1) Conhecida a intenção do legislador de 2007 em atribuir maior severidade punitiva ao tratamento de condutas que, por força da natureza dos comportamentos expressamente tipificados como integradores da agravação [seja por revelarem uma maior ilicitude da acção — artigo 155.° n.° 1 alíneas a), b) e c) —, seja por traduzirem maior culpa do agente — artigo 155.° n.° 1 alínea d) — não justificam que se dê relevo à declaração de desistência da vítima depois da apresentação da queixa, retirando adrede ao Estado a legitimidade para o exercício da acção penal em casos e situações de gravidade superlativa, em que são particularmente fortes as exigências de prevenção geral.
2) Mesmo em termos sistemáticos, há-de reconhecer-se que não faria sentido que, pretendendo conservar a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado, o não exprimisse claramente, no novo e autónomo preceito qualificador. Acresce que são numerosos os casos em que a lei penal faz depender de queixa o procedimento criminal por determinados crimes, na sua variante simples, não qualificada, consagrando depois o carácter público dos crimes agravados (cfr. artigos 203.° 205.°, 212.° - 214.°, 217.° - 219.°, 221.°, 225.°, 226.°, do CP), tudo inculcando que, nessa mesma tendência, se terá pretendido a semi-pubicidade do crime simples, de par com a estrita publicidade do crime qualificado ou agravado.
3) Tudo ponderado, afigura-se de concluir que o crime de ameaça previsto no artigo 153.° do CP, qualificado nos termos do disposto no artigo 155.° n.° 1 alínea a), do CP, na redacção decorrente da entrada em vigor das alterações introduzidas pela referida Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, assume natureza pública.
Proc. 131/16.5T9PDL.L1 5ª Secção
Desembargadores: João Carrola - Luís Gominho - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
1. No processo comum n.° 131/16.5T9PDL do Juízo Local Criminal de Ponta Delgada, Comarca de Açores, em que é arguido JA..., acusado de um crime de ameaça agravada dos art.°s 153° n.° 1 e 155° n.° 1 al. a) CódPenal, conforme resulta do despacho de fls. 146 e ss. do processo em causa, foi proferido em acta de julgamento - no seguimento das declarações prestadas pela assistente MG... no sentido de desistir da queixa apresentada contra aquele - despacho que julgou admissível a referida desistência de queixa e que o arguido aceitou relativamente ao crime imputado ao arguido e determinou o oportuno arquivamento dos autos.
Inconformado com este despacho, interpôs recurso o M.° P.° concluindo que,
de cujas motivações formula as seguintes conclusões:
O recurso foi interposto do despacho que homologou a desistência de queixa relativamente ao
crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal, e, em consequência, determinou a extinção do procedimento criminal.
O crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal, reveste natureza pública, pelo que a desistência de queixa da ofendida não era susceptível de ser homologada e, por essa via, conduzir à extinção do procedimento criminal.
Com efeito, a Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, autonomizou o crime até aí previsto no artigo 153.°, n.° 2, do Código Penal, inserindo-o no n.° 1 do artigo 155.°, n.° 1, do mesmo diploma - até então referente apenas ao crime de coacção -, unificando quer os fundamentos da agravação das penas dos crimes de ameaça e de coacção, quer procedimentos por tais crimes.
Como nem o próprio artigo, nem qualquer outra norma, estabelece que o crime de ameaça agravada previsto e punido pelo artigo 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal depende de queixa, o referido crime reveste natureza pública.
Dado o disposto no artigo 48.° e nos artigos 49.°, 50.° e 51.°, n.° 1, todos do Código de Processo Penal, a instauração e/ou prosseguimento do procedimento criminal não depende da apresentação de
queixa pelos ofendidos; consequentemente, a desistência de queixa não tinha qualquer efeito nos autos.
Pelo que ao contrário do decidido o tribunal a quo deveria ter prosseguido no julgamento; não o fazendo violou o estabelecido nos artigos 153.°, n.° 1, e 155.°, n.° 1, al. a), do Código Penal e artigo 48.° do Código de Processo Penal.
