Tendo presente os dois interesses conflituantes, de um lado, o interesse público de realização da justiça, para o que é fundamental o depoimento em causa e do outro, a tutela do sigilo profissional do advogado, que tem a ver fundamentalmente com a absoluta confiança do cliente no advogado para lhe poder revelar toda a verdade, perante as circunstâncias concretas em causa em que não é pedido ao Sr. Advogado a revelação de qualquer, eventual, confissão que lhe tenha sido confiada pelo seu cliente, mas tão só a interpretação do que consta de um documento cuja junção aos autos já foi admitida e que lhe terá sido enviado pelo arguido, entende-se como proporcional a prevalência do interesse público na boa administração da justiça penal em relação à investigação dos crimes em causa sobre os interesses privados tutelados pelo sigilo profissional.
Proc. 10/08.0TELSB-E.L1 5ª Secção
Desembargadores: Vieira Lamim - Ricardo Cardoso - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA
Proc. n°10/08.0TELSB-E.L1 – 5ª Secção;
Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Lisboa:
I° 1. Nos autos de Processo Comum (Tribunal Colectivo) n°10/08.0TELSB, da Comarca de Lisboa (Juizo Central Criminal de Lisboa — Juiz 12), por acórdão de 3Jun.16, além do mais, foi declarado extinto o procedimento criminal relativamente ao crime de infidelidade, por falta de legitimidade da autoridade judiciária para a acção penal e absolvidos os arguidos, JM, DO, PP e TM, da prática dos crimes de burla qualificada e abuso de confiança.
Desse acórdão e de outras quatro decisões anteriores interlocutórias recorreu a assistente CGA, SPG, S.A., tendo este Tribunal da Relação, por acórdão de 11Julho17, decidido:
Pelo exposto, julgam-se os recursos interlocutórios n°1 e 3 prejudicados, bem como o interposto da decisão final e julgam-se procedentes os recursos interlocutórios n°2 e 4.
Em determinar que os autos voltem ao Tribunal recorrido para que reabra a audiência e proceda à produção de prova pertinente nos termos supra interlocutoriamente decididos.
Como resulta deste acórdão de 11Julho17 (fls.89 e segs. deste apenso), os mencionados recursos interlocutórios n°2 e 4, julgados procedentes, tinham o seguinte objecto:
a) recurso interlocutório n°2:
Foi impugnado o despacho proferido na acta de audiência de julgamento de 4Mar.16, a propósito da junção de um documento que o tribunal considerou já ter sido anteriormente denegada por despacho transitado em julgado (e.mail enviado em 3Mar.06 pelo arguido JM para o advogado Dr. F).
O acórdão de 11Julho17, em relação a este recurso interlocutório, decidiu:
Ainda que deva ser efectuada a sua conjugação com outros elementos de prova constantes dos autos sujeitos à livre apreciação do tribunal, e tendo em conta as possíveis soluções jurídicas civis e criminais, o certo é que o referido email, a provar que a Declaração já em data até 3 de Março estaria já assinada pelos seus subscritores, pode ser de algum modo importante, ainda que não necessariamente determinante nem exclusivamente primacial para aferir de maior convicção sobre a possibilidade, intensidade e eventual ocultação de um processo conspirativo, má-fé e eventualmente dolo de ilícitos criminais em prejuízo da assistente.
Essa junção, a nosso ver, não fere deveres de sigilo profissional, já que as testemunhas não estão a ele sujeitas e, à semelhança da declaração de fis 180, devia ter sido admitida a contraditório em julgamento por razões idênticas e conexas com as que foram invocadas para autorizar a admissibilidade daquele doc de fls 180.
O despacho de fls3089 e 3090 não pode pois ser de igual modo considerado, neste conspecto, como tendo feito caso julgado formal, como não o fez em relação ao doc° de fis 180 cuja conexão é inegável.
Assim, deve dar-se razão à recorrente e declarar a procedência do recurso.
a) recurso interlocutório n°4:
Foi impugnado o despacho de 12Maio16 e versa sobre a questão requerida pela assistente relativa à inquirição de advogado (Dr. F), tendo o acórdão de 11Julho17, em relação a este recurso, decidido:
“…
Ora, no presente recurso interlocutório, da decisão de fls.5834 de 12 de Maio de 2016, em que se pretende seja autorizada a audição do sr advogado Dr F quanto aos emails referidos nos recursos interlocutórios anteriores (n°s 1 e 2 mencionados no presente acórdão) que aqui se decidiram primeiramente, fica desde logo prejudicada a questão em relação ao email de 17 de Novembro face ao decidido antes a propósito do RI n.1
Já quanto à questão do confronto e audição em relação ao email de 3 de Março de 2006 a questão não se mostra prejudicada por tal decisão.
O acórdão da Relação de 11 de Nov de 2015 não deferiu a audição porquanto era meio de prova subsidiário caso não fosse autorizada o contraditório em audiência com os does de tis 176 a 180. Esse contraditório foi autorizado e por isso, caiu a necessidade da prova subsidiária. Foi nesse sentido que o recurso foi julgado improcedente, mas com fundamento em prejudicialidade do recurso anterior.
A audição do sr advogado atém-se assim ao assunto do email de 3 de Março e à declaração de fls.180.
O novo requerimento para sua audição foi colocado como prova complementar e já não meramente subsidiária.
Embora discutível seja que deva ser admitida ainda mais prova para além do decidido no acórdão da Relação de 11/11/2015, o certo é que torna-se inevitável não se poder contornar o exercício do contraditório e dele se conseguir extrair o máximo de consequências fáctico-probatórias pertinentes em face da controvérsia que a questão gerou.
