Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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 - ACRL de 30-04-2019   Crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal. Revalidação da carta de condução aos 50 anos. Contra-ordenação.
– A condução de veículo automóvel ligeiro de passageiros com a carta de condução caducada (e não cancelada, pelo menos para efeitos destes autos), não integra a prática do crime p. e p. pelo artigo 3º, nºs 1 e 2, do Decreto-Lei nº 2/98, de 03/01, mas da contra-ordenação prevista no nº 7, do artigo 130º, do Código da Estrada.
– O tribunal poderá apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime.
– Embora não seja pacífico nos Tribunais Superiores o entendimento de que deve a Relação conhecer da responsabilidade contra-ordenacional do arguido, mas na esteira do Acórdão deste Tribunal de 12/03/2019, Proc. nº 38/16.6PTCSC.L1, adopta-se a posição de que deve assumir essa competência, porquanto, “a sentença recorrida foi uma decisão condenatória e a degradação, por via do recurso, do crime dela objecto em contra-ordenação, apenas implica o sancionamento do arguido com coima e sanção acessória, sanções administrativas, pelo que não se suscita qualquer questão relativa à observância de 2º grau de jurisdição.
Proc. 320/18.8PARGR.L1 5ª Secção
Desembargadores:  Artur Vargues - Jorge Gonçalves - -
Sumário elaborado por Margarida Fernandes
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RECURSO N° 320/18.8PARGR.L1
Proc. n° 320/18.8PARGR, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores —Juízo Local Criminal da Ribeira Grande
Acordam, em conferência, na 5ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa
I - RELATÓRIO
1. Nos presentes autos com o NUIPC 320/18.8PARGR, do Tribunal Judicial da Comarca dos Açores — Juízo Local Criminal da Ribeira Grande, em Processo Comum, com intervenção do Tribunal Singular, foi o arguido JLP... condenado, por sentença de 15/01/2019, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3°, nos 1 e 2, do Decreto-Lei n° 2/98, de 03/01, na pena de 60 dias de multa, à razão diária de 6,00 euros, no montante global de 360,00 euros.
2. O arguido não se conformou com o teor da decisão e dela interpôs recurso.
2.1 Extraiu o recorrente da motivação as seguintes conclusões
(transcrição):
A) O arguido com 57 anos de idade conduziu nas circunstâncias de tempo e lugar, sendo titular de uma carta de condução caducada, tendo o Tribunal dado como provado que o arguido sabia que a sua conduta era punida e proibida por lei.
B) O Tribunal a quo não indica a norma que obriga que a carta seja renovada até aos 50 anos pelo que, e salvo melhor opinião, a sentença é nula por falta de fundamentação jurídica na medida em que, não basta remeter para o diploma mormente para o Regulamento da Habilitação Legal para conduzir, será necessário indicar expressamente qual o diploma e norma jurídica que impõe que renovação da carta ocorra até aos 50 anos.
Sem prejuízo e à mera cautela sempre se dirá,
C) A Juíza do Tribunal de primeira instância considerou no caso erro censurável tendo em conta as inúmeras informações que foram divulgadas nos media sobre a matéria e por não se preocupar com a
validade da carta.
D) Mas o erro não é censurável ao recorrente pois, o arguido não sabia que a sua carta tinha expirado, esteve emigrado na Alemanha durante cerca de um ano e meio, que coincidiu com os seus 50 anos, após o seu regresso já tinha-se dirigido à RIAC para obter informações acerca da necessidade de renovação, tendo sido informado que era aos 60 anos, várias vezes foi intercetado pela Polícia após ter celebrado 50 anos de idade e nunca teve qualquer advertência e por fim, na sua carta de condução a validade terminava no ano de 2024.
E) Nestes termos, o Tribunal violou o n° 1 do artigo 17° do Código Penal.
F) E mesmo que assim não fosse, atendendo aos factos em causa, a conduta do arguido reconduz-se sobre o erro sobre as circunstâncias de facto que tem por efeito, a exclusão do dolo do tipo, nos termos do artigo 16° n° 1 do Código Penal.