O arguido respondeu à motivação do recurso concluindo:
1) O Ministério Público interpôs recurso do despacho que homologou a desistência de
queixa por parte da denunciante em audiência de julgamento, relativamente ao crime de ameaça agravada, previsto e punido pelos artigos 153.° n.° 1 e 155.° n.° 1 alínea a) do Código Penal, o que determinou o arquivamento do processo.
II. Ora, salvo o devido respeito, a decisão do tribunal a quo não merece qualquer reparo, sendo certo que o crime de ameaça agravada reveste natureza semi-pública.
III. No art.° 153° do C.P., onde se inicia esse capítulo, vem previsto o crime de ameaça simples, punível com pena de prisão até um ano ou multa até 120 dias.
N. O crime de ameaça, previsto no art° 153°, n° 1 do C.P., como resulta do n° 2 do mesmo preceito, assume sem qualquer margem para dúvida natureza semi-pública.
V. No art° 154° do C.P., vem previsto o crime de coacção, trata-se de um crime a que o legislador atribui maior gravidade do que o crime de ameaça agravada, expressa na moldura penal aplicável: prisão até 3 anos ou multa.
VI. Configura o crime de coacção, um crime público, a não ser na hipótese prevista no n° 4 do art.° 154°, isto é, assumirá natureza semi-pública quando o facto tiver lugar entre cônjuges, ascendentes e descendentes, adoptantes e adoptados, ou entre pessoas, de outro ou do mesmo sexo, que vivam em situação análoga à dos cônjuges.
VII. Por ordem de gravidade dos crimes, atentas as molduras penais aplicáveis, temos: o crime de ameaça simples, previsto no art.° 153°, o crime de ameaça agravada previsto nos art.°s 153° e 155°, o crime de coacção simples, previsto no art.° 154° e o crime de coacção agravada, previsto nos art.°s 154° e 155°.
VIII. Ora, sendo o crime de coacção simples, na óptica do legislador, mais grave que o crime de ameaça agravada não se justifica que o primeiro assuma natureza semi-pública e o último não.
IX. Tal como foi referido na própria fundamentação da sentença proferida pelo Tribunal a quo O crime do art.° 155° do C. Penal, pese embora posição legislativa relativamente à sua agravação mantem a natureza de crime mãe (art.° 153° do C. Penal), uma vez que as circunstâncias elencadas na agravação atuam apenas para agravar a moldura penal e nada aditam ou modificam ao tipo legal de crime de raiz, pois que também nada acrescentam que pressuponha o respectivo preenchimento do ilícito com outros elementos basilares, ao contrário do que sucede em outros tipos legais de crime, como por exemplo nos crimes de homicídio, de furto ou de ofensas corporais, pois ali as circunstâncias agravantes funcionam também como circunstanciais modificativas alterando a moldura penal abstracta através da qual se constroem outros tipos legais de crime sejam eles qualificados ou privilegiados.
X. Deste modo e de acordo com o que vem a ser entendido a nível doutrinal pelos Professores Eduardo Correia e Figueiredo Dias, entendendo-se que o tipo base de crime do art.° 153° não foi beliscado na sua natureza e o legislador não quis alterar aquela natureza do crime base nuclear (semipúblico - como se refere no art.° 153°, n.° 2 do C. Penal).
XI. Na verdade, este entendimento é seguido pela própria jurisprudência, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 2011, Processo n. 379/09.9PCRGR.L1, em que foi decidido que o crime de ameaça agravada, p.p. pelos artigos 153°, n° 1 e 155° n.° 1, al. a) do CP, permite face à sua natureza semi-pública, a desistência do procedimento criminal, tal como o acórdão do Tribunal da Relação do Porto, n.° 335/11.7GCSTS.Plde 13-11-2013, que referiu o seguinte: O crime de ameaça agravado, p.p. pelos art. °s 153° e 155° do C Penal, é de natureza semi-pública. Essa natureza mantém-se inalterada, após a revisão de 2007, que se limitou a aglutinar no art. ° 155° as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção.
