I - A vinculação do Ministério Público aos objectivos de descoberta da verdade e na realização do direito, ou de realização da justiça material, ficaria gravemente prejudicada se se negar ao Ministério Público, a quem cabe a direcção do inquérito (artigo 263.° do CPP), a faculdade de corrigir eventuais nulidades ou irregularidades cometidas na fase em que o processo está sob a sua direcção e ainda não transitou para a esfera judicial através da entrada do processo na secretaria do Tribunal. Enquanto o processo não entrar na secretaria do Tribunal, o Ministério Público, que tem a direcção do inquérito, tem competência para conhecer das nulidades e irregularidades nos termos dos artigos 118.° a 123.° do CPP.
II - O conhecimento da nulidade detectada pelo Ministério Público, como no caso aconteceu, não importa violação do direito de defesa do arguido. A exclusão do recorrente do rol dos acusados significa que ele desaparece como arguido no processo e, portanto, não precisa de se defender nesse processo.
III - Por já não estar acusado, o recorrente não tem legitimidade para requerer a instrução, cujo objectivo é a comprovação ou não da decisão de deduzir acusação contra ele (artigo 286.°, n.° 1, do CPP).
IV - É certo que no caso o Ministério Público organizou um processo separado quanto a ele. Mas, nesse processo, o recorrente mantém todos os seus direitos legais e constitucionais, nomeadamente os de defesa, inclusive o de requerer a abertura de instrução na altura própria. Não se pode dizer que o recorrente é arguido em dois processos em simultâneo pelos mesmos factos, porque ele deixou se der arguido no processo inicial, e só o é no novo processo.
V - Embora os prazos de inquérito sejam estabelecidos, em certa medida, também no interesse do arguido, a lei não faz extinguir o procedimento criminal contra ele por efeito da eventual falta de cumprimento deles. Esse incumprimento tem outras consequências, corno os disciplinares, que não a de cessar o procedimento criminal.
VI - Não é legítima nem protegida por lei ou pela Constituição qualquer espectativa do arguido de se aproveitar da nulidade cometida na fase do inquérito ou na acusação ao ponto de impedir a sua declaração e correcção nos termos dos artigos 118.° a 123.° do CPP. O regime das nulidades e irregularidades é estabelecido para garantir a regularidade e a justiça do processo através do qual se pretende chegar à decisão sobre a aplicação ou não de uma sanção ao arguido, não para salvaguardar expectativas do arguido a subtrair-se da acção penal em consequência directa delas.
Proc. 819/16.0JFLSB-K.L1 9ª Secção
Desembargadores: Cláudio Ximenes - Almeida Cabral - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Processo n.° 819/16.OJFLSB-K.Ll
Acórdão da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. J... recorre da decisão que lhe indeferiu o pedido de abertura de instrução. Pretende a revogação da decisão recorrida e a abertura da instrução requerida.
Termina a motivação do recurso com as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público não tem poderes pata declarar a nulidade da acusação pública por si deduzida após esta ter sido notificada ao Arguido e para este, querendo, requerer a abertura da Instrução;
2. A direcção do inquérito pelo M.P. termina com a dedução da acusação, esgotando-se nesta fase os seus poderes de direcção e de acusação:
3. Ao declarar nula a acusação proferida e já notificada ao Arguido violou grosseiramente o direito de defesa do arguido, pois alterou. as regras do jogo a meio do jogo.
4. O arguido, depois de devidamente notificado para tal, requereu e esperava que a instrução requerida terminasse com um despacho judicial de não pronúncia;
5. Mesmo que assim não fosse, sempre existiria uma decisão judicial e sindicância da actuação do M.P. em sede de Inquérito, pois a razão de ser e o objecto da instrução é a obtenção do reconhecimento jurisdicional da legalidade ou ilegalidade processual da acusação.
6. Não visa apenas a comprovação judicial da decisão de acusar ou de arquivar o processo, mas também tudo o que, para alem disso, possa ter interesse imediato e relevante para a justa decisão da causa (Ac. RC de 17 de Abril de 1991; CJ XVI, tomo 2, 111) (sublinhado nosso).