G) E apesar de ressalvada a punibilidade a título de negligência, art. 16 n° 3 do Código Penal, quando censurável aquele erro, a verdade é que no caso em apreço, não está aquela prevista no crime de condução sem habilitação legal, o que implica a absolvição do arguido.
Nestes termos e nos melhores de direito, salvo o devido respeito pelo tribunal a quo, deve o presente recurso ser julgado procedente e em consequência, deverá ser alterada a douta decisão recorrida, e em consequência ser o arguido absolvido do crime de condução sem habilitação legal pelo qual foi condenado.
3. O Magistrado do Ministério Público junto do Tribunal a quo respondeu à motivação de recurso, pugnando por lhe ser negado provimento.
4. Nesta Relação, o Exm° Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso.
5. Foi dado cumprimento ao disposto no artigo 417°, n° 2, do CPP, não tendo sido apresentada resposta.
6. Colhidos os vistos, foram os autos à conferência.
Cumpre apreciar e decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
1. Âmbito do Recurso
O âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, havendo ainda que ponderar as questões de conhecimento oficioso, mormente os vícios enunciados no artigo 410°, n° 2, do CPP — neste sentido, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2' edição, Editorial Verbo, pág. 335; Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 6ª edição, Edições Rei dos Livros, pág. 103, Ac. do STJ de 28/04/1999, CJ/STJ, 1999, Tomo 2, pág. 196 e Ac. do Pleno do STJ n° 7/95, de 19/10/1995, DR I Série A, de 28/12/1995.
No caso em apreço, atendendo às conclusões da motivação de recurso, as questões que se suscitam são as seguintes:
Nulidade da sentença por falta de fundamentação.
Actuação do arguido sem consciência da ilicitude do facto, não lhe sendo o erro censurável ou em erro sobre as circunstâncias do facto.
2. A Decisão Recorrida
O Tribunal a quo deu como provados os seguintes factos (transcrição):
1. O arguido no dia 28-04-2018, cerca das 22H30, na Zona de Santana, Rabo de Peixe, Ribeira Grande, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..., sem que possuísse qualquer documento que o habilitasse à condução daquele tipo de veículo automóvel.
2. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que para conduzir o veículo referido nas vias públicas ou em locais privados abertos ao trânsito público, deveria ter obtido, previamente, licença de condução, emitida pela entidade administrativa competente, que o habilitasse para tal.
3. Ao assim proceder bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou que:
4. O arguido é pensionista, auferindo uma pensão de 574,00 e vive com uma companheira, reformada, que aufere uma reforma de 200,00 e, e uma filha de 17 anos, estudante; o agregado familiar reside em casa arrendada, suportando 300,00 € de renda; tem o 6. ° ano de escolaridade.
5. Por sentença proferida em 02.05.2003, e transitada em julgado em 08.03.2002, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.° 91/02.0TAPDL, que correu termos em Ponta Delgada, foi o arguido condenado pela prática, em 08.03.2002, de um crime de falsidade de depoimento, p. e p. pelo artigo 360. ° do C.P., na pena de 120 dias de multa, já extinta pelo pagamento.
6. Por sentença proferida em 15.12.2013, e transitada em julgado em 15.01.2014, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.° 161/00.9PCPDL, que correu termos em Ponta Delgada, foi o arguido condenado pela prática, em 17.07.2000, de um crime de ameaça, p. e p. pelo artigo 153.°, n.° 1 do C.P., um crime de dano simples, p. e p. pelo artigo 212.°, n.° 1 do C.P. e um crime de introdução em lugar vedado ao público, p. e p. pelo artigo 191.° do C.P., na pena única de 400 dias de multa, já extinta pelo pagamento.
7. Por sentença proferida em 22.03.2010, e transitada em julgado em 30.04.2010, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.° 502/07.8PCRGR, que correu termos em Ponta Delgada, foi o arguido condenado pela prática, em 2007, de um crime de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.° do C.P., na pena de 2 anos de prisão suspensa na sua execução, já extinta nos termos do artigo 57.° do C.P..