XII. Sendo certo que estes acórdãos foram proferidos após a alteração legislativa, pois esta ocorreu em 2007, com a Lei n.° 59/2007, de 4 de setembro, que autonomizou o crime previsto até aí no art.° 153. n.° 2 do Código Penal, inserindo-o no n.° 1 do art.° 155.° n.° 1 do mesmo diploma, unificando então os fundamentos da agravação das penas do crimes de ameaça e de coação, e não os procedimentos por tais crimes.
XIII. A reforma de 2007 alargou o âmbito da agravação, determinando a aplicação ao crime de ameaças de todas as circunstâncias agravantes previstas para o crime de coacção, uma vez que anteriormente só a circunstância prevista na al.a a) se aplicava ao crime de ameaças. A circunstância agravante da al.a a) consiste na especial gravidade da ameaça.
XIV. É essa a interpretação que nos surge, também, no Código Penal Anotado de Maia Gonçalves (Almedina. I 8 Ed., 2007, P: 6(2): as alterações introduzidas pela Lei n.° 59/2007 consistiram essencialmente em o crime de ameaça passar a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção.
XV. Conjugando as duas disposições aplicáveis, no caso dos autos, deparamo-nos com a seguinte previsão, agravação e estatuição: quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, quando esses factos forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias.
XVI. Permanecendo na evolução histórica da Lei, e juntando-lhe a intenção dos revisores de 2007, verificamos que o crime de ameaça, desde a redacção originária do Código Penal de 1982, sempre revestiu natureza semi-pública (mesmo - e este reparo reveste especial significado - se verificada a circunstância agravante, que é, no caso, imputada ao arguido).
XVII. Nesta última revisão foram aglutinadas no art.° 155° as circunstâncias agravantes dos crimes de ameaça e coacção, cujas previsões típicas se encontram, respectivamente, nos arts. 153° e 154°, colhendo-se a Exposição de Motivos da Proposta de Lei de alteração do Código Penal ter-se pretendido que o crime de ameaça passasse a ser qualificado em circunstâncias idênticas às previstas para a coacção grave.
XVIII. Foram, pois, razões de utilitarismo sistemático - evitando-se a repetição de normas contendo circunstâncias agravantes idênticas - que ditaram essas alterações.
XIX. Daí não se poder extrair qualquer intenção do Legislador em alterar a pré-existente natureza semi-pública do crime de ameaça (incluindo a sua - apenas ampliada - forma agravada), ou pública do crime de coacção (com as excepções previstas no n° 4 do art. 154°), decorrente do respectivo tipo-base.
XX. Por último, e recorrendo ao elemento racional ou teleológico e à unidade do sistema jurídico-penal, a razão de ser da distinção entre crimes públicos, semi-públicos e particulares, situa-se na graduação da respectiva gravidade, tendo-se em conta os interesses jurídicos violados e a necessidade de ordem pública e colectiva em os proteger. Assim o referem Simas Santos e Leal Henriques, em Noções Elementares de Direito Penal (Rei dos Livros, 3a ed., 2009, P: 332-333): a exigência de queixa e de acusação particular vão buscar o seu fundamento: - à diminuta gravidade da infracção - certas infracções (v.g., ofensas à integridade física simples, dano, injúrias, etc), atenta a sua pequena gravidade, não violam de modo directo e imediato bens jurídicos fundamentais da comunidade, que façam desencadear, por parte desta, uma reacção automática.
XXI. Essa reacção só surge mediante expressa manifestação de vontade das pessoas directamente ofendidas. Destacando essa perspectiva da pessoa ofendida (ou lesada), o Prof. Figueiredo Dias, em Direito Penal Português - As consequências jurídicas do crime (Coimbra Editora, 2005, P: 667) adverte que a existência de crimes semi-públicos e estritamente particulares serve a função de evitar que o processo penal, prosseguido sem ou contra a vontade do ofendido, possa, em certas hipóteses, representar uma inconveniente (ou mesmo inadmissível) intromissão na esfera das relações pessoais que entre ele e os outros participantes processuais intercedem.
