Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 14-03-2018   Violência doméstica. Montante indemnizatório a arbitrar às vítimas.
I. Na fixação de montante indemnizatório a arbitrar às vítimas de crimes de violência doméstica, o julgador deve ponderar caso a caso, para além da gravidade da conduta do agressor e das consequências sentidas pela vítima, também as concretas situações de vida por ambos vividas e ainda deverá ter presente um juízo de equidade, antes de decidir no sentido da condenação do agente do crime de violência doméstica, no pagamento de uma indemnização cível nos termos do artº 21°, nº 1 e 2, da Lei n° 112/2009 e artº 82º-A, do Código Processo Penal - e tudo isso pressupõe uma valiação casuística.
II. Assim sendo, e sem prejuízo de aceitarmos que os crimes de violência os doméstica em termos gerais se enquada num tipo de ilícito onde se colocam particulares exigências de protecçao da vítima, pode em concreto o julgador em função da gravidade de cada caso em apreciação, chegar à conclusão que a conduta do agressor que ficou apurada e as concretas lesões provocadas na vitima, não justificam a fixação de um montante cível para reparação dessas lesões, ao abrigo dos referidos preceitos, como sucedeu no caso sub Júdice.
III. O legislador foi claro ao exprimir o seu pensamento porquanto, na letra do art° 82°- A do C. Processo Penal, não ficou escrito “deve arbitrar” mas sim “pode arbitrar”, o que que claramente evidencia quanto a nós que se trata de uma faculdade a analisar caso a caso, nos termos supra expostos e não um obrigação ou imposição legal.
Proc. 878/16.6PELSB.L1 3ª Secção
Desembargadores:  Ana Paula Grandvaux - Conceição Gomes - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
_______
Processo n° 878/16.6PELSB.L1
Acordam, em conferência, na 3a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
1. No âmbito do Processo n° 878/16.6PELSB a correr termos no Juízo Local Criminal de Lisboa - Juiz 14, foi submetido a julgamento, em processo comum, com intervenção do Tribunal Singular, o arguido P..., divorciado, pintor da construção civil, filho de A... e de E..., nascido em 7.11.1973, natural da freguesia de São Jorge de Arroios, concelho de Lisboa e residente na Rua … em Lisboa, e aí condenado por sentença lida e depositada em 14.11.2017 (cfr fls 328 a 341) pela prática em autoria imediata e na forma consumada, de um crime de violência doméstica p.p pelo artigo n° 152°/1/d) e n° 2 do C.P na pena de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo, com sujeição a regime de prova, no âmbito do qual o arguido fica obrigado a frequentar programa para agressores de violência doméstica, com a duração de 18 meses e a frequentar consulta de alcoologia.
Foi ainda decidido pelo Tribunal a quo, condenar o arguido nos termos do art° 152° 4 e 5 do C.P.P na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida L..., pelo período de 3 anos, incluindo tal pena, o afastamento do arguido da residência e do local de trabalho da ofendida.
Por fim, foi ainda decidido não arbitrar qualquer quantia à ofendida, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 21°/1/2 da Lei n° 122/2009 de 16.9 e art° 82°-A n° 1 do C.P.P.
2. Inconformado com a decisão de não arbitramento de uma quantia monetária à ofendida, nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 21°/1/2 da Lei n° 122/2009 de 16.9 e art° 82°-A n° 1 do C.P.P, dela recorreu a Ilustre Magistrada do Ministério Público na la instância, retirando da respectiva motivação as seguintes (transcritas) conclusões:
1. 0 arguido P... pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punível pelo artigo 152.°, n.os 1, alínea d), e 2, do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão, a qual suspendo da sua execução por igual período de 3 (três) anos e sujeito a regime de prova, no âmbito do qual o arguido deverá, entre outros deveres que venham a ser definidos pela DGRSP, frequentar o Programa para Agressores de Violência Doméstica, com a duração de 18 meses e frequentar consulta de alcoologia, submetendo-se ao que lhe for solicitado nesse âmbito, em articulação com a DGRSP e ainda na pena acessória de proibição de contactos com a ofendida, L..., pelo período de 3 (três) anos, incluindo a mesma o afastamento da residência e do local de trabalho da ofendida.
