Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 27-11-2018   Desistência de Queixa. Qualificação Juridica.
1—“A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art° 358° n°s 1 e 3 do CPP. Acórdão de Fixação de Jurisprudência de 16 de Junho de 2013
2 - Recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade. Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.
3 – Caso não fosse assim a solução seria inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.
Proc. 1034/17.1PBFUN.L1 3ª Secção
Desembargadores:  Maria da Graça Santos Silva - Augusto Lourenço - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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Processo n° 1034/17.1PBFUN.L1
(Tribunal Judicial da Comarca da Madeira Juízo Local Criminal do Funchal - Juiz 1)

Acordam os Juizes, em conferência, na 3a Secção Criminal, deste Tribunal:

I — Relatório:
Neste processo, em que é arguido F, filho de A e de M, nascido em 16-5-1978, em São Pedro, Funchal, casado, chefe de mesa, residente no Caminho…, proferido que foi despacho que declarou extinto o procedimento criminal por desistência de queixa, o Ministério Público recorreu, concluindo as alegações nos termos que se transcrevem:
« 1. O presente recurso versa sobre o despacho proferido de fls. 65, consubstanciado na alteração parcial da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação pública, por força da qual o despacho recorrido converteu depois um crime-público em semi-público, homologou a desistência de queixa e declarou a extinção do presente procedimento criminal. Este despacho foi proferido antes de se iniciar o julgamento e de ter sido produzida qualquer prova nos autos, pelo que se encontra ferido de invalidade assente nas seguintes premissas:
i) - por conter em si uma violação manifesta da jurisprudência fixada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça no processo n° 788/10.0GEBRG.G1-A.S1 - onde se estabeleceu ser proibida a alteração da qualificação jurídica dos factos da acusação antes de se iniciar a produção de prova em julgamento - e inerentemente do disposto no art. 358 ° do Código de Processo Penal;
ii) - por ter impedido o Ministério Público de se pronunciar sobre a desistência de queixa apresentada nestes autos, avançando, sem ter concedido o contraditório ao Ministério Público, para uma decisão de homologação da queixa e extinção do procedimento criminal em violação do disposto nos arts. 48°, 53°, nrs. 1 e 2, alínea c), e 327°, todos do Código Penal.
B.) Identificação e análise dos vícios do despacho judicial ora sob recurso
al) Da violação da jurisprudência fixada pelo Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16 de Junho de 2013 proferido no processo n° 788/10.0GEBRG.G1-A.S1 [publicado no Diário da República, I série, 138, 19.07.2013, P. 4220 e integralmente disponível no sítio da internet www.dgsi.pt, e da inerente violação do disposto no art. 358°, nrs. 1 e 3, do Código de Processo Penal
2. O Acórdão de Fixação de Jurisprudência supra referido foi proferido no âmbito de um caso semelhante àquele sobre o qual agora nos debruçamos. Em tal caso verificou-se que o Tribunal de 1a Instância, antes de iniciar o julgamento e de produzir qualquer prova, decidiu proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação, convertendo assim o crime de ofensas qualificadas a que a acusação pública se reportava num crime de ofensas simples. Em consequência, e como fora apresentada uma desistência de queixa nesses autos, mais decidiu o Tribunal, nesse processo, pela extinção do procedimento criminal.
3. Contudo, contrariando frontalmente a tese defendida pela decisão do Tribunal daquele processo (aliás idêntica à do Tribunal A Quo), o Supremo Tribunal de Justiça revogou aquela decisão e fixou, sobre esta matéria, a seguinte orientação decisória: A alteração, em audiência de discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art° 358° n°s 1 e 3 do CPP.
