O incidente de recusa de juiz (no qual não cabem discordâncias jurídicas quanto a decisões de juízes, as quais devem ser impugnadas pelos meios próprios) visa assegurar as regras de independência e imparcialidade, que são inerentes ao direito de acesso aos Tribunais, constituindo uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa e mesmo do princípio do juiz natural.
Pretende-se assegurar a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados, pois que os Tribunais administram a Justiça em “nome do povo”.
A imparcialidade deve ser apreciada de acordo com um teste subjectivo e um teste objectivo, visando o primeiro apurar se o juiz deu mostra de interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa, e o segundo determinar se o comportamento do juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade.
Ao aplicar o teste subjectivo, a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção.
Proc. 166/18.3YRLSB 5ª Secção
Desembargadores: Anabela Simões - Cid Geraldo - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Tribunal da Relação de Lisboa
5ª Secção
Processo n° 166/18.3YRLSB
1. No Processo de Instrução n° 121/13.OTELSB, do Tribunal Central de Instrução Criminal, Secção Única, veio o Digno Magistrado do Ministério Público suscitar incidente de recusa do Meritíssimo Juiz de Instrução Criminal Dr. I….
O fundamento do pedido de recusa é o seguinte:
O DIREITO
1. É notório que a administração da Justiça é impensável sem um Tribunal independente e imparcial - artigo 203.° da CRP - e a imparcialidade do Tribunal constitui um requisito fundamental do processo justo - artigo 10. ° da Declaração Universal dos Direitos do Homem, artigo 14. °, n° 1, do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos e artigo 6. °, n° 1, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
2. De harmonia com o disposto no n.° 1 do art. 43. °do CPP a intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade regra que, constituindo exceção ao princípio do juiz natural (art. 32.° n.° 9 da Constituição), configura uma garantia fundamental do processo criminal, nomeadamente porque inserida no âmbito da proteção dos direitos de defesa, não só para proteção da liberdade e do direito de defesa do arguido, como dos restantes intervenientes processuais, garantindo o julgamento por um tribunal predeterminado e não criado ad hoc, ou vindo a ser imposto como competente a posteriori.
3. Ora, na perspetiva das partes, as garantias de imparcialidade referem-se à independência do juiz e à sua neutralidade perante o objeto da causa. É certo que o MP não é parte em sentido formal mas tendo produzido a acusação a sua visão da realidade ficou plasmada na hipótese acusatória (Roxin) formulada que, se nada de novo a vier objetivamente contrariar, será sempre sustentado pelo MP ao longo dos autos.
4. Como é defendido no Ac. do Tribunal da Relação de Évora (Clemente de Lima, processo n° 142/11.7GAOLH-A.E1, em http://www.dgsi.pt), datado de 14.07.2017, Ainda que a independência dos juízes seja, antes do mais, um dever ético-social, uma responsabilidade que tem a dimensão ou a densidade da fortaleza de ânimo, do carácter e da personalidade moral de cada juiz, não pode esquecer-se a necessidade de existir um quadro legal que promova e facilite aquela independência vocacional, por isso que é necessário, além do mais, que o desempenho do cargo de juiz seja rodeado de cautelas legais destinadas a garantir a sua imparcialidade e a assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição.
5. Citam-se, nesse aresto, diversos autores como o Prof. Figueiredo Dias (em «Direito Processual Penal», 1, 1974, pag. 320), que considera tratar-se de (...) um verdadeiro princípio geral de direito, actuante no domínio da política judiciária, que se esconde atrás de toda a matéria respeitante aos impedimentos e suspeições do juiz: o de que é tarefa da lei velar por que, em qualquer tribunal e relativamente a todos os participantes processuais, reine uma atmosfera de pura objectividade e de incondicional jurisdicidade . Manzini (citado por Figueiredo Dias, ob. cit, nota 33, pp. 315/316), invocava que o judex suspectus deve, em vista de qualquer motivo sério, ser dispensado como juiz num processo em que, tendo em conta a força média de resistências às causas internas que possam influir danosamente sobre o julgamento, seja razoavelmente de presumir que possa estar sujeito a paixões ou preocupações contrárias à recta administração da justiça.
6. Também, o Prof. Cavaleiro de Ferreira (no «Curso de Processo Penal», 1986, pp. 141/142) considerava que Não importa que, na realidade, o juiz permaneça imparcial; interessa sobretudo considerar se, em relação com o processo, poderá ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição que a lei indica.
