Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
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Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 27-06-2019   Constituição como arguido. Irregularidade do acto de constituição como arguido. Competências do jic no inquérito.
1 - O Ministério Público goza de autonomia que lhe é conferida pelo disposto no artigo 219.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa. Daqui resulta que, em sede de inquérito, salvo tratando-se de actos em que haja reserva de juiz — e sê-lo-ão os previstos no artigo 268.° e seguintes do Código de Processo Penal -, a competência para conhecer de nulidades ou invalidades é da competência de quem dirige essa fase processual.
2 - Em sede de inquérito o Senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu decisão, julgando verificada a irregularidade do acto de constituição como arguido pelo que a mesma ficava sem efeito, assim como o TIR prestado. Tratando-se de acto praticado em fase de inquérito, cabia ao Ministério Público, que o dirige — vd. artigos 53.°, n.° 2, alínea b) e 263.°, n.° 1, ambos do Código de Processo Penal -, pronunciar-se sobre as invocadas invalidades/nulidades.
3 - O Senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu, decisão sobre matéria que lhe estava subtraída, violando o disposto nos artigos 219.2, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, 17.º, 53.º, nº 2, al. b), e 269 n° 1 al. f) do Código de Processo Penal. Daqui decorre que o acto, não sendo inexistente — um acto proferido com violação de regras de competência não é, por isso, inexistente — é nulo, nos termos em que o dispõe o artigo 11.º, alínea e) do Código de Processo Penal, nulidade essa que é insanável.
4 - Por não traduzir afectação de um direito fundamental, o termo de identidade e residência é a única medida de coacção que pode ser aplicada por autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sem intervenção judicial.
Proc. 184/12.5TDLSB-G.L1 9ª Secção
Desembargadores:  Anabela Ferreira - Cristina Santana - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
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Acordam, em conferência, os Juízes da Criminal do Tribunal da Relação de Lisboa
1. RELATÓRIO
1.1. Nos autos de inquérito n° 84/12.5TELSB, que corre termos no Tribunal Central de Instrução Criminal — Secção Única, apreciando requerimento apresentado pelos ora Recorridos MAG... e MBC..., o Senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu decisão, julgando verificada a irregularidade do acto de constituição como arguido quanto aos requerentes MBC... e MAG... que fica, deste modo, sem efeito e, em consequência declaro também a ilegalidade e extinção do TIR prestado.
1.2. Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso dessa decisão
apresentando as seguintes conclusões [transcrição]:
Conclusões:
1.0 presente recurso decorre da plena discordância com a decisão tomada no dia 16.05.2018, constante de fls. 4692 a 4719, de o Sr. JIC retirar o estatuto de arguido a dois suspeitos por entender existir uma irregularidade no ato da sua constituição como arguidos, sindicando esse ato determinado do MP e executado pela PJ.
2.0 inquérito não se encontra sujeito ao regime de segredo de justiça, desde 31¬10-2016, nos termos do despacho judicial que não validou o segredo de justiça decretado pelo MP (fls. 1337 a 1341).
3.0 MP veio a determinar à PI- para constituir MAG... como arguido e indicar-lhe os factos à data já conhecidos que ele praticara e que são objecto de investigação no presente inquérito (despacho de fls. 2018-9).
4.A 27-6-2017 o suspeito MAG... enviou requerimento ao MP a indicar que já acordou com o OPC a data para a realização da diligência processual visada, a ter lugar no próximo dia 3 de Julho, ás 10 horas, nas instalações da PJ, juntando procuração (doc. De fls. 1882-3).
5.Dia 3-7-2017 MAG... foi constituído arguido pela Polícia judiciária, (auto de fls. 2091), tendo-lhe sido indicados os factos em investigação, e prestou TIR (fls. 2095) e, por decisão do MP, não foram tomadas declarações.
6.No mesmo ato MAG... invocou a nulidade ou irregularidade do ato de constituição de arguido por considerar que não lhe foram comunicados os fcatos concretos que lhe são imputados, violando-se o disposto no artigo 58» e 60» do CPP (fls. 2091 e 2092),
7.0 MP veio a indeferir tal nulidade ou irregularidade, pois validou a constituição como arguido de MAG... por despacho datado de 10-7-2017 (fls. 2101-2102).
8.MAG..., através do seu advogado, tem consultado o inquérito — que não se encontra sujeito a segredo de justiça — sempre que pretendeu, nomeadamente a 24-4-2018, 26-4-2018, 30-4-2018, 25-5-2018 (cf. fls. 4526, 4586, 4610, 4887).
9.Posteriormente, o arguido MAG... veio requerer que o JIC tome posição sobre as ilegalidades que havia invocado em 3-7-2017 (fls. 4043).
10.0 MP veio a tomar posição considerando que o JIC não tem competência para conhecer das invalidades em causa.
11.0 JIC veio a tomar decisão no sentido de dar razão ao arguido, nos termos que será, seguidamente, indicado.
12.0 MP veio a determinar à PJ para constituir MBC... como arguido e indicar-lhe os factos à data já conhecidos que ele praticara e que são objecto de investigação no presente inquérito tendo a PJ notificado o suspeito para esse efeito (fls. 2020).
13.No dia 7-7-2017 MBC... foi constituído arguido pela Polícia Judiciária (auto de fls. 2081), tendo-lhe sido indicados os factos em investigação, e prestado TIR (fls. 2086) mas, por decisão do MP, não foram tomadas declarações.
14.No mesmo ato MBC... invocou a nulidade ou irregularidade da constituição de arguido por não lhe terem de imediato sido tomadas declarações, e por considerar que não lhe foram comunicados os factos concretos que lhe são imputados, nem os meios de prova que existiam contra si violando-se o disposto no artigo 58.° e 60.° do CPP (fls. 2081 a 2085).
15.A constituição como arguido foi validade pelo despacho do MP datado de 10-7-2017 (fls. 2101-2), despacho que nunca foi notificado ao arguido.
16.MBC..., através do seu advogado, consultou o inquérito — que não se encontra sujeito a segredo de justiça — sempre que pretendeu, nomeadamente no dia 6-7-2017 ( fls. 2068).
17.A 4-9-2017, o arguido MBC... veio invocar perante o MP a falta de decisão quanto às ilegalidades invocadas no dia 7-7-2017 e a falta de notificação do despacho de validação da constituição como arguido (fls. 2570).
18.E, a 26-2-2018, MBC... veio, em requerimento dirigido ao JIC, invocar a irregularidade da sua constituição como arguido, a irregularidade na omissão de notificação do despacho de validação de constituição como arguido (fls. 3564).
19.0 MP veio a tomar posição sobre esses dois requerimentos do arguido MBC... indeferindo-os, e disseminando o entendimento de que o JIC não tem competência para conhecer das invalidades em causa (fls. 3737).
20.Em rigor jurídico, uma decisão que não existe não passível de recurso, como ensina, por todos, Cavaleiro de Ferreira. Mas a segurança jurídica e a jurisprudência da cautela determinou a necessidade do presente recurso.
21.Aliás, o MP já venceu, no âmbito dos presentes autos, um recurso em situação simétrica à presente (competência restrita do MP e poderes do JIC) tendo a decisão do Tribunal da Relação de Lisboa, datada de 15-5-2018 sido favorável.