2. No despacho de acusação o Ministério Público requereu a aplicação das disposições conjugadas dos art.s. 21°, n.° 2, da Lei n° 112/2009, de 16.09 e 82°-A, do Código Processo Penal em consequência o arbitramento duma quantia à ofendida, a título de reparação dos prejuízos sofridos.
3. Na sentença recorrida, a Meritíssima Juiz decidiu pelo não arbitramento
de tal indemnização, por entender que Ponderados os critérios do artigo 820-A, no 1 do Código de Processo Penal, não se vislumbram
dos autos particulares exigências de proteção da ofendida que imponham a fixação de qualquer indemnização à mesma pelos prejuízos sofridos
Decido não arbitrar qualquer quantia à ofendida nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 210, n. ° 1 e 2, da Lei n 122/2009, de 16 de setembro, e 82°- A, n° 1, do Código de Processo
Penal.
4. Da conjugação dos art.s 21°, n.° 2, da Lei n.° 112/2009 e 82°-A, do C. Processo Penal, resulta que em caso de condenação por crime de violência doméstica, haverá sempre lugar ao arbitramento de uma indemnização à vítima, ou porque ela a pediu ou porque, não o tendo feito, não se opôs expressamente ao seu arbitramento.
5. Atendendo à natureza do crime de violência doméstica, entendemos que a vontade do legislador foi a de dar uma protecção adicional às vítimas destes crimes, natural e especialmente fragilizadas por o agressor ser alguém muito próximo, com quem mantêm uma relação estreita e do qual habitualmente dependem, quer monetária quer psicologicamente, o que lhes diminui a capacidade de auto defesa.
6. Daí que tenha estabelecido, nos termos do disposto no no 2, do art° 21°, da Lei n° 112/2009, de 16.09 que para efeitos deste crime, não tendo a vítima deduzido pedido de indemnização civil e não se tendo oposto ao seu arbitramento, o tribunal deveria fixar uma indemnização, sem que tenha de
haver prova de quaisquer ' particulares exigências de protecção da vítima', a qual, pelas razões supra referidas, foi dada como pré-existente pelo legislador neste tipo de crimes.
7. No presente caso, a sentença de que se recorre condenou o arguido pela prática dum crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°, n° 1, aI. b), do C. Penal, na pessoa da ofendida L..., que não deduziu pedido de indemnização civil válido nem se opôs expressamente à atribuição de tal indemnização.
8. Consequentemente, devia a Meritíssima Juiz do tribunal a quo ter arbitrado uma indemnização à ofendida L....
9. Não o tendo feito, fez uma inexacta interpretação dos artes. 21°, no 2, da Lei n° 112/2009 e 82°-A, do Código Processo Penal, assim os violando.
NO ENTANTO VOSSAS EXCELÊNCIAS MELHOR FARÃO JUSTIÇA
3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 365.
4. Nesta Relação, o Digno Procurador Geral Adjunto quando o processo lhe foi com vista nos termos e para os efeitos do art° 416° do C.P.P, não emitiu qualquer parecer (fls 378).
5. Foram colhidos os vistos legais e procedeu-se à conferência, com observância do legal formalismo, cumprindo, agora, apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art° 410° n° 2 e 3 do C.P.Penal).
Por outras palavras, do art° 412°/1 do C.P.P resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso (neste sentido vide Germano Marques da Silva em Curso de Processo Penal, III, 2a edição, 2000, pág. 335 e Acs do S.T.J de 13.5.1998 in B.M.J 477-263; de 25.6.1998 in B.M.J 478°-242 e de 3.2.1999 in B.M.J 477°-271), exceptuando aquelas que são do conhecimento oficioso (cf art° 402°, 403°/1, 410° e 412°, todos do C.P.P e Ac. do Plenário das Secções do S.T.J de 19.10.1995 in D.R, I - série de 28.12.1995).
