Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 20-03-2018   Declarações prestadas por arguido perante magistrado do Ministério Público na fase de inquérito. Leitura ou reprodução em audiência das aludidas declarações. Prova nula.
I.O Tribunal recorrido atendeu às declarações prestadas pelo arguido perante magistrado do Ministério Público na fase de inquérito, no confronto com a versão factual dada pelo mesmo a conhecer em audiência de julgamento, para formar a sua convicção quanto à factualidade que provada se mostra.
II.Dos autos não consta que tenha o Tribunal recorrido procedido à leitura ou reprodução em audiência das aludidas declarações do arguido perante o magistrado do Ministério Público (admissível ao abrigo do estabelecido no artigo 357º, n.º 1, alínea b), do CPP) . Existindo valoração da prova que não foi produzida ou examinada em audiência, ocorre violação do disposto no artigo 355°, n° 1, do CPP, integrando as mesmas prova proibida, sendo a consequência processual inerente a da exclusão dessa prova do conjunto das que foram valoradas na fundamentação da matéria de facto levada a cabo na decisão recorrida.
III.A sentença que se funda em prova nula é também ela nula – nulidade que é do conhecimento oficioso, pois estão em causa direitos e princípios processuais fundamentais, como os do contraditório e processo justo e equitativo, tutelados pelos artigos 32°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa e 6°, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem. Sendo outra a cominação, proibições de prova que os obliteram poderiam transformar, por via da não arguição, vícios insanáveis em vícios sanáveis – pelo que importa declarar a nulidade da sentença, o que impõe a prolação de nova decisão que, analisando a restante prova, mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto e a respectiva matéria de direito.
Proc. 124/16.2PELSB 5ª Secção
Desembargadores:  Artur Vargues - Jorge Gonçalves - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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RECURSO N° 124/16.2PZLSB.L1
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos com o NUIPC 124/16.2PZLSB, do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa - Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 12, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido P... condenado, por sentença de 28/09/2017, pela prática, como autor material, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelos artigos 21°, n° 1 e 25°, alínea a), do Decreto-Lei n° 15/93, de 22/01, com referência à Tabela Anexa I-C, na pena de 2 anos e 2 meses de prisão.
2. O arguido não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso.
2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões (transcrição):
1. Em nosso entender, e sempre salvaguardando o devido respeito que nos merece a douta decisão aqui recorrida, a prova testemunhal e documental que se produziu em julgamento é suficiente para dar como provado que:
• No 5-2-2016, pelas 17:30, o arguido não se encontrava a vender canábis junto ao n.° 17 da Rua Maria Alice, em Lisboa,
• o arguido foi interceptado por agentes da PSP, tendo sido encontrada na sua posse a quantia de haxixe indicada na acusação (cfr. relatório de exame pericial cujo teor se considera aqui reproduzido);
• o arguido tinha na sua posse a canábis para seu consumo pessoal.
2. Os demais factos dados como provados e incompatíveis com os acima elencados deverão logicamente dar-se como não provados.
3. Tal resulta, a nosso modesto ver, indiscutivelmente, do depoimento isento e coerente prestado pelas testemunhas, pelo arguido.
4. Inexiste qualquer motivo lógico e válido, face às regras da experiência comum e do bom senso, que justifique a avaliação da prova, de toda a prova e particularmente da prova testemunhal, tal como efectuada pelo tribunal a quo.
5. Afigura-se-nos, aliás, que o princípio da livre apreciação da prova não permite que a actividade de valoração da prova seja arbitrária, pois está vinculada à busca da verdade, sendo limitada pelas regras da experiência comum e por algumas restrições legais, o que nos presentes autos não sucedeu.
6. Por todo o exposto, deve a acusação ser julgada improcedente, sendo o arguido absolvido do crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. p. pelos art. °s 21. 0, n.° 1 e 25. ° al. a), do DL 15/93, de 22-1, por referência à Tabela I-C anexa ao mencionado diploma legal,
Procedendo-se à substituição por outra sentença que absolva o recorrente pelo crime de que vinha acusado.