22.0 despacho recorrido consubstancia a prática de um ato para o qual o JIC não se mostra legalmente habilitado, já que a determinação da constituição como arguido e a sua validação em sede de inquérito se assumem, materialmente, como atos de inquérito da competência exclusiva do Ministério Público (art. 262º, n.º 1 do CPP).
23.Tal atividade é constitucionalmente vedada ao juiz de instrução, sendo violadora dos art.ºs 32.º, n.º 5, e 219.º, nºs 1 e 2 da Constituição da República Portuguesa, uma interpretação dos art.°s 17.°, 53.°, n.° 2, al. b), 262°, n.° 1, 263°, n.° 1, 268.° ou 269.° do Código de Processo Penal, que admita uma conformação e uma quase permanente sindicância do processo em fase de inquérito pelo juiz de instrução à revelia do poder decisório do Ministério Público.
24.Na realidade toda a atividade de investigação protagonizada e processualizada pela acção do MP em sede de inquérito contende, num determinado grau, com direitos, liberdades e garantias. O legislador, constitucional e ordinário, não desconhecia essa circunstância quando estabeleceram o figurino legal em vigor.
25.0 Capítulo II do CPP tem o título dos actos de inquérito e principia com o art. 267.° do CPP que refere os actos do Ministério Público 0 Ministério Público pratica os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no n.° 1 do artigo 262.°, nos termos e com as restrições constantes dos artigos seguintes.
26.A esmagadora maioria da doutrina, desde Dá Mesquita, Germano Marques da Silva, Souto Moura, Maia Gonçalves, Costa Pimenta e Paulo Pinto de Albuquerque consideram que ao Ministério Público compete declarar a inexistência, a nulidade, a irregularidade e a proibição de prova no inquérito, ressalvada a competência própria do juiz de instrução.
27.Paulo Dá Mesquita estabelece a fronteira entre a competência par conhecer da invalidade e efeitos de conhecimento de invalidade como critério de análise pois (2003, p. 96) afirmando competir ao MP conhecer das nulidades na fase de inquérito e apreciá-las designadamente como questão prévia da decisão de encerramento do inquérito (...), enquanto autoridade judiciária com poder decisório nessa fase, contudo essa decisão do Ministério Público, sendo definitiva na sequência procedimento do inquérito, não vincula o órgão judicial que vier a intervir em fase subsequente do processo, apenas produzirá efeitos definitivos na ordem jurídica na medida da força do despacho de arquivamento não revogado .
28.Assim, a intervenção provocado do JIC na fase pré-acusatória é limitada legalmente pelo CPP, em consonância com a estrutura acusatória do processo que dimana da nossa Constituição da República.
29.É de grande relevo recordar neste contexto toda a linha de argumentação defendida por Figueiredo Dias quanto à estrutura acusatória do processo e suas implicações a qual tem sido repetidamente utilizada pelo Tribunal Constitucional na sua argumentação sobre a reserva de jurisdição que influenciou decisivamente toda a jurisprudência do TC em matéria de repartição da competência entre os dois órgãos.
30.0 legislador prescreveu no art. 267º do CPP que o Ministério Público pratica os actos e assegura os meios de prova necessários à realização das finalidades referidas no n.º 1 do artigo 262.º, nos termos e com as restrições constantes dos artigos seguintes, elencando, então, os atos a praticar pelo JIC e os atos a ordenar ou autorizar pelo mesmo.
31.Se observarmos as competências do JIC em nenhum local se encontra prevista como competência reservada a questão das invalidades processuais em sede de inquérito. Consequentemente só lhe competem as que se relacionam com os atos da sua competência reservada em sede de inquérito.
32.Na súmula feliz de Paulo Dá Mesquita (2003, p. 175-5): A competência do juiz de instrução durante a fase processual presidida pelo Ministério Público, sempre que estejam em causa actos que interferem com direitos fundamentais e outras matérias que a lei reserva ao juiz, obedece a um quadro de intervenção tipificada e provocada (...). Assim, a prática pelo juiz de instrução na fase de inquérito de actos que atingem direitos, liberdades e garantias, de pende de impulso do Ministério Público, cabendo, exclusivamente, a este órgão o juízo sobre a sua oportunidade e a primeira avaliação ad sua necessidade.
33.Importa recordar, ainda, um elemento histórico: na revisão de 1998 ao CPP o projecto de comissão revisora previa uma nova alínea e) no n.° 1 do art. 268.° do CPP permitindo ao juiz de instrução decidir as questões relativas ao reconhecimento efectivo de direitos processuais do arguido ou do assistente. Contudo, essa proposta da Comissão Revisora embora tenha sido discutida foi abandonada, e foi duramente criticada por Figueiredo Dias.
34.Assim, a repartição de competências constante da legal é perfeitamente clara e, no nosso entendimento, a que mais se adequa ao nosso modelo Constitucional, não tendo merecido qualquer reparo por parte do Tribunal Constitucional que tem, reiteradamente, sancionado a mesma com nitidez. Existe todo um conjunto de jurisprudência dos tribunais supetriores nesse sentido alguma dela ilustrativamente citada nas presentes alegações, nomeadamente do TRL.
35.0u seja, não tem cabimento na nossa arquitectura jurídico-constitucional que se revela depois nas normas do CPP a interpretação — que tem sido adoptada pelos arguidos e pelo Sr. JIC — segundo a qual o juiz de instrução em sede de inquérito funciona como uma instância de recurso das decisões próprias do MP.
36.Tal significaria — como tem significado no âmbito dos presentes autos ( em que recorde-se o MP nem goza de segredo interno, nem mesmo externo por decisão judicial) — (a) a manifesta violação do princípio do acusatório, (b) a impossibilidade de se prosseguir uma investigação célere e eficaz, e (c) o comprometimento do princípio da autonomia do MP.
37.De outra forma existe um ataque efectuado às funções e aos estatutos do MP.
38.Assim, o despacho de que ora se recorre atenta contra a autonomia da magistratura do MP — relativamente ao poder judicial — e padece do vício de inconstitucionalidade, por violação do art. 219° n.° 2 (autonomia do MP) da Constituição.
39.Donde, a decisão recorrida viola as disposições legais que versam sobre esta matéria, arts 18.° n° 2 e 219° n° 1 da Constituição, arts. 17, 532, n° 2, al. b), 262° n° 1 e 269 n° 1 al. f) do CPP, revelando-se, por isso, ilegal e inconstitucional.
40.A decisão judicial recorrida encerra a intrusão nas competências que em sede de inquérito pertencem funcionalmente ao núcleo privativo do MP.
41.Deve declarar-se o JIC incompetente para fiscalizar o teor do despacho do MP que determina a validação de uma constituição como arguido e os seus fundamentos, nomeadamente o grau de suspeita suficiente para essa constituição como arguido e a aplicação de TIR.