Assim, a questão a apreciar por este Tribunal ad quem tem a ver apenas com o arbitramento às vítimas do crime de violência doméstica de uma quantia monetária a título de reparação dos prejuízos sofridos nos termos do n° 1 do art° 21° da Lei n° 112/2009 de 16.9 - uma vez verificado o condicionalismo do n° 2 do art° 21° da Lei n° 112/2009 de 16.9 (isto é, quando a vítima não tenha deduzido pedido de indemnização cível e não se tenha oposto expressamente ao arbitramento) deve esse arbitramento ser fixado oficiosamente, para todas as vítimas destes crimes, independentemente da ponderação em cada caso, acerca das particulares exigências de protecção da vítima, atenta especial natureza deste tipo de ilícito?
2. A Decisão recorrida
Na sentença recorrida foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
1. P... mantiveram uma relação de namoro com L... desde Novembro de 2015;
2. O arguido consome há vários anos bebidas alcoólicas em excesso de forma diária, assumindo um comportamento agressivo para com a ofendida;
3. Com efeito, no dia 27 de agosto de 2016, cerca das 16h15m, na Rua Benformoso, n.° 191, em Lisboa, o arguido iniciou uma discussão com a ofendida, tendo-lhe desferido, com força, uma palmada na cara, provocando-lhe dor e um hematoma no lado direito da face;
4. O arguido encontrava-se embriagado, acabando por cair no chão, local onde ficou até à chegada da polícia
5. No dia 22 de Janeiro de 2017, pelas 22h40m, na Travessa Benformoso, junto ao n°8, em Lisboa, o arguido iniciou nova discussão com a ofendida, tendo começado aos gritos com esta no meio da rua;
6. Por tal motivo, acorreram ao local agentes da PSP, os quais encontraram a ofendida a chorar, verbalizando esta não necessitar de ajuda;
7. No dia 22 de Fevereiro de 2017, pelas 08h30, na rua Washington, n°23, 20 esquerdo, em Lisboa, o arguido começou a discutir com a ofendida, por ciúmes, desferindo-lhe bofetadas e murros na cabeça;
8. Por força desta agressão, sofreu L... edema peri-orbitrario bilateral, dor à apalpação do esqueleto facial, discreto afundamento do rebordo supra-orbitrário esquerdo, ferida incisiva na região interna do lábio superior, ao nível do 1° quadrante;
9. No dia 27 de Abril de 2017, pelas 23h35m, na Rua Damasceno Monteiro, em Lisboa, o arguido disse à ofendida és uma puta, uma cabra, desferindo-se de seguida um murro e várias bofetadas na face;
10. Com as condutas descritas, o arguido quis e conseguiu ofender L... na sua honra e dignidade, na sua integridade física, e na sua liberdade pessoal, por forma a que esta se sentisse lesada na sua dignidade enquanto ser humano e sua companheira, o que igualmente conseguiu, bem sabendo que praticando grande parte desses actos no interior da residência comum do casal, estava a privá-la de qualquer possibilidade de reacção, causando-lhe um profundo sentimento de insegurança;
11. Nas circunstâncias acima referidas, ao bater em L..., o arguido actuou com o intuito de maltratar o seu corpo e de lhe causar, como efectivamente causou, dor, sofrimentos e incómodos, atingindo-a, como atingiu, no seu bem estar físico;
12. Ao dirigir-lhe os insultos e as expressões supra referidas pretendeu o arguido intimidá-la, bem como afectar, como efectivamente afectou, o bem estar psíquico da ofendida, humilhando-a e fazendo-a viver sob constante perturbação e sobressalto;
13. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, com o propósito concretizado de molestar a companheira no seu corpo e na sua saúde, causando-lhe dores, bem como criar permanente medo, perturbação e um clima de terror nocivo à estabilidade emocional daquela;
