1 – A lei ordinária, cônscia nos diplomas constitucionais e até à data imune a qualquer divisão de inconstitucionalidade emanada do Tribunal Constitucional, definiu imperativa e exaustivamente os actos que em sede de inquérito devem ser praticados, ordenados ou autorizados pelo JIC – artigos 268º e 269º, do CPP, sendo que afora aqueles a sua intervenção tem que resultar expressamente da lei.
2 – O sigilo bancário é unanimemente erigido como portador da reserva da vida privada dos cidadãos, artigo 26º, da CRP, não obstante não é um direito absoluto e é possível de ceder ante outro interesse que possa predominar como seja a realização da justiça.
3 - O legislador, ante a investigação de determinados crimes, associados à actividade económico e financeira, entendeu agilizar o procedimento relativo à obtenção de informação coberta pelo sigilo bancário e tributário, pelo que concedeu às autoridades judiciárias competência para solicitar directamente sem observância dos dispositivos da lei processual penal a tal respeito.
Proc. 184/12.5TELSB-D.L1 5ª Secção
Desembargadores: Carlos Espírito Santo - Anabela Simões - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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Proc. no 184/12.5TELSB-D.L1
Acordam, em conferência, os juízes da 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
No âmbito dos autos de Inquérito supra ids. (actos jurisdicionais) que correm termos no Tribunal Central de Instrução Criminal, em que são arguidos An... e Jo... foi proferido despacho judicial no dia 03.10.2017, constante de fls. 2618 a 2659, que a requerimento daqueles declarou irregular o despacho do MP proferido a fls. 560 e ss. dos autos principais, o qual havia solicitado às instituições financeiras e à administração tributária informações cobertas pelo sigilo bancário e fiscal relativamente àqueles arguidos e determinou o desentranhamento dos autos das informações subsequentemente fornecidas pela AT e pelas instituições bancárias.
Inconformado com o teor de tal decisão interpôs o MP o presente recurso pedindo que o mesmo seja julgado procedente, declarando o sr. juiz de instrução incompetente para sindicar o despacho do Ministério Público de solicitação de informações bancárias e fiscais e, em consequência, seja o despacho a quo revogado.
Apresentou para tal as seguintes conclusões:
1. O Ministério Público surge, na estrutura processual penal portuguesa, como o dominus da fase de inquérito, cabendo-lhe a sua direção e a tomada de decisões com vista à prossecução da sua finalidade: a decisão sobre a acusação ou o seu arquivamento.
2. O despacho de 3 de outubro de 2017 consubstancia a prática de um ato para o qual se não mostra legalmente habilitado o juiz de instrução, já que a solicitação de documentação bancária e fiscal se assume como um ato materialmente de inquérito da competência exclusiva do Ministério Público (cf. art. 262°, n.° 1, do Código de Processo Penal).
3. É indiscutível que a direcção do inquérito cabe ao Ministério Público (art. 263° n.° 1 do Código de Processo Penal) e não ao Sr. JIC, não tendo nem devendo o rumo daquele ser, por um lado, conformado pelo segundo nem, por outro, revelado, a quem quer que seja e muito menos a uma instituição financeira (IF), num despacho de solicitação de informação bancária (por exemplo justificando o timing da mesma, como pretende o Sr. JIC), por mais alargada que seja.
4. Caso tal fosse permitido, o sr. JIC ficaria em condições de apreciar tudo quanto faz o MP, desde buscas não domiciliárias a constituições de arguidos, pois também estas bulem em maior ou menor medida com direitos fundamentais.
5. A exemplo do ocorrido no processo n.° 208/13.9TELSB.G.L1-5 (do qual se cita um segmento do douto e muito recente Acórdão de 6 de junho de 2017 do Tribunal da Relação de Lisboa, relatado pelo Exmo. Desembargador Ricardo Cardoso), também neste o Sr. JIC demonstra falta de consideração pelos princípios estruturais do processo penal, do princípio do acusatório, o princípio da titularidade do M°P° da acção penal na fase de inquérito, como da limitação das competências do juiz de instrução em fase de inquérito, assim como dos comandos legais e constitucionais previstos nos art°s 17°, 53° n° 2 alínea b), 262, 262°, e 263° n° 1, 268° e 269°, todos do Código de Processo Penal, e 32° n° 5 da Constituição da República Portuguesa.
6. Conforme sc sumaria noutro douto e quase tão recente Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa (de 21/02/2017), relatado pelo Exmo. Desembargador Artur Vargues, e acima citado.
I- A apreciação da necessidade de actos de inquérito, quando não legalmente impostos, é da competência exclusiva do Ministério Público, sendo que, por isso, o Juiz de Instrução não pode declarar, durante o inquérito, a invalidade de actos processuais presididos pelo Ministério Público, tendo em atenção o princípio da autonomia deste consagrado no artigo 219°, n°s 1 e 2,da CRP.
II- Daí que a arguição de nulidades do inquérito deve ser suscitada perante o Ministério Público, entidade que preside a essa fase processual, com eventual reclamação para o superior hierárquico. Do despacho do Ministério Público (seja do inicial, seja do despacho do superior hierárquico) não cabe reclamação para o juiz, nem recurso para o tribunal superior.
- Tendo o Mm° JIC do TCIC apreciado e emitido pronúncia sobre o mérito de despacho proferido pelo magistrado do Ministério Público, com vista à efectivação de uma apreensão, mostram-se violadas regras de competência do Tribunal, pelo que o despacho revidendo padece da nulidade enunciada na alínea e), do artigo 119°, do CPP. (destaques nossos)
7. O modelo processual penal vigente implica consequências quanto à definição da competência para conhecer da invalidade dos atos de inquérito, como afirma Paulo Dá MESQUITA, esse modelo envolve que (...) ao MP compete conhecer das nulidades na fase de inquérito e apreciá-las, designadamente como questão prévia da decisão de encerramento do inquérito (...), enquanto autoridade judiciária com poder decisório nessa fase (...) (Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, Coimbra, Coimbra Editora, 2003, p. 95 e nota 141).
8. Também no entender de Paulo Pinto de ALBUQUERQUE (Comentário do Código de Processo Penal à luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, 2a ed., Lisboa, Universidade Católica Editora, 2008, pp. 300-301), [esta] estrutura implica uma separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito, durante a qual, (...) o juiz de instrução só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência e o magistrado do Ministério Público só pode conhecer da ilegalidade de actos da sua competência (...).