42.Como refere Souto de Moura (1990, p. 119), a lei processual não fala em lado algum da inexistência de actos processuais e percebe-se porquê. É que a lei processual regulamenta actos de processo. Não actos que não são processuais, e continua relembrando os actos têm que revestir-se de certas características, têm que assumir uma forma que se encontra associada à respectiva eficácia processual. Ora a regularidade e efeitos processuais dos actos podem ser prejudicados se eles estiverem viciados. (...) é possível configurar um conjunto de circunstâncias, que nem sequer chegam a atacar os actos de processo para os viciar, porque impedem, que actos com efectiva existência material, tenham além disso existência jurídica. São circunstâncias que fazem com que o acto de processo nem sequer surja, e portanto, seja como tal, um acto inexistente.
43.Trata-se, segundo Calmon dos Passos um não-acto, por que desprovido dos pressupostos que informam a existência do acto processual.
44.Cavaleiro Ferreira distingue a nulidade da inexistência nos seguintes termos o acto nulo não produz quaisquer efeitos, mas, em si mesmo não seria idóneo para os produzir; inexistente que não só não produz quaisquer efeitos, mas que em caso algum os poderia produzir.
45.Considerando-se o velho princípio da segurança jurídica, o MP vem recorrer de um despacho judicial que está ferido com o vício da inexistência jurídica, devendo considerar-se como não escrito, pois trata-se de uma decisão que não só padece de nulidade por ausência de fundamentação de facto e de direito como procura transmitir decisão manifestamente ilegal violando não só as regras processuais penais e princípios fundamentais alegados como, inclusive, a própria Constituição.
46.Subsidiariamente, defende-se que a decisão judicial é nula (se não for considerada inexistente sendo evidente para o MP é óbvio que MAG... e MBC... continuam a ter o estatuto de arguido, cada um deles continua a ser arguido.
47.0 estatuto de arguido visa assegurar mais direitos ao suspeito, não diminuí-los.
48.Seria absurdo conceber que — no nosso processo penal garantis tico — o JIC, enquanto juiz das liberdades, tivesse um poder de coartar os direitos de defesa processual de um sujeito processual que o MP venha a constituir como arguido, nomeadamente MAG... e MBC..., por ter um diferente entendimento sobre a necessidade ou o formalismo das notificações, validação do ato de constituição como arguido ou sobre o grau de suspeita necessário (de um inquérito que não domina e numa fase processual a que não preside).
49.0 juiz de instrução não pode servir para diminuir os direitos da defesa, ainda que — em concreto — essa possa ser uma boa estratégia de defesa, se pudesse significar que se alcançaria a prescrição de um procedimento criminal. Não é preciso ser particularmente inteligente para antever essa estratégia estando já preparado o recurso para o tribunal constitucional de uma decisão desfavorável da Relação de Lisboa.
50.Aliás, esse estatuto processual, depois de obtido, permanece por toda a fase de inquérito, pelo menos até o processo ser arquivado, permanecendo no caso oposto, até ao fim do julgamento. Neste sentido, o art. 57º n° 2 do CPP determina que a qualidade de arguido conserva-se durante todo o percurso do processo.
51.Se assim não fosse — e o próprio advogado de MAG... não o continuasse a considerar como arguido — não teria MAG... podido continuar a aceder e a consultar os autos, pois, durante o inquérito, mesmo que este não se encontre sujeito a segredo de justiça, como é o caso, o suspeito não pode consultar o inquérito, só o arguido (cf. Art. 89º, n(ºs 1 e 6 do CPP).
52.Ora, já após a (não) decisão do Sr. JIC o IL Dr. RSF... veio consultar o inquérito sem ter feito qualquer requerimento como suspeito antes gozando do estatuto de arguido.
53.Não se afigura legalmente admissível que, durante a fase de inquérito, possa ser o momento adequado para o JIC se pronunciar sobre o modo e o timing das actuações próprias do MP, uma vez que não nos encontramos nem em sede de instrução nem de julgamento.
54.Sobre a necessidade de informar os factos aos suspeito aquando do momento da sua constituição como arguido impõe-se referir que não existe qualquer norma que o exija. Tal como a constituição como arguido não implica o direito do arguido a serem-lhe imediatamente tomadas declarações. Nesses sentido, veja-se o Ac. TRL de 15-04-2010 (in CJ, 2010, T2, p. 146).
55.A única imposição é a de que anteriormente à sua audição seja informado dos factos que lhe são imputados. Como se refere no arte 61°, n° 1, al. c) do CPP antes de prestar declarações perante qualquer entidade.
56.Tratando-se de direito de defesa que a lei confere a cada cidadão para que se possa defender devidamente. Como menciona Fátima Mata-Mouros, relatora do acórdão do TRL de 15-04 — 2010 II —A injunção legal de interrogatório de pessoa determinada contra quem corre inquérito dirige-se à entidade que conduz o inquérito mas não compreende uma directriz sobre o momento do interrogatório do suspeito, o qual deve ser decidido no quadro da estratégia definida em concreto para o inquérito.
III — Nos termos da disciplina legalmente prevista, a efectivação do direito de informação concretizada sobre os factos e provas contra o arguido reunidos
encontra-se reservada para o momento em que aquele vier a ser chamado a prestar declarações.
57.Ora MP nunca determinou nem realizou qualquer interrogatório. Contudo, tomou a iniciativa de, garantísticamente, ordenar a prestação de informação aos suspeitos, aquando do momento da sua constituição como arguido, de quais os factos que se investigavam.
58.Quanto aos factos que foram indicados aos arguidos em questão verifica-se que o MP indicou expressamente à PJ os factos que seriam indicados aquando da constituição como arguidos dos dois suspeitos.
59.Para além disso, como consta da sua constituição como arguido, a PJ veio a mostrar-lhes os mandados de buscas à E…, à R… e à BC… e o despacho que os autorizou e consignou expressamente (fls. 2009).
60.0 MP veio a validar a constituição como arguido de MAG... e de MBC.... Tratando-se de um ato intraprocessual — de relacionamento entre o OPC que cumpriu a sua ordem (a PJ) e o MP — o mesmo não carece de qualquer notificação. Na realidade a validação serve para que a autoridade judiciária verifique se uma constituição como arguido realizada por um OPC respeitou os condicionalismos legais. Se a constituição for efectuada pelo próprio MP, ou por esse sob ordem do MP essa validação perde a sua razão de ser.
61.Nesse sentido, aliás, já existe jurisprudência obrigatória firmada — v.g. o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça da Fixação de Jurisprudência n.° 3/2001, in DR n.°29, Série I de 2011-02-10 — embora que noutro contexto mas que mutatis mutandis permite alicerçar a nossa posição pois, convém salientar, o despacho de validação de uma constituição como arguido ordenada pelo MP ao OPC assume a natureza de um despacho de mero expediente (art. 97º n° 3 CPP), sendo seu destinatário a PJ, pelo que nunca terá de ser notificado a qualquer interveniente processual.
62.No caso recorrido a constituição como arguido foi determinada pelo MP pelo que nem sequer carecia de validação. Foi, mais uma vez, uma interpretação legal garantística por parte do MP que o conduziu a realizar essa validação pois, quando a constituição de arguido tenha sido feita em cumprimento de ordem emanada de uma autoridade judiciária, não há necessidade de submissão do ato a validação.
63.A validação da constituição como arguido de MAG... e de MBC... efectuada pelo MP não padece de qualquer vício e foi nos seguintes termos Fls. 2077 e seguintes: visto.
