1. A denúncia apresentada ao Ministério Público pela operadora MEO de factos indiciadores da existência de fraude na geração artificial de tráfego, em roaming, associada a cartões da rede móvel de clientes seus, ocorrida num concreto período de tempo, e a denúncia da DECO, integrando matéria suscetível de integrar a previsão do crime de burla qualificada, bastam por si para considerar reunidos os pressupostos que permitem a obtenção de dados telefónicos, face ao disposto nos arts. 187.º a 190.º, do CPP.
2. A obtenção destes dados surge como a única prova capaz de identificar os autores do ilícito denunciado, sendo indispensável à investigação e à descoberta da verdade.
Proc. 7403/17.0T9LSB-A.L1 9ª Secção
Desembargadores: Guilhermina Freitas - Calheiros da Gama - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Proc. n.° 7403/17.0T9LSB-A.L1
Acordam, em conferência, na 9.a Secção Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
1. Relatório
1. Nos autos com o n.° 7403/17.0T9LSB-A.L1, que correm termos na 3.a Secção do DIAP de Lisboa, veio o MP interpor recurso do despacho judicial proferido em 12/10/2017 (fls. 23 deste apenso de recurso), despacho esse que lhe indeferiu a promoção de fls. 20 a 21, mediante a qual requeria que o Mm.° Juiz de Instrução Criminal solicitasse à MEO que facultasse os registos de todas as chamadas de voz, no período compreendido entre 04.08.2017 e 21.08.2017, com origem na rede fixa e móvel da MEO e destinados a clientes do operador CETIN, com utilização dos planos de numeração dos seguintes destinos: Lithuania Mobile +370666/prct. (Lituânia), Estonia Mobile + 3725883/prct. (Estónia) e Slovenia PRS +386822/prct. (Eslovénia).
2. Da respectiva motivação extrai as seguintes (transcritas) conclusões:
1. Nos presentes autos investiga-se a prática de factos susceptíveis de integrar, em abstracto, um crime de burla qualificada, previsto e punido pelos artigos 217. °, n.° 1 e 218. °, n. ° 1, do Código Penal.
2. Foi promovida a obtenção junto da operadora MEO dos registos de todas as chamadas de voz, no período compreendido entre 04.08.2017 e 21.08.2017, com origem na rede fixa e móvel da MEO e destinados a clientes do operador Cetin.
3. Entendeu o Tribunal a quo que não se encontra indiciada a qualificação de qualquer conduta e que existam razões para crer que o recurso à obtenção dos dados telefónicos promovidos não se mostra imprescindível para a descoberta da verdade e aquisição da prova e, nessa medida, que seja proporcional a restrição da vida privada dos visados face aos interesses da investigação.
4. A operadora MEO - Serviços de Comunicações e Multimédia, S.A. denunciou uma fraude na geração artificial de tráfego em roaming, associada a cartões de rede móvel de clientes da MEO, ocorrida no período entre 4 e 21 de Agosto de 2017.
5. A conduta em causa, designada por `fraude wangiri , caracteriza-se pela geração de chamadas de curta duração (toques), com o objectivo de deixar uma chamada perdida nos equipamentos de clientes de operadoras móveis e incentivá-los a fazer chamadas de retorno.
6. Os números registados como não atendidos no equipamento são sempre números de um serviço de partilha de receita e quando efectuado o retorno das chamadas são ouvidas gravações ou mensagens áudio com o intuito de prolongar a duração da chamada, deixando o cliente da MEO a aguardar por diversos minutos, até acabar por ser o próprio a desligar a chamada.
7. O objectivo da conduta denunciada é sempre o de incrementar o volume de minutos gerados com as comunicações e, dessa forma, aumentar a receita auferida, sendo que as entidades subscritoras dos destinos internacionais em causa recebem parte da receita gerada pelo tráfego terminado nesses destinos, existindo indícios de existir uma prática concertada entre a entidade fraudulenta e o operador que termina as chamadas.
8. Nos presentes autos investigam-se apenas chamadas realizadas entre 4 e 21 de Agosto de 2017, com origem na rede fixa e móvel da MEO e utilização dos planos de numeração de destinos da Lituânia, Estónia e Eslovénia, as quais geraram um volume de tráfego de 51.683 minutos, o que se traduziu num custo de terminação de tráfego, no operador Cetin, no valor total de € 15.314, 00, sem qualquer contrapartida pecuniária para a MEO.