8. Por sentença proferida em 13.02.2012, e transitada em julgado em 14.03.2012, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.° 21/09.8PEPDL, que correu termos em Ponta Delgada, foi o arguido condenado pela prática, em 21.01.2009, de um crime de tráfico de estupefacientes de menor gravidade, p. e p. pelo artigo 25.° do D.L. 15/93 de 22.01., na pena de 1 ano e 9 meses de prisão suspensa na sua execução, já extinta nos termos do artigo 57.° do C.P..
9. Por sentença proferida em 24.11.2015, e transitada em julgado em 10.12.2015, no âmbito do Processo Comum (Tribunal Singular) n.° 196/15.7PARGR, que correu neste Tribunal, foi o arguido condenado pela prática, em 04.09.2015, de um crime de consumo de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 40.° do D.L. 15/93 de 22.01, na pena de 25 dias de multa, já extinta pelo pagamento.
Quanto aos factos não provados, considerou inexistirem.
Fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos
(transcrição):
Em sede de valoração da prova, a regra fundamental é a constante do artigo 127.° do Código de Processo Penal, segundo a qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do Tribunal.
Assim, a convicção do Tribunal para a determinação da matéria de facto dada como provada fundou-se na prova produzida em audiência de julgamento, analisada segundo as regras da lógica e da experiência comum, mais precisamente, nas declarações do arguido, o qual admitiu que conduziu naquelas circunstâncias de tempo e lugar, referindo que desconhecia o facto de ser obrigatória a renovação da carta de condução quando completasse 50 anos de idade. Atendeu-se ainda ao depoimento da testemunha César Melo, agente da Polícia de Segurança Pública que interceptou o arguido, e que confirmou que o arguido não se fazia acompanhar de documento válido para conduzir veículos automóveis. A par destas declarações o Tribunal ponderou ainda o documento de fls. 4.
Quanto aos antecedentes criminais por parte do arguido o tribunal tomou em consideração o Certificado de Registo Criminal junto aos autos a fls. 46 e ss.
Por .fim, no que concerne aos factos relativos às condições socioeconómicas do arguido foram determinantes as declarações do próprio que se mostraram credíveis e nas quais o Tribunal alicerçou a sua convicção.
Apreciemos.
Nulidade da sentença por falta de fundamentação
Sustenta o recorrente que a decisão recorrida enferma de nulidade por falta de fundamentação, porquanto não indica a norma concreta que impõe que a carta de condução seja renovada até aos 50 anos de idade, limitando-se o julgador da 1a instância a remeter de forma genérica para o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir.
Conforme resulta do estabelecido no artigo 374°, do CPP, a estrutura de uma sentença comporta três partes distintas, a saber: o relatório, a fundamentação e o dispositivo, sendo que a fundamentação deve conter a enumeração dos factos provados e não provados, bem como uma exposição tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos, de facto e de direito, que fundamentam a decisão, com indicação e exame crítico das provas que serviram para formar a convicção do tribunal.
Quando tal não suceda, a sentença está ferida de nulidade, por força do preceituado no artigo 379°, n° 1, alínea a), do CPP.
Na parte relativa à fundamentação de direito da sentença revidenda, podemos (entre o mais) ler:
Nos termos do artigo 121.0, n.° 1 do Código da Estrada, só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito. Os artigos 123° e seguintes do mesmo Código classificam os títulos que habilitam a condução e as diversas categorias dos mesmos, sendo que para a condução de veículos automóveis, o título denomina-se carta de condução e a sua obtenção está sujeita aos requisitos do artigo 126° do Código da Estrada, que remete para o D.L. 138/2012, de 5 de Julho que prevê o Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, transpondo parcialmente para a ordem jurídica interna a Directiva n.° 2006/126/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de Dezembro, relativa à carta de condução, na redacção dada pela Directiva n.° 2011/94/UE, da Comissão, de 28 de Novembro. Analisando este diploma, e considerando a data em que o arguido tirou a carta de condução, ou seja, em 10.11.2006, a mesma tinha de ser renovada até aos 50 anos, pelo que não o tendo feito, é como se não fosse portador de carta de condução.
