua residência) na esfera patrimonial da sociedade C... - ADMINISTRAÇÃO DE BENS MÓVEIS E IMÓVEIS, SA, de que são únicos accionistas J…, M…, C…, M… (seus filhos) - cf. fls. 142 e 143, do vol. 5, do anexo 4, do apenso X.
J..., juntamente com o seu cônjuge M…, ocuparam, desde a sua constituição, o conselho de administração da referida sociedade, tendo sido, no dia 25-03-2013, designados para o mesmo cargo para o quadriénio de 2013/2016. Renunciaram a tal cargo no dia 31-10-2014, meses após o afastamento de todos os membros da família Espírito Santo dos órgãos de governo do B..., e apresentação das principais empresas do G... a medidas de protecção de credores.
A 12-11-2014 foram designados M…, C…, M…, seus filhos, para ocuparem os cargos de G...tão da sociedade em causa (cf. fls. 183 a 190, do vol. 4, do anexo 2, do apenso X).
Estes factos evidenciam que a sociedade em causa se encontra sujeita à satisfação dos interesses patrimoniais de J…, sendo que a circunstância de as participações sociais se encontrarem em nome dos seus filhos se deve ao propósito de eximir o património a ela afecto a eventuais acções judiciárias.
Quanto a A..., de acordo com prova produzida no processo, terá tido intervenção determinante para a escolha, pelos órgãos do B..., do papel comercial E... nos investimentos propostos a clientes e sem validação da respectiva qualidade. Terá tido conhecimento dos resultados da auditoria efectuada pela KPMG às contas da E..., no final de 2013. Terá sido um dos decisores fundamentais na colocação de obrigações B... em 2014, com a geração de mais-valia que serviu para a eliminação de dívida G... nos SPV do Credit Suisse (cf. o que resulta dos depoimentos de Nuno Escudeiro, Pedro Pinto e das declarações de António Soares e relatórios da KPMG de janeiro e Abril de 2014, juntos com a participação do Banco de Portugal).
Existe a suspeita nos autos de que as assinaladas condutas têm por base um conjunto de favorecimentos de natureza patrimonial distribuídos por um circulo restrito de sujeitos com intervenção decisiva no sucesso das operações de financiamento fraudulentas do G..., designadamente, através de contas tituladas pela E…, como, ao que tudo indica, sucedeu com a entidade A… Ltd, sociedade que a justiça portuguesa conhece como tendo como beneficiário efectivo A..., e de acordo com informação solicitada ao NUIPC 207/11, conhecido como Operação Monte Branco.
Tal suspeita inscreve a situação patrimonial de A... no âmbito de incidência possível do disposto no art. 111`-', n s 2, 3 e 4, do Código Penal.
Entre os dias 31-12-2008 e 09-07-2009, A... procedeu à transmissão de um conjunto de imóveis sitos em Lisboa e em Alenquer ao fundo A… (cf. fls. 261 e ss., do vol. 2, do anexo 2, do apenso X), a par dos que manteve na sua propriedade.
Parte dos imóveis transmitidos ao referido fundo garantiram hipotecas constituídas em Novembro de 2006 e em Janeiro de 2008, em nome de A…, no montante global de €835.000 euro e €1.160.000 euros (cf. fls. 199 e ss., do vol. 2, do anexo 2, do apenso X).
À data da transferência dos bens para o referido fundo, foram tais hipotecas canceladas por pagamento.
Demonstram os autos que, pelo menos, parte dos imóveis transferidos para o fundo continuam a ser utilizados por A…, o que evidencia a sua disponibilidade material sobre tais bens (cf. auto de busca de fls. 925 e ss.) e demonstra a sua ligação a tal fundo e às fontes de financiamento usadas pelo mesmo na aquisição dos imóveis.