A audição do Sr advogado pode ser de muita relevância, se admissível.
Esta é teoricamente admissível a não ser que ele invoque por sua iniciativa o sigilo profissional e nesse caso será colocada a necessidade de accionamento do incidente de escusa, se julgada legítima a invocação, nos termos previstos no art.135° n's1 a 4 do CPP.
Consequentemente, vai provido o recurso, limitado à questão levantada.
2. Reaberta a audiência em 1a instância em 180ut.18, em cumprimento do mencionado acórdão de 11Julho17, deste Tribunal da Relação, o tribunal passou à inquirição da testemunha F, que declarou conhecer o arguido JM, por ter sido seu advogado constituído neste processo, invocando por esse motivo impedimento para depor por estar vinculado ao dever de sigilo profissional, tendo a Mma Juiz Presidente proferido o seguinte despacho:
…
Tendo em consideração a posição assumida pela testemunha F, e considerando efectivamente que os factos sobre os quais iria depor têm a ver com a intervenção da testemunha no âmbito da sua actividade profissional, em concreto, no âmbito do exercício do mandato concedido pelo arguido JM no presente processo, o Tribunal conclui que é evidente que a recusa de prestar depoimento é legitima.
Contudo, tendo em consideração aquela que foi a posição assumida pelo Tribunal da Relação de Lisboa, o depoimento em causa pode ser, nos termos desse Acórdão, essencial para a descoberta da verdade material.
Pelo exposto, determina-se nos termos e ao abrigo do artigo 135.° do Código de Processo Penal, que se autue certidão da presente acta, do despacho de pronúncia constante do processo, do Acórdão proferido no processo em 2016, do último Acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Lisboa, e que se autue por Apenso.
Após, remeta o Apenso com indicação de Incidente para dispensa do dever de sigilo, ao Venerando Tribunal da Relação de Lisboa, para que se pronuncie.
Os autos aguardarão a decisão sobre esse incidente e só após será designada data para continuação da audiência de julgamento.
Colhidos os vistos legais, procedeu-se a conferência.
II° 1. Os advogados estão sujeitos ao dever de segredo profissional, nos termos expressamente determinados pelo respectivo Estatuto, ali se dispondo:
Artigo 92.° Segredo profissional
1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b)
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
No caso, a testemunha F, quanto a factos em discussão nos autos e em relação aos quais o referido acórdão de 11Julho17 decidiu poder ser de muita relevância, tem conhecimento devido à sua actividade de advogado do arguido JM, não se questionando, por isso, a legitimidade da recusa em prestar depoimento, como foi reconhecido pela ia instância.
Contudo, o segredo profissional do advogado, tal como a maioria dos demais, não tem carácter absoluto, podendo ceder perante o interesse público da cooperação com a justiça ou outros interesses constitucionalmente protegidos, sofrendo a compressão que, com observância dos princípios da prevalência do interesse preponderante e da proporcionalidade (ou da proibição de excesso), se mostre necessária, adequada e proporcionada à tutela de outros direitos ou interesses constitucionalmente protegidos.
Daí a justificação do presente incidente, já que só o tribunal superior àquele onde o incidente foi suscitado pode pronunciar-se directamente sobre a existência ou não de fundamento de quebra de sigilo.
Na verdade, o tribunal superior pode ordenar a prestação do depoimento com quebra do segredo profissional sempre que esta se mostre justificada, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibi/idade do depoimento para a descoberta da verdade, a gravidade do crime e a necessidade de protecção de bens jurídicos — art. 135, n°3, do CPP.
No caso, face ao objecto do processo definido pela pronúncia, é importante apurar se determinado escrito denominado Declaração foi celebrado em data diversa da nele aposta.
Encontrando-se nele aposta a data de 4 de Dezembro de 2006 e tendo sido entretanto admitida a junção aos autos de um e.mail enviado em 3Mar.06 pelo arguido JM para o Dr. F, que continha em anexo tal declaração, é indiscutível a relevância do depoimento da testemunha Dr. F para o esclarecimento daquele facto controvertido (elaboração daquele escrito em data diversa da nele aposta).
Em relação a esta questão, além do que pode resultar do próprio documento admitido (e.mail), o depoimento do seu destinatário (Dr. F) é o único elemento probatório que pode contribuir para o seu esclarecimento.
Tendo presente os dois interesses conflituantes, de um lado, o interesse público de realização da justiça, para o que é fundamental o depoimento em causa e do outro, a tutela do sigilo profissional do advogado, que tem a ver fundamentalmente com a absoluta confiança do cliente no advogado para lhe poder revelar toda a verdade, perante as circunstâncias concretas em causa em que não é pedido ao Sr. Advogado a revelação de qualquer, eventual, confissão que lhe tenha sido confiada pelo seu cliente, mas tão só a interpretação do que consta de um documento cuja junção aos autos já foi admitida e que lhe terá sido enviado pelo arguido, entende-se como proporcional a prevalência do interesse público na boa administração da justiça penal em relação à investigação dos crimes em causa sobre os interesses privados tutelados pelo sigilo profissional.
III° DECISÃO:
Pelo exposto, os juízes do Tribunal da Relação de Lisboa, em conferência, acordam em
determinar a dispensa de sigilo profissional invocado pelo Sr. Dr. F, em relação aos
factos que o recurso interlocutório n°4, apreciado pelo acórdão de 11Julho17, considerou de muita
relevância.
Sem tributação.
Lisboa, 18 de Dezembro de 2018
Relator: Vieira Lamim
Adjunto: Ricardo Cardoso