9. O que no mínimo se impunha, e impõe, ao Sr. JIC é que se abstenha de intervir indevidamente naquilo que compete somente ao Ministério Público, sob pena de, entre o mais, se postergar o direito da comunidade em ver a matéria em causa nos autos cabalmente esclarecida, mais a mais por ser de extrema relevância e a afectar globalmente, algo de que os Tribunais de Instrução Criminal também são o garante, o que aparentemente se ignora no despacho em crise e uma vez mais nestes autos.
10. Ao coarctar-se judicialmente, desse modo e sem fundamento, o âmbito da investigação a respectiva decisão fica fulminada de nulidade, em concreto a enunciada no art. 119° ai. e) do Código de Processo Penal.
11. A decisão recorrida viola as disposições legais que versam sobre esta matéria, arts 18° n.° 2 e 219° n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, arts. 17°, 53°, n.° 2, ai. b), 262° n.° 1 e 269° n.° 1 al. f) do Código de Processo Penal e art. 79° n.° 2 ai. d) do RGICSF, revelando-se, por isso, ilegal e inconstitucional.
12. Desde já se reiterando que não tendo vencimento essa posição ora sufragada pelo MP se considera tal decisão inconstitucional e passível de recurso obrigatório para o Tribunal Constitucional.
13. Ainda que assim não fosse, o que não se concede, o Sr. JIC não se digna sequer a dilucidar a norma ínsita no art. 79° n.° 2 al. d) do RGICSF, limitando-se a aludir à mesma (o que é manifestamente insuficiente) e muito menos retira qualquer consequência da redacção que passou a vigorar com a Lei n.° 36/2010, de 2 de Setembro, dando inclusive a entender que para si a mesma nem sequer existe e que se mantém o vigor, quanto ao sigilo bancário, o disposto na Lei n.° 5/2002, o que não ocorre há já cerca de SETE (7) anos.
14. E sobre tal norma se escreveu doutamente o seguinte no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 19 de outubro de 2011, relatado pelo Exmo. Desembargador Jorge Dias e invocado pelo Ministério Público a fls. 2529 - vol. 8 mas que o Sr. JIC também nem sequer se dignou abordar:
(...) o legislador em 2010 introduziu na alínea d), do n° 2 do ar. 79 uma excepção que não precisa de ser complementada por qualquer regra procedimental.
É diferente dizer-se que o facto ou elemento sujeito a segredo só pode ser revelado nos termos previstos na lei penal e de processo penal (e aqui se deve lançar mão do estatuído no art. 135 do CPP), ou que o facto ou elemento só pode ser revelado, à autoridade judiciária no âmbito de um processo penal.
Aqui o só pode referido no n° 2 do art. 79 equivale a que o facto ou elemento pode, desde que solicitado pela autoridade judiciária no âmbito de um processo penal.
Nem se pode entender que há violação de norma constitucional, porque a assim se entender, a dispensa de sigilo também a violaria.
0 dever de sigilo destina-se a proteger os direitos pessoais ao bom nome e reputação e à reserva da vida privada (art. 26 da CRP), mas o interesse público do exercício do direito de punir (arts. 29, 32 e 205 da CRP) e da administração da justiça prevalece sobre aquele - Ac. da Rel. de Lx, de 28-01-1997, in Col. Jurisp. tomo I, pág. 154.
Há que seguir os interesses preponderantes e foi o que fez o legislador de 2010. (...) o legislador pretendeu agilizar o procedimento relativo à obtenção de informações cobertas pelo segredo bancário, atribuindo, às autoridades judiciárias, competência para as solicitar. Desse modo, a lei reconheceu que o interesse da investigação prevalece face ao direito de reserva da vida privada do titular de uma conta bancária e que, por essa razão, o dever de segredo cai perante a solicitação de uma autoridade judiciária efectuada no âmbito de um processo penal.
(destaques nossos)
15. Seria redundante consignar num despacho aquilo que presidiu à opção do legislador e se encontra vertido na Lei e habilitado pela mesma.
16. Inexiste meio alternativo de obtenção da informação que a análise de informações bancárias e fiscais proporcionará, o que significa que sem aquela o esclarecimento cabal dos factos e o apuramento de eventual património incongruente e a sua liquidação (arts. 7° e 1o n.° 1 al. f), onde se inclui a corrupção ativa, ficarão irremediavelmente comprometidos.
17. E tal não tem de ser alegado no despacho que solicita tais informações pois foi o próprio legislador que previamente conferiu ao Ministério Público, EM QUALQUER INQUÉRITO CRIME, a faculdade de aceder às informações bancárias tidas por pertinentes para a descoberta da verdade.
18. Querer que o MP elenque tudo aquilo que o Sr. JIC assinalou é praticamente o mesmo que exigir a dedução de uma pré-acusação para o efeito, sendo que não se está a apresentar qualquer arguido a primeiro interrogatório judicial.
19. No despacho em causa proferido nestes autos, o Ministério Público aludiu ao estatuto processual (arguidos) dos titulares das declarações fiscais e das contas cujos extratos se pretende obter e analisar, o que significa, desde logo, que existiam, como existem, fundadas suspeitas (pressuposto da sua constituição como tal, art. 58° n.° 1 ai. a) do CPP) da prática dos crimes em investigação, corrupção e participação económica em negócio, também ali elencados, o que, aliás, nem sequer depende da constituição de suspeitos como arguidos nem se cinge aos mesmos.
20. O que importa no acesso a informações bancárias e fiscais é a verificação da existência dos pressupostos, não a indiciação de factos, confusão em que o Sr. JIC incorreu de forma manifesta no despacho recorrido.
21. Ainda que se considerasse o despacho não devidamente fundamentado, o que não se concede, importa notar que o legislador já considerou previamente prevalecente o interesse público na investigação criminal sobre o direito à privacidade, não deixando este de ser devidamente acautelado com a eventual selagem ou destruição dos dados bancários relativos à reserva da vida privada, caso se encerre o inquérito com despacho de arquivamento ou de acusação e, neste caso, aqueles dados não constituam meios de prova, pois a publicidade não os abrange (art. 86° n.° 7 do CPP).