9. O volume de tráfego de 51.683 minutos foi facturado e independentemente de ter sido cobrado, ou não, aos clientes da MEO (o que não acontece caso seja detectada a fraude e estes tenham apresentado reclamação), a própria MEO está obrigada a pagá-lo à operadora Cetin, tráfego esse que se traduziu num prejuízo de € 15.314, 00 para a operadora MEO.
10. No crime de burla, ofendido é a pessoa cujo património ficou empobrecido, que pode não ser a mesma pessoa que é enganada, sendo que, ofendida do crime denunciado é a operadora MEO, cujo património ficou empobrecido em pelo menos € 15.314, 00, não obstante tenham sido enganados os respectivos clientes.
11. Ainda que assim não se entendesse, considerando a conduta descrita, o volume de tráfego de 51.683 minutos e o respectivo valor de facturação, não inferior a € 15.314, 00, sempre estaria indiciada a prática do crime de burla qualificada, não estando o procedimento criminal dependente da apresentação de queixa por cada um dos clientes da operadora MEO.
12. A obtenção dos registos de todas as chamadas de voz realizadas entre 04.08.2017 e 21.08.2017, com origem na rede fixa e móvel da MEO e utilização dos planos de numeração dos destinos supra referidos reveste-se do máximo interesse para a investigação criminal, sendo indispensável para a descoberta da verdade e apuramento da identificação dos autores do ilícito denunciado.
13. O ilícito criminal em investigação (burla qualificada) enquadra-se no catálogo taxativo elencado no artigo 187. °, n.° 1, do Código de Processo Penal, em concreto, na alínea a) e a obtenção dos registos das chamadas de voz em causa é admissível nos termos do artigo 189. °, n.° 2 do Código de Processo Penal.
14. Acresce que, apenas foi promovida a obtenção de registos de comunicações realizadas entre 04.08.2017 e 21.08.2017, pelos visados, após ludibriados para o efeito, para números da Lituânia, Estónia e Eslovénia, e relativas ao tráfego de 51.683 minutos suspeito de ser fraudulento, e não quaisquer outros registos de, facturação dos clientes da MEO, pelo que tal diligência é proporcional à restrição da vida privada dos visados.
15. Nenhum obstáculo legal existe à obtenção dos dados telefónicos pretendidos junto da operadora MEO e ao indeferir a requerida diligência, o Mmo. Juiz de Instrução comprometeu o êxito da investigação, nomeadamente porque se gorou a possibilidade de recolher a única prova que permitiria identificar os autores do ilícito denunciado.
16. O despacho recorrido violou o disposto'nos artigos 189. °, n.°'2 e 187. °, n. ° 1; alínea a) do Código de Processo Penal.
Nestes termos, dando-se provimento ao presente recurso, deve o despacho recorrido ser revogado e substituído por outro que autorize a operadora MEO a facultar os registos de todas as chamadas de voz, no período compreendido entre 04.08.2017 e 21.08.2017, com origem na rede fixa e móvel da MEO e destinados a clientes do operador CETIN, com utilização dos planos de numeração dos seguintes destinos: Lithuania Mobile +370666/prct. (Lituânia), Estonia Mobile +3725883/prct. (Estónia) e Slovenia PRS +386822/prct. (Eslovénia).
Contudo V. Ex.s decidirão, fazendo, como sempre, JUSTIÇA.
3. O recurso foi admitido por despacho de fls. 70 destes autos.
4. Nesta Relação o Digno Procurador Geral Adjunto apôs o seu visto, nos termos e para os efeitos do disposto no art. 416.°, do CPP.
5. Colhidos os vistos legais, foi o processo à conferência, cumprindo apreciar e decidir.
II. Fundamentação
1. Delimitação do objecto do recurso
É pacífica a jurisprudência do STJ no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, do conhecimento das questões oficiosas (art. 410.°, n.°s 2 e 3, do CPP).
