Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 17-05-2017   Falsificação de documento. Crime continuado.
I. São razões atinentes à culpa do agente que justificam o instituto do crime continuado. Se o desígnio criminoso do arguido era a ocultação da sua verdadeira identidade apresentando uma falsa identificação corporizada na apresentação das receitas elas mesmas falsas, com o intuito de conseguir os medicamentos com os quais lucraria, não existe uma unidade no desígnio criminoso? Na figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de acções homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade.
II. O que nos delimita o crime continuado é uma circunstância exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente e diminui em que medida a censura? Na medida em que a circunstância é externa à actuação do agente não sendo este que cria a oportunidade criminosa que a seus olhos lhe faz diminuir o sentido ou sentimento de culpa facilitando-lhe a acção., Ou seja, sempre que as circunstâncias exógenas não surgem por acaso, é de concluir pela existência de concurso real de crimes.
III. No caso em análise, o recorrente tem desde o início o domínio do facto, dos factos, da actuação, age porque assim decide fazer, cria as condições para praticar o ilícito, até se mostra solícito e sorridente. Em cada nova conduta o agente preencheu o tipo legal de crime em causa, vencendo de cada uma das vezes as contramotivações éticas que lhe são exigíveis.
Proc. 50/14.0JASTB.L1 3ª Secção
Desembargadores:  Adelina Oliveira - Jorge Raposo - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Acórdão proferido na 3ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
Nos presentes autos veio R..., recorrer da decisão que o condenou como autor material, na forma consumada e em concurso real pela prática de doze crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.º, n.° 1, e) do Código Penal, na pena de 80 (oitenta) dias de multa por cada um dos doze crimes, operando em cúmulo jurídico na pena única de 350 (Trezentos e Cinquenta) dias de multa à taxa diária de € 8,00 (oito Euros), perfazendo a multa de € 2.800, 00 (Dois Mil e Oitocentos Euros).
Apresentou para tanto as seguintes conclusões de recurso:
A) O presente Recurso não pretende por em causa a existência dos elementos objetivos dos crimes imputados, incide sobre os elementos que considera relevantes para afastar o elementos subjetivo do crime, bem assim como na forma como o Tribunal a quo, lançou mão do artigo 127.° do CPP, apreciando com excessiva liberdade, tendo em conta a prova carreada para os autos quanto ao elementos subjetivo, sendo certo que os referidos elementos não poderiam levar à certeza suficiente para que o Tribunal decidisse como decidiu, nomeadamente à luz do princípio in dúbio pro reo.
B) Por mera cautela de patrocínio, debruçar-se-á ainda sobre a temática jurídica do crime continuado, sustentado a tese jurídica de que a ser condenado, deveria ser pela prática de um só crime continuado de falsificação de documento.
C) Foi o recorrente condenado por ter apresentado, em duas farmácias diferentes, um total de 12 receitas médicas, logrando obter os medicamentos nas mesmas indicados;
D) Uns medicamentos tinham comparticipação total do Estado, outros tinham comparticipação parcial e outros ainda sem comparticipação.
E) A maioria das receitas apreendidas eram falsas ou falsificadas.
F) Da matéria de facto dada como provada, aceita, sem reserva os pontos 2.1, 2.2, 2.6 a 2.25, 2.33, 2.34, 2.35, 2.36, 2.37, 2.38.
G) Aceita parcialmente os pontos 2.4 - excluindo apenas (...) logrando assim alcançar um benefício correspondente ao preço de venda ao público de cada medicamento (...) - e 2.5 - excluindo apenas a expressão inicial Na execução de tal plano (...)
H) Considera incorretamente julgados os restantes pontos que assentam no conhecimento de que os documentos eram falsos ou falsificados, bem assim como de que agiu deliberadamente na sequência de uma resolução criminosa, são assim os pontos 2.3, 2.26, 2.27, 2.28, 2.29, 2.30, 2.31 e 2.32.
I) A prova produzida impunha que o Tribunal a quo decidisse de fora diversa, o mínimo com base no princípio in dúbio pro reo.
J) Neste quadro estão as declarações e depoimentos, que justificam aquela atuação do arguido, que revelam as causas por detrás da mesma, que denunciam a prática escandalosa do rateio dos medicamentos para a população portuguesa e, finalmente, que demonstram que tanto pela personalidade, como passado ou pela prática farmacêutica, não tinha o arguido forma de saber que as referidas receitas eram falsas ou falsificadas, nem, lhe seria exigido descortinar tal como os colegas que as receberam nas duas farmácias queixosas não descortinaram.
K) É o caso das declarações do próprio Arguido no que relata quanto às razões, às circunstâncias e ao conhecimento, a testemunha R..., que, embora representante de uma ofendida relata como não detetaram nada de estranho aquando do recebimento das receitas (como o arguido também não notou), bem assim como quanto à natureza dos medicamentos em causa e ainda quanto ao rateio de medicamentos e ao funcionamento do mesmo, de J... que tendo recebido as receitas também não constatou nenhum elemento que lhe fizesse suspeitar sobre serem falsas e de S..., indicada pela acusação e pelo PIC, traz um depoimento de enorme relevância na medida em que por um lado volta a indicar que não detetou nada de estranho nas receitas, que não evidenciavam nenhuma falsidade - tal como o arguido não detetou - que o arguido (que segundo a acusação sabia estar a cometer um crime) se apresentava calmo e simpático sem evidenciar qualquer nervosismo.