4. Olhando para a fundamentação e sentido da decisão do Tribunal A Quo ora sob recurso em cotejo com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça ora destacada, constatamos que a decisão recorrida entra em confronto directo com os fundamentos e sentido desta decisão do Supremo Tribunal de Justiça sem ter, tão pouco, justificado porque razão assim entendeu, o que constitui, para além do mais, um desrespeito pelo disposto no art. 445°, n° 3, do Código de Processo Penal. Na realidade, facilmente se retira do despacho recorrido que o mesmo se limitou a discordar, do ponto de vista da qualificação jurídico-criminal dos factos vertidos na acusação pública, com o Ministério Público, sem que da acusação resultasse qualquer tipo de erro manifesto nesse sentido.
5. Como acima explicamos, e olhando para o teor da acusação pública, facilmente se observa terem sido aí alegados os elementos objectivos e subjectivos essenciais do tipo legal em apreço: ou seja que o ofendido foi agredido fisicamente por ser árbitro de hóquei, no exercício de tais funções e por causa das mesmas, mais precisamente no final de um jogo de hóquei por ele arbitrado, junto às instalações onde o jogo ocorreu, num momento em que o arguido o abordou manifestando o seu desagrado pela actuação do ofendido como árbitro, sendo certo que o arguido previu e quis actuar deste modo ciente de todo este circunstancialismo.
6. Logo, o que aqui ressalta como sendo por demais evidente no presente caso é que não há na acusação deduzida nenhum erro manifesto ou lapso evidente susceptível de motivar uma alteração extemporânea da sua qualificação jurídica, assim como inexiste nela qualquer um dos vícios a que alude o art. 311° do Código de Processo Penal, que, por sua vez, permitiriam ao Tribunal recorrido pronunciar-se sobre o seu conteúdo e, inclusivamente, determinar a sua rejeição. Ora, este estado de coisas, à luz da correcta interpretação do disposto no art. 358°, nºs. 1 e 3, do Código de Processo Penal, e da orientação fixada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça supra referido, impede que o julgador, tal como fez e no momento em que o fez, proceda à alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação.
7. Face a todo o exposto, deverá ser revogado o despacho proferido a fls. 65 destes autos, declarando-se a inadmissibilidade legal da operação de alteração da qualificação jurídica dos factos por parte do Tribunal recorrido no momento processual em que a levou a cabo. Neste sentido, mais deverá proceder-se à sua substituição por outro despacho em sede do qual se determine a não homologação da desistência de queixa apresentada pelo ofendido na parte respeitante ao crime de ofensas à integridade física qualificada por este ser um crime público e, por conseguinte, em sede do qual se ordene o início do julgamento com a audição do arguido e a produção da prova indicada pela acusação pública.
B. 2) Da violação do contraditório que impunha conceder ao Ministério Público enquanto promotor da acção penal
8. O presente recurso abrange paralelamente o facto do Tribunal recorrido ter decidido o incidente processual referente à apresentação de uma desistência de queixa pelo ofendido sem, todavia, ter concedido ao Ministério Público qualquer oportunidade de se pronunciar sobre tal matéria.
9. Com efeito, e sem prejuízo do que ficou dito no segmento 8.1) da motivação de recurso que antecede, o despacho de homologação da desistência de queixa está, também na vertente analisada no presente ponto, ferido de invalidade processual sob a forma de irregularidade, a qual desde já arguimos para os devidos efeitos legais nos termos do disposto nos arts. 105°, n° 1, e 118°, nrs. 1, 2 e 3, a contrario sensu, e 123°, todos do Código de Processo Penal [sendo a sua arguição admissível em sede do recurso ora apresentado, face ao que estabelece o art. 410°, n° 3, do Código de Processo Penal - cfr. a este respeito o Comentário ao Código de Processo Penal Anotado de Paulo Pinto de Albuquerque, 2a Edição actualizada, página 1122, anotações 301 a 303 do art. 410° do Código de Processo Penal].
10. E assim é pois o Tribunal recorrido não permitiu ao Ministério Público que se pronunciasse sobre o incidente de desistência de queixa desencadeado nos autos pelo ofendido pois, sem dar qualquer conhecimento ao Ministério Público sobre este incidente, avançou de imediato para uma decisão de homologação dessa mesma desistência de queixa com a subsequente declaração de extinção do procedimento criminal quanto aos dois crimes em apreço (ofensas à integridade física qualificadas + injúrias agravadas).