Ora, a sentença em causa dá-nos a conhecer quais as normas tidas por aplicáveis aos factos dados como provados pelo arguido/recorrente praticados.
Vero é que não se indica qual a norma concreta do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir — aprovado pelo Decreto-Lei n° 138/2012, de 05/07 — mas a menção ao D.L. 138/2012, de 5 de Julho, mostra-se suficiente para que, procedendo-se à sua leitura, se conclua que a imposição da revalidação da carta de condução até aos 50 anos de idade resulta do disposto no artigo 9°, nos 1 e 2, alínea a), do Decreto-Lei n° 138/2012, de 05/07, por referência ao artigo 4°, n°s 1, e 2, alínea a), do Decreto-Lei n° 45/2005, de 23/02, norma ainda a atender para a carta de condução do recorrente (emitida em 10/11/2006, para as categorias B e B1).
E, a nulidade da sentença por falta ou deficiência de fundamentação apenas se verifica quando inexistem ou são ininteligíveis as razões do tribunal a quo, o que não é o caso.
Face ao exposto, carece de razão o recorrente, não enfermando a sentença recorrida da nulidade invocada.
Actuação do arguido sem consciência da ilicitude do facto, não lhe sendo o erro censurável ou em erro sobre as circunstâncias do facto
Censura também o recorrente a decisão recorrida, com fundamento em que o tribunal a quo considerou que actuou com erro censurável, mas não sabia ele que sua carta de condução tinha expirado, pois esteve emigrado na Alemanha durante cerca de um ano e meio, o que coincidiu com ter atingido os 50 anos de idade; dirigiu-se depois à RIAC onde o informaram que a renovação era aos 60 anos e foi entretanto várias vezes interceptado pela Polícia sem que alguma vez fosse advertido, para além que do título consta que a validade terminava no ano de 2024.
Ora, antes de mais, percorrida a sentença sob crítica, resulta que se deram como provados, entre outros, os seguintes factos:
10. O arguido no dia 28-04-2018, cerca das 22H30, na Zona de Santana, Rabo de Peixe, Ribeira Grande, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..., sem que possuísse qualquer documento que o habilitasse à condução daquele tipo de veículo automóvel.
11. O arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que para conduzir o veículo referido nas vias públicas ou em locais privados abertos ao trânsito público, deveria ter obtido, previamente, licença de condução, emitida pela entidade administrativa competente, que o habilitasse para tal.
3. Ao assim proceder bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Contudo, na mesma peça processual, refere-se que atendeu o tribunal às declarações do arguido, o qual admitiu que conduziu naquelas circunstâncias de tempo e lugar, referindo que desconhecia o facto de ser obrigatória a renovação da carta de condução quando completasse 50 anos de idade e bem assim que no presente caso, o arguido estava convencido que podia conduzir, não se preocupando com a data de validade da carta. Erro de valoração, como já se disse no âmbito do art 17° do C. Penal. Importa saber agora se é ou não censurável. Desde já se diga que tal convencimento por parte do arguido, tendo em conta as inúmeras informações que foram divulgadas nos media sobre a matéria, é censurável. Assim, cai o erro verificado na alçada do art. 17.°, n.° 2 do C.P., sendo o arguido punido com pena especialmente atenuada.
Ora, apresenta-se contraditório dar como provado, por um lado, que o arguido agiu livre, deliberada e conscientemente, bem sabendo que para conduzir o veículo referido nas vias públicas ou em locais privados abertos ao trânsito público, deveria ter obtido, previamente, licença de condução, emitida
pela entidade administrativa competente, que o habilitasse para tal, estando também ciente da proibição da sua conduta e, por outro, considerar, sem levar até tal materialidade aos factos provados, que o arguido estava convencido de se encontrar legalmente habilitado para o exercício da condução.