L) Esta última quando confrontada sobre a razão alegada pelo arguido para proceder como procedeu - que sabe de pelo menos mais um caso em que a diretora de uma outra farmácia - F... - procedeu da mesma forma, indo buscar medicamentos com uma receita deixada naquela farmácia sendo que tal atuação não traz nenhum lucro a quem o faz, apenas garante o nome e a reputação da farmácia do interessado, garantindo que dão resposta ao utente e não perdem o cliente para o futuro. Tudo tal como o arguido explicou.
M) C..., funcionária da farmácia do arguido trouxe a confirmação da argumentação do mesmo, tanto quanto a quem recebia as receitas, tal como o sistema quick farma, bem assim como quanto ao rateio e à falta de medicamentos e ainda J..., farmacêutico que traz de forma clara, a explicação sobre o problema dos medicamentos rateados, como conhece o sistema quick farma, como explicou que as farmácias que integram grupos têm maior facilidade na obtenção de documentos e como as soluções de urgência como a Via Verde do Medicamento é algo recente e inexistente à data da prática dos factos e como a prática como a que o arguido se socorreu - procurar medicamentos em farmácias alheias - tem como objetivo não o lucro mas a fidelização do utente.
N) No tocante à probidade do arguido importam as declarações dos referidos T... e C..., mas também de A..., J..., amigos do arguido há mais de duas décadas e que o reputam de pessoa séria e honrada, incapaz de se envolver em qualquer esquema ardiloso.
O) Importa ainda dar relevo ao documento da ANF junto pela defesa do arguido na sessão de 11 de Julho de 2016, em que é confirmada precisamente a dificuldade existente (ainda em 2016, dois anos após os factos) na obtenção de medicamentos por via do rateio.
P) Acresce que, não sendo a prova determinante mas enquandrante, a verdade é que vários dos utentes trouxeram ao Tribunal a realidade de, muitas vezes, não existirem os medicamentos disponíveis ou confirmaram que muitas das vezes não era o arguido que estava no atendimento ao balcão, foram os casos de A..., R..., D..., A..., J..., L..., M..., F..., em que os depoimentos, em determinados pontos, serviram para corroborar a versão do arguido quanto aos pontos referidos.
Q) O arguido vem a Tribunal assumir integralmente a factualidade no que tange a ter sido ele a ir a duas farmácias diferentes (Farmácia N… e Farmácia da C…), levando consigo várias receitas, procurando aviar medicamento. Disse desconhecer em absoluto que tinha na sua posse receitas falsas ou falsificadas e justificou esta prática - que disse nunca ter feito anteriormente - com a acrescida dificuldade em dar resposta às solicitações de diversos medicamentos por parte de utentes, sendo que acumulava na sua farmácia várias receitas com medicamentos que não conseguia encontrar.
R) Explicou que devido ao fenómeno do rateio de medicamentos, farmácias como a sua, de pequena dimensão, não conseguem que os armazenistas forneçam medicamentos que sendo raros são desviados para mercados melhor pagantes - África e Ásia - ou para os grandes grupos.
S) Explicou ainda que farmácias como a Farmácia da C... - cuja Diretora técnica é filha do dono do maior armazenista nacional (B...) - ou a Farmácia N… (cujo grupo tem 4 farmácias), têm muito maior facilidade - para não se dizer que tem ausência de dificuldades - em obter os medicamentos que quiserem.
T) Explicou que a vergonha de estar sistematicamente a pedir a colegas e conhecidos, relevando a pequena dimensão e as s dificuldades inerentes à dimensão da sua farmácia, o fez ir para sítios onde, presumivelmente, ninguém o conhecia e onde se apresentaria como um qualquer utente, aviando medicamentos.
U) Explicou ainda que tal prática não lhe trazia nenhum lucro, apenas garantia que os utentes da sua farmácia teriam os medicamentos disponíveis e se manteriam fiéis, algo essencial a uma farmácia pequena.
V) Trouxe explicação sobre como funcionava a sua farmácia em que não era ele em regra que estava ao balcão a receber as receitas, sendo que com o sistema QuickFarma os utentes que deixavam a receita recebiam uma senha com um número e era esse mesmo número que o utente, ou alguém por ele, deveria trazer à farmácia aquando da recolha do medicamento que era entregue num saco fechado e tal sistema fazia com que nem sequer o arguido conseguisse perceber quem era o utente que recebia o medicamento.
W) Foi claro ao afirmar que nunca entrou em nenhum esquema fraudulento, sendo pessoa de bem e que terá sido alvo de terceiros com interesses que desconhece, sendo certo que são conhecidos os verdadeiros gangs na área da farmácia com processos públicos e a correr.
X) Relatou ainda que tinha - sabe-o agora - receitas falsas ou falsificadas mas também receitas sem qualquer problemas, como a PJ pode ver no seu próprio veículo, pois o único objetivo era dar resposta aos utentes.