22. Aliás, ao invés do que continua a constar no art. 2o n.° 2 da Lei n.° 5/2002 para as informações fiscais, no art. 79° n.° 2 al. d) do RGICSF (resultante da Lei 36/2010) nem sequer se faz referência à necessidade de despacho fundamentado, pelo que, considerando, conforme bem nota o Sr. JIC (a fls. 2641), que do disposto no n° 3 do artigo 9° do Código Civil resulta que na fixação do sentido e alcance da lei, se presume que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados, não pode ser exigido por via jurisprudencial, por mais laboriosa que seja a sua construção, um despacho mais exigente para a solicitação de documentação bancária do que aquele que o legislador, de forma consciente e deliberada, passou a permitir.
23. Aliás, mesmo na Lei 5/2002 para as informações fiscais apenas se estipula, no respetivo art. 2o n.° 5, que o despacho fundamentado assume sempre forma genérica, precisamente aquilo que o Ministério Público fez e o Sr. JIC, sem competência para tal, censurou.
24. Por outro lado, caso as IFs não se sintam confortáveis com o teor do despacho do MP considerado irregular, certamente não prestarão as informações solicitadas, sendo certo que tal não tem ocorrido até agora noutros processos, precisamente porque se têm bastado com despachos de idêntico teor ao do MP censurado judicial, indevida e erradamente nestes autos.
Responderam os arguidos An... e Jo..., pugnando pela improcedência do recurso, considerando que o Mmo. Juiz a quo tem competência, enquanto juiz garante de direitos fundamentais (in casu: artigos 26.°, n.° 1, CRP e 8.°, n.°s 1 e 2, CEDH), para declarar a irregularidade do despacho do Ministério Público de fls. 1560 e s. se o considerar
viciado, ao abrigo do artigo 17.° CPP e 32.°, n.° 4, e 202.°, n.° 2, CRP; e bem assim, que o Despacho de fls. 1560 e s. do Ministério Público não se conformou com as exigências de fundamentação a que estaria sujeito nos termos do artigo 97.°, n.° 5, do CPP e do artigo 2.0, n.° 2, da Lei n.° 5/2002, de 11 de janeiro, e dos artigos 2.°, 3.°, n.° 2,18.°, n.° 2, 20.0, n.° 4,26.°, n.° 1, 205.°, n.° 1,219.°, n.° 1, CRP, e dos artigos 6.°, n.° 1 e n.° 3, ai. c), e 8.°, n.°s 1 e 2, CEDH.
É o seguinte o teor do despacho recorrido, na parte que ora releva:
A matéria do segredo bancário está regulada nos artigos 78.° a 84.° (integrados no capítulo III intitulado segredo profissional) do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras (RGICSF), aprovado pelo Decreto-Lei n.° 298/92, de 31 de Dezembro. O artigo 78.° do RGICSF determina que, «os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços», designadamente, «os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias», o qual, «não cessa com o termo das funções ou serviços.» Igual dever de segredo recai sobre as autoridades de supervisão, nos termos do artigo 80.° do mesmo RGICSF, designadamente as pessoas que exerçam ou tenham exercido funções no Banco de Portugal.
Estão ainda sujeitos ao dever de segredo, por força do n.° 3 do artigo 81.° RGICSF, todas as autoridades, organismos e pessoas que participem nas trocas de informações referidas nos n.°s 1 e 2 do mesmo preceito, designadamente a Comissão do Mercado de Valores Mobiliários (CMVM), o Instituto de Seguros de Portugal, a Caixa Central do Crédito Agrícola Mútuo, as pessoas encarregadas do controlo legal das contas das instituições de crédito, etc. Este conjunto de disposições, directamente estabelecido para as instituições de crédito, é aplicável às sociedades financeiras, por força do disposto no artigo 195.° do RGICSF.
O segredo bancário pretende salvaguardar uma dupla ordem de interesses: por um lado, um interesse de ordem pública, o regular funcionamento da actividade bancária, baseada num clima generalizado de confiança, sendo o segredo um elemento decisivo para a criação desse clima de confiança; por outro lado, o segredo visa também a protecção dos interesses dos clientes da banca, para quem o segredo constitui a defesa da discrição da sua vida privada, tendo em conta a relevância que a utilização de contas bancárias assume na vida moderna, em termos de reflectir aproximadamente a «biografia» de cada sujeito, de forma a que o direito ao sigilo bancário se pode ancorar no direito à reserva da intimidade da vida privada, previsto no artigo 26° da Constituição da República Portuguesa - cfr. acórdão de uniformização de jurisprudência do STJ n.° 2/2008, de 13/2/2008, publicado no DR Ia Série, n.° 63, de 31/3/2008, páginas 1879 e seguintes.
Porém, dado o segredo bancário não constituir um fim em si mesmo, nem sequer um valor absoluto, a lei prevê diversas situações em que o mesmo pode ser derrogado em face de outros interesses públicos ou privados.
O próprio RGICSF, no seu artigo 79.°, prevê diversas excepções ao dever de sigilo bancário. O n.° 1 deste artigo dispõe que, «os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição, podem ser revelados mediante a autorização do cliente, transmitida à instituição.» 0 n.° 2 do mesmo artigo refere que nos casos em que não é aplicável o n.° 1 o dever de segredo só pode ser revelado ao Banco de Portugal, à Comissão de Mercado de Valores Mobiliários e ao Fundo de Garantia de Depósitos, no âmbito das suas atribuições, às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal, à Administração Tributária, no âmbito das suas atribuições e, ainda, nos termos da lei penal e do processo penal e quando exista outra disposição legal que expressamente limite este segredo.
Com efeito, a Administração Tributária tem o poder de aceder a informações ou documentos bancários sem dependência do consentimento do titular dos elementos protegidos, apesar das decisões deverem ser fundamentadas com expressa menção dos motivos concretos que as justificam. Relativamente ao acesso da AT a todas as informações ou documentos bancários sem dependência do consentimento do titular dos elementos protegidos, está previsto no artigo 63.°-B da LGT, o qual estabelece as condições em que AT pode derrogar o sigilo bancário.