Assim sendo, a única questão a apreciar por este Tribunal ad quem consiste em saber se existe algum obstáculo legal à obtenção dos dados telefónicos pretendidos pelo MP/recorrente junto da operadora MEO e se ao indeferir a requerida diligência o Mm.° JIC comprometeu o êxito da investigação, por se ter gorado a possibilidade de recolher a única prova que permitiria identificar os autores do ilícito denunciado nos autos, violando o disposto nos artigos 189.°, n.° 2 e 187.°, n.° 1, al. a), do CPP.
2. A decisão recorrida
É do seguinte teor a decisão recorrida (transcrição):
1. DADOS TELEFÓNICOS.
Nos presentes autos investiga-se a prática do crime de burla qualificada, p. e p. pelo art. 217.° e 218. 0, n.° 1, do Código Penal, encontrando-se reunidos os pressupostos que permitiriam a obtenção dos dados telefónicos promovidos (art°s 187 a 190 do CPP). --
No entanto, nenhum elemento probatório se encontra junto aos autos, sendo certo que nem a denúncia dos factos foi feita a título pessoal.
Por esse motivo, não é possível aceitar a indiciação qualificada de qualquer conduta, ou seja, que existem razões para crer que o recurso à obtenção de elementos telefónicos, dados de comunicações e dados sigilosos se mostra imprescindível para a descoberta da verdade e para a aquisição de meios de prova (art°s 187 a 190 do CPP), sendo que, só nessa medida, o promovido seria proporcional a restrição da vida privada dos visados face aos interesses da investigação (arts. 18.° e 34.° da Constituição da República Portuguesa). --
Por esse motivo, por ora, indefiro o promovido.
3. Analisando
Reconhece o despacho recorrido que perante o crime em investigação nos presentes autos - burla qualificada p. p. pelos arts. 217.° e 218.°, n.° 1, do CP - estão reunidos os pressupostos que permitiriam a obtenção dos dados telefónicos nos termos promovidos pelo MP/recorrente, face ao disposto nos arts. 187.° a 190.°, ambos do CPP.
A única dissonância, digamos assim, diz respeito, na perspectiva do despacho recorrido, à ausência, pelo menos à data da sua prolação, de elementos probatórios nos autos que indiciem que o recurso à obtenção de tais dados telefónicos é imprescindível para a descoberta da verdade e para a aquisição de meios de prova, sendo que só nessa medida a sua obtenção é proporcional à restrição da vida privada dos visados, face aos interesses da investigação.
Não cremos, porém, salvo o devido respeito, que assista razão ao despacho recorrido.
Pese embora alguns dos elementos a que se faz referência na motivação do recurso só tenham sido juntos aos autos já depois de proferido o despacho recorrido - como acontece com as declarações das testemunhas inquiridas - a verdade é que já existiam nos autos, aquando da sua apresentação ao JIC, a denúncia da operadora MEO, a qual participou ao MP factos indiciadores da existência de fraude na geração artificial de tráfego, em roaming, associada a cartões de rede móvel de clientes seus, ocorrida no período entre 4 e 21 de Agosto de 2017, bem como a denúncia da DECO, de fls. 14 a 16 destes autos, não sendo necessária, atenta a natureza pública do crime em investigação, qualquer denúncia dos factos a título pessoal, como se refere no despacho recorrido.
Acresce que, como refere o MP/recorrente, os dados telefónicos pretendidos junto da operadora MEO surgem como a única prova capaz de identificar os autores do ilícito denunciado, não se vislumbrando qualquer outra que permita alcançar tal objectivo, sendo, pois, indispensáveis à investigação e à descoberta da verdade.
Deverá, assim, na procedência do recurso, o despacho recorrido ser substituído por outro que autorize a operadora MEO a fornecer aos autos os elementos pretendidos pelo MP/recorrente.
III. Decisão
Pelo exposto, acordam os Juízes na 9.a Secção Criminal da Relação de Lisboa, em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP, revogando-se o despacho recorrido, o qual deverá ser substituído por outro que autorize a operadora MEO a fornecer aos autos os elementos pretendidos pelo MP/recorrente, supra referidos, a quem deverão ser solicitados.
Sem custas.
Lisboa, 19 de Abril de 2018
Processado e revisto pela relatora, a primeira signatária, que assina a final e rubrica as restantes folhas (art. 94.0, n.° 2 do CPP).
Maria Guilhermina Santos Freitas
Calheiros da Gama