14. O arguido agiu sempre de forma livre, voluntária é consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal;
15. 0 arguido confessou os factos integralmente e sem reservas, manifestando arrependimento pelos mesmos;
16. O arguido manifesta disponibilidade para cumprir com o que vier a ser estipulado pelo tribunal, caso lhe seja aplicada uma medida de execução na comunidade;
17. P... é acompanhado pela DGRSP, no âmbito do processo judicial n.o 102/16.1SHLSB, pela prática de um crime de furto qualificado, praticado em 14/09/2016, encontrando-se em cumprimento de uma pena de prisão, suspensa na sua execução por um período de três anos, sujeita a regime de prova e, de acordo com informações resultantes da articulação efetuada com o serviço que assegura o seu acompanhamento, o arguido assume uma postura adequada, pese embora o cumprimento daquela se encontre na fase inicial (elaboração do plano de reinserção social);
18. A ofendida percepciona como baixa a actual exposição ao risco de replicação de dinâmicas relacionais disfuncionais;
19. O arguido vive sozinho em casa que se lhe encontra cedida gratuitamente, tem uma filha com 9 anos de idade, a qual reside com a progenitora e um filho com 24 anos de idade, com o qual não mantém qualquer relacionamento;
20. O arguido realiza trabalhos esporádicos na área da construção civil, auferindo o montante médio de 35 € por dia quando tem trabalho e despende mensalmente a quantia de 34 € para aquisição do passe que usa para se deslocar para o trabalho;
21. A relação entre o arguido e a ofendida terminou em abril de 2017, continuando ambos a residir em apartamentos diferentes do mesmo edifício;
22. O arguido tem, como habilitações literárias, o 9.0 ano de escolaridade;
23. O arguido já foi condenado pela prática:
- em 10/07/1995, de um crime de furto qualificado;
- em 13/01/1997, de um crime de furto qualificado na forma tentada;
- em 15/09/1997, de um crime de furto qualificado;
- em 8/06/1997, de um crime de furto qualificado;
- em 29/01/1997, de um crime de furto qualificado;
- em 3/01/2001, de um crime de tráfico de estupefacientes;
- em agosto de 2007, de 10 crimes de furto qualificado, um crime
dedetenção de arma proibida e dois crimes de furto simples;
- em 3/02/2010, de um crime de evasão;
- em 18/08/2007, de um crime não especificado.
Quanto aos factos não provados, ficou consignado na sentença:
INEXISTEM FACTOS NÃO PROVADOS
Relativamente à fundamentação da decisão de facto, ficou expresso:
O Tribunal formou a sua convicção através das declarações confessórias do arguido, conjugadas com as suas declarações quanto à sua situação pessoal, bem como com o teor do relatório social de fls. 256 e seguintes.
Quanto às suas condenações anteriores, o Tribunal teve em consideração o certificado de registo criminal de fls. 234-245.
3. Analisando
Questão Prévia
Antes de mais impõe-se deixar claro que o objecto deste recurso se limita à apreciação da questão do arbitramento de um montante indemnizatório à ofendida nos termos do art° 21°/1/2 da Lei n° 112/2009 de 16.9, uma vez que não foi interposto recurso pelo M.P ou por qualquer outro sujeito processual quanto à acção criminal pelo que a sentença proferida pelo Tribunal a quo em 14.11.2017., transitou em julgado na parte respeitante à acção criminal.,
Do arbitramento à vítima do crime de violência doméstica, de uma quantia monetária a título de reparação dos prejuízos sofridos - nos termos do n° 1 do art° 21° da Lei n° 112/2009 de 16.9
Foi o arguido P... acusado e condenado da prática de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo art° 152°, n°s 1, al. b) 2, com referência ao art° 26°, todos do C.P.