E, também a decisão recorrida (tal como a acusação, não fica sem que se diga) nos fundamentos de facto desconsiderou completamente que a falta de título que habilitasse o arguido a conduzir resultava de não ter ele revalidado a carta de condução (de acordo com o n° 4, do artigo 121°, do Código da Estrada, o documento que titula a habilitação legal para conduzir ciclomotores, motociclos, triciclos, quadriciclos pesados e automóveis designa-se carta de condução), que anteriormente já possuía, dentro do prazo legalmente estabelecido, ou seja, até atingir os 50 anos de idade - alcançados em 27/06/2009.
O que, como extraímos da sua simples leitura, comprovado estava até documentalmente (na sentença diz- se que se ponderou ainda o documento de fls. 4. e este consubstancia a cópia da carta de condução do arguido emitida em 10/11/2006 e cópia do auto de apreensão preventiva de título de condução efectuada por agente da PSP aos 28/04/2018).
De onde, enferma ela do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a), do n° 2, do artigo 410°, do CPP e bem assim de contradição (ainda que não insanável, daí não integrar o vício da alínea b), do n° 2, do aludido artigo) entre a fundamentação e a decisão.
Com efeito, essa insuficiência resulta de o tribunal a quo não ter dado como provados factos que, sendo relevantes para a decisão da causa, porquanto necessários para se poder formular um juízo seguro de condenação ou absolvição, resultaram da audiência de julgamento.
Ainda que não invocado pelo recorrente, trata-se um vício de conhecimento oficioso, pelo que dele pode este Tribunal da Relação conhecer.
Este vício determina o reenvio do processo para novo julgamento, se não for possível decidir da causa - artigo 426°, n° 1 do CPP.
Ora, constam dos autos todos os elementos que o permitem sanar, incluindo a sua data de nascimento — 27 de Junho de 1959 — assim como à mencionada contradição.
Deste modo, sendo possível evitar o reenvio do processo para novo julgamento, cumpre alterar a matéria de facto provada constante do ponto 1, nos seguintes termos:
1. O arguido no dia …/2018, cerca das 22:30 horas, na zona de S…, R…, Ribeira Grande, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula ..., tendo-se habilitado a conduzir veículos automóveis ligeiros de passageiros em … de 2006, não tendo procedido até 26 de Junho de 2009 (no dia seguinte perfez 50 anos de idade), à revalidação da carta de condução.
O arguido foi condenado pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3°, nos 1 e 2, do Decreto-Lei n° 2/98, de 03/01.
Conforme estabelecido no artigo 121°, do Código da Estrada, só pode conduzir um veículo a motor na via pública quem estiver legalmente habilitado para o efeito, sendo que, por força do artigo 3°, do aludido Decreto-Lei n° 2/98, quem conduzir veículo a motor na via pública ou equiparada sem para tal estar habilitado nos termos do Código da Estrada é punido com prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias — n° 1; e se o agente conduzir, nos termos do número anterior, motociclo ou automóvel a pena é de prisão até 2 anos ou multa até 240 dias — n° 2.
E, dispõe o artigo 9°, do Decreto-Lei n° 138/2012, de 05/07:
1 - As cartas de condução de qualquer dos modelos aprovados por legislação anterior cuja primeira emissão ou revalidação tenha ocorrido antes da entrada em vigor do presente diploma mantêm-se válidas pelo período nelas averbado, só devendo ser revalidadas no seu termo.
2 - Excecionam-se do disposto no número anterior:
a) As cartas de condução das categorias Al, A, Bl, B e BE cujo termo de validade averbado seja a data em que o seu titular complete 65 anos, que mantêm a obrigatoriedade de revalidação nas datas em que os seus titulares perfaçam 50 e 60 anos;
Esta menção à obrigatoriedade de revalidação reporta-se ao artigo 4°, do Decreto-Lei n° 45/2005, de 23/02, na redacção introduzida pelo Decreto-Lei n° 174/2009, de 03/08, de onde constava:
1 - A habilitação para conduzir titulada por carta ou licença de condução é válida pelos períodos averbados nos respectivos títulos.
