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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 17-04-2018   Crimes de burla e de infidelidade. Constituição de assistente de sócios de sociedade ofendida. Legitimidade.
1 - Sendo os crimes de burla e de infidelidade crimes contra o património, a pessoa ofendida com a conduta do agente que o legislador pretendeu proteger com a incriminação é o titular dos interesses patrimoniais violados que foi visado pela conduta do agente e que, em consequência da mesma, sofreu danos.
2 - Se os prejuízos económicos sofridos em consequência dos atos danosos apenas foram sentidos no património da sociedade ofendida e não no património dos sócios, os sócios não têm legitimidade para se constituírem assistentes.
Proc. 6555/17.3T9SNT-A.L1 5ª Secção
Desembargadores:  Maria José Machado - Carlos Espírito Santo - -
Sumário elaborado por Ana Paula Vitorino
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Recurso n.°6555/17.3T9SNT-A.Ll
Acordam, em conferência, na 5a Secção do Tribunal da Relaçáo de Lisboa:
I - Relatório
1. No âmbito do processo de inquérito supra identificado, que corre seus termos junto do Ministério Público da comarca de Lisboa Oeste, foi proferido o seguinte despacho pelo Sr. Juiz de Instrução: (transcrição sem as respetivas notas de rodapé)
«Fls. 20: Vieram N... e N... requerer a respectiva constituição como assistentes. De harmonia com o disposto no art. 680, n.1, do Código de Processo Penal,
podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito: os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos [ai. a)] (...).
Os requerentes apresentaram a denúncia de fls. 3 a 21, alegando que os denunciados praticaram factos integradores dos tipos de crime de administração danosa e de burla qualificada e, nomeadamente, que «os montantes transferidos destinaram-se
única e exclusivamente a desviar dinheiro em proveito dos denunciados J..., M... e M..., Lda., em desfavor da sociedade N..., Lda.» (fls. 15, ponto 77.) e que «aquilo que é comum a todas essas transacções é que o dinheiro saiu da sociedade N... sem qualquer tipo de contrapartida (prestação de serviço/entrega de bens) e que os beneficiários foram os denunciados M... e J...» (fls. 18, ponto 93.).
Sucede que os requerentes não surgem como ofendidos nestes autos, pois de acordo com o que os próprios alegam o património atingido pela actuação dos denunciados pertence exclusivamente à sociedade N..., Lda. Conforme
refere Germano Marques da Silva a propósito do conceito de ofendido, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime, ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. Acrescenta o mesmo Autor que o objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública, o objecto imediato é que pode ter por titular uni particular, bem como que só se considera ofendido, para os efeitos do art. 68°, n.° 1, ai. a), do Código de Processo Penal, o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime.' E, tal como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08-07-2004, a violação de um bem jurídico na esfera da pessoa colectiva não se repercute na esfera jurídica de cada um dos seus representantes.
Assim, por falta de legitimidade, indefiro o requerido, não admitindo N... e N... a intervirem nos autos na qualidade de assistentes.
Notifique.»
2. Discordando da decisão assim proferida, os denunciantes interpuseram o presente recurso extraindo da sua motivação as seguintes conclusões:
1. Os Recorrentes insurgem-se contra o despacho do Tribunal a quo que indeferiu a sua (deles) constituição como assistentes, com fundamento no facto de não serem titulares do interesse que constitui o objecto imediato do crime.
II. Os Recorrentes (denunciantes) e os denunciados são sócios da sociedade N..., sendo que os denunciados cometeram os crimes de burla qualificada e infidelidade contra essa mesma sociedade.
III. Ora, os Recorrentes são ofendidos dos crimes praticados, em primeiro lugar, porque como muito bem diz o Tribunal da Relação de Coimbra no seu acórdão de 25 de Janeiro de 2006, foram eles que pagaram os montantes resultantes daquela actividade delituosa
IV. Em segundo lugar, porque, nas palavras do acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23 de Novembro de 2010, há certos tipos de crime (como é o caso daqueles que se pretendem imputar aos denunciados neste processo - crimes de infidelidade e burla qualificada) que apesar do interesse predominantemente protegido ser o da sociedade, também se protegem os interesses dos sócios (..) O sócio tem direitos na sociedade e pode pretender acautelá-Ios e in caso a única via é pela constituição como assistente. Proteqem-se bens de natureza individual que enraízam na pessoa do sócio, .