7. Além do mais, a acusação do MP, termina com a deduçâo da acusação, não podendo já depois de deduzida e notificada ao arguido a acusação, vir o MP dar o dito pelo não dito, pois tal actuação do MP tem como consequência o arguido ficar refém e a reboque da actuação sem limite e discricionária daquele, que- assim, estaria legitimado, numa actuação de sucessivas tentativas/erro, a formular múltiplas e infindáveis acusações, até acertar.
8. A renovação da acusação pública nula: no caso sub judice é mais possível uma vez que se esgotou o prazo peremptório para a sua prática.
9. Estaria assim encontrada a fórmula para que o MP pudesse, de forma legal, incumprir os prazos de duração do inquérito, pois bastaria proferir uma acusação às pessoas para logo depois a declarar nula e fazer uma nova (ou um novo inquérito) e assim sucessivamente.
10. Esta conduta inadmissível do Ministério Público originou uma situação processual caricata, anómala e inconstitucional: neste momento o Sr. J... é arguido em 2 processos distintos sobre os mesmos factos! Tem que pagar o trabalho dos seus mandatários a dobrar! Está sujeito a medidas de coacção em dois processos diferentes!
11. Em nenhuma situação do C.P.P. se prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, com o consequente prosseguimento do processe, em vez do seu arquivamento. Tal possibilidade de modo algum se harmonizaria com o espírito de um sistema processual penal, assente nalguma forma de proteção das, expetativas do arguido em face de uma acusação determinada e não sujeita a correções ou reformulações, sob pena de subversão do espírito do sistema processual penal vigente através de uma forma de correção, não prevista nesse sistema, de uma acusação improcedente.
12. A decisão instrutória deverá julgar a acusação nula, como, requerido pelo arguido no seu requerimento de abertura de instrução, com o consequente arquivamento dos autos, nos termos do art° 308.°, n.° 3 e n° 1, in fine, do CPP.
13. Esta seria a única solução compatível com o principia do acusatório e do contraditório, previsto no artigo 32° da CRP.
14. A instrução requerida pelo arguido invocando insuficiência dos factos alegados na acusação pública visa a prolação de um despacho de não pronúncia, e o consequente arquivamento dos autos.
15. A anuência do JIC à actuação do MP viola grosseiramente o direito de defesa do arguido.
16. A declaração formal de nulidade pelo M.P., por si só, não atinge os objectivos da instrução requerida pelo arguido. pelo contrário.
17. Ao indeferir o R.A.I do Arguido, considerando que contra ele não, foi proferida acusação, ou seja, aceitando a declaração de nulidade feita pelo próprio M.P., o JIC devolveu os autos ao M.P. como que num inaceitável e displicente convite ao aperfeiçoamento, sem nada decidir e sem sindicar, como devia, a actuação do M.P. em sede de Inquérito;
18. Portanto, a decisão instrutória do Juiz de Instrução Criminal ao considerar que não havia acusação proferida, viola o disposto no artigo 286.° do CPP.
19. Acresce que, a interpretação dos artigos 286.°, n° 1 e 308° do CPP no sentido de, em sede de instrução, ser admissível a devolução dos autos ao MP para reformulação da acusação é manifestamente inconstitucional por violação do disposto nos artigos 18°, n° 2 e n° 3 e 32°, n° 1 e 5 da CRP.
20. Verificando-se as aludidas nulidades da acusação, corno suscitadas pelo arguido, deveriam aa mesmas ter sido declaradas e ter sido proferido despacho de não pronúncia do arguido com o consequente arquivamento dos autos.
21. Pelo que, decidindo, como decidiu o JIC, pelo não recebimento do requerimento de abertura de instrução, a decisão instrutória violou o disposto nos artigos 286.° e 308° do CPP.
O Ministério Público defende a improcedência do recurso.