Y) Realça que nada de estranho viu nas receitas como, aliás, também não viram os colegas que nas farmácias destinatárias as receberam e esta argumentação foi corroborada de várias formas ao longo do processo.
Z) As testemunhas também relataram tratar-se o arguido de um homem sério e honrado, pai de família e trabalhador imaculado.
AA) As pessoas ligadas às farmácias, mesmo ligadas às farmácias queixosas - vide S..., C... e J... - corroboram as dificuldades das farmácias, relatando a primeira conhecer, pelo menos, mais um caso como o do arguido em que uma DT de uma farmácia se deslocou a farmácia alheia para aviar medicamentos visando exclusivamente não perder os clientes.
BB) O arguido explicou ainda que identificar-se com nome diferente - António Oliveira - visava exatamente o mesmo propósito não poder ser o nome associado à Farmácia de que é proprietário, por motivos de reserva e vergonha e referiu ainda que nunca assinou o referido nome em nenhum documento, sendo que nunca lhe foi pedido para assinar o verso das receitas, sendo que é prática comum serem as próprias farmácias assinarem no verso a receita já que tal assinatura é inócua.
CC) O Tribunal a quo justifica a sua convicção, ao abrigo do artigo 127.° do CPP, nomeadamente quanto a ficar convicto de que o arguido sabia que estava a utilizar receitas falsificadas, invocando que todas as testemunhas técnicas de farmácia, por lhes passarem dezenas de receitas por dia pelas mãos, detetaram logo, pela apalpação do papel, que tais documentos poderiam ser falsos. O arguido, que também é profissional de farmácia, também não poderia deixar de se ter apercebido de tal facto.
DD) Tal conclusão roça o escândalo na medida em qué a prova foi exatamente no sentido contrário pois, com a exceção de R... - que detetou problemas em sede de conferência, nenhuma das testemunhas técnicas de farmácia detetaram qualquer anomalia, nem disseram que detetaram deficiências de gramagem ou outras, bem pelo contrário, tal como o arguido, receberam e assumiram como válidas as receitas que continham todos os elementos.
EE) Assim depuseram R..., J... e S... da Farmácia da C… e H... da Farmácia N….
FF) Ou seja, as próprias alegadas ofendidas, fragilizam a tese de que a falsificação foi detetada por elas, ao contrário do que o Tribunal a quo afirma, mas também os outros farmacêuticos ouvidos seguem no mesmo caminho, nomeadamente C... da Farmácia R... e J... da Farmácia T... que confrontados com as receitas, como os demais colegas, dizem não conseguir, a olho nu, ver qualquer problema pelo que as aviariam normalmente.
GG) Precisamente como o arguido sustenta caindo absolutamente por terra o argumento do Tribunal a quo, revelando tal conclusão, aliás, uma enorme desatenção à prova produzida que é inequivocamente no sentido contrário do que o Tribunal conclui.
HH) Há apenas um farmacêutico a quem incumbia uma conferência das receitas que detetou o que considerou serem algumas questões mas mesmo este não teve certezas mas apenas se lhe levantaram dúvidas que reportou.
II) As demais alegações do Tribunal a quo que visavam sustentar o elemento subjectivo são cabal e solidamente sustentadas pelo arguido e enquadradas pelas testemunhas, como a utilização pública de um nome diferente ou a alegação de que assinou com outro nome.
JJ) A perícia do LPC não só não menciona qualquer questão de gramagem, como não se debruçou sobre as assinaturas que são imputadas ao arguido como tendo assinado António Oliveira, desmentindo este tal facto, sendo corroborado quanto à irrelevância das assinaturas pelo depoimento de T....
KK) A versão do arguido quanto ao que fez, pode até não satisfazer o decisor, mas está sustentada num conjunto de factos e enquadrada por vários elementos que a tornam não só credível como sólida, sendo importante a temática dos medicamentos rateados, sendo corroborada pelas próprias denunciantes e demais prova da acusação.
LL) Onde se inclui igualmente, o testemunho dos utentes, mencionados nas receitas, quanto à forma como costumavam deixar receitas nas farmácias para posterior levantamento.
MM) São os casos de caso de A..., D..., R..., A..., J..., M..., L... ou de M....
NN) Ainda que se admita que o Tribunal a quo tenha achado estranho o ego que o arguido usou, a verdade é que a razão de ser da sua atuação, a sua vergonha em revelar as debilidades da sua farmácia, justificam perfeitamente a atuação e, seguramente, debilitam o argumento do tribunal para a sustentação do elemento subjetivo e todos os utentes inquiridos revelam que as dificuldades das farmácias existem, são reais, precisamente como o arguido conta.
00) O Tribunal a quo nem conseguiu concluir porque razão o arguido teria tal prática, sendo difícil de perceber sequer a vantagem, sendo que o Tribunal a quo conjetura sem qualquer sustentação probatória, em interpretação livre do artigo 127.°, sobre as razões, mas sempre com base em suposições.