V, Em terceiro lugar - dizemos nós - não qualificar o sócio de uma sociedade como ofendido relegando a posição de assistente para a sociedade que é representada pelo infractor, será o mesmo que do que denegar justiça o que atenta contra as regras constitucionais de um Estado de Direito, nomeadamente o artigo 20.º da Lei Fundamental que protege o direito a uma efectiva tutela jurisdicional.
Pelo exposto se requer ao Tribunal ad quem que revogue a decisão tomada
e a substitua por outra que defira a constituição dos denunciados, ora Recorrentes como assistentes.
3. O Ministério Público respondeu ao recurso pedindo a sua improcedência, tendo para o efeito finalizado a sua resposta com as seguintes conclusões: (transcrição)
1. Investigam-se no presente inquérito factos susceptíveis de integrar a prática de crime de burla qualificada agravada e de infidelidade, previstos e punidos pelos artigos 217.º, nm, e 218.º, n.22, alínea a), em conjugação com a alínea b) do artigo 202.º, e 224.º, n.º 1, todos do Código Penal, praticados por M..., J..., M... - Empreendimentos Imobiliários, Lda. e G... contra a sociedade N..., Lda..
2. Referem-se os factos a actos dos denunciados sócios com vista à transferência de montantes pecuniários da sociedade N..., Lda., a favor da sociedade Intelectual Company, Ltd. (do casal M... e J...) e da sociedade G… (do mesmo casal, ainda que tendo como testa de ferro P..., contabilista da sociedade I…, Ltd.).
3. A decisão recorrida indeferiu a constituição de N... (sócio da sociedade N..., Lda.) e N... (sócio gerente da sociedade N..., Lda.) como assistentes com fundamento em falta de legitimidade.
4. Podem constituir-se assistentes no processo penal, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito.
5. Apenas os ofendidos podem ser constituídos assistentes -ofendidos são apenas aqueles que a lei especialmente quis proteger com a incriminação e não todas e quaisquer pessoas que tenham sido prejudicadas com o crime.
6. Aí não cabem o titular de Interesses mediata ou indirectamente protegidos, o titular de uma ofensa indirecta ou o titular de interesses morais, e
7. Não basta uma ofensa indirecta a um determinado interesse para que o seu titular se possa constituir assistente, pois que não se integram no âmbito do conceito de ofendido os titulares de interesses cuja protecção é puramente mediata ou indirecta, ou vítimas de ataques que põem em causa uma generalidade de interesses e não os seus próprios e específicos.
8. A qualidade de ofendido só pode aferir-se em concreto, face a cada específico crime e ao bem jurídico que protege - para isso, há que atentar nos factos e na sua qualificação jurídico-penal.
9. No nosso ordenamento jurídico as pessoas colectivas (entre elas as sociedades, e, mais concretamente, as sociedades comerciais) não se confundem com as pessoas singulares, e nem tão pouco os seus sócios se confundem com elas.
10. Sendo uma sociedade uma pessoa jurídica, o património social pertence-lhe e não aos sócios ou gerentes, cabendo a estes apenas a administração e a representação da sociedade.
11. Como bem salientou o Mmo Juiz de Instrução na decisão recorrida: Os requerentes apresentaram a denúncia de fls. 3 a 21, alegando que os denunciados praticaram factos integradores dos tipos de crime de administração danosa e de burla qualificada e, nomeadamente, que «os montantes transferidos destinaram-se única e exclusivamente a desviar dinheiro em proveito dos denunciados J..., M... e M..., Lda., em desfavor da sociedade N..., Lda.» (fls. 15, ponto 77.) e que «aquilo que é comum a todas essas transacções é que o dinheiro saiu da sociedade N... sem qualquer tipo de contrapartida (prestação de serviço/entrega de bens) e que os beneficiários foram os denunciados M... e J...» (fls. 18, ponto 93.).