7. O Tribunal Europeu dos Direitos do Homem sufraga claramente o mesmo princípio a imparcialidade da jurisdição não é só a imparcialidade subjectiva. É também a imparcialidade objectiva que deve ser assegurada (...). Afinal, trata-se da confiança que os tribunais de uma sociedade democrática devem inspirar às partes (...). Deve pois recusar-se qualquer juiz relativamente ao qual se possa legitimamente recear a existência de uma falta de imparcialidade (...). O elemento determinante consiste em saber se as apreensões do interessado podem ter-se como objectivamente justificadas (Caso Hauschildt, cit. no acórdão, do Tribunal Constitucional, n° 52/92, no DR, I-A, de 14-3-92).
8. Deste modo, como se esclarece nos pontos 22 a 24 do referido Acórdão da Relação de Évora que nos permitimos citar:
22 - Com efeito, a imparcialidade do juiz e do Tribunal não se apresenta sob uma noção unitária - as diferentes perspectivas, vistas do exterior, do lado dos destinatários titulares do direito a um tribunal imparcial, reflectem dois modos, diversos mas complementares, de consideração e compreensão da imparcialidade: a imparcialidade subjectiva e a imparcialidade objectiva.
23 - Do lado subjectivo, a imparcialidade tem a ver com a posição pessoal do juiz, pressupondo a demonstração e determinação daquilo que um juiz, integrando um tribunal, pensa e pondera, no seu íntimo foro, perante um certo dado ou circunstância, envolve saber se este guarda em si qualquer motivo que possa determiná-lo a favorecer ou a desfavorecer um interessado na decisão, importando demonstrar ou indiciar, de modo relevante, uma tal predisposição - como, de modo impressivo e incontornável, refere o Senhor Conselheiro Henriques Gaspar, no voto de vencido tirado no Acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 8 de Maio de 2003 (Proc. 03P2156, disponível em www.dgsi.pt/jstj), cujos ensinamentos aqui, expressamente, se acompanham, é por isso que a imparcialidade subjectiva se presume até prova em contrário, funcionando os impedimentos, neste conspecto, como modo cautelar de garantia da imparcialidade subjectiva.
24 - Já a perspectiva objectiva, consequência! à intervenção no direito processual, suportada no adágio justice must not only be done, it must also be seen to be done, relevando as aparências, faz intervir não apenas considerações de carácter orgânico e funcional, mas também todas as posições com relevância estrutural ou externa que, do ponto de vista de um destinatário da decisão, possam fazer suscitar dúvidas, dando causa ao receio, objectivamente justificado, quanto ao risco da existência de algum elemento, prejuízo ou preconceito que contra si possa ser negativamente considerado.
9. Pode, por isso, concluir-se - tal como no citado aresto - que a recusa do juiz natural merece obter provimento quando se demonstre que a intervenção do juiz no processo pode ser considerada suspeita, por se verificar, para tanto, circunstâncias claramente definidas de motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, reveladoras de que o juiz pré definido como competente (de modo aleatório) deixou de oferecer garantias de imparcialidade e isenção.
OS FACTOS
10. No âmbito do inquérito n° 184/12.5TELSB o Sr. JIC I… participou contra o subscritor do presente requerimento, diretamente para a Ex° Sr. ° Conselheira Procuradora-Geral da República, sem ter informado o visado dessa participação, comunicando 'para os fins tidos por convenientes que se sentia ofendido na sua honra e brio com a teor de alguns excertos de umas alegações de recurso desses autos que foram remetidas ao Tribunal da Relação de Lisboa. (Doc° n°I)
11. Considerados objetivamente, em abstrato, tais factos podem consubstanciar matéria do foro criminal (injúria e difamação a magistrado judicial), e contraordenacional.
12. Por esse motivo foi imediatamente determinada a abertura de um inquérito disciplinar que foi distribuído a um Procurador-Geral Adjunto, instrutor do CSMP. (doc° n° 1)
13. Resta o processo criminal que se seguirá, já que se trata de denúncia de um crime com natureza pública em razão da qualidade da vítima.
14. O ora requerente considera-se, e é estimado social e profissionalmente, como uma pessoa cordata e educada nunca tendo escrito qualquer consideração desprimorosa para o referido JIC, ou para a magistratura judicial.
15. A argumentação constante dos excertos do texto que terá ofendido o senhor JIC - conclusões silogísticas retiradas de premissas factuais apresentadas - já haviam servido de base a outras alegações de recurso prévias - no âmbito dos mesmos autos - sem ter despoletado qualquer reação de repúdio por parte do senhor juiz de direito, ou dos seus colegas junto do tribunal da Relação de Lisboa.