PP) Tem assim o arguido uma defesa sustentada em factos, com enquadramento e substância e suportada nas provas, sendo que o Tribunal assenta a decisão subjetiva sobre 4 premissas sendo a primeira um erro flagrante atendendo à prova produzida, a segunda e terceiras sustentadamente justificadas pelo arguido e a quarta uma mera conjetura do Tribunal em que usa a ausência de prova contra o arguido.
QQ) Há ainda a considerar, porque não é despicienda, a razão porque o arguido com mais de meio século de vida, decide agora enveredar por um caminho de crime, quando as testemunhas ouvidas e que o conhecem, revelam um homem bom e sério, sobre o qual nunca pendeu nenhuma suspeita, sendo relevantes nesta matéria os depoimentos de J..., A..., C... e J....
RR) Veio o autor a ser condenado como autor material, na forma consumada e em concurso real pela prática de doze crimes de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 256.°, n.° 1, al. e) do Código Penal e mesmo entendendo que não há elementos suficientes para uma condenação, por mera cautela de patrocínio, sempre se dirá que a haver condenação, necessariamente teria que ser por um só crime de falsificação, continuado, nos termos do n.° 2 do artigo 30.° do CP. Efetivamente,
SS) Estabelece aquela norma que: Constitui um só crime continuado a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
TT) Ora o arguido vinha acusado de, no espaço de poucos dias, ter levado 12 receitas falsificadas a duas farmácias próximas. na mesma freguesia.
UU) Aliás, em sede de acusação, embora acusado por 12 crimes de falsificação, vinha acusado por dois crimes de Burla o que em si seria uma contradição jurídica e caindo as Burlas, importa perceber se as falsificações que restaram - e que entretanto foram e bem desqualificadas demonstrando bem as dificuldades do acusador - deveriam ser punidas e a serem punidas se deveriam ser no âmbito do crime continuado.
VV) A existir crime, da forma como foi desenhado pela acusação e parcialmente acolhido pela decisão, seria sempre um só crime de falsificação na forma continuada, sendo o caso em apreço um study case para encaixar perfeitamente no tipo da norma a realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do agente.
WW) Há a realização plúrima do mesmo tipo de crime, que protege o mesmo bem jurídico (a segurança e credibilidade no tráfico jurídico probatório) , executada de forma absolutamente homogénea e no mesmíssimo quadro da solicitação da mesma situação exterior, não se compreende, aliás, como não enquadrou desta forma a decisão, sendo que, evidentemente seria muito mais favorável para o arguido.
XX) Os factos ocorreram entre 4 e 17 de Fevereiro, no espaço de 13 dias, o que acentua a tese aqui plasmada.
YY) Assim a condenar, teria sempre que o Tribunal optar pela condenação por um único crime de falsificação na forma continuada, como configura o n.° 2 do artigo 30.° do CP.
ZZ) Com a sua decisão violou o Tribunal o artigo 127.° do CPP, na media em que formou a sua convicção com liberdade excessiva ao decidir contra as provas apresentadas, sendo alguns pontos de forma flagrante, como a referência a que Com efeito, e em primeiro lugar, todas as testemunhas técnicas de farmácia, por lhes passarem dezenas de receitas por dia pelas mãos, detetaram logo, pela apalpação do papel, que tais documentos poderiam ser falsos, quando a prova é flagrantemente contrária com todas as ilações que daí têm que ser retiradas.
AAA) Os elementos de prova carreados são manifestamente insuficientes para dar como provado que o arguido sabia que as receitas apresentadas eram falsas, bem pelo contrário, a prova aponta muito mais no sentido contrário.
BBB)Violou Princípio in dubio pro reo, plasmado no n.° 2, do artigo 32.° da Constituição da República Portuguesa, ou seja trata-se de um princípio geral do direito processual penal, sendo a expressão, em matéria de prova, do princípio constitucional da presunção de inocência do arguido, no que ao crime de Violência Doméstica diz respeito. Nesse plano, significa que, não existindo um verdadeiro ónus da prova que recaia em qualquer dos sujeitos processuais, nomeadamente o arguido e o MP, e devendo o tribunal investigar autonomamente toda a verdade, deverá este não desfavorecer o arguido sempre que não logre prova do facto para além de toda a dúvida razoável, por outras palavras: na dúvida, deve julgar a favor do réu;
CCC) Violou o Tribunal a quo o Princípio da Legalidade, plasmado nos artigos 29.°, n.° 1 da CRP e 191.° da CRP, na medida em que não assentou a sua decisão em critérios de exclusiva legalidade no que concerne à apreciação da prova, sendo que a torrente probatória levava a decisão para fim diverso, não sendo suficiente a livre apreciação da prova para contornar este princípio constitucional.
DDD) Violou o artigo 30.°, n.° 2 do CP ao não subsumir a conduta do arguido a um só crime de falsificação na forma continuada, optando por condená-lo por 12 crimes autónomos quando a criminalizar a conduta - o que se concede por mera cautela de patrocínio - teria que ser considerado que praticou um só crime continuado por ser a realização plúrima do mesmo tipo de crime, executada por forma essencialmente homogénea e no quadro da solicitação de uma mesma situação exterior que diminuía consideravelmente a culpa do arguido.