12. Sendo, pois, de acordo com o também referido pelo Mmo. Juiz a quo que os requerentes não surgem como ofendidos nestes autos, pois de acordo com o que os próprios alegam o património atingido pela actuação dos denunciados pertence exclusivamente à sociedade N..., Lda. Conforme refere Germano Marques da Silva a propósito do conceito de ofendido, não é ofendido qualquer pessoa prejudicada com o crime, ofendido é somente o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. Acrescenta o mesmo Autor que o objecto jurídico mediato é sempre de natureza pública, o objecto imediato é que pode ter por titular um particular, bem como que só se considera ofendido, para os efeitos do art. 68°, n.° 1, ai. a), do Código de Processo Penal, o titular do interesse que constitui objecto jurídico imediato do crime. E, tal como se decidiu no acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 08-07-2004, a violação de um bem jurídico na esfera da pessoa colectiva não se repercute na esfera jurídica de cada um dos seus representantes.
13. O interesse protegido nos crimes de burla e de abuso de confiança não é apenas o interesse público do Estado de garantia das relações jurídico-patrimoniais, abrangendo igualmente o património concreto do lesado particular.
14. E o interesse protegido no crime de infidelidade, ainda que admitindo, que não seja só o património do titular afectado directamente com a conduta do arguido mas também a confiança no tráfico jurídico, no caso concreto, o património que está em causa, aquele que merece a protecção da norma e assim referido pelos denunciantes na queixa apresentada, é o da sociedade N..., Lda., da qual é gerente um dos denunciantes e não de uma forma directa o património deste e do demais denunciante, sócio, na qualidade de gerente e de sócio.
15. Lesada é, por conseguinte, a sociedade e não, directamente, qualquer dos seus sócios. O direito aos ganhos da sociedade, bem como o direito ao seu bom-nome e à sua valorização, enquanto factores de valorização da quota são decerto respeitáveis e atendíveis mas são apenas interesses mediatos ou indirectos dos sócios.
16. Assim, o sócio de uma sociedade concretamente ofendida por um daqueles crimes, ainda que gerente, não tem legitimidade para se constituir assistente em seu nome pessoal e em substituição da sociedade - que é um ente jurídico autónomo -, porquanto foi o património da sociedade o directamente prejudicado; é que os direitos aos ganhos (lucros ou dividendos), bem como o direito ao bom nome, enquanto factores de valorização da quota são, certamente, respeitáveis e atendíveis, mas são apenas interesses mediatos ou indirectos dos respectivos sócios.
17. Consequentemente, censura alguma merece a decisão recorrida, não tendo sido violados quaisquer dispositivos processuais penais e/ou constitucionais.
4. Neste Tribunal o Exm.° Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer a defender a posição do Ministério Publico junto da 1a instância e a consequente improcedência do recurso.
5. Cumprido que foi o art.° 417°, n°2 do Código de Processo Penal e colhidos os vistos legais cumpre, agora, em conferência, decidir:
II - Fundamentaçáo
Em causa está a legitimidade para a constituição como assistente por parte dos recorrentes.
Nos termos do disposto no art.° 68°, n°1, al. a) do CPP, podem constituir-se como assistentes, além das pessoas e entidades a quem leis especiais conferirem esse direito, «os ofendidos, considerando-se como tais os titulares dos interesses que a lei especialmente quis proteger com a incriminação, desde que maiores de 16 anos».
O conceito de ofendido, para efeitos de legitimidade para a constituição como assistente, coincide com o conceito adoptado no C. Penal no art.° 113°, n°1 para aferir da legitimidade para apresentar queixa e foi inicialmente consagrado pelo art.° 11.° do CPP de 1929 e, posteriormente, pelo artigo 4.°, n.° 2 do Decreto-Lei n.° 35.007, de 13 de Outubro de 1945.
Segundo Figueiredo Dias (Direito Processual Penal 1, Coimbra Editora, 1974, 504), «diz-se ofendido, em processo penal, unicamente a pessoa que, segundo o critério que se retira do tipo preenchido pela conduta criminosa, detém a titularidade do interesse jurídico-penal por aquela violado ou posto em perigo».
Tradicionalmente a jurisprudência considerava que o artigo 68.°, n.° 1, alínea a) do CPP consagrava um conceito restrito de ofendido, segundo o qual ofendido é o titular do interesse «directa», «imediata» ou «predominantemente» protegido pela incriminação.
