A notificação para pagar a multa, sob pena de conversão em prisão subsidiária, não pode equivaler a conceder oportunidade para se pronunciar sobre as razões do não pagamento da multa, em particular relativamente a cidadão com evidentes dificuldades de expressão.
Estando em causa a possibilidade de ocorrer uma verdadeira modificação da natureza da pena aplicada, impõe-se que a notificação seja efectuada através de uma via que garanta a certeza de que o condenado teve conhecimento da possibilidade de ser proferida decisão que afete os seus direitos, liberdades e garantias, tanto mais que a notificação, embora remetida para a morada indicada pelo arguido, não se pode presumir que tenha sido efetuada na sua pessoa.
A falta de audição prévia do arguido fere de nulidade insanável a decisão de conversão da pena de multa em prisão subsidiária.
Proc. 6027/06.1TALRS.L1 5ª Secção
Desembargadores: Ricardo Cardoso - Vieira Lamim - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Proc. n°6027/06.1TALRS.L1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
I° 1. Nos autos de Processo Comum (Tribunal Singular), n°6027/06.ITALRS, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa Norte (Juízo Local Criminal de Loures - Juiz 1), por sentença de 23Fev.12, o arguido A..., foi condenado por crime de falsidade de declaração, na pena de oitenta dias de multa, à taxa de €5/dia.
Após diligências para o efeito, não tendo sido apurado que o arguido fosse detentor bens penhoráveis e não tendo ele liquidado a multa, o Ministério Público promoveu a conversão da multa em prisão subsidiária, de seguida tendo o Mmo Juiz, em 28Set.17, proferido o seguinte despacho:
Fls. 226
- O(a), então arguido(a), A... foi condenado(a), nos presentes autos, na pena de 80 dias de multa, à razão diária de 5,00€, o que perfez um quantitativo global de 400,00€.
Contudo, o(a) condenado(a):
a) Não requereu a respectiva substituição pela prestação de trabalho a favor da comunidade;
b) Não apresenta bens que permitam a execução coerciva da multa;
c) Não diligenciou nos autos qualquer justificação, tendente a provar que a razão do não pagamento da multa não lhe é imputável.
A descrita situação de execução da pena de multa implica, conforme disposto no art. 49°, n.° 1, do C.P., o cumprimento da pena de prisão subsidiária, pelo tempo correspondente, reduzido a dois terços (2/3 de 80 dias = 53 dias), porém, como não foi liquidado qualquer montante, falta cumprir 100/prct. da prisão subsidiária, i. e., 53 (cinquenta e três) dias de prisão.
Assim, em função do exposto, e ao abrigo do disposto no art. 49°, n.° 1, do C.P., determino que o(a) condenado(a) A... cumpra 53 (cinquenta e três) dias de prisão, a título de prisão subsidiária.
Notifique os intervenientes processuais, sendo o(a) condenado(a), por via postal simples com prova de depósito, para a morada do T.I.R. (cfr. Ac. Tribunal da Relação de Guimarães, de 3/7/2012, proc. 449/98.7PCBRG.G1; e Ac. Tribunal da Relação do Porto, de 6/4/2011, proc. 53/10.3PBMTS-A.P1, ambos consultáveis em www.dgsi.pt) ou, eventualmente, para a mais recente morada, por si, indicada nos autos.
Assim que transite em julgado a presente decisão de conversão, emitam-se os competentes mandados de condução do(a) condenado(a) ao estabelecimento prisional, com a expressa indicação que poderá a todo o tempo evitar, total ou parcialmente, a execução da prisão subsidiária, pagando, no todo ou em parte, a multa na qual foi condenado(a) - cfr. art. 49°, n.° 2, do C.P.
2. Deste despacho, recorre o arguido A..., motivando o recurso, com as seguintes conclusões:
2.1 Urna das manifestações do direito de defesa do arguido traduz-se na observância do princípio do contraditório, estabelecido no artigo 32, n°5 da Constituição da República.
2.2 O disposto no artigo 495 n°2 do C.P.Penal, é aplicável a qualquer decisão que diga respeito ao arguido e que deva ser precedida da sua audição prévia, inclusivamente a da conversão da multa não paga em prisão subsidiária.
2.3 A não audição do arguido em caso de revogação da pena de multa, constitui a nulidade insanável prevista na alínea c) do art.119, do C.P.P., independentemente do motivo da revogação. 2.4 Existe uma violação do art.32 n°5 da C.R.P. e do disposto no art.61 n°1 al. b do C.P.P., pois não se pode considerar exercido o contraditório a mera audição do condenado através da notificação de um defensor oficioso nomeado de escala, que nunca teve qualquer contacto com o arguido e nem sabe do seu paradeiro.