64.Valida-se, nos termos do disposto pelo art. 58° n(ºs 2 e 3 do CPP, a constituição como arguido dos suspeitos MAG..., realizada a 03.07.2017, e de MBC..., realizada a 07.07.2017, por haver fundada suspeita da prática dos crimes que lhe foram expressamente comunicados, e tais atos processuais terem sido comunicados atempadamente ao MP (no prazo de 10 dias), e uma vez que da análise da documentação presente resulta que foram respeitados todos os pressupostos formais e substanciais processualmente impostos para a realização de tais atos processais.
65.E, posteriormente, o MP considerou oportunamente que inexiste qualquer preceito a determinar expressamente a notificação dessa convalidação e, consequentemente qualquer irregularidade na sua não notificação, a notificação do presente despacho acompanhada do despacho de fls. 2101/2 — vol. 7, através do qual oportunamente se convalidou a constituição de MBC... como arguido, sana essa alegada eventual irregularidade, nos termos do art. 1239 do Código de Processo Penal.
66.No despacho do Sr. JIC (a fls. 4691) refere-se que o MP nunca tomou posição sobre a nulidade /irregularidade invocada. Contudo, o que não se acrescenta é que o requerimento em causa foi dirigido directamente ao sr. JIC e subsequentemente, o MP pronunciou-se nos termos que entendeu adequados, o que aliás já fizera anteriormente ao validar a constituição como arguido. Sendo o processo público os arguidos tinham perfeita consciência dessa validação e do indeferimento das irregularidades invocadas.
67.Apesar de a constituição como arguido, a sua (eventual) validação, a arguição de irregularidades da mesma e a sua declaração ou sanação serem atos de inquérito materialmente da competência do MP o Sr. JIC veio a apodera-se dessas funções e decidiu-se pela existência de algumas das irregularidades invocadas pelos arguidos. Considerou existir um vício, escrutinou a sua natureza e verificou que essa invalidade afectava o ato nos termos do art. 123.º nº 1 do CPP (cf. fls. 4718).
68.Assim, julgou verificada a irregularidade do ato de constituição como arguido de MBC... e MAG... e declarou (fls. 4719) que fica, deste modo, sem efeito e, em consequência declaro também a ilegalidade e extinção do TIR prestado. Mas não verificou de alguma eventual possibilidade de sanabilidade dos atos e de aproveitamento dos mesmos.
69.Violando o princípio da economia e da instrumentalidade das formas diz-nos que, ao nível do processo, se busca é o máximo de resultado na atuação do direito com o mínimo emprego de atividades processuais, o que resulta em economia processual e celeridade na solução da lide.
70.Não consta qualquer tentativa judicial de reparação da alegada irregularidade em causa, mas apenas o retirar o estatuto de arguidos aos suspeitos, de lhes subtrair direitos mas, da lei, resulta que a omissão/violação das formalidades consagradas no art. 58° do CPP se encontra sancionada nesse próprio artigo não com o fim do estatuto mas apenas determinando-se que as declarações prestadas pela pessoa visada não podem ser utilizadas como prova, sem embargo do aproveitamento dos atos processuais já realizados pelo visado, se for essa a sua vontade depois de constituído coo arguido. Concomitantemente, este vício também vai inquinar todas as diligências de prova decorrentes das declarações prestadas pelo arguido (cf. art. 58° n°s 5 e 6).
71.Mas nada mais do que isso. Não existe a possibilidade de retirar o estatuto de arguidos aos suspeitos em expressa violação do art. 57° n° 2 do CPP determina que A qualidade de arguido conserva-se durante todo o decurso do processo e do disposto pelo art. 58° n2s 5 e 6 do CPP.
Termos em que se requer que o presente recurso seja julgado procedente, declarando a inexistência jurídica da decisão do Dr. Juiz de Instrução por ser incompetente para sindicar o despacho do Ministério Público de validação de constituição como arguido ou, subsidiariamente, seja o despacho a quo revogado, por ser nulo em função das competências em causa pertencerem ao MP.
Assim se fazendo Justiça!
1.3. Admitido o recurso, foram notificados MBC... e MAG..., os quais responderam pugnando pela manutenção da decisão recorrida.
MBC... juntou Parecer dos Professores Doutores Jorge de Figueiredo Dias e Nuno Brandão.
1.4. Nesta Instância, o Excelentíssimo Senhor Procurador-Geral Adjunto teve vista no processo, nos termos do disposto no artigo 416.º, n.º 1 do Código de Processo Penal, pronunciando-se pela procedência do recurso e consequente revogação da decisão recorrida.
1.5. Foram colhidos os vistos legais e realizada conferência.
2. FUNDAMENTAÇÃO
2.1. É o seguinte o teor da decisão recorrida [transcrição]
Requerimento de MAG...
O requerente foi constituído arguido no dia 3-7-2017, perante a Polícia Judiciária, conforme resulta do auto de fls. 2091.
Ao arguido não foram tomadas declarações.
Prestou TIR a fls. 2095.
A constituição como arguido teve lugar no decurso do despacho do M° P° de fls. 1807 proferido na sequência do requerimento do arguido em causa junto a fls.1756 a 1790 no qual manifestou disponibilidade para prestar declarações nos autos.
No mesmo acto, conforme consta de fls. 2091 e 2092, o arguido invocou a nulidade ou irregularidade do acto de constituição de arguido decorrente de não lhe terem sido comunicados os factos concretos que lhe são imputados, com violação do disposto no artigo 58° e 60° do CPP.
Como decorre do auto em causa, a nulidade/irregularidade foi invocada perante o M° P.
A constituição como arguido foi validade pelo despacho do M° P9 de fls. 2101 e 2102, proferido no dia 10-7-2017.
Este despacho nunca foi notificado ao arguido.
O M° P° nunca tomou posição sobre a nulidade/irregularidade invocada.
A fls. 4043 o arguido MAG... veio, perante o JIC, requerer que este TCIC
tome posição sobre as ilegalidades invocadas em 3-7-2017.
O Mº Pº foi notificado para se pronunciar, conforme consta de fls. 4184.
A fls. 4665ss o M° P° veio pronunciar-se no sentido de que a competência para
conhecer das invalidades em causa compete ao M° P° e não ao JIC.
Requerimento de MBC...
O requerente foi constituído Arguido no dia 7-7-2017, conforme resulta de fls. 2081, após ter sido notificado para o efeito (fls. 2080).
O arguido prestou TIR a fls. 2086.
Ao arguido não foram tomadas declarações.
No mesmo acto de constituição como arguido (fls. 2081 a 2085), a defensora do arguido invocou a irregularidade ou nulidade do acto de constituição como arguido por dos autos não constar qualquer despacho do Mº Pº a determinar a constituição como arguido, por não lhe terem de imediato sido tomadas declarações e por não lhe terem sido comunicados os factos ilícitos em termos concretos e por não lhe terem sido comunicados os meios de prova que existem contra si.
A constituição como arguido foi validade pelo despacho do M° P° de fls. 2101 e 2102, proferido no dia 10-7-2017.
Este despacho nunca foi notificado ao arguido.