7. Caso assim não se entenda, aquilatado o grau de ilicitude dos factos, os meios utilizados na venda do estupefaciente, modalidade e circunstância em que a conduta é realizada, a qualidade e quantidade do produto vendido, o lucro obtido, o número de clientes contactados, qualquer um e todos estes indícios valorativos da graduação da ilicitude militam no sentido de necessariamente se considerar que a ilicitude é neste caso moderada a ponto de impor que se conclua, a partir dos factos dados como provados, que a punição concedida ao recorrente se mostra claramente desajustada e desproporcionada relativamente aos factos praticados, e deverá fixar-se uma pena ao redor de 18 meses de prisão, suspensa na sua execução.
3. O magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu à motivação de recurso, pugnando por lhe ser negado provimento.
4. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417°, n° 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência. Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410°, n° 2, do CPP - neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2' edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6a edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ n° 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento.
Dosimetria da pena aplicada/verificação dos pressupostos de aplicação da pena de substituição de suspensão de execução da pena.
2. A Decisão Recorrida O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):
1) No dia 05.02.2016, às 17h30m, o arguido encontrava-se junto à entrada do Lote 17, da Rua Maria Alice, em Lisboa, à espera de ser abordado por compradores de estupefacientes.
2) Na ocasião referida em 1), o arguido foi interpelado por um indivíduo, cuja identidade se desconhece, que lhe entregou uma nota de e 10, 00.
3) O arguido, por seu turno, entregou, em troca, ao referido indivíduo, um produto com cor castanha.
4) Imediatamente após, uma equipa da Polícia de Segurança Pública avançou na direcção do arguido.
5) O arguido, mal avistou os elementos policiais, começou a correr na direcção da Rua Helena Voz da Silva, ao passo que o aludido indivíduo correu no sentido oposto.
6) Momentos depois, o arguido foi interceptado por elementos da supra mencionada autoridade policial, na última artéria acima referida.
7) Aquando da intercepção policial, o arguido tinha nas mãos vários pedaços de canábis (resina), com o peso líquido total de 13,901 gramas e uma nota de €10, 00.
8) O arguido tinha, também, no vestuário que envergava, várias notas e moedas, sendo que, no total, foi apreendido ao arguido a quantia global de €128, 50.
9) O arguido destinava o sobredito produto estupefaciente à venda.
10) A actuar nos moldes supra expostos, o arguido:
- Agiu com o propósito de ter consigo o mencionado estupefaciente, cujas características, natureza e quantidade conhecia;
-Agiu de forma livre, voluntária e consciente; - Sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
11) Do certificado do registo criminal do arguido, consta que este foi condenado:
- Por factos ocorridos em 21.10.2010, por decisão proferida em 06.12.2011, transitada em julgado em 09.01.2012, pela prática de 2 crimes de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 2 anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo;
- Por factos ocorridos em 13.05.2013, por decisão proferida em 06.06.2013, transitada em julgado em 08.07.2013, pela prática de 1 crime de consumo de estupefacientes, na pena de 100 dias de multa, à taxa diária de € 5,00;
- Por factos ocorridos em 24.01.2014, por decisão proferida em 30.06.2015, transitada em julgado em 15.09.2015, pela prática de 1 crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, na pena de 14 meses de prisão, suspensa na sua execução, com regime de prova, por igual período de tempo.
12) O arguido:
- Vive em casa dos pais, com estes, com uma companheira e com dois filhos (12 e 14 anos de idade);
- Recebe mensalmente de rendimento mínimo de inserção cerca de € 130, 00, que é a sua única fonte de rendimento;
- Não é titular de qualquer meio de transporte próprio;
- Tem como habilitações literárias, o 4° ano de escolaridade.
Quanto aos factos não provados, considerou como tal (transcrição):
13) A equipa referida em 4) se encontrava a vigiar o local.
14) No momento referido em 7) o arguido tivesse na mão várias moedas.
15) A quantia referida em 8) fosse resultante de vendas de estupefacientes realizadas pelo arguido.
Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos
(transcrição):
A convicção do tribunal resultou dos seguintes meios de prova: Números 1) a 10): Conjugação dos seguintes meios de prova:
Declarações do arguido, o qual admitiu como verdadeira a factualidade respeitante à data, à hora, rua onde se encontrava, abordagem da Polícia de Segurança Pública quando se encontrava na aludida rua, posse do produto estupefaciente em apreço que sabia ser canábis e posse do dinheiro em notas e em moedas;
Depoimento da testemunha César Quintas, agente da Polícia de Segurança Pública, o qual, de um modo absolutamente espontâneo, e por isso credível, disse que, na situação em apreço, quando se encontrava a circular num veículo automóvel caracterizado da Polícia de Segurança Pública, na Rua Maria Alice, acompanhado dos seus colegas Rui Santos e Maurício Teixeira, apercebeu-se, à distância de cerca de 10 a 15 metros, da presença do arguido, junto à entrada do Lote 17 da aludida via pública, a falar com um indivíduo com ar de toxicodependente, que se encontrava todo vestido de escuro, a quem viu entregar um produto de cor castanha e a receber deste um nota de €10, 00, razão pela qual, suspeitando que se tratava de um transacção de droga, saiu do veículo, acompanhado pelo colega Rui Santos, momento em que, o arguido e o aludido indivíduo se colocaram em fuga, o primeiro na direcção da Rua Helena Vaz da Silva, local onde, após perseguição apeada veio a detê-lo, o qual tinha na sua mão uma nota de € 10,00 e o produto estupefaciente que lhe foi apreendido, e o segundo correu na direcção da Avenida Mourão Ferreira;
Depoimento da testemunha Rui Santos, agente da Polícia de Segurança Pública, o qual, igualmente de um modo absolutamente espontâneo, e por isso credível, descreveu que, na situação em causa, quando se encontrava a circular num veículo patrulha da Polícia de Segurança Pública, na Rua Maria Alice, acompanhado dos seus colegas César Quintas e Maurício Teixeira, viu o arguido, que se encontrava à entrada do Lote 17 da mencionada rua, a entregar uma embalagem a um indivíduo, com ar de toxicodependente, que se encontrava vestido de negro, que suspeitou, pelo local associado ao tráfico de droga, que fosse produto estupefaciente, e a receber do mesmo uma nota de € 10, 00, pelo que, conjuntamente com o colega César Quintas saiu do veículo, ocasião em que, o arguido e o referido indivíduo fugiram, o primeiro na direcção da Rua Helena Vaz da Silva, local onde, após perseguição apeada o arguido veio a ser detido, o qual tinha na sua mão uma nota de €10, 10,00 e o produto estupefaciente que lhe foi apreendido, e o segundo, segundo se recorda, no sentido oposto;
Depoimento da testemunha Maurício Teixeira, agente da Polícia de Segurança Pública, o qual, tal-qualmente de um modo absolutamente espontâneo, e por isso credível, descreveu que, na situação em causa, quando se encontrava a circular num veículo patrulha da Polícia de Segurança Pública, na Rua Maria Alice, acompanhado dos seus colegas César Quintas e Rui Santos, apercebeu-se que estes, por se terem apercebido de uma transacção de droga, saíram do carro e foram na direcção do arguido, que se encontrava no passeio ao pé da entrada do Lote 17 da mencionada artéria, o qual fugiu na direcção da Rua Helena Vaz da Silva, donde os mesmos foram no seu encalce, onde veio a ser detido por aqueles, sendo que, na mesma situação, viu um outro indivíduo vestido de negro a fugir na direcção da Avenida David Mourão Ferreira;
Auto de notícia por detenção que constitui fls. 1 a 2, no qual consta a data, hora, local dos factos e está atestado que o arguido foi detido e identificado com documento de identificação no qual se encontrava aposta fotografia;
Auto de apreensão que constitui fls. 13 a 15, no qual consta que, no dia em apreço, foi apreendido ao arguido o produto estupefaciente descrito no facto provado n. ° 7) e o dinheiro descrito no facto provado número 8);
Relatório pericial efectuado pelo Laboratório de Polícia Científica da Polícia Judiciária que constitui fls. 74, no qual consta o peso referido no facto provado n.° 7) e qual a substância activa presente no produto ali mencionado.