Termos em que, sempre sem prescindir do Douto suprimento de V.Exas., deve o presente recurso obter colhimento e, em consequência:
a) Ser o arguido absolvido da prática dos crimes por que foi condenado, ou, se assim não se entender - o que se conjetura por mera cautela de patrocínio;
b) Ser o arguido condenado pela prática de um só crime continuado de falsificação de documento, p. e p. pela al. e) do n.° 1 do artigo 256.°, em conjugação com o disposto no n.° 2 do artigo 30.° do CP.
Pronunciou-se o MP em 1ª Instancia concluindo que
Não foram violados quaisquer dos princípios apontados pelo arguido, nomeadamente o princípio da presunção de inocência.
o Tribunal a quo não violou qualquer das normas ou princípios indicados pelo recorrente arguido devendo sustentar-se na íntegra a sentença recorrida negando provimento ao recurso.
Neste Tribunal o Exmo Procurador Geral Adjunto entendeu manter a mesma Posição do MP em 1 Instancia.
Cumpre decidir:
Pretende o recorrente que se tenha em conta o princípio da livre apreciação da prova que no seu entender foi excedido, principio in dubio pro reo e que caso não se entenda que houve violação de um deles, que se tenha em conta o crime continuado.
Vejamos:
O Tribunal da Relação não fará um segundo julgamento.
Na verdade encontra-se este Tribunal vocacionado sim para apreciar vícios da decisão proferida em 1 ° Instância. A convicção há de ser a do tribunal a quo. Será essa e a respectiva fundamentação do tribunal que vão ser avaliadas e analisadas por este tribunal de recurso.
Compete ao Tribunal da Relação analisar a decisão sob recurso, despistando os eventuais erros in judicando ou in procedendo aí verificados.
Parece também esquecer a recorrente que, de acordo com o princípio da livre apreciação da prova e de acordo com regras da lógica, da experiência comum e da razão, o julgador é livre de apreciar a prova não se confundido (sabe-o bem o recorrente), esta liberdade de apreciação com arbitrariedade, íntima convicção sem sentido da responsabilidade e bom senso, seguindo sim parâmetros da lógica do homem médio e as regras da experiência.
No caso concreto não verificamos que o Mm° Juiz a quo tenha sido arbitrário a apreciar a prova que lhe foi oferecida e submetida à sua apreciação. Na verdade, de acordo com as regras da lógica, alguém que, tendo uma farmácia, usa outro nome para adquirir medicamentos 100/prct. comparticipados pelo Estado, para depois os vender na sua farmácia, ou é de tal forma ingénuo que não conhece as regras do mercado ou, tem uma farmácia e não sabe como funciona a aquisição, venda e a compartipação estatal dos medicamentos, ou pensa que o Tribunal apenas percebe da aplicação do Direito, esquecendo que essa aplicação é feita aos factos e que , quando o tribunal julga de acordo com as regras da lógica e da experiência comum, está habituado a apreciar comportamentos, a analisá-los e, portanto, a fixar prova.
Além do mais, reparamos que perante o papel e as rasuras apresentados pelo arguido, as dúvidas levantaram-se e as receitas em causa foram encaminhadas para investigação.
O recorrente nunca justificou a origem das receitas apenas tendo nelas assinados os nomes dos médicos que supostamente as teriam preenchido e prescrito mas, na verdade não indica uma origem fidedigna e que o liberte da autoria ou do uso. E nem o facto de alegar que sempre esteve à vontade ao apresentar as receitas porque simpático e sorridente, convence o tribunal. A esta atitude quase que se poderia dizer, tendo em conta toda a prova produzida que, apenas quis disfarçar, encobrir o que acaba por preencher o elemento subjectivo.
Se a falsidade das mesmas foi notada pelos restantes farmacêuticos, como não seria notada pelo arguido também dono de uma farmácia? E como explica isso resumindo-o a uma pretensa ingenuidade, a um desconhecimento que nem lhe fica bem?
Não colhe ainda a argumentação do baixo stock e da pequena farmácia, da vergonha para justificar a identidade errada. De toda a matéria de facto e fundamentação dada, só resulta que os factos estão devidamente fixados e a prova devidamente fundamentada e que o elemento subjetivo foi encontrado e delimitado.
Como pretender que não se verifica o elemento subjetivo ? Foi o próprio arguido que levou as receitas, as apresentou, deu uma identificação que não era a sua, trouxe consigo os medicamentos 100/prct. comparticipados e não apresentou um único cliente que tivesse sido o destinatário de um deles.
A matéria de facto apurada é mais do que suficiente ao preenchimento do elemento subjectivo observando todo o contexto fáctico em que se desenvolveu a actuação do recorrente.
Acresce que não se verifica a existência do princípio in dubio pro reo.
A decisão encontra-se bem fundamentada não apresentando dúvidas no decurso do seu raciocínio lógico.
Não há qualquer violação do principio da presunção de inocência nem do princípio in dubio pro reo.