16. Sucede que tal ocorreu encadeado numa prévia comunicação efetuada pelo subscritor contra o senhor juiz de direito dirigida ao CSM - da qual foi dado conhecimento ao próprio -, reportando três situações diferentes, da qual se junta cópia. (Doe n°2)
17. Tal participação para efeitos disciplinares havia sido efetuada fora do âmbito do mencionado inquérito n° 184/12.5TELSB e era relativa à postura do Sr. JIC I... em sede da sua atuação na prevenção do branqueamento recusando a prática de atos urgentes.
18. Essa comunicação ao CSM dos três referidos casos deu origem/foi junta aos autos n° 2017/GAVPM/3055, e onde se encontram anexas outras comunicações similares. Posteriormente a comunicação deu origem a um processo inspetivo extraordinário com o n° 2017/254/IE. (Doc° n° 2)
19. E essa participação do juiz de instrução em causa para o CSM - dando-lhe prévio/concomitante conhecimento - só foi tomada na convicção de que não existindo possibilidade de conseguir efeito útil do recurso das decisões judiciais respetivas era necessário procurar obstar à sua futura repetição da única forma que parecia viável.
20. Toda esta situação tem sido profusamente difundida pela Comunicação Social que a amplifica e vem realizando especulações a propósito da atividade do sr. juiz de Instrução obstaculizando a todas as diligências de inquérito, impedindo a realização de atos de produção de prova, determinando a destruição da que era recolhida pelo MP e a nulidade de tudo o que a investigação procurava obter. E acrescentando-se que, pelo contrário, os requerimentos formulados pelos arguidos são sempre considerados com bonomia e deferidos. (Doc° n° 3 a 10)
21. Tal circunstância poderá prejudicar manifestamente o decurso da instrução do processo em causa (Proc. n° 121/13.OTELSB) onde estão se encontram num litígio interesses conflituantes que envolvem desde a TAP até à SONANGOL e SONAIR, com elevada ressonância social ao nível nacional e internacional, sob o olhar atento dos Mass Media. (Doc° n° 11)
22. Permitimo-nos voltar, novamente, ao Ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 14.07.2017, para o citar e com ele considerar que de tudo que o se referiu Vale por dizer que, em relação a qualquer processo, o juiz deve sempre ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos de suspeição verificados.
23. Neste mesmo sentido, cumpre acrescentar que, como se refere no Ac. STJ de 19-05-2010, Trata-se de questão que tem a ver com a composição concreta do tribunal e não com a sua competência tout court. (...) Em todo o caso, convirá sublinhar que o que está em questão não é a capacidade genérica do julgador, a qual deve existir sempre para que aquele possa exercer a função que lhe é confiada, mas sim a capacidade específica, a qual aqui se consubstancia na inexistência de motivo particular e especial que iniba o juiz de exercer a respectiva função num determinado caso com imparcialidade .
24. Ou seja, os indícios de tratamento faccioso, de uma determinada linha tendenciosa, estão a ser escrutinados diariamente pela Comunicação Social colocando o concreto magistrado judicial numa posição insustentável apontando-o como em litígio com o concreto magistrado do MP e criando a aparência de uma atitude de pré-juízo sobre a sua atuação futura, o que até poderá vir a tornar-se desfavorável para os próprios arguidos por o Sr. JIC se sentir na necessidade de parecer imparcial...
25. Situação similar (embora envolvendo um advogado), mutatis mutandis, é a descrita no Ac. do Tribunal da Relação de Évora, datado de 15-09-2009 (CJ, 2009, T4, pág.261) onde se considera que A circunstância de o juiz ter recentemente apresentado denúncia criminal contra advogado do arguido constituído nos autos reveste gravidade e seriedade bastantes para gerar desconfiança sobre a imparcialidade e justificar a respectiva escusa.
26. Também na decisão do STJ datada de 09/03/2017 (Proc. n° 122/13.8TELSB-AKL1-A.S1) esse acórdão que deferiu o pedido de recusa do MP ao juiz Desembargador R… e, na Decisão do STJ do Ac. de 06/05/2004 (proc. n° 04P1413) se considera que pode existir um risco real de não reconhecimento público da imparcialidade do magistrado recusado que afeta a confiança pública na administração da justiça se independentemente da atitude pessoal do juiz, certos factos verificáveis autorizam a suspeitar da sua imparcialidade (...), a situação objetiva possa derivar de uma determinada posição do juiz em relação ao caso concreto ou a determinado interveniente processual, em termos de existir um risco real de não reconhecimento público da sua imparcialidade.