II. De acordo com as conclusões da motivação, temos que decidir neste recurso se estão reunidos os requisitos para se admitir o pedido de abertura de instrução formulado pelo recorrente.
O recorrente alega que a decisão recorrida viola o disposto nos artigos 286.° e 308° do CPP, pois o Ministério Público não tem poderes para declarar a nulidade da acusação deduzida e notificada ao arguido para, querendo, requerer a abertura da instrução; que a direcção do inquérito pelo Ministério Público termina com a dedução da acusação; que o Tribunal recorrido viola o direito de defesa do arguido, bem como a espectativa de que a instrução viesse a terminar num despacho judicial de não pronúncia; que admitir a renovação da acusação nula seria permitir ao Ministério Público não cumprir os prazos de duração do inquérito através de sucessivas acusações; que no caso presente o recorrente passou a ser arguido em dois processos distintos pelos mesmos factos; que o CPP não prevê a faculdade de reformular ou corrigir uma acusação improcedente, nem tal possibilidade se harmonizaria com o espírito do sistema processual penal assente na proteção das expetativas do arguido; que a decisão instrutória deveria julgar a acusação nula, como tinha sido pedido no requerimento de abertura de instrução e o arquivamento dos autos, nos termos do artigo 308.°, n.° 3 e n° 1, in fine, do CPP - única solução compatível com o principia do acusatório e do contraditório, previsto no artigo 32.° da CRP; que ao indeferir o requerimento de abertura de instrução do requerente, considerando que contra ele não tinha sido proferida acusação, aceitando a declaração de nulidade feita pelo Ministério Público, o Juiz de Instrução Criminal devolveu os autos a este, fazendo como que um convite ao seu aperfeiçoamento, violando o disposto nos artigos 286.° e 308.° do CPP; que a interpretação dos artigos 286.°, n.° 1 e 308.° do CPP no sentido de, em sede de instrução, ser admissível a devolução dos autos ao MP para reformulação da acusação, viola o disposto nos artigos 18.°, n.°s 2 e 3, e 32°, n.°s 1 e 5, da Constituição.
A decisão recorrida é a seguinte:
Quanta à instrução requerida pelo arguido J..., hã a referir que cfr. resulta do despacho de fls. 5061 a 5063, a acusação foi declarada nula quanto a este arguido, pelo que neste momento deve considerar-se que quanto ao arguido João Alves não foi proferida acusação, carecendo o requerimento de abertura de instrução apresentado de objecto nos termos do art 287.° n.° 1 do CP.
Pelo exposto e por inadmissibilidade legal, indefiro o requerimento de abertura de instrução apresentado pelo arguido J....
Nos termos do artigo 286.°, n.° 1, do CPP, a instrução visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação, o que pressupõe a existência de uma acusação válida.
No caso o Ministério Público deduziu acusação contra o recorrente e outros arguidos, e, depois de ele ter sido notificado dela mas antes de os autos serem enviados ao Tribunal, declarou-a nula e não escrita quanto a ele.
Pode o Ministério Público declarar nula a acusação ou considerar não escrita a acusação como fez?
O processo penal tem estrutura acusatória (artigos 32.°, n.° 5, da Constituição e 48.° a 53.°, 263.°, n.° 1, 281.°, n.° 1, e 283.° do CPP). Isso quer dizer que a entidade que acusa é diferente daquela que julga, que não pode haver julgamento sem acusação, que o Tribunal não pode impor ao Ministério Público ou ao ofendido que deduza acusação ou nem indicar-lhes os termos em que o deve fazer.
O artigo 53.°, n.° 1, do CPP atribui ao Ministério Público o dever de colaborar com o Tribunal na descoberta da verdade e na realização do direito e de seguir nas suas intervenções processuais critérios de estrita objectividade. A descoberta da verdade e realização da justiça equivale à
prevalência da realização da justiça material e não apenas a justiça formal, ou seja, a busca da condenação de quem, segundo a prova produzida, praticou factos pelos quais deve ser condenado e a absolvição de quem, segundo a prova produzida, não os praticou e, portanto, deve ser absolvido.