Nos termos do supra mencionado art° 152° (sob a epígrafe violência doméstica) do C.P.:
1 - Quem, de modo reiterado ou não, infligir maus tratos físicos ou psíquicos, incluindo castigos corporais, privações da liberdade e ofensas sexuais: (...)
b) A pessoa de outro ou do mesmo sexo com quem o agente mantenha ou tenha mantido uma relação de namoro, ou uma relação análoga à dos cônjuges, ainda que sem coabitação,. (...) é punido com pena de prisão de um a cinco anos, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.
2) No caso previsto no número anterior, se o agente praticar o facto contra menor, na presença de menor, no domicílio comum ou no domicílio da vítima é punido com pena de prisão de dois a cinco anos.
(…)
Antes de mais é notório pela leitura de todo o texto da decisão recorrida que a referência no ponto 1. da Decisão final, à alínea d) do n° 1 do art° 152° do C.P que aí ficou a constar, se trata de um manifesto lapso de escrita que agora se corrige ao abrigo do art° 380°l1 b) e n° 2 do C.P.P. - assim onde aí se lê art° 152°/1 d) e 2 do C.P dever ler-se para todos os efeitos, art° 152°/1 b) e n° 2 do C.P.
E quanto ao arbitramento de montante indemnizatório à vítima, a ofendida L..., o Tribunal a quo decidiu nos seguintes termos que aqui se transcrevem:
VII. DA INDEMNIZAÇÃO À OFENDIDA
Nos presentes autos e em sede acusatória o Ministério Público requereu o arbitramento de indemnização à ofendida, ao abrigo das disposições conjugadas dos artigos 82.°-A, do Código de Processo Penal, e 21.° da lei n.° 112/2009, de 16 de setembro.
Como dispõe o artigo 21.°, n.05 1 e 2, da Lei n° 122/2009, de 16 de setembro, à vítima é reconhecido, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável (...) Para efeito da presente lei, há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82°-A do Código de Processo Penal, exceto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
De harmonia com o disposto no artigo 82.0-A, n.° 1, do Código de Processo Penal, não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72.0 e 77.0, o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos quando particulares exigências de proteção da vítima o imponham.
Ponderados os critérios do artigo 82°-A, n° 1 do Código de Processo Penal, não se vislumbram dos autos particulares exigências de proteção da ofendida que imponham a fixação de qualquer indemnização à mesma pelos prejuízos sofridos.
Termos em que, decido não arbitrar qualquer quantia à ofendida nos termos e para os efeitos das disposições conjugadas dos artigos 21°, n°s 1 e 2, da Lei n° 122/2009, de 16 de setembro, e 820-A, n.° 1, do Código de Processo Penal.
Opôs-se o M.P a tal decisão alegando para o efeito nos seguintes termos, com sublinhados nossos:
Da conjugação dos art.s 21°, n.° 2, da Lei n.° 112/2009 e 82°-A, do C. Processo Penal, resulta que em caso de condenação por crime de violência doméstica, haverá sempre lugar ao arbitramento de uma indemnização à vitima, ou porque eia a pediu ou porque, não o tendo feito, não se opôs expressamente ao seu arbitramento.
Atendendo à natureza do crime de violência doméstica, entendemos que a vontade do legislador foi a de dar uma protecção adicional às vítimas destes crimes, natural e especialmente fragilizadas por o agressor ser alguém muito próximo, com quem mantêm uma relação estreita e do qual habitualmente dependem, quer monetária quer psicologicamente, o que lhes diminui a capacidade de auto defesa.
Daí que tenha estabelecido, nos termos do disposto no no 2, do art0 210, da Lei no 112/2009, de 16.09 que para efeitos deste crime, não tendo a vítima deduzido pedido de indemnização civil e não se tendo oposto ao seu arbitramento, o tribunal deveria fixar uma indemnização, sem que tenha de haver prova de quaisquer 'particulares exigências de protecção da vítima', a qual, pelas razões supra referidas, foi dada como pré-existente peio legislador neste tipo de crimes.