As decisões da Administração Tributária, conforme impõe o citado artigo 63°-B n° 4 da LGT, no tocante ao acesso às referidas informações ou documentos devem ser fundamentadas com expressa menção dos motivos concretos que as justificam e notificadas aos interessados no prazo de 30 dias após a sua emissão, sendo da competência do dirigente máximo da Administração Tributária ou seus substitutos legais, sem possibilidade de delegação.
Por sua vez, o artigo 2o da 5/2002 de 11-01, que estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira, diz que: 1 Nas fases de inquérito, instrução e julgamento de processos relativos aos crimes previstos no artigo 1.0, o segredo profissional dos membros dos órgãos sociais das instituições de crédito, sociedades financeiras, instituições de pagamento e instituições de moeda electrónica, dos seus empregados e de pessoas que a elas prestem serviço, bem como o segredo dos funcionários da administração fiscal, cedem, se houver razões para crer que as respectivas informações têm interesse para a descoberta da verdade. 2-Para efeitos da presente lei, o disposto no número anterior depende unicamente de ordem da autoridade judiciária titular da direcção do processo, em despacho fundamentado. 3-0 despacho previsto no número anterior identifica as pessoas abrangidas pela medida e especifica as informações que devem ser prestadas e os documentos que devem ser entregues, podendo assumir forma genérica para cada um dos sujeitos abrangidos quando a especificação não seja possível.
Para além disso, a legislação penal sobre cheques sem provisão (art. 13°-A do DL n° 454/91, de 28-12, introduzido pelo DL n° 316/97, de 19-11) e a legislação sobre branqueamento de capitais (art. 9o da Lei n° 11/2004, de 27-3 e Lei 83/2017 de 18-08), estabelecem, também, derrogações ao regime de sigilo.
Em face do exposto, verifica-se que o segredo bancário, nas situações referidas, cede por imposição legal (e independentemente de autorização do titular da conta), ao interesse público de investigação criminal.
Para concluirmos quanto à natureza do sigilo bancário importa ter presente alguma jurisprudência do Tribunal Constitucional produzida a propósito desta questão.
No Ac. n.° 278/95, o TC assumiu o segredo bancário enquanto forma de tutela da reserva de vida privada presente nos dados bancários, numa situação em que o Tribunal foi chamado a pronunciar-se acerca da inconstitucionalidade do disposto na alínea e) do artigo 57° do Decreto-Lei n° 513-Z/79, de 27 de Dezembro, que autorizava o acesso a elementos das contas dos particulares. O TC considerou que importava decidir «se os dados relativos à situação económica de uma pessoa em poder de estabelecimentos bancários, respeitantes designadamente às suas contas de depósito e movimentos destas e a operações bancárias, cambiais e financeiras, fazem parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade constitucionalmente protegida».
Pois, tendo em conta a extensão que assume na vida moderna o uso de depósitos bancários em conta corrente, é, pois, de crer que o conhecimento dos seus movimentos activos e passivos reflecte grande parte das particularidades da vida económica, pessoal ou familiar dos respectivos titulares. Através da investigação e análise das contas bancárias, toma-se, assim, possível penetrar na zona mais estrita da vida privada. Pode dizer-se, de facto, que, na sociedade moderna, uma conta corrente pode constituir a biografia pessoal em números».
O TC concluiu, no sentido de que a situação económica do cidadão, espelhada na sua conta bancária, «faz parte do âmbito de protecção do direito à reserva da intimidade da vida privada, condensado no artigo 26°, n° 1, da Constituição, surgindo o segredo bancário como uma dimensão essencial do direito à reserva da intimidade da vida privada constitucionalmente garantida».
Deste modo, verifica-se que o TC, através desta decisão, adoptou, uma definição ampla do direito à intimidade da vida privada, permitindo considerar que a matéria do segredo bancário constitui uma dimensão fundamental do direito à reserva da intimidade privada previsto no artigo 26° n° 1 da CRP.
No mesmo sentido temos os Acórdãos do TC n°s 602/2005 e 442/2007. Neste último, é dito que não é tanto o conhecimento da situação patrimonial de uma pessoa que é intrusivo da sua privacidade, mas sim o facto de, com base nesse conhecimento, «propiciar um retrato fiel e acabado da forma de condução de vida privada, do respectivo titular», realçando-se a importância do sigilo bancário que, ao ser instrumento de garantia de dados referentes à vida pessoal, vai buscar o seu fundamento de tutela à própria Constituição.
E faz todo o sentido esta conclusão, na medida em que, através da análise do destino das importâncias pagas na aquisição de bens ou serviços, pode facilmente ter-se uma percepção clara das escolhas e do estilo de vida do titular da conta, dos seus gostos e propensões.
Assim sendo, não restam dúvidas que o conhecimento de dados económicos permite, afinal, a invasão da esfera pessoal do sujeito, com revelação de facetas da sua individualidade própria, ou seja, permiti-nos saber não apenas aquilo que ele tem mas, também, aquilo que ele é.
Por sua vez, no Acórdão n° 42/2007, de 23-01-2007, do TC é dito que «o âmbito da privacidade atingido pelo levantamento do sigilo bancário não é equiparável à liberdade pessoal (afectada com a aplicação de medidas de coacção) ou ao núcleo da reserva de privacidade que é afectada com uma escuta telefónica ou com uma busca domiciliária».
Posteriormente, no Acórdão n° 442/ 2007, de 14/08/2007, do mesmo Tribunal, diz-se que das três manifestações em que se desdobra o direito à reserva da intimidade - direito à solidão, direito ao anonimato, e autodeterminação informativa - é esta última a mais relevante, e a que mais interessa quando está em causa o estatuto constitucional do sigilo bancário. Quanto à delimitação da vida privada é dito que, «poderá dizer-se que o conceito cobre a esfera de vida de cada um que se deve ser resguardado do público, como condição de plena realização da identidade própria e da salvaguarda da integridade e da dignidade pessoais» e mais adiante diz-se que «é sobretudo como instrumento de garantia de dados referentes à vida pessoal, de natureza não patrimonial, que, de outra forma, seriam indirectamente relevados, que o sigilo bancário deve ser constitucionalmente tutelado» - parece que, aqui, se pretende por em destaque que, por via do acesso aos movimentos bancárias, se poderão vir a saber muitos outros passos da vida privada.