A fls. 2570 (4-9-2017), o arguido veio, perante o M° Pº, invocar a falta de decisão quanto às ilegalidades invocadas no dia 7-7-2017 e falta de notificação do despacho de validação da constituição como arguido.
A fls. 3564 (26-2-1018), o arguido MBC... veio, em requerimento dirigido ao JIC, invocar a irregularidade da sua constituição como arguido e irregularidade na omissão de notificação do despacho de validação de constituição como arguido.
Este requerimento deu entrada no DCIAP e nunca foi dado a conhecer ao JIC, apesar de vir dirigido a este.
A fls. 3737, consta o despacho do M° P° a conhecer e a indeferir o requerimento do arguido MBC... de fls. 3564 dirigido ao Juiz de Instrução Criminal, por entender que a competência para conhecer das nulidades e irregularidades relativas ao inquérito compete ao M2 P2 e não ao JIC.
A fls. 3882, (15-3-2018) o arguido apresentou novo requerimento perante o JIC, entrado neste TCIC, no qual invoca a inexistência do despacho do Mº Pº de fls. 3337 enquanto decidiu sobre um requerimento dirigido ao JIC e que decide sobre invalidades arguidas perante o JIC.
O Mº Pº foi notificado (fls. 3950) para se pronunciar sobre o requerido sem que tenha tomado posição.
Cumpre conhecer:
1-A primeira questão que se coloca é de saber se a pretensão dos requerentes é da competência do JIC ou exclusiva do Ministério Público. Porém, para chegarmos a uma conclusão segura e porque está dependente dela, antes de entramos na sua análise cumpre saber qual a natureza dos direitos que foram objecto de restrição com a decisão do Mº Pº, nomeadamente, se estaremos perante direitos fundamentais garantidos pela constituição.
Como vimos, os requerentes foram constituídos arguidos e no mesmo acto ficaram sujeitos à medida de coacção de TIR.
O Termo de Identidade e Residência previsto no artigo 196º, do Código de Processo Penal, é uma medida de coacção, de natureza obrigatória, aplicável a quem for constituído arguido, podendo ser aplicada pela autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal e reveste natureza automática, já que prescinde dos requisitos gerais de aplicação das medidas, tal como resulta do artigo 204º.
Conforme resulta do artigo 196º do CPP, o Termo de Identidade e Residência acarreta, entre outras consequências, para o arguido, a obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou lugar onde possa ser encontrado (n° 3 alínea b)) e, em caso de condenação, o mesmo só se extingue com a extinção da pena (alínea e)).
Daqui resulta, desde logo, que o TIR contém consequências, na medida em que constitui uma medida restritiva do direito à liberdade e do direito de deslocação, previstos nos artigos 27º e 44º da Constituição da República Portuguesa, respectivamente.
É certo que o direito à liberdade é entendido como dizendo respeito à liberdade física e de movimentos e, por isso, associado a mecanismos de detenção ou prisão, o direito de deslocação, enquanto corolário do direito à liberdade, está associado à liberdade de escolha de residência e movimentos dentro e fora do território, apenas podendo ser limitado por efeito dos (...) estados de excepção constitucional (...), por efeito de pena ou medida de segurança ou medida preventiva constitucionalmente admitida (prisão, semidetenção, regime de prova, fixação de residência, liberdade condicional etc.); os quais cerceiam ou, pelo menos, restringem a liberdade de deslocação (...).Gomes Canotilho e Vital Moreira in Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo I, página 632.
Daqui concluímos, desde já, que a imposição do TIR, apesar de não exigir os requisitos gerais do artigo 204° do CPP, restringe direitos fundamentais.
Essa restrição é tanto maior, se tivermos em conta o facto de o Termo de Identidade e Residência, com a alteração introduzida no Código de Processo Penal pela Lei n.º 20/2013, de 21 de Fevereiro, ter sido transformado numa medida que se prolonga no tempo e que vai para além das exigências processuais de natureza cautelar, já que apenas se extingue, em caso de condenação, com a extinção da pena. Existe assim uma compressão do direito de deslocação e residência.
Deste modo, dado que a medida em causa restringe direitos fundamentais dos requerentes faz com que lhes assista legitimidade para virem, perante o juiz das garantias, reclamar a defesa desses direitos.
Neste sentido decidiu o Ac. do Trib. Constitucional no Acórdão n° 172/92 de 6 de Maio dizendo: O processo penal de um Estado de direito há-de cumprir dois objectivos fundamentais: assegurar ao Estado a possibilidade de realização do seu jus punendi e oferecer aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra os abusos que possam cometer-se no exercício do poder punitivo (...).
Um tal processo há-de, por conseguinte, ser um processo equitativo (a due process, a fair process), que tenha por preocupação dominante a busca da verdade material, mas sempre com inteiro respeito pela pessoa do arguido, o que, entre o mais, exige que se assegurem a este todas as garantias de defesa e que se não admitam provas que não passem pelo crivo do contraditório (...).
O artigo 32º no 5 da C.R.P. consagra como princípio fundamental enformador do processo penal, o princípio do acusatório, estabelecendo que o processo criminal tem estrutura acusatória, estando a audiência de discussão e julgamento e os actos que a lei determinar subordinados ao princípio do contraditório.
Deste modo, não se levantam quaisquer dúvidas que a fase de inquérito no nosso ordenamento processual, está cometida exclusivamente ao Ministério Público, que determinará as diligências reputadas pertinentes e adequadas à investigação do crime e dos seus agentes, desse modo recolhendo as provas que irão fundamentar a sua decisão de acusar ou não, (artigos 263º, 264º e 267º do CPP).
O artigo 219º nº2 da CRP consagra a autonomia do Ministério Público o que significa que as opções tomadas no seu seio ocorrem sem interferências externas daquela magistratura, mas não lhe confere o princípio da independência consagrado no artigo 203º do mesmo diploma atribuído aos tribunais e aos juízes. Deste modo, as decisões do Ministério Público tomadas na fase de inquérito, desde que contendam com direitos e liberdades fundamentais, não estão excluídas do controlo judicial.
Na fase de inquérito os actos praticados pelo Mº Pº assumem uma natureza materialmente administrativa sendo que os actos praticados pelo juiz de instrução revestem uma natureza jurisdicional e aqueles actos, como os de todos os órgãos do Estado, não estão isentos, por força dos princípios estruturantes do Estado de Direito, de controlo jurisdicional.
Diz o artigo 17º do CPP que, compete ao juiz de instrução proceder à instrução, decidir quanto à pronúncia e exercer todas as funções jurisdicionais até remessa do processo para julgamento.
A intervenção do JIC no inquérito opera-se, basicamente, através dos artigos 268° e 269º do CPP.
Segundo o primeiro, que ostenta exactamente tal epígrafe:
1. Durante o inquérito compete exclusivamente ao juiz de instrução:
a) Proceder ao primeiro interrogatório judicial de arguido detido;
b) Proceder à aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, à excepção da prevista no artigo 196.º, a qual pode ser aplicada pelo Ministério Público;
c) Proceder a buscas e apreensões em escritório de advogado, consultório médico ou estabelecimento bancário, nos termos dos artigos 177. °, n. ° 3, 180.°, n.° 1, e 181.°; d)Tomar conhecimento, em primeiro lugar, do conteúdo da correspondência apreendida, nos termos do artigo 179. °, n.° 3;
e) Declarar a perda, a favor do Estado, de bens apreendidos, quando o Ministério Público proceder ao arquivamento do inquérito nos termos dos artigos 277. °, 280.° e 282.°;
f) Praticar quaisquer outros actos que a lei expressamente reservar ao juiz de instrução.