No que respeita a I..., dão-se por reproduzidas, na íntegra, as considerações feitas a propósito de A..., e no que diz respeito ao recebimento de prémios avultados (mais do triplo do seu vencimento anual no B..., como resulta das declarações que prestou nestes autos e com base nos documentos documentais que lhe foram apreendidos) através da conta titulada pela E….
Estas circunstâncias colocam o seu património no âmbito de incidência possível do disposto no art. 111º, nºs 2, 3 e 4, do Código Penal.
A propriedade sobre os imóveis por aquela detidos foi adquirido por L…, seu ex-cônjuge, na sequência de partilha efectuada subsequente ao divórcio declarado no dia 19-01-2015 (cf. fls. 3, 4, 26 e ss. e 236 e ss., do vol. 6, do anexo 2, do apenso X). Saliente-se, contudo, que pese embora a referida transferência de propriedade, a visada continua a apresentar como sua morada aquela correspondente a um dos imóveis cujo direito de propriedade foi, aquando do divórcio, adquirido pelo seu ex-cônjuge (especificamente, aquele sito na Rua Xavier Araújo, 11, núcleo 6, 7º A, em Lisboa - cf. auto de interrogatório de fls. 2320 e ss.).
Esta circunstância evidencia que com tal conduta, I... apenas visou subtrair da sua disponibilidade jurídica o direito de propriedade sobre os mesmos, ainda que mantenha a sua disponibilidade material, como aliás o evidenciam um conjunto de anotações pessoais relativas a outras tantas operações de transferência da propriedade sobre valores em benefício de familiares seus.
Acrescente-se que I... efectuou um conjunto de movimentos bancários, junto de contas de que é titular, consubstanciados em levantamentos em numerário (alguns subsequentes a operações de mobilização de investimentos financeiros) - cf. fls. 32, 2450 a 2500, do apenso FI - sendo certo que na sua posse foi encontrada a quantia de €57.000,00 ouros (cf. auto de busca de fls. 982 e ss., especificamente, fls. 987).
Quanto a todos os sujeitos e entidades referidas, conclui-se que o conjunto das transmissões enunciadas, as constatadas alterações da composição dos órgãos sociais de algumas das sociedades referenciadas e os movimentos bancários detectados e descritos, permitem sustentar a suspeita de que têm sido praticados actos com o único escopo de colocar fora do domínio jurídico directo, passível de intervenção judiciária, um conjunto de bens e valores material e directamente dominados por tais pessoas e entidades.
Todas as elencadas circunstâncias conduzem à incontornável conclusão de que existe um sério atentado à integridade patrimonial que porventura possa vir a ser chamada perante uma decisão de perda de vantagens da actividade criminosa, ao abrigo da já referida norma do Código Penal, atentado esse tão mais flagrante quanto mais tardia possa ser uma decisão qua acautele tal risco.
Constate-se que a situação de colapso do G... determinou, junto da jurisdição luxemburguesa, a declaração de insolvência das seguintes sociedades:
- R..., no dia 08-12-2014;
- E…, no dia 27-10-2014;
- E..., no dia 27-10-2014;
- E..., no dia 10-10-2014;
- E..., no dia 10-10-2014.
Não obstante, não se mostra evidenciada, no que concerne aos bens e valores que infra se discriminam, o registo de qualquer providência de salvaguarda do património destas sociedades, em particular, da E... ou da R..., assim como de qualquer incidência de tais acções sobre o património das suas subsidiárias, por exemplo, em Portugal.
Além disso, inexiste, para já, notícia de procedimento visando o reconhecimento, em Portugal, da decisão tomada pela jurisdição do Luxemburgo quanto a tais entidades.
Perante os factos acima realçados, concluiu o tribunal recorrido:
Corroboramos igualmente o entendimento de que se encontra, deste modo, indiciariamente demonstrada, por um lado, a conexão entre os factos descritos, as vantagens deles decorrentes e os bens e valores abaixo elencados, e, por outro lado, a forte probabilidade de existência de créditos a favor do Estado e, concomitantemente, de lesados. Mostra-se, igualmente evidenciado, de forma processualmente relevante, o fundado receio de que as sociedades e indivíduos referenciados possam vir a desenvolver outras condutas (a par das que já supra se deixaram evidenciadas) que redundarão na dissipação do seu património e na consequente perda da garantia patrimonial.