11. Face a todo o exposto, deverá ser revogado o despacho proferido a fls. 65 destes autos, declarando-se a inadmissibilidade legal, em toda a sua extensão, da operação de homologação judicial da desistência de queixa levada a cabo pelo Tribunal recorrido (incluindo a parte em que se reportou ao procedimento criminal relativamente ao crime de injúrias agravadas). Neste sentido, e sem prejuízo do peticionado no ponto 7.) destas conclusões, mais deverá ordenar-se que o Tribunal A Quo dê formalmente conhecimento ao Ministério Público da desistência de queixa apresentada para que o Ministério Público se pronuncie sobre tal incidente processual antes de iniciar-se o julgamento em perspectiva.
C.) Das normas jurídicas violadas pelo Tribunal A Quo de acordo com a análise efectuada no presente recurso e da correcta interpretação e aplicação das mesmas
12. O Tribunal recorrido agiu erradamente ao ter alterado parcialmente a qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação pública no momento em que o fez, ao ter homologado a desistência de queixa formulada pelo ofendido, ao ter declarado a extinção do presente procedimento criminal e ao ter impedido o Ministério Público de pronunciar sobre tal desistência de queixa.
13. Com efeito, esta errática apreciação do Tribunal A Quo e as consequências decisórias que dela resultaram ao nível da solução de facto e de direito encontrada no caso vertente, significaram uma errada interpretação e aplicação do disposto nos arts. 48°, 53°, nrs. 1 e 2, alínea c), 311°, 327°, 358°, nrs. 1 e 3, e 445°, n° 3, todos do Código de Processo Penal e traduziram, portanto, uma violação da aplicação conjunta e harmonizada das mesmas, que o julgador estava obrigado a observar no caso vertente e que não aconteceu. A correcta interpretação e aplicação destas normas impunha que o Tribunal A Quo tivesse:
x)- proferido despacho em sede do qual não tivesse procedido à alteração da qualificação jurídica do crime de ofensas qualificadas indicado pelo Ministério Público na acusação, bem como onde não tivesse procedido à homologação da desistência de queixa apresentada pelo ofendido na parte respeitante ao antedito ilícito por este configurar um crime público e, por conseguinte, onde tivesse ordenado o início do julgamento com a produção da respectiva prova indicada para o efeito;
xx) -proferido despacho por via do qual ordenasse que fosse dado formalmente conhecimento ao Ministério Público da desistência de queixa apresentada para que o Ministério Público se pronunciasse sobre tal incidente processual antes de iniciar-se o julgamento em perspectiva.
D.) Da síntese das pretensões contidas no presente recurso
14. Em face de todo o exposto, peticionamos com a interposição do presente recurso ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que revogue integralmente o despacho ora recorrido, proferido pelo Tribunal A Quo a fls. 65 destes autos, declarando em simultâneo a inadmissibilidade legal da operação de alteração parcial da qualificação jurídica dos factos da acusação no momento processual em que o Tribunal recorrido a efectuou, bem como a inadmissibilidade legal resultante do facto do julgador ter apreciado a desistência de queixa apresentada sem nunca ter permitido ao Ministério Público que obre tal incidente processual previamente se pronunciasse.
15. Consequentemente, mais peticionamos ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa que proceda à substituição do despacho recorrido por outro em sede do qual determine o seguinte:
I.) - a não homologação da desistência de queixa apresentada pelo ofendido na parte respeitante ao crime de ofensas à integridade física qualificada por este ser um crime público e, por conseguinte, a obrigação de se dar início ao julgamento com a audição do arguido e produção da prova indicada pela acusação pública;
II.) - a não homologação da desistência de queixa apresentada pelo ofendido também na parte respeitante ao crime de injúrias agravadas ao qual a acusação igualmente se reporta e, por conseguinte, a obrigação do Tribunal recorrido dar formalmente conhecimento ao Ministério Público da desistência de queixa apresentada pelo ofendido, nesta parte, para que o Ministério Público se pronuncie sobre tal incidente processual antes de iniciar-se o julgamento em perspectiva. ».