2 - O termo de validade da carta e da licença de condução ocorre nas datas em que os seus titulares perfaçam as idades seguintes:
a) Condutores de veículos das categorias A, B e B+E, das subcategorias A1, B1, de ciclomotores, de motociclos de cilindrada não superior a 50 cm3 e de veículos agrícolas - 50, 60, 65, 70 anos e, posteriormente, de dois em dois anos;
Por a data de emissão da carta de condução do arguido ser 10/11/2006 e abranger as categorias B e Bl, estas normas têm plena aplicação.
Pois bem, de acordo com o artigo 130°, do Código da Estrada, após a alteração introduzida pelo Decreto-Lei n° 138/2012, de 05/07, o título de condução (onde se inclui a carta de condução) caduca se não for revalidado, nos termos fixados no Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir, quanto às categorias abrangidas pela necessidade de revalidação, salvo se o respectivo titular demonstrar ter sido titular de documento idêntico e válido durante esse período — alínea a), do n° 1; sendo o título cancelado quando tenha caducado há mais de cinco anos sem que tenha sido revalidado e o titular não seja portador de idêntico documento de condução válido — alínea d), do n° 3.
Ainda conforme o n° 5 do mesmo artigo, os titulares de título de condução cancelados consideram-se, para todos os efeitos legais, não habilitados a conduzir os veículos para os quais o título fora emitido.
E rege o n° 7: quem conduzir veículo com título caducado é sancionado com coima de € 120 a € 600.
Até à data da leitura da sentença da 1 a instância — em 15/01/2019 — não consta dos autos documento ou informação alguma com o mérito de comprovar que a carta de condução do arguido tinha sido cancelada por omissão de revalidação até perfazer os 50 anos de idade e vero é que esse cancelamento não opera ope legis, antes exige um acto concreto de cancelamento, que é da competência do Instituto da Mobilidade e dos Transportes, I. P., como decorre do artigo 2°, n° 1, do Regulamento da Habilitação Legal para Conduzir (aprovado pelo mencionado Decreto-Lei n° 138/2012, de 05/07) e, na Região Autónoma dos Açores, do Serviço de Coordenação dos Transportes Terrestres (tanto quanto se conseguiu apurar).
Não pode deixar de se dizer que, sem que ofício algum se mostre comprovado ter sido remetido pelo tribunal a quo, apresenta-se como tendo dado entrada em juízo aos 20/02/2019 (como resposta a ofício do tribunal de 12/02/2019) uma informação da Direcção Regional dos Transportes —Secretaria Regional dos Transportes e Obras Públicas — Região Autónoma dos Açores, datada de 18/02/2019, segundo a qual a carta do arguido se encontrava cancelada por não ter sido revalidada e ter caducado há mais de 5 anos.
Só que, esta informação não pode ser tida em conta, pois constitui facto novo, sendo desconhecido nos autos à data da prolação da decisão recorrida e, por isso, sobre ele a mesma se não pronunciou, pelo que está fora do âmbito de cognição deste Tribunal da Relação, uma vez que os recursos se destinam a reexaminar decisões proferidas por jurisdição inferior e não a obter decisões sobre questões novas, não colocadas perante aquela jurisdição.
Assim sendo, temos que o arguido conduzia veículo automóvel ligeiro de passageiros com a carta de condução caducada (e não cancelada, pelo menos para efeitos destes autos), o que não integra a prática do crime p. e p. pelo artigo 3°, n°s 1 e 2, do Decreto-Lei n° 2/98, de 03/01, mas da contra-ordenação prevista no n° 7, do artigo 130°, do Código da Estrada, pelo que daquele tem de ser absolvido.
Resta, porém a prática da aludida contra-ordenação, de que se mostram, face à aludida factualidade dada como assente, comprovados os seus elementos objectivos.
Quanto ao dolo e à culpa, esta, nas contra-ordenações não se baseia em qualquer censura ético-penal, mas tão só na violação de certo procedimento imposto ao agente, bastando-se por isso com a imputação do facto ao mesmo agente.