Apreciando criticamente os meios de prova ante elencados, cumpre evidenciar que o tribunal não valorou as declarações do arguido, quando, em suma, em sede de audiência de julgamento, bem como nas declarações que prestou perante um Magistrado do Ministério Público (Auto de interrogatório do arguido detido que constitui fls. 26 a 29, que comporta declarações prestadas em 06.02.2016 - o CD encontra-se a fls. 30) negou a prática dos comportamentos que lhe são imputados (transacção e fuga), dizendo que o produto estupefaciente se destinava ao seu consumo, pois que, a considerarem-se verdadeiras estas declarações ficaria por explicar a razão pela qual três agentes da Polícia de Segurança Pública estariam deliberadamente a faltar à verdade (por exemplo: os agentes César Quintas e Rui Santos viram a entrega dos €10, 10,00 contra algo e os três agentes referiram que o arguido fugiu), sendo certo que, a única pessoa que tem interesse em faltar à verdade, é o arguido, com vista a eximir-se à responsabilidade criminal pelo seu comportamento, tanto mais que, a versão que o arguido apresentou nos dois aludidos momentos é díspar (perante o Ministério Público disse que a outra pessoa - referindo-se ao outro indivíduo referido na acusação -, que disse não saber o nome, foi quem lhe vendeu a droga e, em sede de audiência, disse que se encontrava acompanhado da sua irmã e da testemunha Nuno Marcelino, não tendo, em momento algum, dito que este lhe vendeu o produto estupefaciente que se encontrava na sua posse). De igual modo, e pela mesma primeira razão, não valorou o depoimento da mencionada testemunha Nuno Marcelino (no que interessa, e de modo absolutamente não convincente, disse que era ele quem se encontrava ao pé do arguido e da irmã deste, a consumirem canábis, e que, quando foram abordados pelos agentes, ninguém fugiu), bem como o depoimento da testemunha Sandra Gomes - irmã do arguido - (no que interessa, e igualmente de modo absolutamente não convincente, disse que estava com o seu irmão a consumir haxixe e que depois apareceu a testemunha Nuno e que, quando foram abordados pelos agentes, ninguém fugiu).
Relativamente à demais factualidade não abrangida pelos meios de prova supra aduzidos, o tribunal socorreu-se das regras da experiência comum, por não ser crível, de todo, face à factualidade ali abrangida e fixada como provada, equacionar qualquer outra hipótese.
Número 11): Certificado do registo criminal que constitui fls. 139 a 144.
Número 12): Declarações do arguido que, nesta parte, o tribunal considerou suficientemente credíveis.
2.1.1.3.2) Factos não provados:
Números 13) a 15): Ausência de prova concludente a este respeito, por não ter resultado dos meios de prova supra aduzidos que esta factualidade corresponda à verdade, sendo que, quanto à constante no ponto 13), há que evidenciar que os três agentes policiais disseram que não se encontravam a efectuar qualquer vigia ao local.
O tribunal não apreciou, em termos de factualidade provada ou não provada, a demais factualidade descrita na acusação, por a ter considerado irrelevante para a decisão do presente processo.
Apreciemos.
Impugnação da matéria de facto/erro de julgamento
Critica o recorrente a matéria de facto dada como assente pela 1 a instância nos pontos 1), 2), 3), 5), 9) e 10), dos fundamentos de facto da decisão recorrida, afirmando que se mostra insuficiente a prova produzida em audiência de julgamento para a alicerçar e chamando a terreiro segmentos das declarações e depoimentos nesta prestados por si e testemunhas que identifica.
Quando o recorrente impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto nesta modalidade ampla, as conclusões do recurso, por força do estabelecido no artigo 412°, n° 3, do CPP, têm de descriminar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.
Segundo o n° 4 da mesma disposição legal, quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n° 3 do artigo 364°, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação, sendo que, neste caso, o tribunal procederá à audição ou visualização das passagens indicadas e de outras que considere relevantes para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa - n° 6.