Nesta instância, a Exma Procuradora-Geral Adjunta aderiu ao recurso.

II- Questões a decidir:

Do art° 412°/1, do CPP resulta que são as conclusões da motivação que delimitam o objecto do recurso e consequentemente, definem as questões a decidir em cada caso (1), exceptuando aquelas questões que sejam de conhecimento oficioso (2).
As questões colocadas pelo recorrente são:
- Inadmissibilidade da alteração da qualificação jurídica do crime contida na acusação desde o recebimento desta até julgamento com produção de prova;
- Violação do princípio do contraditório.

III- Fundamentação de facto:
1- Foi deduzida acusação nestes autos pela qual foi imputada ao arguido F a prática, em concurso real, de um crime de injúria agravada, previsto e punido nos termos dos artigos 181.°, n.° 1, e 184.°, do Código Penal, com referência ao artigo 132.°, n.° 2, al. I), do mesmo Código, e um crime de ofensa à integridade física qualificada, previsto e punido nos termos do artigo 145.°, n.°s 1, al. a), e 2, do Código Penal, com referência aos artigos 132.°, n.° 2, al. I), e 143.°, n.° 1, do Código Penal.
2- A acusação foi recebida, ao abrigo do disposto no artigo 311°/CPP,
3- No dia 11-06-2018, no Tribunal foi lavrado termo de desistência de queixa, pelo qual o ofendido G declarou desistir da queixa que apresentou nos presentes autos contra F, que declarou aceitar tal desistência,
4- Antes de iniciado o julgamento, foi proferido o seguinte despacho: «Por ser válido o termo de desistência de queixa, subscrito por ofendido e arguido a fls, 64, e a natureza semi-pública dos crimes pelo quais o arguido vem acusado, que se desqualifica, atento que a acusação não verteu - nem resulta dos elementos probatórios referido no despacho de acusação - os factos necessários à sua qualificação, nomeadamente, que o ofendido, árbitro, estava sob a jurisdição da respectiva Federação Portuguesa, no caso, a FPP, pelo que, homologo por sentença, a desistência de queixa apresentada pelo(a) ofendido(a), e, consequentemente, declaro extinto o procedimento criminal contra o(a) arguido(a) determinando-se o arquivamento dos autos, ao abrigo do disposto nos art°s 113°, 116 e 181°, 188, e 143°, n°21, do Código Penal e art.° 51° n° 2 do Código de Processo Penal».
5- Tal despacho foi proferido sem que se tivesse dado oportunidade ao Ministério Público de se pronunciar quanto à desistência acima referida.

IV- Fundamentos de direito:
- Da inadmissibilidade da alteração da qualificação jurídica do crime contida na acusação desde o recebimento desta até julgamento com produção de prova:
Vem o recorrente invocar que o despacho recorrido violou, sem fundamento, a jurisprudência fixada no acórdão de fixação de jurisprudência 11/2013, proferido pelo Supremo Tribunal de Justiça a 16 de Junho de 2013, no âmbito do processo n° 788/10.0GEBRG.G1-A.S1 (publicado no Diário da República, I série, 138, 19.07.2013, p. 4220 e integralmente disponível no sítio da internet www.dgsi,pt) em sede do qual se estabeleceu que «A alteração, em audiência do discussão e julgamento, da qualificação jurídica dos factos constantes da acusação, ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art° 358° n°s 1 e 3 do CPP», e também o disposto no artigo 358°/ 1 e 3, do CPP, que exige que a alteração não substancial de factos se processe no âmbito da audiência de discussão e julgamento.
E, na verdade, tem razão.