De acordo com o estabelecido no artigo 8°, do RGCO (aplicável ex vi artigo 132°, do Código da Estrada) só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência, mas conforme resulta do artigo 133°, desse Código, nas contra-ordenações rodoviárias a negligência é sempre sancionada.
O dolo consiste no propósito de praticar o facto descrito na lei contra-ordenacional- Simas Santos e Jorge Lopes de Sousa, Contra-ordenações —Anotações ao Regime Geral, Vislis Editores, 2002, 2a edição, pág. 118 - e, porque é ele inerente à dimensão subjectiva, do foro psicológico (domínio da prova dos elementos da estrutura psicológica da vontade) os factos que o consubstanciam são, quase sempre, indemonstráveis de forma naturalística, extraindo-se, normalmente, da materialidade da conduta, das circunstâncias objectivas que rodearam a prática do facto e da ausência ou afastamento das causas que o possam excluir, conferidas com as máximas da experiência e da lógica e as presunções judiciais admissíveis, ou seja, fazendo apelo à prova indirecta.
Como se pode ler no Ac. da Relação do Porto de 01/04/2009, Proc. n° 159/08.9TPPRT, que pode ser lido em www.dgsi.pt, citando aresto da mesma Relação de 23/02/1993, dado que o dolo pertence à vida interior de cada um é, portanto de natureza subjectiva, insusceptível de directa apreensão. Só é possível captar a sua existência através de factos materiais comuns de que o mesmo se possa concluir, entre os quais surge com maior representação o preenchimento dos elementos integrantes da infracção. Pode comprovar-se a verificação do dolo por meio de presunções, ligadas ao princípio da normalidade ou das regras da experiência (...).
E, o elemento intelectual do dolo, traduzido no conhecimento dos elementos objectivos do tipo, no âmbito contra-ordenacional coloca-se em moldes substancialmente distintos dos que revestem a mesma problemática no domínio penal, porquanto se está perante ilícitos axiologicamente neutros, podendo o agente até não ter conhecimento da proibição abstractamente aplicável, na sua descrição jurídica e contudo possuir a consciência do ilícito relevante para efeitos de culpa.
Não resulta demonstrado, como vem o arguido invocar em sede de motivação de recurso, que tivesse estado emigrado na Alemanha durante cerca de um ano e meio, o que coincidiu com ter atingido os 50 anos de idade, nem que se tenha dirigido depois à RIAC onde o informaram que a renovação era aos 60 anos e nem que foi entretanto várias vezes interceptado pela autoridade policial e fiscalizado sem que alguma vez lhe tivesse sido comunicado que estava a conduzir com carta de condução caducada.
Ora, se vero é que consta da carta de condução do arguido que a validade terminava no ano de 2024, menos patente se não pode considerar que a imposição de revalidação das cartas de condução relativas às categorias para que estava habilitado a conduzir até perfazer os 50 anos de idade foi (e continua sendo, esporadicamente) durante largo período temporal e de forma contínua amplamente divulgada nos meios de comunicação social, com particular relevância para os audiovisuais.
Destarte, não podia ele deixar de ter conhecimento dessa exigência legal, de acordo com as regras da experiência comum, porque provado se não mostra que padeça de enfermidade visual, auditiva ou mental, que impedissem sua percepção da mesma, e, por isso, de representar o preenchimento do tipo de ilícito contra-ordenacional como consequência da sua conduta omissiva e de ter actuado conformando-se com ela.
De onde, importa também alterar a factualidade dada como provada no ponto 2 dos fundamentos de facto da decisão recorrida, eliminando a vertida no ponto 3, passando a dele constar:
O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, ciente de que para conduzir o veículo referido nas vias públicas ou em locais privados abertos ao trânsito público deveria ter revalidado a sua carta de condução no prazo legal, tendo-se determinado à condução sabendo que a sua conduta era proibida e legalmente punida.
Conforme estabelecido no artigo 77°, n° 1, do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas - aprovado pelo Decreto-Lei n° 433/82, de 27/10 — o tribunal poderá apreciar como contra-ordenação uma infracção que foi acusada como crime.