O acórdão do STJ para fixação de jurisprudência n.° 1/2003 proferido a propósito do crime de falsificação, defendendo a tese do acórdão do STJ de 29/03/2000, rompeu com o entendimento tradicional e alargou o conceito da legitimidade para a constituição de assistente à pessoa cujo prejuízo seja visado para além do interesse que a norma visa proteger especialmente, ao considerar que o vocábulo especialmente usado na lei (alínea a) do n°1 do art.° 68° do CPP) significa particular e não exclusivo, de sorte que «quando os interesses, imediatamente protegidos pela incriminação, sejam, simultaneamente, do Estado e de particulares... a pessoa que tenha sofrido danos em consequência da sua prática tem legitimidade para se constituir assistente».
Tem-se verificado, também, algum alargamento jurisprudencial do entendimento da legitimidade para a constituição de assistente, para além da natureza individual ou supra-individual do bem jurídico tutelado pela incriminação dos vários tipos de crime, reconhecendo-se que, em determinados tipos de crime público que
protegem bens eminentemente públicos (v.g., desobediência, denúncia caluniosa, falso testemunho, abuso de poder, falsificação de documentos), o legislador pretendeu também tutelar bens jurídicos de natureza particular (cf. neste sentido, os acórdãos da Rel. Lisboa de 25.02.2009 e 22.10.2008 in www.pgdlisboa.pt.)
Quanto ao conceito de ofendido é, pois, no interesse jurídico-penal que sustenta o tipo criminal em investigação que se deve identificar a razão de ser da legitimidade para o assistente intervir.
Em causa está, de acordo com a denúncia apresentada pelos recorrentes, a investigação de factos susceptíveis de integrar a prática dos crimes de burla qualificada, p. e p. pelos artigos 217.° e 218.°, n°2, alínea a), administração danosa p. e p. pelo artigo 235° e de receptação, p. e p. pelo artigo 231.°, todos do Código Penal, imputados aos denunciados M..., J..., M... - Empreendimentos Imobiliários, Lda., G... e A..., contra a sociedade N..., Lda., da qual os recorrentes e os dois primeiros denunciados são sócios.
Não estando em causa a prática de actos de gestão alegadamente danosos contra uma unidade económica do sector público ou cooperativo, mas sim contra uma empresa privada, o tipo legal de crime será antes o da infidelidade p. e p. pelo artigo 224.° do C. Penal e não o do art.° 235.°, do mesmo Código, que é invocado na denúncia.
Sendo os crimes em causa contra o património, a pessoa ofendida com a conduta do agente que o legislador pretendeu proteger com a incriminação é, no sentido mais amplo que vem sendo interpretado quer pela doutrina quer pela jurisprudência mais recente, o titular dos interesses patrimoniais violados que foi visado pela conduta do agente e que, em consequência da mesma, sofreu danos.
Em momento algum da sua denúncia os queixosos, ora recorrentes, alegam que os alegados desvios de dinheiro das contas da sociedade N..., Lda., praticados em consequência dos actos danosos imputados aos denunciantes tenham sido suportados por algum deles individualmente.
Os alegados prejuízos económicos foram sentidos, segundo os próprios denunciantes, no património da sociedade, e não por estes, e o património da sociedade não se confunde com o dos respectivos sócios, tendo aquela personalidade jurídica autónoma. Ainda que, indirectamente, enquanto sócios da sociedade, os recorrentes possam vir a ser prejudicados pelos actos danosos alegadamente praticados pelos denunciados, designadamente ao nível da repartição dos lucros, tal efeito também ocorre relativamente a estes últimos, dada a sua qualidade de sócios.
Os recorrentes não têm, assim, legitimidade para, no sentido mais amplo que vem sendo admitido pela doutrina e pela jurisprudência, se constituírem como assistentes, sendo certo que a defesa dos interesses da sociedade lesada já se mostram assegurados através da constituição desta como assistente.
Refira-se que no acórdão citado pelos recorrentes, da Relação de Coimbra, de 25/01/2006, apenas se reconheceu legitimidade ao sócio da sociedade para se constituir como assistente porque foi o sócio, e não a sociedade, quem pagou os montantes resultantes da actividade delituosa do arguido.
Termos em que o recurso não merece provimento.
III - Dispositivo
Pelo exposto, acordam os Juízes na 5a Secção deste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso interposto pelos recorrentes N... e N..., mantendo o despacho recorrido.
Custas a cargo dos recorrentes, com 3UC de taxa de justiça. Lisboa, 17 de Abril de 2018
(processado e revisto pela relatora)
Maria José Costa Machado
Luís Manuel Espirito Santo)