XXII. No tipo em causa, os bens jurídicos protegidos são a liberdade de decisão e de acção; a estes, secundária e reflexamente, entendemos ser de acrescentar a integridade psíquica da pessoa, nas suas componentes do direito à tranquilidade e segurança.
XXIII. Tratam-se, em todo o caso, de bens integrantes da esfera estritamente individual da pessoa ameaçada (ofendida), inexistindo - mesmo quando estes se mostrem violados sob a forma agravada - razões de ordem pública e colectiva que imponham ao ofendido o início ou continuação do procedimento penal, quando este o não queira.
XXIV. Como bem se assinala no estudo citado na decisão sob reexame, publicado na revista Julgar - Edição da Associação Sindical dos Juízes Portugueses, de Jan.-Abr. de 2010, P: 40 a 44, apelando à unidade e congruência do sistema penal, a sanção aplicável à violação dos interesses jurídicos protegidos (prisão até 2 anos ou multa até 240 dias) é congruente - em termos comparativos com outras estatuições do Código Penal, exemplificando com o crime de ofensas corporais simples, que em regra carece de queixa - com a atribuição de relevância à vontade do ofendido.
XXV. Pelo exposto decidiu bem o tribunal a quo homologar a queixa da denunciante em audiência de julgamento e em consequência arquivar o processo, uma vez que o crime de ameaça agravada p.e p. pelo art.° 153.° n.° 1 e 155.° do CP é um crime semi-público.
Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto apôs o seu visto nos autos.
II.
É pacífica a jurisprudência do S.T.J. no sentido de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões do conhecimento oficioso.
Como se afigura resultar das conclusões formuladas pelo recorrente, o mesmo dirige a sua discordância do despacho recorrido na questão da natureza semi-pública ou pública do crime de ameaça agravado, p. e p. nos termos do disposto nos artigos 153.° n.° 1 e 155.° n.° 1 alínea a), do CP, de que depende a validação da desistência de queixa apresentada pela assistente e admitida pelo tribunal.
O Tribunal a quo fez constar do despacho o seguinte:
O crime do art.° 155° do C. Penal, pese embora posição legislativa relativamente à sua agravação mantem a natureza de crime mãe (art.° 153° do C. Penal), uma vez que as circunstâncias elencadas na agravação atuam apenas para agravar a moldura penal e nada aditam ou modificam ao tipo legal de crime de raiz, pois que também nada acrescentam que pressuponha o respectivo preenchimento do ilícito com outros elementos basilares, ao contrário do que sucede em outros tipos legais de crime, como por exemplo nos crimes de homicídio, de furto ou de ofensas corporais, pois ali as circunstâncias agravantes funcionam também como circunstanciais modificativas alterando a moldura penal abstracta através da qual se constroem outros tipos legais de crime sejam eles qualificados ou privilegiados.
Deste modo e de acordo com o que vem a ser entendido a nível doutrinal pelos Professores Eduardo Correia e Figueiredo Dias, entendemos também que o tipo base de crime do art. ° 153° não foi beliscado na sua natureza e o legislador não quis alterar aquela natureza do crime base: nuclear (semipúblico - como se refere no art. ° 153°, n.° 2 do C. Penal).
Na verdade, o crime de ameaça agravada, p.p. pelos artigos 153°, n° 1 e 155°, n° 1, al. a) do CP, permite face à sua natureza semi-pública, a desistência do procedimento criminal (neste sentido, Ac. TRL de 14 de Julho de 2011, proc 379/09 .9PCRGR.L 1)
Efectivamente o crime de raiz mantém/se inalterado nos seus elementos simplesmente agravado, face às circunstâncias de relevo como sendo a qualidade da vítima ou do agente, nas alíneas daquele tipo que não a da alínea a) que é o caso dos autos.