Estas circunstâncias exigem a tomada de medidas de natureza judicial e preventiva por forma a garantir a actualidade das posições patrimoniais e jurídicas identificadas sobre os referenciados patrimónios, por forma a acautelar a perda de vantagens da actividade criminosa, assim como as garantias de pagamento de eventuais penas pecuniárias e de outros créditos, designadamente, de lesados e do Estado.
Cumprindo tal propósito, o Ministério Público indica como valor estimado a garantir o montante de cerca de €1.835 milhões de euros (correspondentes a: €200 milhões de euros relativos a pape] comercial E..., €800 milhões de euros relativos a mais-valias com as operações com as obrigações B... de cupão zero, €256 milhões de ouros relativos à recompra pelo SES de dívida própria e €379 milhões de euros relativos a papel comercial da R..., em retalho).
Igualmente se verifica, como aduzido pelo titular da acção penal, a natureza urgente da medida a tomar, considerando as notícias que têm vindo a público relativas à possibilidade de alienação, em breve prazo, da HERDADE DA COMPORTA e da ES PROPERTY».
DO DIREITO
A recorrente, C... - Administração de Bens Móveis e Imóveis, SA alicerça os fundamentos do seu recurso na invocação do seu direito de propriedade sobre o bem imóvel apreendido - prédio urbano sito na V…, inscrito na matriz sob o artigo …, e descrito na 1 Conservatória do Registo Predial de C…, freguesia de C…, sob o nº …, (cf. fls. 145 e ss., do vol. 5, do anexo 4, do apenso X) e no pressuposto de se considerar terceiro atingido no seu direito de propriedade pelo arresto de tal bem imóvel.
Alegou que a decisão recorrida confundiu, na sua fundamentação, requisitos para decretamento do arresto com o funcionamento e os fins da oposição mediante embargos de terceiro, ao trazer à discussão questões relativas à suposta proximidade entre a Recorrente e a J..., aliás não consubstanciadas, (cls. 9).
Em causa, estão por uni lado, os pressupostos do arresto em si e por outro a apreciação da qualidade de terceiro da recorrente, sem descurar a análise dos fundamentos específicos do arresto preventivo em processo penal, permitido pelo artº 228º do cód. Procº penal.
Apreciando genericamente esta figura jurídica, cumpre salientar alguns aspectos fundamentais que em parte parecem ter gerado alguma controvérsia na perspectiva da recorrente.
Nos termos do n° 1 do artigo 228º do cód. Procº penal, o arresto a decretar a requerimento do Ministério Público ou do lesado deve ser feito nos termos da lei do processo civil, o que significa que os pressupostos legais de que depende o seu decretamento são os previstos no art 391 do cód. Procº civil, desenrolando-se o seu processamento nos termos previstos nos artigos 392º e 393º do mesmo código - cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 3. edição actualizada, Lisboa 2009, p. 628 e o Acórdão da Relação do Porto de 2004.06.23, in Cl, tomo III, p. 218.
Na providência cautelar de arresto, mais do que acautelar um direito de crédito, visa-se prevenir o risco de perda da garantia patrimonial. É assim, tanto na jurisdição processual civil como processual penal, embora esta apresente as suas especificidades.
Na actual redacção do art. 228, n° 1, do cód. proc penal a medida de garantia patrimonial de arresto preventivo, já não tem natureza subsidiária ou supletiva relativamente a caução economica, podendo ser decretada nos termos da lei civil, a requerimento do Ministério Público ou do lesado.