0 STJ, em Acórdão, de 17/12/2009, considerou não violadora da reserva de intimidade da vida privada a «exigência da divulgação dos elementos da conta bancária de uma das partes que permitam o apuramento da situação patrimonial da outra, em causa pendente, no âmbito do, estritamente, indispensável à realização dos fins probatórios visados por aquela, e com observância rigorosa do princípio da proibição do excesso, é garantia da justa cooperação das partes com o Tribunal, com vista à descoberta da verdade à luz da doutrina da ponderação de interesses».
Do que acabamos de referir, extrai-se que o dever de sigilo bancário, constitui um sigilo de carácter profissional a observar pelos profissionais do sector, destina-se a proteger os direitos pessoais ao bom nome e à reserva da privacidade (pelo menos das pessoas singulares), bem como o interesse privado da protecção das relações de confiança entre as instituições financeiras e os respectivos clientes.
Extrai-se, ainda, que a jurisprudência do Tribunal Constitucional considera que o segredo bancário constitui uma dimensão essencial do direito fundamental à reserva da intimidade da vida privada, constitucionalmente previsto no n.° 1 do artigo 26.° da CRP, protegendo dados relativos à vida pessoal e patrimonial dos indivíduos.
Quanto ao sigilo fiscal, o mesmo encontra-se previsto no artigo 64.° da Lei Geral Tributária do qual resulta que o dever de sigilo fiscal recai sobre dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária, encontrando-se estes obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributário dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado».
Diz o artigo em causa: 1 - Os dirigentes, funcionários e agentes da administração tributária estão obrigados a guardar sigilo sobre os dados recolhidos sobre a situação tributária dos contribuintes e os elementos de natureza pessoal que obtenham no procedimento, nomeadamente os decorrentes do sigilo profissional ou qualquer outro dever de segredo legalmente regulado.
2 - O dever de sigilo cessa em caso de:
a) Autorização do contribuinte para a revelação da sua situação tributária;
b) Cooperação legal da administração tributária com outras entidades públicas, na medida dos seus poderes;
c) Assistência mútua e cooperação da administração tributária com as administrações tributárias de outros países resultante de convenções internacionais a que o Estado Português esteja vinculado, sempre que estiver prevista reciprocidade;
d) Colaboração com a justiça nos termos do Código de Processo Civil e mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal; (...).
7- Para efeitos do disposto na alínea d) do n.° 2, e com vista à realização das finalidades dos processos judiciais, incluindo as dos inquéritos em processo penal, as autoridades judiciárias acedem directamente às bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira.
8- A concretização do acesso referido no número anterior é disciplinada por protocolo a celebrar entre o Conselho Superior da Magistratura, a Procuradoria-Geral da República e a Autoridade Tributária e Aduaneira.»
O sigilo fiscal encontra-se assim necessariamente relacionado com a situação tributária do contribuinte, designadamente com a sua capacidade contributiva e, tal como o sigilo bancário, encontra a sua razão de ser no princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada garantida pelo artigo 26.° da Constituição da República Portuguesa.
3-Uma vez chegados a esta conclusão e tendo presente que o sigilo bancário e fiscal tem subjacente um direito fundamental, cumpre, agora, saber se a apreciação da questão colocada pelos arguidos é da competência do JIC ou exclusiva do M° P°.
Neste sentido decidiu o Ac. do Trib. Constitucional no Acórdão n° 172/92 de 6 de Maio dizendo: Oprocesso penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo (...).
Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório (...) .
Deste modo, tendo em conta os direitos fundamentais invocados pelos requerentes - direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar (artigo 26° n° 1, in fine, e n° 2 da CRP) - e referindo que existe uma decisão que restringe esse direito faz com que lhe assista legitimidade e interesse em agir para defesa desses direitos.
Nesta conformidade, assiste legitimidade aos requerentes para virem aos autos requererem a pretensão acima enunciada.
O artigo 32 n° 5 da C.R.P. consagra como princípio fundamental enformador do processo penal, o princípio do acusatório, estabelecendo que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Deste modo, não se levantam quaisquer dúvidas que a fase de inquérito no nosso ordenamento processual, está cometida exclusivamente ao Ministério Público, que determinará as diligências reputadas pertinentes e adequadas à investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não, (artigos 263°, 264° e 267° do CPP).
O artigo 219° n°2 da CRP consagra a autonomia do Ministério Público o que significa que as opções tomadas no seu seio ocorrem sem interferências externas daquela magistratura, mas não lhe confere o princípio da independência consagrado no artigo 203° do mesmo diploma atribuído aos tribunais e aos juízes. Deste modo, as decisões do Ministério Público tomadas na fase de inquérito, desde que contendam com direitos e liberdades fundamentais, não estão excluídas do controlo judicial.
Assim, a autonomia estatutária do Ministério Público prevista no artigo 221° da Constituição e nos artigos Io e 2o do respectivo Estatuto (Lei n° 47/86, de 15-10), refere-se à relação orgânica do M° P° com os demais órgãos da administração do Estado. Para além disso, o Ministério Público, enquanto sujeito processual, não está imune ao dever de obediência às decisões judiciais quando a determinação se coloca na relação entre o juiz e um sujeito do processo e não na relação orgânica entre o Ministério Público e o tribunal, enquanto instituições com atribuições legais distintas. Uma decisão do JIC enquadra-se, deste modo, no âmbito da relação processual de autoridade que se estabelece entre o juiz e os sujeitos do processo.
Na fase de inquérito os actos praticados pelo M° P° assumem uma natureza materialmente administrativa sendo que os actos praticados pelo juiz de instrução revestem uma natureza jurisdicional e aqueles actos, como os de todos os órgãos do Estado, não estão isentos, por força dos princípios estruturantes do Estado de Direito, de controlo jurisdicional.
Diz o artigo 17° do CPP que, compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até remessa do processo para julgamento.
A intervenção do JIC no inquérito opera-se, basicamente, através dos artigos 268° e 269°do CPP.
Ora, tendo em conta a situação suscitada pelos requerentes verifica-se que a mesma não encontra cabimento expresso em nenhum desses actos avulsos especialmente regulados.
Para além disso, se tivermos em conta a estruturação acusatória do nosso processo, parece-nos, à partida, que a competência para apreciar a mesma seria da exclusiva competência do Ministério Público.