Assim sendo, entende-se ser admissível a desistência de queixa formulada nestes autos relativamente ao crime de ameaça agravada p. e p. art. °s 153° e 155°, n° 1, aL a) do C.P.Penal razão pela qual homologo a referida desistência de queixa tendo em consideração a legitimidade das partes e a desistência apresentada pela ofendida, que o arguido aceitou.
Por todo o exposto, ordeno o oportuno arquivamento dos autos.
Resulta do disposto nos artigos 48.° e 49.° do CPP que i) a legitimidade do Ministério Público para a promoção da acção penal só depende de queixa do ofendido nos casos em que exista determinação legal expressa exigindo o preenchimento desse requisito e ii) que, nos demais casos, a promoção do procedimento criminal tem carácter estritamente público.
Decorre do disposto no artigo 116.° n.° 2, do CP, que o queixoso pode desistir da queixa, desde que não haja oposição do arguido, até à publicação da sentença da 1.a instância.
Porém, tal desistência só dá origem à extinção do procedimento criminal nos casos em que a lei condicione a promoção deste à apresentação daquela queixa, sendo a desistência da queixa ineficaz no que respeita aos crimes de natureza pública.
Importa agora e no caso, apurar se existe norma que condicione a promoção do procedimento pelo crime de ameaça agravada ao exercício do direito de queixa.
O artigo 153.° do CP, na redacção anterior à que veio a ser introduzida pela Lei n° 59/2007, de 4 de Setembro, estatuía nos seguintes termos:
«1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - Se a ameaça for com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos, o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.»
Após a revisão operada pela aludida Lei, o artigo 153.° do CP sedimentou a seguinte redacção:
«1 - Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.
2 - O procedimento criminal depende de queixa.»
Por via da referida alteração legal, o tipo de crime agravado que se encontrava previsto no antigo n.° 2 do artigo 153.°, foi eliminado, tendo surgido, em sua substituição, um novo tipo legal agravado, prevenido no artigo 155.°, com a seguinte redacção:
«1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.° e 154. ° forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou
b) Contra pessoa particularmente indefesa, em razão de idade, deficiência, doença ou gravidez;
c) Contra uma das pessoas referidas na alínea 1) do n.° 2 do artigo 132.°, no exercício das suas funções ou por causa delas;
d) Por funcionário com grave abuso de autoridade;
o agente é punido com pena de prisão até dois anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.°, e com pena de prisão de um a cinco anos, no caso do n.° 1 do artigo 154.0.
2 - As mesmas penas são aplicadas se, por força da ameaça ou da coacção, a vítima ou a pessoa sobre a qual o mal deve recair se suicidar ou tentar suicidar-se.»
Desta comutação legislativa resulta que, na mens legislatoris, terá estado, por um lado, manter a natureza semi-pública do crime de ameaça simples e, por outro lado, na medida em que se não pronuncia, expressamente, a tal respeito, atribuir natureza pública ao tipo agravado.
E assim, desde logo, conhecida a intenção do legislador de 2007 em atribuir maior severidade punitiva ao tratamento de condutas que, por força da natureza dos comportamentos expressamente tipificados como integradores da agravação [seja por revelarem uma maior ilicitude da acção — artigo 155.° n.° 1 alíneas a), b) e c) —, seja por traduzirem maior culpa do agente — artigo 155.° n.° 1 alínea d) — não justificam que se dê relevo à declaração de desistência da vítima depois da apresentação da queixa, retirando adrede ao Estado a legitimidade para o exercício da acção penal em casos e situações de gravidade superlativa, em que são particularmente fortes as exigências de prevenção geral.
Depois, mesmo em termos sistemáticos, há-de reconhecer-se que não faria sentido que, pretendendo conservar a natureza semi-pública do crime de ameaça agravado, o não exprimisse claramente, no novo e autónomo preceito qualificador.