Fazendo nossas as palavras do recorrente, por inteira concordância com as mesmas diremos que o « Acórdão de Fixação de Jurisprudência supra referido foi proferido no âmbito de um caso praticamente idêntico àquele sobre o qual agora nos debruçamos. Na realidade, em tal caso verificou-se que o Tribunal de 1 a Instância, antes de iniciar o julgamento e de produzir qualquer prova, decidiu proceder a uma alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação, sustentando que os mesmos não preenchiam os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensas à integridade física qualificadas aí mencionado mas apenas e só os elementos objectivos e subjectivos do crime de ofensas à integridade física na sua versão simples.
Por conseguinte, o julgador procedeu então, de imediato, à alteração da qualificação jurídica em tais termos, isto é: converteu o crime de ofensas qualificadas a que a acusação pública se reportava num crime de ofensas simples.
Em consequência, e como o ofendido apresentara uma desistência de queixa nesses autos, mais decidiu o Tribunal, nesse processo, pela extinção do respectivo procedimento criminal (por falta de verificação de uma condição indispensável de procedibilidade da acção penal como é a existência [subsistência] de queixa quando está em discussão um crime semi- público).
Contudo, contrariando frontalmente a tese defendida pela decisão do Tribunal daquele processo, aliás idêntica à do Tribunal A Quo, o Supremo Tribunal de Justiça revogou aquela decisão e traçou, sobre esta matéria, no sobredito Acórdão de Fixação de Jurisprudência, os seguintes fundamentos e conclusões que passamos a transcrever;
Ora, considerando que a acusação, definidora do objecto do processo, integra, para além dos factos, as disposições legais aplicáveis, ou seja, a qualificação jurídica (um dos requisitos obrigatórios da acusação cuja omissão acarreta rejeição - artigo 283. °, n,' 3, alínea c), do CPP), a alteração da qualificação efectuada pelo juiz de julgamento mais não é do que um proibido controlo substantivo da acusação.
De resto, se a indicação das disposições legais não integrasse a parte substantiva da acusação, certamente que o legislador não teria atribuído à sua omissão uma consequência tão grave como a rejeição. É verdade que o despacho judicial que procedeu à alteração da qualificação, não se fundamentou em diferente apreciação da prova, antes decidindo perante o próprio texto da acusação. No entanto, ao enquadrar os factos da acusação numa determinada qualificação jurídica, está a formular um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação.
Em conclusão, recebida a acusação e designado dia para julgamento, a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público, merecedora ou não da concordância do juiz, traduz-se na posição que o Ministério Público assume no processo, como órgão de justiça, que goza de estatuto próprio e de autonomia movendo-se exclusivamente por critérios de legalidade e de objectividade. Questão bem diferente é a da acusação conter um manifesto lapso ou erro, passível de correcção, o que não se confunde com a divergência do juiz sobre a subsunção jurídica dos factos.
Por último, saliente-se que a tese do acórdão recorrido conduz a uma solução, a nosso ver, inadmissível, pois a qualificação jurídica feita pelo Ministério Público seria mero exercício anódino. O juiz, previamente ao julgamento do mérito, passaria a poder ingerir-se em competências alheias, estruturando substancialmente a acusação, elegendo e impondo aos sujeitos do processo a qualificação correcta, que nenhum previamente (na fase própria) contestara.
Daí que, sob pena de subversão do processo, de se criar a desordem, a incerteza, cada autoridade judiciária terá que actuar no momento processual que lhe compete. E sendo indiscutível que o Tribunal é totalmente livre de qualificar os factos pelos quais condena o arguido, certo é que o momento próprio para o fazer ocorre após haver produção de prova, isto é, quando está a julgar o mérito do caso concreto. (...).
Desta forma, e olhando para a fundamentação e sentido da decisão do Tribunal A Quo ora sob recurso em cotejo com a decisão do Supremo Tribunal de Justiça ora destacada, constatamos que a decisão recorrida entra em confronto directo com os fundamentos e sentido desta decisão do Supremo Tribunal de Justiça sem ter, tão pouco, justificado porque razão assim entendeu, o que constitui, para além do mais, um desrespeito pelo disposto no art. 445°, n° 3, do Código de Processo Penal.