Parafraseando o Prof. Germano Marques da Silva - Curso de Processo Penal Verbo, III Vol., pág. a 81 se a lei confia ao Ministério Público a direcção da investigação, permitindo-lhe dispor quais os actos que entenda necessários à realização da finalidade do inquérito, não se compreenderia que depois submetesse a actividade desenvolvida a fiscalização judicial. O que fica sujeito a fiscalização judicial é a decisão do Ministério Público no termo do inquérito.
Ainda o mesmo autor na obra já citada, pág.s 79/80 (...) competindo a direcção do inquérito ao Ministério Público, não é curial que o juiz possa intrometer-se na actividade de investigação e recolha de provas, salvo se tratar de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais. Para a prática de algum desses actos pode necessitar da intervenção do juiz, quer para os consentir, quer mesmo para os praticar mas só por sua promoção podem ter lugar (o que não é a situação dos autos), a menos que se trate de actos necessários à salvaguarda de direitos fundamentais dos requerentes.
Mas será mesmo assim? Parece-nos que não.
O que está em causa com a pretensão dos arguidos não é a autonomia do M° P° e nem, muito menos, a titularidade do inquérito, mas sim a defesa de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Ora, como já dissemos anteriormente nestes autos, tratando-se de direitos fundamentais a questão não poderá estar fora da sindicância jurisdicional a exercer pelo juiz de instrução criminal, enquanto juiz de garantias e de liberdades, por força do artigo 202° n° 2 da CRP quando afirma que, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e do artigo 17° do CPP quando estatui que o juiz de instrução tem competência, além do mais, (...) exercer todas as funções jurisdicionais até a remessa do processo a julgamento».
Para além disso, este entendimento não colide com estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32° n° 5 da CRP, nem com a separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito e nem, muito menos, poderá ser tida como uma posição de sindicante por parte do JIC da actividade do Ministério Público. Esta posição é, em nosso entender, a que melhor se coaduna com as funções do juiz de instrução enquanto garante de direitos fundamentais dos cidadãos.
No mesmo sentido se pronunciou João Conde Correia, para quem a declaração de nulidade tem carácter materialmente judicial, e porque na fase do inquérito compete ao juiz de instrução criminal praticar ou sindicar todos os actos que contendem com direitos, liberdades e garantias individuais, onde se inclui o conhecimento das nulidades (In Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, pág. 189 e ss, nota 439).
Para além disso, o n.° 4 do artigo 32° da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (reserva do juiz).
Neste sentido, veja-se o AC do Tribunal Constitucional n° 228/2007 quendo diz que: «Decisivamente, entende o Tribunal que, tratando-se de uma intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, se impõe um controlo prévio pelo juiz como expressão da separação de poderes e competências decorrente da estrutura acusatória do Processo Penal consagrada nos artigos 32°, n°s 4 e 5 do Código de Processo Penal».
«..., o n.° 4 do artigo 32° da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (reserva do juiz)».
Sob a epígrafe Outros direitos pessoais a Constituição da República consagra no seu artigo 26° um conjunto de direitos fundamentais que protegem um círculo nuclear da pessoa, correspondendo, genericamente, a direitos de personalidade. Entre esses direitos, está o direito fundamental à reserva da vida privada, cuja tutela se projecta em sede processual penal, o direito ao bom nome e reputação. Por sua vez, o artigo 32° n° 2 consagra o princípio da presunção de inocência.
No entanto, em toda esta actividade de investigação cabe ao JIC zelar e velar para que os Direitos Liberdades e Garantias dos envolvidos nos processos sejam protegidos/observados como podemos concluir da leitura rápida dos artigos 205 °, 268° e 269° do CPP e sem esquecer o art° 17° do CPP e a nossa Lei Fundamental.
O MP não define ou delimita direitos, não se pronuncia pela sua eventual violação ou, pelo menos, não decide da invocada violação dos mesmos, assim como das garantias e das liberdades.
Ora, entendendo que existem aqui duas situações que devem ser tidas em conta, uma que se prende com a conduta do MP e que só pode ser atacada por via hierárquica enquanto for ele o Dominus do Inquérito e outra, em que, nesta fase processual o JIC é chamado como o Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias e em relação às quais tem necessariamente de se pronunciar, há que tomar posição quanto ao recurso em causa. (...).
É sem dúvida ao JIC que compete pronunciar-se quanto a estas questões - art° 202.° CRP, porque compete aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos - artigo 32.°da CRP, n° 1 do artigo 20°CRP».
Face ao exposto, conclui-se que, contendendo a situação em causa, com direitos, liberdades e garantias fundamentais dos arguidos em causa, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende, pelas mesmas razões que justificam essa dependência no caso dos actos que constam da lista constante do artigo 269° do CPP, isto é, por consubstanciar intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido de apreciação por parte do juiz de instrução.
4-Chegados a esta conclusão, cumpre, agora, saber se assiste razão aos requerentes quanto à invalidade do despacho do M° P° proferido a fls. 1560ss.
Os arguidos alegam, em resumo, que o despacho em causa não se encontra fundamentado...
7-Conclusão:
a) -0 sigilo fiscal encontra-se assim necessariamente relacionado com a situação tributária do contribuinte, designadamente com a sua capacidade contributiva e, tal como o sigilo bancário, encontra a sua razão de ser no princípio constitucional da reserva da intimidade da vida privada garantida pelo artigo 26.° da Constituição da República Portuguesa.
b) -Contendendo a situação em causa, com direitos, liberdades e garantias fundamentais dos arguidos em causa, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende, pelas mesmas razões que justificam essa dependência no caso dos actos que constam da lista constante do artigo 269° do CPP, isto é, por consubstanciar intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido de apreciação por parte do juiz de instrução.
c) - Da análise do despacho em causa (fls.1560) em conjugação com a resposta do M° P° de fls. 2159, conclui-se, também, que, segundo a interpretação do autor do despacho, a quebra do sigilo bancário e fiscal, no âmbito do processo penal, previsto no artigo 2o da Lei 5/2002 de 11 -02, funciona de forma automática sem necessidade de qualquer fundamentação.