2.5 Impondo-se antes, para assegurar o cumprimento do disposto no art.61, al.b) do C.P.P., a notificação por contacto pessoal do arguido (ou pelo menos a sua tentativa) ou mesmo a sua detenção para comparência e não o mero depósito da carta na caixa de correio, para que o Tribunal possa assegurar-se de que o arguido/condenado teve efectivo conhecimento da notificação para exercer o contraditório.
2.6 De forma a averiguar-se da culpabilidade do arguido quanto ao não pagamento da pena de multa, deve aquele ser previamente ouvido para se pronunciar, em termos semelhantes ao disposto no art.495 n.° 2 do C.P.Penal.
2.7 Através do despacho em causa, violou o Tribunal a quo o disposto nos artigos 35 n°2 da C.R.P., art. 61.° al. b) do C.P.P. e art. 495 n.° 2 do C.P.P.
3. O recurso foi admitido, a subir imediatamente, nos próprios autos e com efeito
suspensivo, a que respondeu o Ministério Público, concluindo pelo seu não provimento.
4. Neste Tribunal, a Exma. Sr. Procuradora-geral Adjunta aderiu à resposta do Ministério
Público em 1a instância.
5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.
6. O objecto do recurso, tal como ressalta das respectivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se o despacho recorrido foi proferido em violação dos direitos de defesa do arguido, por preterição do contraditório.
II° 1. Questiona-se no recurso se, em relação à conversão da pena de multa em prisão subsidiária, foram adequadamente salvaguardados os direitos de defesa do arguido, em particular o contraditório.
Como decorre do art.49, n°3 do Código Penal, o mero não pagamento da multa não conduz logo e irremediavelmente à aplicação da prisão subsidiária, pois o condenado pode provar que o não pagamento lhe não é imputável.
Para o efeito deve ser assegurada ao condenado oportunidade para se pronunciar e eventualmente provar que o não pagamento lhe não é imputável, só assim sendo adequadamente asseguradas as garantias de defesa do arguido, em particular o contraditório (art.32, n°s 1 e 5, da CRP), cuja preterição constitui nulidade insanável (art.119, al.c, CPP).
No caso, foram ordenadas diligências tendentes a apurar bens do condenado e ordenada a notificação do mesmo para, em prazo determinado, pagar a multa, sob pena de ser determinada a sua conversão em 53 dias de prisão subsidiária (fls.207, 208 e 212), na falta de qualquer resultado positivo tendo sido proferido o despacho recorrido, determinando o cumprimento da pena de prisão subsidiária (fls.226 a 229).
Ao contrário do que defende o Ministério Público na resposta ao recurso, com aquela notificação, não se pode considerar adequadamente assegurado o direito do arguido se pronunciar sobre as razões do não pagamento, já que da mesma não consta que tem o direito de apresentar essas razões, mas tão só que tem determinado prazo para pagar a multa sob pena de conversão da mesma em prisão subsidiária (fls.212).
Notificar para pagar a multa, sob pena de conversão em prisão subsidiária, como consta de fls.207,208,212 e 213, não pode equivaler a conceder oportunidade para se pronunciar sobre as razões do não pagamento da multa, em particular em relação a cidadão com evidentes dificuldades de expressão, como decorre de fls.197.
Por outro lado, estando em causa a possibilidade de ocorrer uma verdadeira modificação na natureza da pena aplicada (passa a ser uma pena detentiva), impunha-se que a notificação fosse efectuada através de uma via que garantisse a certeza de que o condenado teve conhecimento da possibilidade de ser proferida decisão que afectava os seus direitos, liberdades e garantias.
Refere o Ministério Público que tal notificação foi remetida para a morada indicada pelo arguido, mas não há a certeza que tenha sido ele a recebê-la (fls.184 e 214), nem se pode presumir que tal notificação tenha sido feita na sua pessoa (o arguido é cidadão angolano e a carta foi enviada mais de dois anos depois do mesmo ter indicado essa residência- fls.197).
Dos autos não resulta que seja impossível a efectiva audição do condenado, referindo a PSP a fls.225 (em Jan.17) que não lhe são conhecimento bens, nem entidade patronal, mas não mencionando desconhecer o seu actual paradeiro, o que deveria ter sido aproveitado para tentar ouvir o arguido sobre as razões do não pagamento da multa.
Em conclusão, por falta de audição prévia do arguido, a decisão recorrida está ferida de nulidade insanável.
IV° DECISÃO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, em dar provimento ao recurso interposto pelo arguido A..., revogando o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que assegure ao arguido a possibilidade de se pronunciar sobre a razão do não pagamento da multa.
Sem tributação.
Lisboa, 27 de Fevereiro de 2018
(Relator: Vieira Lamim)
(Adjunto: Ricardo Cardoso)