27. Todo este patenteado antagonismo - não desejado nem desejável para o MP - que tem ocorrido entre o magistrado do MP titular do presente inquérito e o senhor JIC faz criar a convicção, no homem médio, de que o juiz de instrução terá uma predisposição no sentido de prejudicar, com a sua decisão, a posição que o MP assumiu nos autos durante a investigação e, potencialmente, condicionar o seu poder decisório, mesmo podendo vir a prejudicar os arguidos para se mostrar publicamente como imparcial.
28. De facto ,foram indicados diversos sinais reveladores da quebra de confiança que deveria ser pessoal e socialmente pressuposta, e pressuposto, da independência judicial.
29. Em matéria de suspeição, a questão não se coloca ao nível da indagação profunda do carácter parcial, ou não, do juiz. A questão essencial é se um homem médio colocado perante o processo e desconhecendo se o juiz é imparcial, ou não, pode, face a todas as circunstâncias, razoavelmente colocar em causa a imparcialidade pressuposta.
30. E, quanto a nós, nesta situação a resposta a essa questão é claramente afirmativa.
31. A própria decisão de abertura de instrução vem incutir essa ideia pois - sem qualquer contraditório ou averiguação prévia - é imediatamente determinado pelo Sr. JIC, sem a invocação de qualquer norma legal, para o MP juntar aos autos cópia integral do processo administrativo n° 1137/2010 o que, como se sabe, é legalmente inadmissível por ter origem numa comunicação de operação suspeita efetuada ao abrigo da Lei de Combate ao Branqueamento de Capitais e Financiamento de Terrorismo, Lei n° 25/2008, de 05/06. (Doc° n° 11)
32. Denominando-o rigorosamente, o processo que o Mm? JIC pretende obrigar o MP a juntar aos autos, contra a sua vontade, é uma Averiguação Preventiva de Prevenção de Branqueamento (art. 81° n°s 2 e 3 da Lei 83/2017, de 18/08 e art°s 3° n° 1, alíneas h) e i) e 47° n° 4 do EMP), processo por natureza secreto e que jamais poderia ser junto a um inquérito (facto inédito em Portugal).
33. É que o acesso à documentação constante de tais APs (que não derive do intercâmbio de dados e colaboração com órgãos de investigação ou entidades sujeitas à Lei n° 25/2008 ou com competências de supervisão, fiscalização, prevenção ou repressão relevadas nesse regime jurídico) é absolutamente proibido, atento o disposto nos artigos 16°, n. ° 2, e 20.° n° 2, da Lei n° 25/2008, sendo mesmo criminalizada a identificação da pessoa que realizou a comunicação de operação suspeita.
34. Tal é, aliás, a doutrina Parecer do Conselho Consultivo da PGR n° 26/2013, de 20.02.2014, do relator Paulo Dá Mesquita, o qual foi tirado por unanimidade.
35. Ora, a justiça deve enraizar-se na confiança: como é referido pela jurisprudência norte-americana A Justiça deve satisfazer a aparência da Justiça .
CONCLUSÃO
Do anteriormente exposto resulta provado que o senhor juiz ora recusado, deve ser substituído, por forma a que se respeite a Constituição e a Lei e que não se permita a ninguém afirmar que O juiz estava comprometido ('The judge was biased - cf case Metropolitan Properties v. Lannon).
TERMOS EM QUE:
Deve o presente incidente de recusa de juiz ser julgado procedente, por provado, e, em consequência, ser decretada a cessação da intervenção do senhor juiz ora recusado nos autos supraidentificados determinando-se que o JIC recusado remeta, de imediato o processo ao juiz que, de harmonia com as leis de organização judiciária, deva substituí-lo , nos termos do art. 46° do CPP.
Juntou ao pedido:
- Cópia da participação efectuada pelo Mm° JIC contra o MP subscritor do presente incidente;
Cópia da participação efectuada pelo MP contra o Mm° JIC;
Cópia da decisão judicial de abertura de instrução do NUIPC 121/13.OTELSB;
Cópia de notícias de jornal relatando os factos.
Neste Tribunal da Relação, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da procedência do pedido de recusa efectuado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, junto da Ia Instância.