Tendo em conta a natureza dos direitos fundamentais em causa, e acima enunciados, faz com que essa interpretação seja manifestamente contrária à constituição, por violação dos artigos 2.°, 3.°, n.° 2, 18.°, n.° 2, 20.°, n.° 4, 26.°, n.° 1, 32.°, n.° 1, 219.°, n.° 1, CRP, e dos artigos 6.°, n.° 1 e n.° 3, al. c), e 8.°, n.os 1 e 2 CEDH, aplicáveis ex vi artigo 8.°, n.° 2, CRP.
Nesta conformidade, temos de concluir que a decisão de fls. 1560 não se encontra fundamentada.
d) - Por todo o exposto, por ser tempestiva e invocada por quem tem interesse, ao abrigo do artigo 123° n° 1 do CPP, julgo verificada a irregularidade, por falta de fundamentação, do despacho do M° P° que decretou a quebra do sigilo bancário e fiscal, constante de fls. 1560ss e, em consequência, dou o mesmo sem efeito.
Mais declaro a inconstitucionalidade da norma constante nos números 1 e 2, do artigo 2.° da Lei 5/2002 e números 3 e 5, do artigo 97.° do CPP, interpretada no sentido dado pelo Ministério Público, ou seja, no sentido de que a quebra do sigilo bancário funciona de forma automática e sem necessidade de despacho fundamentado.
e) -Em face do exposto, uma vez que a irregularidade em causa foi invocada tempestivamente pelos arguidos e dado que a mesma afecta o valor do acto praticado pelo M° P°, julgo verificada a irregularidade do despacho de fls. 1560ss, na parte relativa aos arguidos An... e Jo..., bem como dos actos subsequentes praticados ao abrigo do despacho em causa, ou seja, as solicitações dirigidas à AT e Instituições bancárias e as respostas remetidas ao processo por estas instituições as quais, após trânsito em julgado deste despacho, devem ser desentranhadas dos autos e destruídas.
0 Digno PGA junto deste Tribunal emitiu douto parecer no sentido da improcedência do recurso.
Responderam os arguidos An... e Jo... no sentido anteriormente propugnado.
Colhidos os vistos legais, realizou-se a conferência.
0 objecto do recurso, delimitado pelas conclusões, é: saber se o JIC é competente para, em sede de inquérito, sindicar o despacho do MP que solicitou informações bancárias e fiscais e, na afirmativa, se aquele se encontra devidamente fundamentado.
Insurge-se o MP contra a intervenção do JIC que, mediante o despacho supra id., prolatado a requerimento dos arguidos An... e Jo..., veio sindicar o despacho do MP proferido em 9-6-2017, no âmbito do processo de inquérito em curso, no qual se solicita à administração tributária e às entidades bancárias o fornecimento de informações atinentes àqueles dois arguidos, considerando que o JIC não tem competência para tal.
Investigam-se nos presentes autos factos susceptíveis de integrar a prática de crimes de corrupção passiva (art. 373°, C. Pen.), corrupção activa com agravação (arts. 374° e 374°-A, C. Pen.) e participação económica em negócio (art. 377°, C. Pen.), ilícitos que constam do catálogo de crimes elencados na Lei n° 5/2002, de 11-1.
No que aos presentes autos concerne, importa chamar à colação os seguintes normativos:
a) Lei n° 5/2002 de 11-1, que estipula:
N° 1 - Nas fases de inquérito...relativos aos crimes previstos no n° 1, o segredo profissional dos membros dos órgãos sociais das instituições de crédito...dos seus empregados...bem como o segredo dos funcionários da administração fiscal, cedem, se houver razões para crer que as respectivas informações têm interesse para a descoberta da verdade.
N° 2 - ...o disposto no n° anterior depende unicamente de ordem da autoridade judiciária titular da direcção do processo, em despacho fundamentado.
b) Art. 64°, 2, d) da Lei Geral Tributária, aprovada pelo DL no 398/98, de 17-12, que estabelece:
0 dever de sigilo cessa em caso de:
c) Colaboração com a justiça...mediante despacho de uma autoridade judiciária, no âmbito do Código de Processo Penal.
N° 7 - Para efeitos da al. d) do n° 2, e com vista à realização das finalidades dos processos judiciais, incluindo as dos inquéritos em processo penal, as autoridades judiciárias acedem directamente à bases de dados da Autoridade Tributária e Aduaneira.
d) Art. 79°, 2, d) do RGICSF:
0 dever de segredo só pode ser revelado...às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal....
Invoca o despacho recorrido a legitimidade de intervenção jurisdicional, mesmo em fase de inquérito, sempre que estejam em causa actos do MP que ponham em causa direitos, liberdades e garantias constitucionalmente consagrados, ao abrigo do disposto nos arts. 32°, 4 e 202°, 2, da CRP e 17° do C. P. Pen..
Cremos, contudo, que esta interpretação abrangente não obtém acolhimento na Constituição e na legislação ordinária.
Este nosso entendimento encontra plena justificação nas considerações expendidas nos Acs. RL, de 24-5-2011, Proc. no 1566/08.2TACSC.L1; de 21-2-2017, Proc. no 2/15.2IFLSB.L1; e de 6-6-2017, Proc. n° 208/13.9TELSB-G.L1; e bem assim, em P. Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 2° ed., pg. 300-301. Assim: resulta dos arts. 53°, 2, b) e 263° , 1, C. P. Pen. que a direcção do inquérito cabe ao MP, que pratica os actos e
assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades a que alude o cart. 262°, 1, C. P. Pen. - cfr. Art. 267° , ou seja, o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas em ordem à decisão sobre a acusação,
sendo certo que para o exercício da acção penal, orientada pelo princípio da legalidade, goza ele de autonomia - art. 219°, 1 e 2, da CRP. Daqui resulta que a apreciação da necessidade de actos de inquérito, quando não legalmente impostos é da competência exclusiva do MP, sendo que por isso o JIC não pode declarar, durante o inquérito, a In validade de actos processuais presididos pelo MP. Em sede de inquérito, o JIC tem a sua competência
reservada aos actos tipificados na lei, designadamente, os constantes do art. 268° e ss. do C. P. Pen.. O juiz de instrução não tem qualquer intervenção de tipo hierárquico ou de supervisão jurisdicional dos actos do MP. A arguição de nulidades do inquérito deve ser suscitada perante o MP, não cabendo do despacho daquele nem reclamação para o juiz nem recurso para o tribunal superior. As nulidades do inquérito só podem ser conhecidas pelo juiz de instrução se requerida a abertura da fase processual de instrução ou, na sua ausência, pelo juiz da causa no momento do recebimento dos autos (art. 3110, 1, C. P. Pen.). Tratando-se de meio de obtenção de prova que afecta direitos fundamentais, tal é ordenado ou validado pela autoridade judiciária - art. 178°, nos 3, 5
e 6, C. P. Pen. - que tratando-se da fase de inquérito, é o MP. A desobediência a tais comandos importa a nulidade insanável enunciada no art. 119°, e), C. P. Pen. (transcrição adaptada).