No presente caso, a sentença de que se recorre condenou o arguido pela prática dum crime de violência doméstica, p. e p. pelo art0 1520, n° 1, ai. b), do C. Penal, na pessoa da ofendida L..., que não deduziu pedido de indemnização civil válido nem se opôs expressamente à atribuição de tal indemnização. No presente caso, a sentença de que se recorre condenou o arguido pela prática dum crime de violência doméstica, p. e p. pelo art. 152º, n° 1, al. b), do C. Penal, na pessoa da ofendida L..., que não deduziu pedido de indemnização civil válido nem se opôs expressamente à atribuição de tal indemnização.
Consequentemente, devia a Meritíssima Juiz do tribunal a quo ter arbitrado uma indemnização à ofendida L....
Não o tendo feito, fez uma inexacta interpretação dos artes. 210, no 2, da Lei no 112/2009 e 820-A, do Código Processo Penal, assim os violando.
Quid Juris?
Afigura-se-nos, salvo o devido respeito, que não assiste razão ao M.P.
Como se sabe o tipo legal de crime ora em análise visa, acima de tudo, proteger a dignidade humana, tutelando, não só, a integridade física da pessoa individual, mas também a integridade psíquica, isto é protege-se a saúde do agente passivo, tomada no seu sentido mais amplo de ambiente propício a um salutar e digno modo de vida.
Melhor dizendo, no crime de violência doméstica tutela-se a dignidade humana dos sujeitos passivos, designadamente, na vertente da sua saúde, seja a nível físico ou psíquico, ou na vertente da sua privacidade, seja de liberdade pessoal ou de autodeterminação sexual.
Esta é uma das facetas da dignidade humana, a qual tem consagração constitucional (arts 1°, 24°, n° 1 e 25° da Constituição da República Portuguesa) e corresponde a um dos direitos fundamentais veiculados em tratados e convenções internacionais - 5° da DUDH, 3°, n° 1 da CEDH, 7°, n° 1 e 10°, n° 1 do PIDCP e 1°, 3°, n° 1 e 4° da CDFUE.
Assim como elementos objectivos necessários à ocorrência do tipo em análise temos:
- os maus tratos físicos;
- e os maus tratos psíquicos.
Maus tratos físicos são ofensas à integridade fisica simples, isto é ofensas no corpo ou na saúde do ofendido. Sendo que por ofensa no corpo dever-se-á entender
todo o mau trato através do qual o agente é prejudicado no seu bem estar fisico de uma forma não insignificante, estando aqui abrangidas aquelas actuações que envolvem uma diminuição da substância corporal, lesões da substância corporal e alterações físicas ( S/S/Eser § 223 3 e M/S/Maiwald I 80, apud Paula Ribeiro de Faria, Comentário Conimbricence do Código Penal, vol. I, pág. 205 e 206 ); e como lesão da saúde deve considerar-se toda a intervenção que ponha em causa o normal funcionamento das funções corporais da vítima, prejudicando-a ( M/S/Maiwald I 81, apud Paula Ribeiro de Faria, ob. cit. , pág. 207 ).
Os maus tratos psíquicos abarcam as humilhações, as provocações, as molestações e as ameaças mesmo que não configuradoras em si do crime de ameaça.
Quanto ao elemento de índole subjectiva, dir-se-á que, quanto ao crime de maus tratos, o dolo consiste na intenção do agente em praticar actos configuráveis como maus tratos físicos ou psicológicos. Estamos perante um tipo doloso porquanto se exige, por parte do agente do crime o conhecimento e a vontade de praticar o facto típico. Ou seja, a lei contenta-se com os requisitos gerais do dolo.
Não se ignora por outro lado, que a Lei n° 112/2009, de 16/9 veio instituir o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à protecção e à assistência das vítimas destes crimes e estabeleceu no seu art° 21° o direito da vítima à indemnização, nos seguintes termos:
1 - A vítima é reconhecida, no âmbito do processo penal, o direito a obter uma decisão de indemnização por parte do agente do crime, dentro de um prazo razoável.
2 - Para efeito da presente lei há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82° do Código de Processo Penal, excepto nos casos em que a vítima a tal expressamente se opuser.