Para que se verifique o justo receio de perda da garantia patrimonial a que aludem os art. 619 n 1 do cód. civil e 391º do cód. Procº civil (anterior artº 406° n° 1) é necessário que se alegue e prove que o devedor4 já praticou ou se prepara para praticar actos de alienação ou oneração, relativamente ao seu património que, razoavelmente interpretados, inculquem a suspeita de que se prepara para subtrair os seus bens à acção dos credores.
A lei não impõe que seja necessária a certeza de que a perda da garantia se torne efectiva, mas apenas que haja um receio justificado de que tal perda poderá vir a ocorrer; não basta qualquer receio, sendo necessário, no dizer da própria lei, que o receio seja justificado.
Daqui se conclui que, (...) o requerente tem de alegar e provar factos concretos que o revelem à luz de uma prudente apreciação, não bastando o receio subjectivo, fundado em simples conjecturas, antes devendo basear-se ...em factos ou em circunstâncias que, de acordo com as regras de experiência, aconselhem uma decisão cautela!' imediata como factor potenciador da eficácia da acção declarativa ou executiva, (Cfr. Ac. Trib. Rel. Lisboa de 04.11.2009, relatado por Moraes Rocha, in www.dgsi.pt/trl).
Servem estas considerações sobre a lei aplicável, para aferir, em face da factualidade indiciada, se estão reunidos os pressupostos que determinaram o arresto dos bens referidos, mais especificamente o imóvel de que a embargante se arroga proprietária.
Com efeito, no processo-crime em investigação, que tem como figuras centrais do chamado Grupo …, as empresas, os sócios, os gerentes, os executivos e outros indivíduos a eles directamente ligados e conluiados, o arguido J..., era de facto um beneficiário de todos os factos descritos, e por consequência usufruía de todas as vantagens patrimoniais emergentes da prática dos indiciados factos ilícitos, para efeitos do disposto no arte 111 do cód. penal.
Realce-se que, idêntico procedimento, tiveram alguns dos outros co-arguidos mencionados, que a partir de meados de 2013 foram cedendo posições societárias aos filhos e alienando património com manifesto propósito de o acautelar às acções que se avizinhavam.
A decisão recorrida apontou para vários actos de alienação de património logo após o desencadear da crise financeira e económica do B... e do G... em 2013/2014, que nos dispensamos de descrever de novo.
Os actos descritos justificam de forma indiscutível o tal receio justificado de perda de garantias patrimoniais. Daí que, os pressupostos fundamentais do arresto estão quanto a nós sobejamente verificados.
A outra questão fundamental é a de saber se à embargante deve ser reconhecida a qualidade de terceiro e lhe assiste o direito de que se arroga, para, nessa qualidade, exigir o levantamento do arresto sobre o prédio urbano sito na Vila de Cascais, Rua da Saudade, n 11, inscrito na matriz sob o artigo 307, e descrito na P Conservatória do Registo Predial de Cascais, freguesia de C…, sob o nº….
Está demonstrado nos autos que este bem imóvel (assim como outro património imobiliário), fazia parte da esfera patrimonial da Sociedade embargante C... - Administração de Bens Móveis e Imóveis, SA, que de acordo com a documentação remetida a este Tribunal, não será arguida no processo-crime em referência.
Acresce ainda referir, como bem foi salientado na decisão recorrida, de acordo com a factualidade indiciada, que o arguido J..., juntamente com o seu cônjuge M…, integraram desde a sua constituição em 16.03.1993, o conselho de administração da referida C..., SA até ao dia 31.10.2014. O imóvel foi adquirido em 15.04.1993.
No dia 25.03.2013, foram dE...gnados para o mesmo cargo para o quadriénio de 201312016.
Porém, presume-se que devido à instauração de processos judiciais e suspeições levantadas, que foram do domínio público, renunciaram a tal cargo no dia 31.10.2014, meses após o afastamento de todos os membros da família Espírito Santo dos órgãos de governo do B..., e apresentação das principais empresas do G... a medidas de protecção de credores.