Como é sabido, o princípio in dubio pro reo é um corolário da presunção de inocência, consagrada constitucionalmente no art° 32°, n° 2, da Constituição da República Portuguesa. Constitui um dos direitos fundamentais dos cidadãos - art° 18°, n. ° 1, da Constituição da República Portuguesa, 11 °, da Declaração Universal dos Direitos do Homem; 6. °, n. ° 2, da Convenção Europeia para a Protecção dos Direitos e Liberdades Fundamentais, e 14. °, n.° 2, do Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos.
Com efeito, enquanto não for demonstrada a culpabilidade do arguido, não é admissível a sua condenação. O que quer significar que só a prova de todos os elementos constitutivos de uma infracção permite a sua punição. Mas esse é um problema de direito probatório em processo penal.
Como acentua Hans Heinrich Jescheck, in Tratado de Derecho Penal, Parte General, 4.0 ed., pág. 127 e segs., tal princípio serve para resolver dúvidas a respeito da aplicação do Direito que surjam numa situação probatória incerta.
Vem tudo isto a propósito de que da leitura da fundamentação da decisão recorrida, da qual resulta que o Tribunal a quo não teve dúvidas sobre os factos que deu como assentes, dúvidas que este Tribunal de recurso, a quem está vedada a oralidade e a imediação, também não tem, pois que só se a fundamentação revelasse que o tribunal a quo, face a algum ou alguns factos, tivesse ficado em dúvida patentemente insuperável, como se referiu no Ac. do
STJ de 15-6-00, publicado na Colectânea de Jurisprudência dos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça, 2.000, 11-228, Ou se,
embora o tribunal a quo não reconhecesse o estado de dúvida, ele resultasse do texto da decisão recorrida só por si ou em conjugação com as regras da experiência comum, só não sendo declarada pelo tribunal a quopor força de erro notório na apreciação da prova, é que se podia afirmar que havia sido postergado o princípio in dubio pro reo, que sendo um corolário da presunção de inocência, só vale até ser ilidida em julgamento.
A fundamentação da decisão de facto da sentença recorrida não evidencia qualquer dúvida que tenha sido solucionada em desfavor do arguido.
Conforme refere Helena Bolina, o princípio in dubio pro reo tem reflexos exclusivamente ao nível da apreciação da matéria de facto - a dúvida que o Julgador está vinculado a resolver favoravelmente ao arguido, é uma dúvida relativamente aos elementos de facto, quer sejam pressupostos do preenchimento do tipo de crime, quer sejam factos demonstrativos da existência de uma causa de exclusão de ilicitude ou da culpa.
Implica este que quando o Tribunal fica na dúvida quanto à ocorrência de determinado facto, deve daí retirar a consequência jurídica que mais beneficie o arguido.
Tal princípio é aplicável após a produção de prova e, ao lado do princípio da presunção de inocência, embora este, exista desde a instauração de investigação ao suspeito.
O princípio in dubio pro reo implica a existência de uma dúvida razoável que, não permite ao julgador afirmar em consciência e com segurança que, determinado indivíduo cometeu os factos pelos quais vinha acusado e, foram objecto de análise em audiência de julgamento.
Não resulta de um mero capricho ou vontade de absolver por parte do juiz, resulta sim, da prova que foi produzida e causou no espírito do Juiz a dúvida que este não consegue ultrapassar para condenar em consciência.
Já não há só uma presunção de inocência, há também uma dúvida válida sobre a culpabilidade mas também sobre a inocência.
A dúvida tem que assumir uma natureza irredutível, insanável, sem esquecer que, nos actos humanos, nunca se dá uma certeza contra a qual não haja alguns motivos de dúvida - cfr., a este propósito, Cristina Monteiro, In Dubio Pro Reo , Coimbra Editora, 1997.
No entanto o Tribunal tem por certo que após a apreciação de toda a prova produzida em julgamento à luz das regras da experiência, nos termos do artigo 127.° do CPP, chegará a uma conclusão de necessidade ou desnecessidade de aplicação deste princípio in dubio pro reo.
Acontece que no caso em análise não existe qualquer dúvida por parte do julgador que determine de forma razoável a absolvição do recorrente. A fundamentação é de tal forma lógica, explicando contradições e coincidências que temos de nos render às evidências.
Nem a prova é parca, nem a fundamentação é frágil, nada faz cambalear a matéria de facto a favor do arguido.
Vejamos agora quanto ao crime continuado
Desde dia 05 a 17/02/2014, o arguido apresentou-se por diversas vezes em farmácias para aviar medicamentos, passaram 12 dias, e neste período, apesar da alegada intenção de manter os seus próprios clientes fidelizados, o arguido não indicou um único cliente a quem
tenha cedido os medicamentos comparticipados assim obtidos estando em causa 12 receitas de 12 clientes.
Esses clientes foram ouvidos como testemunhas e nada lhes foi entregue.
O recorrente não poderia deixar de obter lucro com a conduta em causa, pois ao aviar receitas com medicamentos comparticipados noutras farmácias, não os pagava total ou parcialmente, dando-lhes de seguida o destino que desejasse, nomeadamente cedendo a clientes e pedindo a devolução do dinheiro inerente à sua comparticipação ao Estado, clientes esses que seriam outros que não os constantes das receitas em causa nos autos já que as mesmas são falsas.