Concordamos pois ser necessário apreciar e interpretar este regime especial acabado de referir, com o preceituado no art° 82°- A do C. Processo Penal, que versa sobre a reparação da vítima em casos especiais: 1. Não tendo sido deduzido
pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72° e 77° o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuLzos sofridos quando particulares exigências de protecção da vítima o imponham.
2.No caso previsto no número anterior, é assegurado o respeito pelo contraditório.
3.A quantia arbitrada a título de reparação é tida em conta em acção que venha a conhecer de pedido civil de indemnização.
No entendimento do M.P Da conjugação dos preceitos legais mencionados, contrariamente à decisão recorrida, resulta que, em caso de condenação por crime de violência doméstica, haverá sempre lugar ao arbitramento de uma indemnização à vítima, ou porque ela a pediu ou, não o tendo feito e não se tendo oposto ao seu arbitramento expressamente, porque assim o determina o n° 2, do art° 21° da Lei n° 112/2009, de 16/9, ao estabelecer que, para efeito do crime de violência doméstica (..), há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82°-A do Código de Processo Penal.
Mas não podemos esquecer que segundo os cânones hermenêuticos estabelecidos no CC, a tarefa de interpretação que se impõe efectuar terá que ser realizada tendo bem presentes as regras previstas no art° 9° do Cód. Civil.
Ou seja, tomando como ponto de partida a letra da lei, que nunca poderá ser totalmente ultrapassada, e ponderando os elementos histórico, sistemático e teleológico, haverá que procurar alcançar o pensamento legislativo, presumindo sempre que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados.
Ora da interpretação que fazemos das normas legais aqui aplicáveis, de acordo com as regras acabadas de referir, chegamos a uma conclusão distinta daquela que é defendida pelo M.P.
Salvo o devido respeito, afigura-se-nos ter sido feita pelo mesmo alguma confusão entre o direito a uma indemnização que este art° 21° da Lei n° 112/2009, de 16/9 veio consagrar, com o efectivo arbitramento de um montante indemnizatório a toda a vítima de crimes de violência doméstica, o qual entendemos não resultar directamente da lei.
Concordamos com o M.P que o legislador ao criar o regime especial consagrado pela Lei n° 112/2009 de 16.9, foi sensível à natureza do crime de violência doméstica e pretendeu dar uma protecção adicional às vítimas destes crimes, natural e especialmente fragilizadas por o agressor ser alguém muito próximo, com quem mantêm uma relação estreita e do qual habitualmente dependem, quer monetária quer psicologicamente, o que lhes diminui a capacidade de auto defesa.
Mas quanto a nós, não estava no espírito do legislador ao criar este regime especial consagrado na Lei n° 112/2009, de 16/9, nem decorre da letra da lei, na interpretação conjugada desse regime com o art° 82o -A do C.P.P, atribuir ope legis a toda e qualquer vítima do crime de violência doméstica, uma indemnização cível pelos prejuízos que tiver sofrido em consequência directa e necessária desse crime.
O que o legislador veio aqui assegurar, foi apenas que atenta a especial natureza deste crime e a fragilidade/vulnerabilidade verificada quase sempre em todas as vítimas face ao agressor, a situação destas vítimas dos crimes de violência doméstica sejam tipicamente consideradas situações enquadráveis na previsão do art° 82° A do C.P.P e como tal pudesse ser assegurado a todas elas a possibilidade de lhes ser arbitrada uma indemnização para reparação dos danos por elas sofridos em consequência do crime de que foram vítimas, mesmo que não tivessem atempadamente formulado um pedido de indemnização cível no processo.
E daí se ter expressamente referido o legislador no n° 2, do art° 21° da Lei n° 112/2009, de 16/9, que há sempre lugar à aplicação do disposto no artigo 82°-A do Código de Processo Penal, onde já antes da referida Lei n° 112/2009 se regulava ou previa essa situação, de em casos especiais em que particulares exigências de protecção da vítima assim o exigiam, o julgador poder arbitrar uma indemnização à vítima, mesmo não o tendo esta expressamente requerido.