Os actos contemplados no preceito seguinte como sendo da sua competência exclusiva naquela fase, são os de ordenar ou autorizar:
a) Buscas domiciliárias, nos termos e com os limites do art. 177. °,
b) Apreensões de correspondência, nos termos do art. 179. °, n.° 1;
c) Intercepção, gravação ou registo de conversações ou comunicações, nos termos dos artigos 187.0 e 190.0;
d) A prática de quaisquer outros actos que a lei expressamente fizer depender de ordem ou autorização do juiz de instrução.
Não restam dúvidas que, na al. f) do n° 1, daquele artigo 268°, cabem diversos actos dispersamente prevenidos no CPP em que a intervenção do JIC é convocada. Assim, entre outras, a titulo de exemplo, a admissão de assistente (art. 68.°, n° 3), a detenção perante falta injustificada (art. 116º, n° 2), as
declarações para memória futura (art. 271.°) ou em outros diplomas legais, artigo 16º nº 3 e 17º da lei 109/2009 de 15/09, apreensão de correio electrónico e dados informáticos relativos à vida privada, artigo 6º da Lei 5/2002 de 11-01 recolha de imagem e som, artigo 17º nº 3 da Lei 25/2008 de 5/06 suspensão de operações bancárias.
O que está em causa com a pretensão dos arguidos não é a autonomia do Mº Pº e nem, muito menos, a titularidade do inquérito, mas sim a defesa de direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.
Ora, como já dissemos anteriormente nestes autos, tratando-se de direitos fundamentais a questão não poderá estar fora da sindicância jurisdicional a exercer pelo juiz de instrução criminal, enquanto juiz de garantias e de liberdades, por força do artigo 202º nº 2 da CRP quando afirma que, na administração da justiça incumbe aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos e do artigo 17º) do CPP quando estatui que o juiz de instrução tem competência, além do mais, (...) exercer todas as funções jurisdicionais até a remessa do processo a julgamento».
Para além disso, este entendimento não colide com estrutura acusatória do processo penal, consagrada no artigo 32° n° 5 da CRP, nem com a separação orgânica e funcional entre as duas magistraturas que se verifica mesmo na fase de inquérito e nem, muito menos, poderá ser tida como uma posição de sindicante por parte do JIC da actividade do Ministério Público. Esta posição é, em nosso entender, a que melhor se coaduna com as funções do juiz de instrução enquanto garante de direitos fundamentais dos cidadãos.
No mesmo sentido se pronunciou João Conde Correia, para quem a declaração de nulidade tem carácter materialmente judicial, e porque na fase do inquérito compete ao juiz de instrução criminal praticar ou sindicar todos os actos que contendem com direitos, liberdades e garantias individuais, onde se inclui o conhecimento das nulidades (In Contributo para a Análise da Inexistência e das Nulidades Processuais Penais, pág. 189 e ss, nota 439).
Para além disso, o n.° 4 do artigo 32° da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (reserva do juiz).
Neste sentido, veja-se o AC do Tribunal Constitucional n° 228/2007 quendo diz que: «Decisivamente, entende o Tribunal que, tratando-se de uma intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, se impõe um controlo prévio pelo juiz como expressão da separação de poderes e competências decorrente da estrutura acusatória do Processo Penal consagrada nos artigos 32°, nºs 4 e 5 do Código de Processo Penal».
«..., o n.° 4 do artigo 32° da CRP prossegue a tutela de defesa dos direitos do cidadão no processo criminal e, nessa exacta medida, determina o monopólio pelo juiz da instrução, juiz-garante dos direitos fundamentais dos cidadãos (reserva do juiz)».
Sobre este teme, o Acórdão do , de 24.09.2015, é dito que: «Tendo em atenção esta perspectiva, a argumentação expendida em alguma doutrina e jurisprudência citadas, segundo as quais, mesmo conhecendo o Ministério Público das invalidades, sempre haverá um controlo judicial das mesmas, seja ao nível de incidentes judiciais, seja nas fases jurisdicionalizadas do processo, não nos parece que seja a que melhor se adequa aos princípios do processo penal. Nesta tese teríamos que aguardar alguma intervenção incidental do juiz de instrução ou que o processo passasse para a fase de instrução, para a ser apreciada jurisdicionalmente a alegada violação do direito de defesa. Inexistindo tal intervenção a apreciação jurisdicional nunca se verificaria. Com o devido respeito não nos parece que esta solução mereça acolhimento. Em questões de alegada violação de direitos liberdades e garantias, a intervenção jurisdicional impõe-se, no imediato, independentemente da fase processual em que a mesma ocorra, assim se garantindo a tutela jurisdicional consagrada no texto constitucional e materializando o direito ao juiz que a mesma comporta. Perfilhando nós a corrente doutrinal e jurisprudencial que confere ao juiz de instrução competência para apreciar as invalidades cometidas em inquérito sempre que contendam com direitos liberdades e garantias, tanto mais que as normas constitucionais são de aplicação directa (artigo 18° Constituição da República Portuguesa), não pode, no caso em apreço, o juiz de instrução deixar de apreciar o requerimento apresentado pelo recorrente».
E diz mais: «Esta solução em nada contende com a circunstância de a direcção do Inquérito ser da competência do Ministério Público, nem coloca em crise o princípio do acusatório que rege o processo criminal. O princípio do acusatório resultante do artigo 32°, n° 5 da Constituição da República Portuguesa, visa assegurar o direito a um julgamento, imparcial, justo e equitativo assegurando que a acusação é feita por um órgão diferente do julgador. Isto não significa que não existam articulações, em momentos diferentes das fases do processo, entre os vários órgãos, como, aliás, se constata das várias intervenções do juiz de instrução na fase de Inquérito que é da competência do Ministério Público».
No Ac. do , de 07.12.2016 (Proc. n.° 333/14.9TELSB-3) é dito que: «Na verdade é ao MP que cabe exclusivamente a direcção do inquérito — artº 263º CPP — devendo dirigir a investigação, ordenar a recolha de meios de prova necessários à recolha de indícios, determinar os agentes de um crime e as respectivas responsabilidades tudo com vista à formulação do libelo acusatório ou ao arquivamento da investigação/ inquérito.
No entanto, em toda esta actividade de investigação cabe ao JIC zelar e velar para que os Direitos Liberdades e Garantias dos envolvidos nos processos sejam protegidos/observados como podemos concluir da leitura rápida dos artigos 205º, 268° e 269º do CPP e sem esquecer o artº 17º do CPP e a nossa Lei Fundamental.
O MP não define ou delimita direitos, não se pronuncia pela sua eventual violação ou, pelo menos, não decide da invocada violação dos mesmos, assim como das garantias e das liberdades.