Para dar cumprimento a estas exigências legais tem o recorrente nas suas conclusões de especificar quais os pontos de facto que considera terem sido incorrectamente julgados, quais as provas (específicas) que impõem decisão diversa da recorrida, bem como referir as concretas passagens/excertos das declarações/depoimentos que, no seu entender, obrigam à alteração da matéria de facto, transcrevendo-as (se na acta da audiência de julgamento não se faz referência ao início e termo de cada declaração ou depoimento gravados) ou mediante a indicação do segmento ou segmentos da gravação áudio que suportam o seu entendimento divergente, com indicação do início e termo desses segmentos (quando na acta da audiência de julgamento se faz essa referência, o que é o caso, o que não obsta a que, também nesta situação, o recorrente, querendo, proceda à transcrição dessas passagens).
Analisando a peça processual recursória, constata-se que cumpridas se mostram, ainda que imperfeitamente - mas, de qualquer modo, não impossibilitando em absoluto o conhecimento da impugnação nesta modalidade - as exigências legais.
Assim se entendendo, importa analisar então a prova produzida com o objectivo de determinarmos se consente a convicção formada pelo tribunal recorrido, norteados pela ideia - força de que o tribunal de recurso não procura uma nova convicção, mas apurar se a convicção expressa pela P instância tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e demais elementos probatórios podem exibir perante si (partindo das provas indicadas pelo recorrente que, na sua tese, impõem decisão diversa, mas não estando por estas limitado) sendo certo que apenas poderá censurar a decisão revidenda, alicerçada na livre convicção e assente na imediação e na oralidade, se for manifesto que a solução por que optou, de entre as várias possíveis e plausíveis, é ilógica e inadmissível face às regras da experiência comum - artigo 127°, do CPP.
E, a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção, pois doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão.
Cumpre ter em atenção também que os diversos elementos de prova não devem ser analisados separadamente, antes ser apreciados em correlação uns com os outros, de forma a discernir aqueles que se confortam e aqueles que se contradizem, possibilitando ou a remoção das dúvidas ou a constatação de que o peso destas é tal que não permite uma convicção segura acerca do modo como os factos se passaram.
Analisemos então a factualidade que provada foi considerada, que o recorrente critica, sob a óptica da censura que lhe faz e se tem ou não suporte na prova produzida.
Percorrida a explicitação da formação da convicção do tribunal a quo quanto à materialidade em causa, como consta da decisão revidenda, podemos ler:
Apreciando criticamente os meios de prova ante elencados, cumpre evidenciar que o tribunal não valorou as declarações do arguido, quando, em suma, em sede de audiência de julgamento, bem como nas declarações que prestou perante um Magistrado do Ministério Público (Auto de interrogatório do arguido detido que constitui fls. 26 a 29, que comporta declarações prestadas em 06.02.2016 - o CD encontra-se a fls. 30) negou a prática dos comportamentos que lhe são imputados (transacção e fuga), dizendo que o produto estupefaciente se destinava ao seu consumo, pois que, a considerarem-se verdadeiras estas declarações ficaria por explicar a razão pela qual três agentes da Policia de Segurança Pública estariam deliberadamente a faltar à verdade (por exemplo: os agentes César Quintas e Rui Santos viram a entrega dos €10, 10,00 contra algo e os três agentes referiram que o arguido fugiu), sendo certo que, a única pessoa que tem interesse em falsar à verdade, é o arguido, com vista a eximir-se à responsabilidade criminal pelo seu comportamento, tanto mais que, a versão que o arguido apresentou nos dois aludidos momentos é díspar (perante o Alinistério Público disse que a outra pessoa - referindo-se ao outro indivíduo referido na acusação -, que disse não saber o nome, foi quem lhe vendeu a droga e, em sede de audiência, disse que se encontrava acompanhado da sua irmã e da testemunha Nuno Marcelino, não tendo, em momento algum, dito que este lhe vendeu o produto estupefaciente que se encontrava na sua posse).
Daqui decorre, claramente, que o tribunal recorrido atendeu às declarações prestadas pelo arguido perante magistrado do Ministério Público na fase de inquérito, no confronto com a versão factual dada pelo mesmo a conhecer em audiência de julgamento, para formar a sua convicção quanto à factualidade que provada se mostra.