O arguido não poderia visar exclusivamente não perder os clientes da sua farmácia tendo em conta tal qualidade das receitas.
Existe ou não crime continuado? Ficou ou não provada a existência de uma motivação unitária, ou a existência de qualquer circunstância exterior que motivasse o arguido a repetir a prática do crime, e lhe diminuísse consideravelmente a culpa, ou seja, que revele que a culpa está tão acentuadamente diminuída que um só juízo de censura, e não vários, é possível formular.
Em termos comparados com o concurso aparente de infracções, poderá questionar-se, no caso de haver pluralidade de resoluções criminosas, se esta, em certas situações e mediante determinados pressupostos não será meramente aparente, e que a justiça e a economia processual aconselhem a verificação de um só crime, na forma continuada.
Segundo ensina Eduardo Correia (Direito Criminal, II, reimpressão, Almedina, Coimbra, 1971, pág.. 203 e ss.),
a solução da questão passa por duas vias fundamentais: uma ligada à teoria do crime nos seus princípios gerais, em que se procura deduzir os elementos que poderiam explicar a unidade inscrita no crime continuado - e teremos então uma construção lógico jurídica do conceito .
A outra via encontra-se ligada a uma construção teleológica do conceito e, atende antes a uma diminuição da gravidade revelada pela situação concreta, perante o concurso real de infracções, tentando encontrar a resposta no menor grau de culpa do agente.
Crime continuado para que exista, exige-se
a) desde logo, a circunstância de se ter criado, através da primeira actividade criminosa, uma decisão de agir,
b) a circunstância de voltar a verificar-se uma oportunidade favorável à prática do crime, que já foi aproveitada ou que arrastou o agente para a primeira conduta criminosa,
c) a circunstância da perduração do meio apto para realizar um delito, que se criou ou adquiriu com vista a executar a primeira conduta criminosa;
d) a circunstância de o agente, depois de executar a resolução que tomara, verificar que se lhe oferece a possibilidade de alargar o âmbito da sua atividade criminosa.
IV - A conexão espacial e temporal das atividades continuadas, não assume papel de especial relevo, apenas podendo ter interesse quando puder afastar a conexão interior de ligação factual entre os diversos actos (derivando esta de a motivação de cada facto estar ligada à dos outros). Decisivo é, pelo contrário, que as diversas atividades preencham o mesmo tipo legal de crime, ou pelo menos, diversos tipos legais de crime que fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico: este será o limite de toda a construção.
Vejamos no caso concreto:
Talvez passando pela definição de receita médica - art° 3° do Decreto-Lei n° 176/2006, de 30AGO, com as alterações introduzidas pelo DL n° 20/2013, de 14FEV, diploma que estabelece o regime jurídico do medicamentos para uso humano, sob a epígrafe Definições nos seguintes termos:
«1 - Para efeitos do disposto no presente decreto-lei, entende-se por:
hhh) «Receita médica», documento através do qual são prescritos, por um médico ou, nos casos previstos em legislação especial, por um médico dentista ou por um odontologista, um ou mais medicamentos determinados».
Os medicamentos são receitados pelos médicos, no âmbito da sua atividade profissional;
para o efeito, o médico procede ao atendimento, consulta e exame dos pacientes com vista à realização de diagnóstico sobre o seu estado clínico, tal acto médico culmina, se for caso disso, com a prescrição do tratamento adequado ao diagnóstico efetuado, através de receita médica, e com o esclarecimento do paciente sobre a posologia, doseamento e alerta sobre eventuais efeitos secundários do tratamento;
Desde logo, a receita médica pressupõe, assim, um ato médico destinado a uma pessoa, ou seja, um paciente, uma atividade de avaliação diagnóstica, prognóstica e de prescrição e execução de medidas terapêuticas relativas à saúde das pessoas, grupos ou comunidades.
A receita médica integra-se no conceito de documento, antes analisado, com todas as características que permitem assegurar a função de perpetuação (declaração enquanto representação de um pensamento humano), a função probatória (declaração idónea a provar facto juridicamente relevante) e a função de garantia (declaração que permite reconhecer o emitente) que são exigidas ao documento enquanto objeto material do crime de falsificação de documentos.
No conceito normativo está também plasmada a especial qualidade do agente emitente da receita médica para humanos, nos termos do art° 30, do Decreto-Lei n° 176/2006, de 30AGO, com as alterações introduzidas pelo DL 20/2013, de 14FEV, ou seja, um médico.
O bem jurídico protegido pela incriminação do crime de falsificação de documento, p. e p., pelo art° 256°, do CP, é a segurança e a credibilidade na força probatória destinado ao tráfico jurídico, sendo um interesse direta e imediatamente protegido um interesse público, o interesse do Estado na confiança pública e na fé pública do documento enquanto meio de prova e o valor da segurança e da credibilidade que a verdade intrínseca do documento encerra enquanto tal.
Trata-se de um delito pluriofensivo no qual se protege, por um lado, a fé pública do documento e, por outro, os interesses específicos que estão assegurados ou garantidos pelo documento como meio de prova.