Ora, entendendo que existem aqui duas situações que devem ser tidas em conta, uma que se prende com a conduta do MP e que só pode ser atacada por via hierárquica enquanto for ele o Dominus do Inquérito e outra, em que, nesta fase processual o JIC é chamado como o Juiz dos Direitos Liberdades e Garantias e em relação às quais tem necessariamente de se pronunciar, há que tomar posição quanto ao recurso em causa.
É sem dúvida ao JIC que compete pronunciar-se quanto a estas questões — art° 202.° CRP, porque compete aos tribunais assegurar a defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos dos cidadãos — artigo 32.° da CRP, n° 1 do artigo 20° CRP». Face ao exposto, conclui-se que, contendendo a situação em causa, com direitos, liberdades e garantias fundamentais dos arguidos, a competência para a sua apreciação recai sobre o juiz de instrução.
2-Uma vez verificado que a competência para a apreciação dos vícios em causa compete ao juiz de instrução, cumpre saber, antes de mais, qual a natureza do vício do acto praticado pelo Mº Pº, constante do despacho de 3737, que conheceu e indeferiu as invalidades invocadas pelo arguido MBC..., perante o Juiz de Instrução Criminal.
Como é consabido, em matéria de nulidades vigora, entre nós, o princípio da legalidade - cfr. art.° 118.° do CPP.
Princípio segundo o qual a violação ou inobservância das disposições da lei do processo só determina a nulidade do acto quando for expressamente cominada na lei.
Há duas formas de funcionamento da nulidade, as nulidades correspondentes a vícios que podem ser sanados no decurso do processo — as nulidades sanáveis, com previsão expressa no art. 120° do C.P.P — e as nulidades correspondentes a vícios que só podem ser sanados com a formação do caso julgado — nulidades absolutas ou insanáveis, expressamente consagradas no art. 119° do C.P.P.
Decorre do art. 119° do C.P.P. que o elenco das nulidades absolutas tem natureza taxativa, apenas constituindo esta modalidade de nulidade as que se encontrem elencadas no preceito ou as que, espalhadas no Código ou demais leis do processo penal, tiverem a cominação expressa de nulidade insanável.
As nulidades absolutas ou insanáveis são de conhecimento oficioso e podem, ainda, ser arguidas por qualquer interessado independentemente do estado do processo desde que o façam até ao trânsito em julgado da decisão, ou seja, podem fazê-lo a todo o tempo.
Regra geral as nulidades sanáveis no decurso do processo carecem de ser arguidas por um dos interessados durante um determinado período de tempo. O elenco das nulidades sanáveis constante do art. 120° do C.P.P. é taxativo pois que para além das aí expressamente contempladas ou noutras disposições legais, o legislador não considerou outras.
Quanto à irregularidade -arts. 118° n. 2 e 123°, ambos do C.P.P. a figura da irregularidade tem carácter residual na medida em que engloba a generalidade das situações em que haja violação, por acção ou omissão, da legalidade na prática de um acto processual. Nesta categoria cabem quaisquer vícios de que enfermem os actos processuais e que a lei não taxa de nulidade. Estamos perante irregularidade sempre que estejamos perante um vício formal do acto processual que não produza nulidade. O acto irregular, como o acto nulo, produz os efeitos típicos do acto perfeito enquanto a irregularidade não for declarada.
Assim, para que a irregularidade determine a invalidade do acto a que se refere, e dos termos subsequentes que possa afectar, deve ser arguida pelos interessados: no próprio acto se a esta tiverem assistido; nos 3 dias seguintes a contar daquele em que tivessem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado.
O requerente qualificou o vício em causa como constituindo a figura da inexistência.
Como sabemos, o legislador não se pronunciou relativamente à admissibilidade ou inadmissibilidade da figura da inexistência. A figura da inexistência dos actos jurídicos tem, pois, origem doutrinal e jurisprudencial.
São razões de justiça que impõem que, não obstante a falta da sua previsão legal, o vício seja diagnosticado, os seus efeitos destruídos e reposta a legalidade processual. Nas palavras do Prof. Germano Marques da Silva A função da categoria da inexistência é precisamente a de ultrapassar a barreira da tipicidade das nulidades e da sua sanação pelo caso julgado: a inexistência é insanável.
Nestes casos não estamos sequer perante actos imperfeitos. Na verdade a anomalia é tal que o acto nem sequer é comparável com o seu esquema normativo. O acto é inidóneo para a produção de quaisquer efeitos jurídicos não os devendo, em caso algum, produzir. E tal acto é inidóneo por lhe faltar um dos seus elementos constitutivos, sem os quais o acto não existe enquanto tal.
Tendo em conta a natureza do vício praticado pelo Mº Pª, violação da reserva de juiz, entendemos que o mesmo assume uma especial gravidade, na medida em que se traduz numa usurpação de uma função judicial e assume um potencial de agressão aos direitos liberdades e garantias fundamentais, que justifica a sua qualificação como constituindo a figura da inexistência. Com efeito, para a situação de violação da reserva de juiz, não existem outros remédios, como o regime das legalidades previsto nos artigos 118° a 123º do CPP, com a possibilidade de corrigir os efeitos do vício praticado.
A inexistência jurídica tem autonomia dogmática mas deve ser um recurso excepcional, que apenas deve ser usado em situações extremas, ou seja, apenas em casos de gravidade superior àqueles que se encontram previstos na lei como causas de nulidade.
Com efeito, percorrendo o catálogo das nulidades processuais, não encontramos nenhuma com a possibilidade de resolver a situação, na medida em que nulidade absoluta prevista no artigo 119º al. e) do CPP diz respeito à violação das regras de competência do tribunal e não às situações de usurpação da função judicial.
Nesta conformidade, verificada a inexistência jurídica da decisão do M° P° proferida a fls. 3337ss a mesma terá como consequência a não produção de qualquer efeito jurídico quanto à decisão proferida.
3-Cumpre agora apreciar as invalidades invocadas pelos arguidos MAG... e MBC...
O inquérito constitui a primeira fase do processo penal e compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher as provas, em ordem à decisão sobre a acusação (artigo 262.°, n.° 1, do CPP).
A direcção do inquérito cabe ao Ministério Público, assistido pelos órgãos de polícia criminal (artigo 263.°, n.° 1, do CPP).
m arguido é um dos sujeitos do processo com uma dimensão estatutária própria.
Assume a qualidade de arguido toda a pessoa contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução num processo penal, conservando-se tal qualidade durante todo o processo (artigo 57.° do CPP).
Para além daqueles actos processuais que, por si mesmos, conferem a qualidade de arguido às pessoas contra os quais são praticados, o CPP prevê ainda outras situações em que impõe a constituição de arguido. São elas as previstas nos arts. 58» e 59.° do CPP.
m n° 1 do artigo 58° do CPP refere quais as situações é que é obrigatória a constituição como arguido.
Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, é obrigatória a constituição de arguido logo que:
a) Correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações. perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal;
b) Tenha de ser aplicada a qualquer pessoa uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, ressalvado o disposto nos n.ºs 3 a 5 do artigo 192.º;
c) Um suspeito for detido, nos termos e para os efeitos previstos nos artigos 254.º a 261.º; ou
d) For levantado auto de notícia que dê uma pessoa como agente de um crime e aquele lhe for comunicado, salvo se a notícia for manifestamente infundada. Para além destas situações, é ainda obrigatória a constituição como arguido daquele contra quem for deduzida acusação ou requerida instrução.