Decorrentemente, apenas na fase de instrução ou após remessa do processo para julgamento cabe ao juiz apreciar eventuais ilegalidades cometidas no decurso do inquérito.
O JIC recorrido fundamenta a sua intervenção nos arts. 320, 4, e 202° da CRP e 170 e 268°, C. P. Pen., por estarem em causa direitos fundamentais.. Sucede que nenhum daqueles preceitos legitima a sua intervenção In casu. Efectivamente, a lei ordinária, cônscia dos dispositivos constitucionais e até à data imune a qualquer decisão de inconstitucionalidade emanada do TC, definiu imperativa e exaustivamente os actos que em sede de inquérito devem ser praticados, ordenados ou autorizados pelo JIC - arts.
268° e 269°, C. P. Pen. - sendo que, afora aqueles, a sua intervenção tem de resultar expressamente da lei, o que não sucede no caso em apreço.
Ao determinar a exacta intervenção do JIC em sede de inquérito, não olvidou certamente o legislador que nesta fase processual está eminentemente em causa o cerceamento de direitos fundamentais - liberdade, segurança, reserva da vida privada, inviolabilidade do domicílio e da correspondência, etc. - e, mesmo assim, não deixou de confiar à autoridade judiciária MP (que actua segundo o princípio da legalidade e da defesa da legalidade democrática - art. 219°, 1, CRP) a prática de actos que contendem com os direitos, liberdades e garantias (sem embargo do seu controle judicial, no momento próprio).
0 sigilo fiscal e bancário é unanimemente erigido como protector da reserva da vida privada dos cidadãos, consagrado no art. 26° da CRP e reiteradamente sublinhado pelo Tribunal Constitucional. Não obstante, tal direito não é absoluto (como sempre considerou aquele supremo tribunal) e é passível de ceder ante outro interesse que possa predominar, como seja o da realização da justiça.
De resto, como já se defendia antes da alteração legislativa que permite à autoridade judiciária solicitar directamente, no âmbito de processo criminal, informações bancárias ou tributárias A consagração do dever de segredo visa primordialmente a protecção do respeito pela reserva da vida privada dos cidadãos, através da
garantia de confidencia/idade dos dados em poder da banca. Não reveste, porém, aquele a natureza de princípio absoluto, daí que a lei preveja as aludidas excepções.... A prevalência do interesse preponderante deve ser tomada em termos substantivos e valorativos: apenas os interesses subjacentes a um crime grave prevalecem sobre os bens de personalidade em jogo no segredo: ela deve limitar-se ao minimum necessário enquanto o segredo se
mantém como tal, fora do processo onde foi revelado - Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 1998, pg. 321 -. Também Costa Andrade (Comentário Conimbricence do Código Penal, Vol 1, 1999, pg. 795-796) salienta que há-de ter-se presente o critério material adoptado pelo legislador e segundo o qual o tribunal competente só pode impor a quebra do segredo profissional quando esta se mostre justificada face às normas e princípios aplicáveis da
lei penal, nomeadamente, face ao princípio da prevalência do interesse preponderante ; assim se vinculando o julgador a padrões objectivos e controláveis, dependentes da ponderação dos interesses concretamente em jogo, sendo especialmente relevante a gravidade dos crimes contra o património a perseguir. Neste sentido, cfr. Ac. RL, de 28-1-97, CJ, I, Pg. 154.
Sucede que o legislador, ante a investigação de determinados crimes, designadamente, associados à actividade económica e financeira, entendeu agilizar o procedimento relativo à obtenção de informações cobertas pelo segredo bancário e tributário, pelo que concedeu às autoridades judiciárias competência para as solicitar directamente, sem observância dos dispositivos da lei processual penal a tal respeito, reconhecendo explicitamente que os interesses da investigação de determinado tipo de crimes prevalece ante o direito à reserva da vida privada dos visados.
Assim, dúvidas não restam de que o despacho do MP em causa, visando a obtenção de prova constitui materialmente um acto de inquérito - art. 262°, 1, C. P. Pen. - e que qualquer intervenção jurisdicional a tal propósito e neste momento constitui um acto violador dos princípios do acusatório e da titularidade e autonomia do MP - arts. 32°, 5, e 219°, CRP; 17°, 53°, 2, b), 262°, 263°, 1, 268° e 269°, C. P. Pen.; e 1° e 2° do EMP.
A decisão recorrida viola, assim, os arts. 18°, 2 e 219°, 1 da CRP; 17°, 53°, 2, b), 261°, 269, 1, f), 79°, 2 do RGICSF; 2°, 2 da Lei n° 5/2002, de 11-1 e 64° da LGT.
De resto, nem o art. 17° do C. P. Pen., nem sequer os arts. 32°, 4, CRP (dirigidos essencialmente à instrução) ou o 202° da Lei Fundamental, inculcam a exclusividade do juiz na defesa dos direitos, liberdades e garantias (relembre-se que o MP actua sob estrito critério de legalidade, com autonomia técnica do poder político, embora sem independência), sem prejuízo de, em última instância, o Tribunal (juiz) poder sindicar a actividade do MP em sede de inquérito, no momento próprio, legalmente definido, a jusante do inquérito.
Consequentemente, em face da consideração da ausência de competência por parte do JIC para apreciar o despacho do MP em causa, fica prejudicada a análise da fundamentação (ou ausência dela) do despacho do MP em crise, pelo que nos abstemos de tecer qualquer considerando sobre tal.
Pelo exposto:
Acordam, em conferência, os juízes da 5a Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em conceder provimento ao recurso, declarando nulo o despacho recorrido, nos termos da ai. e) do art. 119°, C. P. Pen..
Não é devida taxa de justiça.
L., 15-5-18
Carlos Espírito Santo
Anabela Simões Cardoso