Mas naturalmente que essa remissão feita para o art° 82°-A do C.P.P não teve como objectivo limitar ou direcionar a liberdade de decisão do julgador, no sentido de lhe impor que sempre e em qualquer circunstância, no caso de haver condenação pelo crime de violência doméstica, tenha também lugar o arbitramento de uma indemnização cível, presumindo de forma inelidível que todas as vítimas do crime de violência doméstica se encontram numa situação de merecerem sempre essa indemnização cível, para reparação dos danos por elas sofridos em consequência da actuação do agressor.
Não parece razoável que se deva levar tão longe a proteção às vítimas dos crimes de violência doméstica a ponto de se considerar obrigatório fixar sempre uma indemnização cível para reparação dos danos causados pelo agressor em todo e qualquer caso (seja qual for a dimensão desses danos) e não nos parece sequer que tal imperativo resulte da letra da lei.
Entendemos que na fixação desse montante indemnizatório a arbitrar às vítimas de crimes de violência doméstica agora em análise, o julgador deve ponderar caso a caso, para além da gravidade da conduta do agressor e das consequências sentidas pela vítima, também as concretas situações de vida por ambos vividas e ainda deverá ter presente um juízo de equidade, antes de decidir no sentido da condenação do agente do crime de violência doméstica, no pagamento de uma indemnização cível nos termos do art° 210, no 1 e 2, da Lei n° 112/2009 e art° 82°-A, do Código Processo Penal - e tudo isso pressupõe uma avaliação casuística.
Assim sendo, e sem prejuízo de aceitarmos que os crimes de violência doméstica em termos gerais se enquadram num tipo de ilícito onde se colocam particulares exigências de protecção da vítima, pode em concreto o julgador em função da gravidade de cada caso em apreciação, chegar à conclusão que a conduta do agressor que ficou apurada e as concretas lesões provocadas na vítima, não justificam a fixação de um montante cível para reparação dessas lesões, ao abrigo dos referidos preceitos, como sucedeu no caso sub Júdice.
Daí que na letra do art° 82°- A do C. Processo Penal, expressamente se venha dizer: 1. Não tendo sido deduzido pedido de indemnização civil no processo penal ou em separado, nos termos dos artigos 72° e 77° o tribunal, em caso de condenação, pode arbitrar uma quantia a título de reparação pelos prejuízos sofridos (,,)
Repare-se que o legislador foi claro ao exprimir o seu pensamento porquanto, aí não ficou escrito deve arbitrar mas sim pode arbitrar, o que claramente evidencia quanto a nós que se trata de uma faculdade a analisar caso a caso, nos termos supra expostos e não um obrigação ou imposição legal.
Em resumo, a natureza facultativa desse arbitramento de uma indemnização não é afastada, perante os termos em que foi feita a remissão para o art° 82°- A do C. Processo Penal pelo art° 21°, n° 1 e 2, da Lei n° 112/2009, nos termos supra melhor explicados.
Assim sendo e ponderada toda a matéria de facto apurada (que se tem por assente por não ter sido impugnada), nomeadamente todos os factos respeitantes ao circunstancialismo concreto da actuação do agente e às consequências sofridas pela vítima em consequência directa e necessária dessa actuação que ficaram demonstrados no caso presente, nada temos a censurar também quanto à decisão do Tribunal a quo no sentido de não arbitrar qualquer quantia (indemnizatória) à ofendida, por se nos afigurar correcta tal decisão, quer em termos de facto, quer de direito.
Improcede assim na íntegra o recurso do M.P.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 3a Secção Criminal da Relacão de Lisboa, em:
A) Julgar não provido o recurso interposto pelo M.P.
B) Sem custas.
Lisboa, 14 de Março de 2018
Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final (art° 94°, n° 2 do CPP).
Ana Paula Grandvaux Barbosa
Maria da Conceição Simão Gomes