Na realidade, facilmente se retira do despacho recorrido que o mesmo se limitou a discordar, do ponto de vista da qualificação jurídico-criminal dos factos vertidos na acusação pública, com o Ministério Público, sem que da acusação resultasse qualquer tipo de erro manifesto nesse sentido. Com efeito, o Tribunal recorrido limitou-se a dizer que não fora alegado pelo Ministério Público que o ofendido estava sob a jurisdição da Federação Portuguesa de Hóquei em Patins, não sendo por isso suficiente a restante matéria alegada na acusação, designadamente que o ofendido era árbitro de hóquei e que foi agredido no exercício de tais funções e por causa delas logo após ter arbitrado um jogo entre dois clubes de hóquei em patins da Região Autónoma da Madeira».
A «posição assumida pelo Tribunal recorrido atenta frontalmente contra a orientação consagrada no Acórdão de Fixação de Jurisprudência supra referido pois formula, inoportunamente, um juízo acerca do conteúdo substantivo da referida acusação que, no momento em que o fez, lhe está vedado, pelo disposto conjuntamente nos arts. 311° e 358°, nºs. 1 e 3, do Código de Processo Penal, com a agravante de ter retirado desse juízo consequências jurídicas efectivas como foi o caso do arquivamento dos autos. Note-se que o Tribunal recorrido recebera a acusação, de facto e de direito, permitindo que a mesma sobrevivesse ao crivo do do art. 311° do Código de Processo Penal, e sendo certo que nenhum dos vícios aí referidos se verificou ou verifica.
Ademais, e mesmo que porventura assista razão ao Tribunal recorrido, do ponto de vista estritamente substantivo, quanto à qualificação jurídica dos factos em apreço, o que é certo é que tal hipotético erro na qualificação jurídica não configura nenhuma nulidade insanável (pois não está previsto pela lei como tal), nem foi em momento algum invocado por nenhum sujeito processual.
Logo, este hipotético erro nunca poderia ser decidido oficiosamente pelo Tribunal A Quo sem proceder a uma prévia análise da prova a produzir, ainda que parcialmente, pois sem um exercício de apreciação da prova em tais termos, a actuação do Tribunal recorrido mais não configura do que uma indevida e extemporânea intromissão ou ingerência na apreciação do conteúdo da acusação sem qualquer poder legal para o efeito».
« Mas, seja como for, o que aqui ressalta como sendo por demais evidente no presente caso é que não há na acusação deduzida nenhum erro manifesto ou lapso evidente susceptível de motivar uma alteração extemporânea da sua qualificação jurídica, assim como inexiste nela qualquer um dos vícios a que alude o art. 311° do Código de Processo Penal, que, por sua vez, permitiriam ao Tribunal recorrido pronunciar-se sobre o seu conteúdo e, inclusivamente, determinar a sua rejeição. Ora, este estado de coisas, à luz da correcta interpretação do disposto no art. 358°, nrs. 1 e 3, do Código de Processo Penal, e da orientação fixada pelo Acórdão de Fixação de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça supra referido, impede que o julgador, tal como fez e no momento em que o fez, proceda à alteração da qualificação jurídica dos factos vertidos na acusação.
Ao fazê-lo, o julgador não só violou o referido art. 358° do Código de Processo Penal, como atacou outrossim o disposto no alf. 445°, n° 3, do Código de Processo Penal, por ter contrariado, sem qualquer fundamentação, a jurisprudência atrás referida, e atentou igualmente contra o disposto nos arts. 48° e 51° do Código de Processo Penal, por ter homologado uma desistência de queixa e decretado a extinção do procedimento criminal relativamente a um crime público que, pelas razões supra expostas, foi erradamente convertido num crime semi-público.