A 12.11.2014 foram designados M…, C…, M…, (filhos de J... e de Maria João Espírito Santo Silva),
para ocuparem os cargos de gestão da sociedade em causa (cf. fls. 183 a 190, do vol. 4, do anexo 2, do apenso X).
Tal prédio segundo se infere dos autos, foi desde o início a rE...dência do arguido J... e da sua família.
Estes factos são suficientemente elucidativos e merecem alguma reflexão, pois eles evidenciam que a sociedade em causa se encontra sujeita à exclusiva satisfação dos interesses patrimoniais de J…, sendo que, a circunstância de as participações sociais, desde a constituição da sociedade, terem estado em seu nome e do cônjuge e logo após a instauração do processo e a crise do G... terem sido cedidas aos filhos é manifestamente revelador do propósito de eximir o património a ela afecto a eventuais acções judiciais.
Não se ignora, como diz a recorrente e bem, que a sociedade tem autonomia como entidade jurídica distinta; trata-se efectivamente de uma pessoa colectiva, também ela susceptível de responsabilidade criminal, mas que não é arguida. Todavia, tal não obsta a que o bem seja objecto de arresto preventivo os termos do artº 228ºdo cód. Procº penal, se entendermos que a sociedade embargante mais não é do que urna das muitas formas que o arguido usou para deter o seu efectivo e real património.
A (actualidade descrita a sua especificidade e a conduta do arguido J... e esposa que eram os donos de facto e de direito da sociedade e que apesar de terem no dia 25.03.2013, sido designados para o mesmo cargo (administradores) para o quadriénio de 2013/2016, a ele renunciaram cedendo a posição aos filhos após o desencadear do processo contra o grupo Espírito Santo, (G...), demonstra que aquela sociedade e os bens de que é proprietária não são mais do que uma extensão do património do arguido e só por essa razão a qualidade de terceiro exigida pela lei só formalmente a possui.
Em termos indiciários (ou provisórios, atenta a natureza da providência) a Sociedade embargante faz parte do património do arguido e a conduta por este operada com a renúncia aos cargos e a cedência da posição aos filhos, logo após o desencadear do processo, tiveram em nosso entender a virtualidade de provocar o efeito inverso ao pretendido, que aparentemente seria subtrair o imóvel a eventuais acções por parte dos lesados do G….
A qualidade de terceiro e o estado de boa-fé não se presumem, sendo ónus do interessado a sua alegação e prova. Como bem refere o recorrido na sua resposta, a recorrente nada revelou nos autos que permitisse demonstrar a sua qualidade de terceiro e de terceiro de boa-fé.
O disposto no artº 392º nº 2, do cód. Procº civil, que exige a demonstração da viabilidade uma impugnação pauliana deduzida contra o adquirente dos bens, não assume qualquer relevância no âmbito do decretamento do arresto preventivo no âmbito do direito processual penal.
Em nosso entender a embargante não só não tem a qualidade de terceiro, como não nos parece que esteja de boa-fé, dado que as pessoas físicas que a integravam ou pelo menos urna, era acionista, com poderes de decisão e G...tão, é arguido no processo-crime e por consequência poderia muito bem ver os lesados interporem acções judiciais que visassem o seu património e da própria sociedade de que era um dos donos.
Perante os exemplos citados na decisão recorrida, de que foram alienados diversos bens após o desencadear do processo, é de concluir pela legitimidade do Ministério Público em requerer o arresto do prédio em causa e de julgar totalmente improcedentes os embargos de terceiro interpostos pela C..., SA, que não logrou demonstrar essa qualidade nem estar de boa-fé.
Sem necessidade de mais considerações, concluímos pela improcedência do recurso.
DECISÃO
Nestes termos, acordam os Juízes da 3? secção Criminal do em negar provimento ao recurso interposto pela embargante C..., SA.

Custas a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC (quatro unidades de conta).

Lisboa 1 de Fevereiro de 2017

(A. Augusto Lourenço)
João Lee Ferreira)