De acordo com o estabelecido no artigo 355°, do CPP, não valem em julgamento nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência - n° 1 - ressalvando-se as contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes - n° 2.
Como reiteradamente tem decidido o nosso Supremo Tribunal de Justiça, a exigência do art. 355.° prende-se apenas com a necessidade de evitar que concorram para a formação daquela convicção provas que não tenham sido apresentadas e feitas juntar ao processo pelos intervenientes, com respeito pelo principio do contraditório, e não que tenham de ser reproduzidas na audiência, isto é. lidas ou apresentadas formalmente aos sujeitos processuais todas as provas documentais dele constantes. Basta que existam no processo com pleno conhecimento dos sujeitos processuais, que puderam inteirar-se da sua natureza, da sua importância e do seu conteúdo, bem como do seu valor probatório, para que qualquer desses sujeitos possa, em audiência, requerer o que se lhe afigurar sobre elas, examiná-las, contraditá-las e realçar o que, do seu ponto de vista, valem em termos probatórios. Neste sentido, tais provas são examinadas em audiência, sob a presidência dos princípios da imediação e do contraditório, podendo concorrer sem reservas para a convicção do tribunal - Ac. do STJ de 15/0212007, Proc. n° 06P4092, disponível em www.dgsi.pt.
Ora, dos autos não consta que tenha o tribunal recorrido procedido à leitura ou reprodução em audiência das aludidas declarações do arguido perante o magistrado do Ministério Público (admissível ao abrigo do estabelecido no artigo 357°, n° 1, alínea h). do CPP) pelo que, existindo valoração de prova que não foi produzida ou examinada na audiência, ocorre violação do disposto no artigo 355°, n° 1, do CPP, integrando as mesmas prova proibida, sendo a consequência processual inerente a da exclusão dessa prova do conjunto das que foram valoradas na fundamentação da matéria de facto levada a cabo na decisão recorrida.
Este é o entendimento expresso no Código de Processo Penal Comentado, 2016, 2a edição revista, Almedina (anotado por Exm°s Conselheiros do S.T.J.), pág. 407, onde, após menção à posição de Costa Andrade no sentido de que deveria haver renovação da prova motivada pelas proibições de valoração, se escreve:
Importa distinguir situações distintas pois que a hipótese de reenvio se dirige aos casos em que não é possível julgar a causa pela existência de um dos vícios do artigo 410.° do CPP.
Ora, na hipótese de ser declarada a proibição de prova, não está em causa o vício que afecta a matéria de facto, a necessitar de um adequado esclarecimento, mas sim o expurgar do vicio da nulidade que afecta a mesma decisão o que tem. em principio, por consequência, a emissão de uma nova sentença pelo tribunal recorrido, mas expurgada do vício apontado - anotação do Colendo Conselheiro Santos Cabral.
Ou seja, a ideia subjacente é a de que a sentença que se funda em prova nula é também ela nula - nulidade que é do conhecimento oficioso, pois estão em causa direitos e princípios processuais fundamentais, como os do contraditório e processo justo e equitativo, tutelados pelos artigos 32°, n° 5, da Constituição da República Portuguesa e 6°, da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e, sendo outra a cominação, proibições de prova que os obliteram poderiam transformar, por via da não arguição, vícios insanáveis em vícios sanáveis - pelo que importa declarar a nulidade da sentença, o que impõe a prolação de nova decisão que, analisando a restante prova, mantenha ou modifique em conformidade a matéria de facto e a respectiva matéria de direito.
Fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso.
DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os Juízes da 5a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em:
A) Declarar a nulidade da sentença recorrida, por utilização na formação da convicção do julgador de prova de valoração proibida, impondo-se a prolação de nova sentença que exclua como meio de prova as declarações prestadas pelo arguido perante magistrado do Ministério Público no decurso do inquérito e, em conformidade, reconfigure a matéria de facto e respectiva matéria de direito;
B) Fica prejudicado o conhecimento das questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso pelo arguido interposto.
Sem tributação.
Lisboa, 20 de Março de 2018
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário - artigo 94°, n° 2, do CPP)
Artur Vargues
Jorge Gonçalves