Verifica-se, assim, uma extemporânea e proibida requalificação dos factos contidos na acusação, que constitui uma alteração não substancial dos factos feita fora do âmbito da audiência de julgamento, em violação do disposto no artigo 358°/1, do CPP, e desrespeitadora do Acórdão de Fixação de Jurisprudência referido, também em violação do disposto no artigo 445°13, do CPC, na medida em que a divergência não foi fundamentada. Com a agravante que o facto que, na fundamentação do despacho, determinou a alteração, sempre poderia ser considerado assente em sede de julgamento, desde que a prova assim o demonstrasse, devendo o julgador, em obediência ao princípio do investigatório e da descoberta da verdade material, considerá-lo e submetê-lo à disciplina do artigo 358°/CPP.
Face ao exposto, resta a revogação do despacho por manifesta irregularidade, de conhecimento oficioso, na medida em que afecta o valor do acto praticado e dos actos subsequentes do processo (artigo 123°/CPP).
O recorrente pede a sua substituição por outro que declare a inadmissibilidade legal da homologação da desistência de queixa apresentada pelo ofendido na parte respeitante ao crime de ofensas à integridade física qualificada por este ser um crime público. Entendemos, no entanto que, por uma questão de economia processual, deve a apreciação do requerimento de desistência ser relegada para momento oportuno, que será normalmente a sentença ou, quanto muito, o decurso do julgamento caso assim seja entendido, por estar o Tribunal em posse de todos os elementos de facto que impedem a qualificação do crime.

- Da violação do princípio do contraditório:
Mais entende, e bem, o recorrente, que ao não permitir ao MP a pronúncia sobre o requerimento de desistência de queixa o Tribunal violou o princípio da igualdade de armas, o que é dizer o princípio do contraditório.
Ao MP cabe a promoção do processo penal, em qualquer das fases em que o processo decorra. Tal decorre do artigo 32°15 da Constituição da República Portuguesa, que refere que o «processo criminal tem estrutura acusatória» cabendo ao MP a legitimidade para promover o processo Penal (artigo 48°/CPP) e para colaborar na realização do direito (artigo 53°/1, do CPP).
Mas essa formação deve respeitar o princípio da igualdade de armas que se, traduz no dever de respeito pelo princípio do contraditório, a que alude o mesmo artigo da CRP: «estando a audiência de julgamento e os actos instrutórios que a lei determinar subordinadasao princípio do contraditório», estabelecendo a lei processual penal, no artigo 327°12 do CPP que as «questões incidentais sobrevindas no decurso da audiência são decididas pelo tribunal, ouvidos os sujeitos processuais que nelas forem interessados».
Significa ele que «nenhuma prova deve ser aceite em audiência, nem nenhuma decisão (mesmo interlocutória) deve ser tomada pelo juiz, sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra o qual é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorar» (3). «Tem que se ter presente que o processo criminal há-de ser a due processo f law, a fair process, onde o arguido tenha efectiva possibilidade de ser ouvido e de se defender, em perfeita igualdade com o Ministério Público» (4).
Na prática, isto significa que qualquer pretensão de qualquer dos intervenientes processuais carece de ser sujeita ao crivo da opinião dos demais para que a decisão a proferir tenha em conta os diversos interesses em confronto.
Tal não sucedeu, no caso em apreço. O Tribunal a quo ao não permitir a pronúncia do MP acerca do requerimento em causa, que entendeu ser determinante do arquivamento do processo, violou manifestamente o princípio em causa, o que constitui irregularidade de conhecimento oficioso, porquanto susceptível de influir na validade do acto (art° 123°12, do CPP).
Face ao exposto, importa revogar o despacho recorrido, relegando o conhecimento sobre o requerimento de desistência de queixa para momento ulterior, devendo cumprir-se o contraditório em momento prévio à sua apreciação.

VI- Decisão:
Acorda-se, pois, concedendo provimento ao recurso, em revogar a decisão recorrida, que deverá ser
substituída por outra que relegue o conhecimento sobre o requerimento de desistência de queixa para
momento ulterior, necessariamente posterior à produção de prova em sede de julgamento, devendo cumprir
se o contraditório em face do Ministério Público em momento prévio à sua apreciação.
Sem custas.
Lisboa, 28/ 11/2018
Macia da Graça M. P. dos Santos Silva)
(A. Augusto Lourenço)