A realização da justiça material justifica a atribuição ao tribunal do poder-dever de ordenar a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa (artigo 340.°, n.° 1, do CPP); e justifica também os mecanismos estabelecidos nos artigos 358.° e 359.°, respectivamente, para os casos de alteração não substancial ou de qualificação jurídica dos factos e os casos de alteração substancial dos factos - permitindo que se condene pelos novos factos ou (nos casos de verificação de alteração substancial dos factos em que não haja acordo do Ministério Público, do arguido e do assistente na inclusão deles no julgamento em curso), a comunicação deles ao Ministério Público para, querendo, desencadear procedimento criminal autónomo.
A vinculação do Ministério Público aos objectivos de descoberta da verdade e na realização do direito, ou de realização da justiça material, ficaria gravemente prejudicada se se negar ao Ministério Público, a quem cabe a direcção do inquérito (artigo 263.° do CPP), a faculdade de corrigir eventuais nulidades ou irregularidades cometidas na fase em que o processo está sob a sua direcção e ainda não transitou para a esfera judicial através da entrada do processo na secretaria do Tribunal. Enquanto o processo não entrar na secretaria do Tribunal, o Ministério Público, que tem a direcção do inquérito, tem competência para conhecer das nulidades e irregularidades nos termos dos artigos 118.° a 123.° do CPP.
O conhecimento da nulidade detectada pelo Ministério Público, como no caso aconteceu, não importa violação do direito de defesa do arguido. A exclusão do recorrente do rol dos acusados significa que ele desaparece como arguido no processo e, portanto, não precisa de se defender nesse processo.
Por já não estar acusado, o recorrente não tem legitimidade para requerer a instrução, cujo objectivo é a comprovação ou não da decisão de deduzir acusação contra ele (artigo 286.°, n.° 1, do CPP).
É certo que no caso o Ministério Público organizou um processo separado quanto a ele. Mas, nesse processo, o recorrente mantém todos os seus direitos legais e constitucionais, nomeadamente os de defesa, inclusive o de requerer a abertura de instrução na altura própria. Não se pode dizer que o recorrente é arguido em dois processos em simultâneo pelos mesmos factos, porque ele deixou se der arguido no processo inicial, e só o é no novo processo.
Embora os prazos de inquérito sejam estabelecidos, em certa medida, também no interesse do arguido, a lei não faz extinguir o procedimento criminal contra ele por efeito da eventual falta de cumprimento deles. Esse incumprimento tem outras consequências, corno os disciplinares, que não a de cessar o procedimento criminal.
Não é legítima nem protegida por lei ou pela Constituição qualquer espectativa do arguido de se aproveitar da nulidade cometida na fase do inquérito ou na acusação ao ponto de impedir a sua declaração e correcção nos termos dos artigos 118.° a 123.° do CPP. O regime das nulidades e irregularidades é estabelecido para garantir a regularidade e a justiça do processo através do qual se pretende chegar à decisão sobre a aplicação ou não de uma sanção ao arguido, não para salvaguardar expectativas do arguido a subtrair-se da acção penal em consequência directa delas.
Em conclusão, a decisão recorrida não violou qualquer norma processual ou constitucional, nomeadamente as citadas pelo recorrente.
III. Por decair totalmente no recurso, o recorrente (arguido) deve suportar as custas do processo, com a taxa de justiça fixada em 6 UCs, tendo em conta a complexidade do caso e os limites fixados na tabela III, nos termos dos artigos 8.°, n.° 9, do Regulamento das Custas Processuais e 513.°, n.° 1, do CPP.
IV. Pelo exposto, deliberamos, por unanimidade,
a) Julgar improcedente o recurso interposto por J...;
b) Condenar o recorrente nas custas, fixando a taxa de justiça em 6 UCs.
Lisboa, 11 de Janeiro de 2018
Os Desembargadores
Relator - Cláudio de Jesus Ximenes
Adjunto - Manuel Almeida Cabral