Não é pacífico nos Tribunais Superiores o entendimento de que deve a Relação conhecer da responsabilidade contra-ordenacional do arguido, mas, na esteira do Acórdão deste Tribunal de 12/03/2019, Proc. n° 38/16.6PTCSC.L1, relatado pelo agora juiz-adjunto, adoptamos a posição de que deve assumir essa competência, porquanto, a sentença recorrida foi uma decisão condenatória e a degradação, por via do recurso, do crime dela objecto em contra-ordenação, apenas implica o sancionamento do arguido com coima e sanção acessória, sanções administrativas, pelo que não se suscita qualquer questão relativa à observância de 2° grau de jurisdição.
No caso em apreço a conduta do arguido é punível com coima de 120,00 a 600,00 euros e não também com sanção acessória.
Conforme rege o artigo 139°, do Código da Estrada, na fixação do montante da coima, deve atender-se à gravidade da contra-ordenação e da culpa, tendo em conta os antecedentes do infractor relativamente ao diploma legal infringido ou aos seus regulamentos, bem como a sua situação económica, quando for conhecida — n° 2.
Tendo em vista o grau de ilicitude (gravidade da contra-ordenação) expresso no período temporal dilatado decorrido desde a data em que o título de condução caducou (27/06/2009) e aquela em que foi interceptado no exercício da condução (28/04/2018), por um lado, mas o grau de culpa mediano, a ausência de antecedentes conhecidos e a sua situação económica e financeira pouco abonada, por outro, considera-se adequada a aplicação de coima fixada no seu montante mínimo, ou seja, 120,00 euros - e, na verdade, sempre seria de assegurar ao arguido a possibilidade de pagamento voluntário da coima pelo valor mínimo, caso não fosse de fixar, desde já, nesse montante, o da condenação.
Termos em que, o recurso merece provimento, ainda que por fundamentos diversos dos constantes da respectiva motivação, ficando prejudicado o conhecimento das demais questões pelo recorrente suscitadas.
III — DISPOSITIVO
Nestes termos, acordam os Juízes da 5a Secção desta Relação em conceder provimento ao recurso pelo arguido JLP... interposto, ainda que por fundamentos diferentes dos constantes da motivação e em consequência:
A) Julgam verificado o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, previsto na alínea a), do n° 2, do artigo 410°, do CPP, mas, sendo possível evitar o reenvio para julgamento da matéria de facto, alteram a factualidade dada como provada nos pontos 1 e 2 dos fundamentos de facto da decisão recorrida, eliminando também o contido no ponto 3, passando deles a constar a seguinte:
1. O arguido no dia 28/04/2018, cerca das 22:30 horas, na zona de Santana, Rabo de Peixe, Ribeira Grande, conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros de matrícula 38/72/RR, tendo-se habilitado a conduzir veículos automóveis ligeiros de passageiros em 10 de Novembro de 2006, não tendo procedido até 26 de Junho de 2009 (no dia seguinte perfez 50 anos de idade), à revalidação da carta de condução.
2. O arguido agiu deliberada, livre e conscientemente, ciente de que para conduzir o veículo referido nas vias públicas ou em locais privados abertos ao trânsito público deveria ter revalidado a sua carta de condução no prazo legal, tendo-se determinado à condução sabendo que a sua conduta era proibida e legalmente punida.
B) Revogam a sentença recorrida na parte em que condena o arguido pela prática de um crime de condução de veículo automóvel sem habilitação legal, p. e p. pelo artigo 3°, n°s 1 e 2, do Decreto-Lei n° 2/98, de 03/01, desse cometimento o absolvendo;
C) Pela prática da contra-ordenação prevista no n° 7, do artigo 130°, do Código da Estrada, condenam o arguido JLP... em coima no montante de 120 (cento e vinte) euros.
Sem tributação.
Lisboa, 30 de Abril de 2019
(Consigna-se que o presente acórdão foi elaborado e integralmente revisto pelo primeiro signatário — artigo 94°, n° 2, do CPP)
(Artur Vargues)
Jorge Gonçalves