I. A consulta dos autos fora da secretaria, prevista no n.º 4, do art.89.º, CPP, em particular em casos de maior complexidade, constitui um meio importante para um mais eficaz exercício dos direitos de defesa dos arguidos. Contudo, o facto de não ter sido permitida essa consulta fora da secretaria, não significa que se reconheça ter existido restrição injustificada dos mesmos.
II. Tal consulta não é um direito absoluto, no sentido de que, uma vez requerida a confiança do processo, esta tenha de ser obrigatoriamente concedida, devendo o tribunal ter em conta outros interesses relevantes, para o que será importante ponderar a fase concreta em que o processo se encontra, os prazos que estão a decorrer e os interesses de outros intervenientes processuais.
III. Decorrendo prazo para ser apresentado requerimento para instrução, em processo com cinco arguidos, quatro deles detidos e cerca de 35 ofendidos/lesados, o momento em que foi formulada a pretensão dos recorrentes, com o prazo para requerer a instrução a decorrer, não era o mais adequado para que fosse possível admitir que o direito a consulta do processo fora da secretaria por dois dias pelos recorrentes não prejudicaria os direitos de outros intervenientes processuais.
IV. As garantias de defesa asseguradas pelo art.32, n° l, da CRP, têm de ser referenciadas às garantias necessárias e adequadas para um eficaz exercício do direito de defesa, interpretado à luz do princípio da proporcionalidade (ac. n° 133/92 do TC), o que não se reconhece como prejudicado pela não permissão de consulta fora da secretaria no momento em que no caso concreto foi requerida e num processo com a complexidade e intervenientes do presente.
Proc. 104/14.2JBLSB-C.L1 5ª Secção
Desembargadores: Vieira Lamim - Ricardo Cardoso - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Proc. n°104/14.2JBLSB-C.L1
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
I° 1. No processo n°104/14.2JBLSB, na sequência de requerimento dos arguidos R... e M..., em 13Nov.17, o Mmo JIC, proferiu o seguinte despacho:
Fls.4989: Veio o ilustre mandatário dos arguidos R... e M... requerer a confiança do processo por 2 dias uteis, referindo que requereu tal confiança junto do Ministério Público e que a mesma lhe veio a ser indeferida.
Compulsados os autos verifica-se que, efectivamente, foi requerida a confiança do processo junto do Ministério Público tendo a mesma sido indeferida em face do n° de lesados/ ofendidos existentes e de se encontrarem prazos processuais em curso.
Nos termos do artigo 89, n°4, do Cód. Processo Penal, é admissível a consulta dos autos fora da secretaria quando a mesma seja requerida pelos sujeitos aí plasmados e já exista publicidade externa do processo.
Todavia, o direito ali previsto não é ilimitado, devendo ser compatibilizado com os dos restantes sujeitos processuais.
Entendeu a Digna Magistrada do Ministério Público que se encontrava a correr prazo para requerer a abertura de instrução também por parte de outros sujeitos processuais.
Compulsados os autos, verifica-se que foi proferido despacho de arquivamento e de acusação, pelo que, poderá ser requerida a abertura de instrução não só pelos arguidos mas também por parte de ofendidos.
Acresce que a confiança do processo foi requerida pelo mandatário de, apenas, dois dos cinco arguidos no processo e que quatro deles se encontram presos preventivamente à ordem dos autos, a todos sendo permitida a consulta dos autos para preparação da sua defesa.
Por outro lado, mesmo não estando em causa a abertura de instrução, existem, como refere a Digna Magistrada do Ministério Público, cerca de 35 ofendidos/lesados, a quem assiste, também, o direito à consulta dos autos. Ora, o direito à consulta dos autos fora da secretaria, a ser exercido pelos
requerentes, poderia condicionar o direito à consulta dos autos por parte dos demais sujeitos processuais.
Refere-se ainda que os autos têm neste momento 19 volumes e quase 5000 folhas, sendo desaconselhável o seu transporte para fora das instalações do Tribunal.
Pelo exposto, indefere-se a requerida confiança do processo, podendo os autos ser consultados, nos termos do n°1 do art.89 do Código de processo Penal nas instalações do Tribunal.
2. Deste despacho, recorrem os arguidos, R... e M..., motivando o recurso, com as seguintes conclusões:
2.1 Os Recorrentes estão privados da Liberdade à ordem deste Processo.
2.2 Requereram, nos termos do n°4 do artigo 89° do Código de Processo Penal, a Confiança do Processo por dois (02) dias quando já havia sido deduzida Acusação contra estes.