O Exmo. Sr. Juiz visado pronunciou-se, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 45° n° 3 do CPP, concluindo que o motivo invocado pelo requerente não constitui motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, enquanto julgador, já que essa valoração terá de resultar das concretas circunstâncias invocadas, a partir do senso e da experiência comum do homem médio, pressuposto pelo direito, e não a partir da impressão ou convencimento subjectivo por parte de um sujeito processual, para além de que o meio próprio de impugnar as decisões judiciais é através do recurso e não do incidente de recusa, mais invocando que o princípio do juiz natural, constitucionalmente consagrado no art. 32° n° 9 da CRP, que surge como uma das garantias do processo criminal, só poderá ser afastado quando se evidenciem outros princípios ou regras que o ponham em causa.
Os arguidos, M..., P... e A..., também a pronunciaram sobre o incidente de recusa de juiz, suscitado pelo Digno Magistrado do Ministério Público, todos eles pugnando pela sua improcedência, por manifestamente infundado.
2. Foram colhidos os vistos e realizada a competente conferência.
3. O objecto do incidente de recusa é constituído pela:
- Apreciação objectiva sobre a imparcialidade do julgador.
Apreciando:
Dispõe o artigo 43° (recusas e escusas) do CPP:
1. A intervenção de um juiz no processo pode ser recusada quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
2. Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n° 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40°.
3. A recusa pode ser requerida pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis.
4. O juiz não pode declarar-se voluntariamente suspeito, mas pode pedir ao tribunal competente que o escde intervir quando se verificarem as condições dos n°s 1 e 2.
5. Os actos processuais praticados pelo juiz recusado ou escusado até ao momento em que a recusa ou a escusa foram solicitados só são anulados quando se verificar que deles resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo; os praticados posteriormente só são válidos se não puderem ser repetidos utilmente e se se verificar que deles não resulta prejuízo para a justiça da decisão do processo.
O incidente de recusa de juiz, previsto no artigo 43° do Código de Processo Penal, exige que a intervenção do julgador possa correr o risco de ser considerada suspeita, pressupondo a existência de motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
O motivo sério e grave, referido na lei, tem de ter reflexo em factos que o evidenciem.
Assim, para sustentar a recusa do juiz, atento o disposto no citado art. 43 n° 1 do CPP, é necessário verificar:
- se a intervenção do juiz no processo em causa corre o risco de ser considerada suspeita;
- e, se essa suspeita ocorre por existir motivo, sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Mas, se é certo que a lei não define o que se deve entender por «motivo sério e grave adequado a gerar desconfiança sobre a imparcialidade» do juiz, cuja recusa é requerida, a verdade é que, para tanto, deverão ser alegados factos objectivos susceptíveis de preencher tais requisitos - neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 28/6/2006, proc. n° 06P1937, disponível in ITIJ - Bases Jurídicas Documentais, cujo relator (Conselheiro Simas Santos) indica diversa jurisprudência sobre a matéria, também aqui se mencionando, entre outros, o Ac do STJ de 17.04.2008 (processo n° 08P1208), disponível in www.dgsi.pt.
O incidente processual de recusa de juiz (no qual não cabem discordâncias jurídicas quanto a decisões de juízes, as quais devem ser impugnadas pelos meios próprios), visa, pois, assegurar as regras da independência e imparcialidade, que são inerentes ao direito de acesso aos tribunais (art. 20 n° 1 da CRP), constituindo ainda, no processo criminal português, atenta a sua estrutura acusatória (art. 32 n° 5 da CRP), uma dimensão importante do princípio das garantias de defesa (art. 32 n° 1 da CRP) e mesmo do princípio do juiz natural (art. 32 n° 9 da CRP) - cfr, entre outros, Ac. do TC n° 935/96, disponível in www.tribunalconstitucional.pt.
Tal como se entendeu no Ac. do TC n° 135/88, DR II Série de 8/9/1988, pretende-se «assegurar a confiança geral na objectividade da jurisdição. É que, quando a imparcialidade do juiz ou a confiança do público nessa imparcialidade é justificadamente posta em causa, o juiz não está em condições de administrar a justiça. (...) Importa, pois, que o juiz que julga o faça com independência. E importa, bem assim, que o seu julgamento surja aos olhos do público como um julgamento objectivo e imparcial. É que a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados é essencial para que os tribunais, ao administrar a justiça, actuem, de facto, em nome do povo (cf. art. 205 n° 1 da Constituição)».
A imparcialidade deve ser apreciada de acordo com um teste subjectivo e um teste objectivo.
O primeiro via apurar se o juiz deu mostra de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa.