A falsificação de documentos abrange quer a falsificação material, quer a falsificação ideológica. Na falsificação material ocorre uma alteração, modificação total ou parcial do documento. Neste caso o agente apenas pode falsificar o documento imitando ou alterando algo que está feito segundo uma certa forma; quer imitando, quer alterando o agente tem sempre uma certa preocupação dar a aparência de que o documento é genuíno e autêntico.
Na falsificação intelectual integram-se todos aqueles casos em que o documento incorpora uma declaração falsa, uma escrita integrada no documento distinta da declaração prestada. Por seu turno na falsidade em documento integram-se os casos em que se presta uma declaração de facto juridicamente relevante, trata-se de uma narração de facto falso.
Pretende-se acautelar a segurança que tal documento foi emitido por um médico, que prescreveu determinado medicamento, a um paciente, na sequência de um ato médico, ou seja, a fé pública da receita médica enquanto meio de prova e o valor da segurança e da credibilidade que a verdade intrínseca da mesma encerra.
Assim, para que a receita médica tenha validade a lei impõe determinados requisitos, como sejam, preenchimento manual da receita médica, vinheta identificativa do médico prescritor e da assinatura deste; quando a receita médica fosse preenchida informaticamente, a sua validação dependia da aposição dos códigos de barras relativos à identificação do médico prescritor e à unidade prestadora de cuidados de saúde, bem como da assinatura do médico.
Há que ter ainda em conta e com interesse para o caso em análise que, é através da receita médica que se afere a comparticipação do Estado no preço do (s) medicamento (s) prescrito (s) em função dos escalões de comparticipação, que variam de acordo com as indicações terapêuticas do medicamento, a sua utilização, as entidades que o prescrevem e ainda com o consumo acrescido para doentes que sofram de determinadas patologias, bem como se o medicamento prescrito se encontra abrangido por um regime de comparticipação, em função dos beneficiários e em função das patologias ou de grupos especiais de utentes.
Assim sendo, a falsificação intelectual e/ou material dos elementos constitutivos do conceito normativo de receita médica configura os elementos objetivos e subjetivos do tipo, ou seja o saber e querer a realização do tipo penal consagrada no art°256° do CP vigente.
O recorrente criou à sua volta uma. falsa credibilidade e validade de um documento, faccionando-o e entregando-o a quem, convencido da validade do mesmo, lhe forneceu medicamentos 100/prct. comparticipados pelo Estado que o recorrente integrou na sua esfera de mercado sem ter destinatário para os mesmos com o intuito de os vender recebendo do mesmo Estado o valor correspondente sem contudo necessitar de os pagar no mercado.
Assim sendo, o arguido indiscutivelmente, com intenção de causar prejuízo ao Estado, e aos farmacêuticos que contactou, quis obter para si beneficio ilegítimo, usou documento falso abusando da assinatura de outras pessoas, fazendo-se passar por uma pessoa que não era, fazendo constar falsamente de documento declaração médica, usando-o e detendo-o.
Fê-lo mais do que uma vez e num espaço de tempo curto e determinado. Será que estamos então perante um crime continuado?
São razões atinentes à culpa do agente que justificam o instituto do crime continuado.
Se o desígnio criminoso do arguido era a ocultação da sua verdadeira identidade apresentando uma falsa identificação corporizada na apresentação das receitas elas mesmas falsas, com o intuito de conseguir os medicamentos com os quais lucraria, não existe uma unidade no desígnio criminoso?
Na figura do crime continuado consideram-se os casos de pluralidade de acções homogéneas que, apesar de enquadrar cada uma delas no mesmo tipo penal ou em tipos penais com igual núcleo típico, uma vez realizada a primeira, as posteriores se apreciam como a sua continuação, apresentando assim uma dependência ou vinculação em virtude da _qual se submetem a um único desvalor normativo, que as reduz a uma unidade.
Ou seja, o que nos delimita o crime continuado é uma circunstância exterior que diminui consideravelmente a culpa do agente e diminui em que medida a censura? Na medida em que a circunstância é externa à actuação do agente não sendo este que cria a oportunidade criminosa que a seus olhos lhe faz diminuir o sentido ou sentimento de culpa facilitando-lhe a acção.,
Ou seja, sempre que as circunstâncias exógenas não surgem por acaso, é de concluir pela existência de concurso real de crimes.
No caso em análise, o recorrente tem desde o início o domínio do facto, dos factos, da actuação, age porque assim decide fazer, cria as condições para praticar o ilícito, até se mostra solícito e sorridente. Em cada nova conduta o agente preencheu o tipo legal de crime em causa, vencendo de cada uma das vezes as contramotivações éticas que lhe são exigíveis.
Não estamos seguramente perante um crime continuado mas exatamente perante um actuar devidamente classificado e enquadrado pelo tribunal a quo.
Não merece, também aqui, a decisão qualquer censura deste Tribunal.
Assim sendo
Nega-se provimento ao recurso apresentado, mantendo-se sem mais a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente fixando a taxa de justiça em 4 Ucs.
Ac elaborado e revisto pela relatora.
Lisboa, 17 de Maio de 2017
Adelina Barradas de Oliveira
Jorge Raposo