2.3 O pedido dos Recorrentes foi indeferido.
2.4 No caso concreto a Confiança do Processo a condicionar alguma coisa, será, apenas e tão-só, susceptível de condicionar os caprichos da manutenção dos Autos sob a mão Ministério Público que desse modo oblitera a Defesa dos Arguidos que acusa, nomeadamente dos aqui Recorrentes. 2.5 Se a questão era a disponibilidade dos Autos por motivos de Segurança e Inexistência de Translado, cabia - por razões de Lealdade e Cooperação processual com a Defesa - mandar extrair cópia certificada de todo o processo (suportes de papel e digital), assegurando-se desse modo quaisquer receios que pudessem existir, e disponibilizá-Ia aos Recorrentes para que estes pudessem preparar as suas Defesas.
2.6 Em causa estão normas de natureza constitucional, nomeadamente os artigos 13.°, 18.° n°1, 20.° e 32.° da Constituição da República Portuguesa.
2.7 Para efeitos de preparação de uma Defesa digna, justa e equilibrada, tendo em conta a extensão dos Autos- a que não lhes pode ser a inexistência de condições de espaço dignas na Secretaria do Departamento de Investigação e Acção Penal de Loures para a consulta e análise do processo pelo Mandatário dos Recorrentes, bem assim como, as Garantias de Defesa constitucionalmente salvaguardadas e devidamente inscritas no Ordenamento Jurídico-Penal e Constitucional Português - é de todo impossível consultar, crivar, seleccionar, ler e anotar toda a Prova e informação que constam das mais de 5000 páginas.
2.8 Só desse modo os Recorrentes se conseguem defender em igualdade de armas, tendo o mesmo contacto e conhecimento que o Ministério Público, que os acusa, tem!
2.9 Se os Recorrentes estão presos, ainda que preventivamente, a possibilidade que têm ao seu dispor para exercer as suas Defesas, é tomando conhecimento das peças processuais relevantes que lhes digam respeito, já que em causa estão os seus Direitos, Liberdades e Garantias.
2.10 Os Autos são constituídos, a esta data, por mais de 5000 páginas e vários apensos que exigem um conhecimento preciso, com tempo e completo, que não se compadece com «consulta em Secretaria», para mais desprovida de condições, o que faz com que a Defesa dos Recorrentes fique obviamente comprometida e coarctada.
2.11 Pelo contrário, o Ministério Público pode dispor do Processo, do modo que melhor lhe aprouver, no aconchego do seu gabinete, de forma a se preparar convenientemente para todas as fases processuais que o iter processual penal comporta.
2.12 Os restantes Arguidos e demais Sujeitos e Intervenientes processuais, em momento algum, se poderão considerar condicionados nos seus direitos em não ter os Autos ao seu dispor, mesmo que com um pré-aviso.
2.13 Como os Venerandos Desembargadores bem sabem, só após a Acusação é que o Arguido pode exercer a sua Defesa, não sendo razoável, nem tão-pouco legítimo, que não tenha o mesmo acesso tal como teve o Ministério Público enquanto compunha e construía a Acusação.
2.14 Já foi decidido, entre outros do nosso Ordenamento Jurídico, pelo Tribunal de Instrução Criminal de Lisboa e de Setúbal, como pelos Vossos Pares do Tribunal da Relação de Lisboa, que a Confiança do Processo é o único meio de um Arguido preso se poder defender.
2.15 Não podendo, por conseguinte, ser negado aos Recorrentes o acesso ao Processo, ainda que por intermédio do seu Mandatário, sendo o Despacho que nega a Confiança do Processo Inadmissível e Incomportável no Ordenamento Jurídico Português.
Normas que se têm por violadas:
Todas as que se elencaram na motivação do recurso, nomeadamente o n°4 do artigo 89, do Código de Processo Penal e os artigos 13, 18 n°11, 20 e 32 da Constituição da República Portuguesa, todas de redacção em vigor.
3. O recurso foi admitido, após reclamação decidida pela Ex.ma Vice-presidente deste Tribunal, a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, a que o Ministério Púbico respondeu, concluindo pelo seu não provimento.
4. Neste Tribunal, a Exma. Sr. Procuradora-geral Adjunta questionou o regime de subida do recurso e, para o caso de não ser alterado, pronunciou-se pela confirmação do despacho recorrido.
5. Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.
6. O objecto do recurso, tal como ressalta das respectivas conclusões, reconduz-se à apreciação da decisão que indeferiu a pretensão dos recorrentes de examinarem o processo fora da secretaria.
II° 1. Questiona a Ex.ma PGA se deve ser mantido o regime de subida imediata do recurso, quando os autos já foram distribuídos para julgamento.
Contudo, estando o processo em fase de permitir um adequado exercício dos direitos de defesa, para o que a consulta fora da secretaria pode ser importante, reconhece-se utilidade na sua apreciação imediata.
2. Não se questiona a relevância da possibilidade de consultaob processo, para o adequado exercício dos direitos de defesa dos arguidos.
Nesse âmbito, a consulta fora da secretaria, prevista no n°4, do art.89, CPP, em particular em casos de maior complexidade, constitui um meio importante para uma mais eficaz defesa desses direitos.
Contudo, o facto de não ter sido permitida essa consulta fora da secretaria, como foi requerida pelos recorrentes, não significa que se reconheça ter existido restrição injustificada dos mesmos.
Na verdade, aquela consulta não é um direito absoluto, no sentido de que, uma vez requerida a confiança do processo, esta tenha de ser obrigatoriamente concedida, devendo o tribunal ter em conta outros interesses relevantes, para o que será importante ponderar a fase concreta em que o processo se encontra, os prazos que estão a decorrer e os interesses de outros intervenientes processuais.
No caso, o pedido dos recorrentes foi apresentado depois da notificação da acusação e do despacho de arquivamento aos intervenientes processuais, decorrendo prazo para ser apresentado requerimento para instrução, em processo com cinco arguidos, quatro deles detidos e cerca de 35 ofendidos/lesados.
Nestas circunstâncias, o momento em que foi formulada a pretensão dos recorrentes, com o prazo para requerer a instrução a decorrer, não era o mais adequado para que fosse possível admitir que o direito a consulta do processo fora da secretaria por dois dias pelos recorrentes não prejudicaria os direitos de outros intervenientes processuais.
Como decidiu o Tribunal Constitucional no Ac. n°117/96 (acessível em www.tribunalconstitucional.pt), em relação à fase processual anterior à abertura da instrução, a limitação legalmente estabelecida quanto ao local do exame, impedindo a realização deste fora dos locais no preceito designados, não cerceia a defesa dada a possibilidade de consulta e da utilização das cópias, traduzindo-se, quando muito, em menor comodidade para o consultante.
Tendo em atenção a fase concreta em que o processo se encontrava e o número de intervenientes processuais, esta menor comodidade de consulta do processo neste momento concreto e para o exercício dos direitos processuais que então teriam de exercer, não determina uma diminuição desses direitos de forma desproporcionada, excessiva e desadequada.
Na verdade, o indeferimento naquele momento da pretensão dos recorrentes, não impedia que noutro momento processual, depois do decurso do mencionado prazo, obtivessem a consulta do processo fora da secretaria, ainda a tempo dessa consulta ter efeito útil no exercício dos direitos de defesa.
As garantias de defesa asseguradas pelo art.32, n°1, da CRP, têm de ser referenciadas às garantias necessárias e adequadas para um eficaz exercício do direito de defesa, interpretado à luz do princípio da proporcionalidade (ac. n° 133/92 do TC), o que não se reconhece como prejudicado pela não permissão de consulta fora da secretaria no momento em que no caso concreto foi requerida e num processo com a complexidade e intervenientes do presente.
A solução de mandar extrair cópia certificada de todo o processo (conclusão 5a), não tem qualquer apoio na lei, nem se justifica, quando estão previstos na lei mecanismos adequados ao exercício dos direitos de defesa, nomeadamente a consulta do processo na secretaria e fora desta, quando não ocorrerem os inconvenientes reconhecidos no despacho recorrido, o que os recorrentes estão em condições de requerer bem a tempo de exercerem adequadamente todos os seus direitos de
defesa.
III° DECISÂO:
Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, após conferência, em negar provimento ao recurso interposto pelos arguidos, R... e M..., confirmando o despacho recorrido.
Condena-se cada um dos recorrentes em 3Ucs de taxa de justiça.
Lisboa, 6-3-2018
Vieira Lamim
(Adjunto: Ricardo Cardoso)