Por sua vez, o teste objectivo da imparcialidade visa determinar se o comportamento do Juiz, apreciado do ponto de vista do cidadão comum, pode suscitar dúvidas fundadas sobre a sua imparcialidade (acórdão do TEDH Piersack v. Bélgica de 1.10.1982). A perspectiva do queixoso pode ser importante, mas não é decisiva (acórdão do TEDH Ferrantelli e Santangelo v. Itália de 7.8.1996 - acórdãos citados por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2a edição, página 128).
Ora perscrutados os elementos disponibilizados nos autos, verifica-se que o Meritíssimo Juiz de Direito visado não emitiu qualquer juízo ou valoração, nos actos em que teve intervenção, invocados no requerimento de recusa, adequados a gerar a desconfiança sobre a sua imparcialidade.
A este respeito cumpre observar, de acordo com a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, que, ao aplicar o teste subjectivo, a imparcialidade do juiz deve ser presumida e só factos objectivos evidentes devem afastar essa presunção.
Neste preciso sentido verbi gratio o acórdão do TEDH Piersack versus Bélgica de 1 de Outubro de 1982, citado entre outros (todos no mesmo sentido) por Paulo Pinto de Albuquerque, in Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2a edição, página 127.
Sob a perspectiva objectiva também se nos afigura não haver motivo - sério e grave - adequado a gerar qualquer desconfiança sobre a imparcialidade do Meritíssimo Juiz de Direito.
Na verdade, não constitui, só por si, fundamento de recusa de Juiz, em processo penal, o simples facto de existirem participações cruzadas do Mme. JIC e do Digno Magistrado do Ministério Público, subscritor do requerimento de recusa, aos respectivos Conselhos Superiores, no âmbito de um outro processo (Processo de inquérito n° 184/12.5TELSB), sendo certo que quaisquer discordâncias que se reportem a esse processo no mesmo devem ser resolvidas.
Entendimento contrário abriria um precedente grave de escolha de um juiz concreto para cada caso, na medida em que qualquer sujeito processual que, em Tribunal, pretendesse afastar um juiz da sua causa, sempre que se apercebesse de que os actos decisórios não lhe estavam a ser favoráveis, bastaria, para o efeito, dirigir qualquer queixa contra o C.S.M. ou, por exemplo, insultar o Tribunal, que, naturalmente, apresentaria a competente denúncia da situação, junto da entidade própria, para, a partir daí, aquele magistrado judicial ficar impossibilitado de julgar aquela causa (neste sentido, entre outros, cf. Ac. do STJ de 5 de Dezembro de 1990, in CJ, 1990, t. 5, p, 20 e Ac. da Relação do Porto de 31.05.2006, disponível in www.dgsi.pt).
Acresce que a discordância do Digno Magistrado do Ministério Público, requerente do presente incidente, relativamente a actos processuais praticados pelo Meritíssimo Juiz de Direito visado, neste ou noutro qualquer processo, mais concretamente na decisão de abertura de instrução, no segmento em que defere o pedido de cópia do processo administrativo n° 1137/2010, aos autos, tem a sua defesa própria nos recursos que aquele vem interpondo ou deve interpor, daí não podendo resultar a ideia de que o Exmo. Juiz visado não é imparcial, nem, como tal, pode ser percepcionado pelo homem médio.
Por último, restará, ainda, mencionar, quanto ao invocado escrutínio da comunicação social, que tal é, nos dias de hoje, inevitável, mas o escrutínio ou atenção, por parte daquela, sobre determinado processo ou interveniente processual ou as relações interprocessuais entre os diferentes intervenientes não podem, só por si, constituir fundamento de recusa ou escusa de um concreto magistrado visado.
Assim, consideramos que os motivos constantes do articulado do pedido de recusa, aqui em apreciação, não revestem a seriedade e gravidade, exigidas por lei, nos termos e para os efeitos previstos no art. 43° do CPP, e o seu deferimento constituiria um grave atropelo às regras da competência e ao princípio do juiz natural.
A imparcialidade do Mme Juiz visado, ao contrário de poder gerar desconfiança, deve ser presumida, até por inexistirem, in casu, quaisquer factos objectivos evidentes que devam afastar essa presunção, termos em que julgaremos improcedente o pedido de recusa.
Decisão:
Em conformidade com o exposto se indefere à requerida recusa do Senhor Juiz de Direito, Dr. I..., titular do processo de Instrução n° 121/13.OTELSB, do Tribunal Central de Instrução Criminal.
Sem custas.
Lisboa, 20 de Fevereiro de 2018.
Anabela Simões Cardoso
Cid Geraldes