Acresce que são numerosos os casos em que a lei penal faz depender de queixa o procedimento criminal por determinados crimes, na sua variante simples, não qualificada, consagrando depois o carácter público dos crimes agravados (cfr. artigos 203.° 205.°, 212.° - 214.°, 217.° - 219.°, 221.°, 225.°, 226.°, do CP), tudo inculcando que, nessa mesma tendência, se terá pretendido a semi-pubicidade do crime simples, de par com a estrita publicidade do crime qualificado ou agravado.
Tudo ponderado, afigura-se de concluir que o crime de ameaça previsto no artigo 153.° do CP, qualificado nos termos do disposto no artigo 155.° n.° 1 alínea a), do CP, na redacção decorrente da entrada em vigor das alterações introduzidas pela referida Lei n.° 59/2007, de 4 de Setembro, assume natureza pública.
Em abono desta orientação, veja-se o acórdão, do Supremo Tribunal de Justiça, de 20 de Fevereiro de 2013 (Diário da República, 1.a série, n.° 56, de 20 de Março de 2013), que fixa jurisprudência no sentido de que «a ameaça de prática de qualquer um dos crimes previstos no n.° 1 do artigo 153. ° do Código Penal, quando punível com pena de prisão superior a três anos, integra o crime de ameaça agravado da alínea a) do n.° 1 do artigo 155.° do mesmo diploma legal».
Neste sentido, aliás, se tem sedimentado a jurisprudência — por mais significativos para o caso, vejam-se os acórdãos, da Relação de Évora de 12 de Novembro de 2009 (Processo 2140/08), de 09/03/2010 (59/08.2PBBJA.E1), de 8 de Abril de 2014 (Processo775/12) e de 07/04/2015 (517/12.4PAOLH.E1) que seguimos de perto, da Relação de Lisboa, de 13 de Outubro de 2010 (Processo 36/09), da Relação de Coimbra, de 25 de Junho de 2014 (Processo 285/10), da Relação de Guimarães, de 9 de Maio de 2011 (Processo 127/08), de 12/01/2015 (59/13.OGVCT.G1) e da Relação do Porto de 27-4-2011 (Processo 53/09).
Não desconhecemos as divergentes opiniões jurisprudenciais vertidas no acórdão, da Relação do Porto, de 13 de Novembro de 2013 (Processo 335/11, disponível, como os demais citados, em www.dgsi.pt), bem como os referenciados (na decisão recorrida), e os entendimentos doutrinários de A. Taipa de Carvalho, no «Comentário Conimbricense do Código Penal», Tomo I, 2.' edição, 2012, pp. 588/589, e Pedro Daniel dos Anjos Frias, em «Por quem dobram os sinos? A perseguição pelo crime de ameaça contra a vontade expressa do ofendido?! Um silêncio ruidoso», na «Julgar», n.° 10, Janeiro-Abril de 2010, pp. 39-57 — fazendo doutrina que, com a devida vénia, pelas razões acima editadas, não pode subscrever-se.
Concluímos pois que, ao contrário do que se decidiu no despacho recorrido, a desistência de queixa apresentada a 26 de Setembro de 2018, pela assistente MG..., carece de relevância, no que respeita ao crime acusado, de ameaça agravado, previsto e punível nos termos do disposto nos artigos 153.° n.° 1 e 155.° n.° 1 alínea a), do CP.
Em consequência, o processo deverá prosseguir, com a audiência de julgamento, para apreciação do despacho acusatório
III
Em face do exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, revogar o despacho recorrido, que se substitui pela decisão de, considerando irrelevante, quanto ao mencionado crime de ameaça, agravado, a desistência de queixa apresentada pela assistente, determinar o prosseguimento do processo para o devido julgamento.
Sem custas.
Feito e revisto pelo 1° signatário.
Lisboa, 15 de janeiro de 2019
João Francisco Reis Carrola
Luís Gominho