Tal como salientado por Pinto de Albuquerque (Comentário do CPP, em anotação ao artigo 57.Q), «na substância das coisas, o arguido, tal como o suspeito, é uma pessoa em relação à qual exista, pelo menos, um indício, isto é, uma razão para crer que ela cometeu ou vai cometer um crime ou participou ou vai participar na sua comissão. Num caso, como no outro, existe uma suspeita que deve ser fundada, isto é, motivada, pelo menos, por uma razão». E conclui, assim, que a distinção entre suspeito e arguido é, pois, «estritamente estatutária e não material. Dito de outro modo, o suspeito é um arguido que ainda não foi reconhecido formalmente como tal e, por conseguinte, o arguido é um suspeito que já foi formalmente reconhecido como tal».
A caracterização essencial do estatuto do arguido no processo penal consta do artigo 60.° do CPP: desde o momento em que uma pessoa adquire a qualidade de arguido é-lhe assegurado o exercício de direitos e deveres processuais, sem prejuízo da aplicação de medidas de coacção e garantia patrimonial e da efectivação de diligências probatórias, nos termos especificados na lei.
Ao atribuir ao arguido a posição de sujeito do processo, o Código de Processo Penal, no seu artigo 61°, confere efectividade às referências constitucionais — o direito de defesa e o direito à presunção de inocência até ao trânsito em julgado da sentença condenatória (artigo 32.°, n.° 1 e 2, da Constituição), como direitos fundamentais simultaneamente de natureza pessoal e processual.
Assim sendo, a constituição como arguido, pela importância que assume no processo, está rodeada de alguns cuidados formais. Com efeito os artigos 58° e 59 do CPP determinam com rigor quer o momento e o modo de obtenção do estatuto, quer a obrigatoriedade para as autoridades judiciárias e para os órgãos de polícia criminal de explicitarem os direitos e os deveres inerentes a essa qualidade.
Ciente dessa importância, sobretudo dos efeitos perversos inerentes à constituição de alguém como arguido, o legislador, através da Lei n° 48/2007, de 29/08, veio tornar esse acto mais exigente. Assim, a Lei n° 48/2007, mantendo a obrigatoriedade da constituição como arguido, fez uma importante restrição; isto é, restringe aquela obrigatoriedade ao caso em que haja fundada suspeita de uma pessoa ter praticado um crime.
Cumpre referir, também, que a constituição como arguido implica, conforme resulta do artigo 1969 n° 1 do CPP, a automática aplicação da medida de coacção de termo de identidade de residência que é, como é dito por GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa
Anotada, vol. I, 4º edição, Coimbra, pág. 518, «uma coacção grave da liberdade de deslocação».
Da análise feita ao n° 1 e 2 do artigo 61° do CPP — direitos do arguido — verifica-se que o elenco dos direitos aí conferidos não é mais do que a concretização do direito fundamental a todas as garantias de defesa consagrado no artigo 32° da CRP, bem como o de assegurar o princípio a tutela jurisdicional efectiva acolhido no artigo 20° da CRP.
Nos termos do artigo 322, n.° 1, da Constituição, o «processo criminal assegura todas as garantias de defesa ao arguido», o que engloba indubitavelmente «todos os direitos e instrumentos necessários e adequados para o arguido defender a sua posição e contrariar a acusação» (GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, LP edição, Coimbra, pág. 516).
Procura-se, deste modo, alcançar a concretização de um consistente direito de defesa, dando-se ao arguido uma real possibilidade de influenciar o decurso do processo, através da sua concepção própria tanto sobre a questão-de-facto como sobre as questões-de-direito que no processo se discutem. Embora a constituição não defina o momento a partir do qual podem ser exercidas as garantias de defesa, nomeadamente os direitos previstos no artigo 61° n° 1 e 2 do CPP, entendemos, tal como é dito por Gomes Canotilho e Vital Moreira (obra citada pag 516) que: «todo o feixe de direitos inseridos no direito constitucional de defesa deve ser posto em acção pelo menos a partir do momento em que o sujeito assume a qualidade de arguido». Mais à frente, pag 517, os mesmos autores dizem que: «a constituição como arguido serve, para assegurar as garantias de defesa e observar o princípio da legalidade e não para antecipar sem fundamento medidas de coacção».
Verificados os aspectos gerais relativos à figura do arguido na nossa ordem jurídica, em especial a noção de que se trata de um sujeito a quem a lei confere um conjunto de direitos e deveres, cumpre agora regressar ao concreto.
Conforme resulta do requerimento de fls. 4043, o arguido MAG... invocou, em primeira linha, a nulidade, ou no mínimo a irregularidade, decorrente do facto de não lhe terem sido tomadas declarações no momento da constituição como arguido.
Por sua vez, a fls. 3564, o arguido MBC... invocou o mesmo vício, alegando que deveria ter sido interrogado na qualidade de arguido no acto relativo à sua constituição como arguido.
De acordo com os requentes o direito de audiência não podia deixar de ser assegurado em simultâneo ou pelo menos em acto imediatamente subsequente à sua constituição como arguido.
Conforme resulta do artigo 61° n° 1 al. b) do CPP, o direito a ser ouvido constitui um dos direitos do arguido. Este direito consiste em ser ouvido pelo tribunal ou o juiz de instrução sempre que deva ser tomada decisão que pessoalmente o afecte. Por sua vez, o art. 272.9/1 do CPP consagra a obrigatoriedade de se proceder a interrogatório de arguido nos inquéritos que correm contra pessoa determinada em relação à qual haja fundada suspeita da prática de um crime. E dispõe o art. 58.º/P) do mesmo diploma legal que, correndo inquérito contra pessoa determinada em relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, é obrigatória a constituição de arguido logo que aquela prestar declarações perante qualquer autoridade judiciária ou órgão de polícia criminal.
Destas normas resulta que o interrogatório do arguido, na fase de inquérito, é obrigatório. Apesar de a lei consagrar aquela obrigatoriedade, nada de concreto se dispõe, porém, sobre o momento em que haja de ter lugar. O que a lei diz é que ocorra durante o inquérito, sem o que, sendo possível a sua notificação, ocorrerá nulidade prevista no art. 120.º/2d do CPP (cfr. acórdão de fixação de jurisprudência n.º 1/2006, de 23-11-2005).
Neste sentido, veja-se Dá Mesquita (Direcção do Inquérito Penal e Garantia Judiciária, pp. 105-106), «a injunção legal de interrogatório de pessoa determinada contra quem corre o inquérito dirige-se à entidade estadual que dirige o inquérito mas não compreende uma directriz sobre o tempo do interrogatório do suspeito que deve ser decidido no quadro da estratégia definida em concreto para o inquérito como actividade. Isto é não se encontra consagrada uma prescrição legal que obrigue ao imediato interrogatório de pessoa determinada contra quem corre o inquérito».
Assim sendo, não existindo obrigatoriedade de interrogatório de arguido logo que haja sido constituído nessa qualidade, o momento para a realização do interrogatório está dentro dos poderes de discricionariedade técnica pertencentes ao titular do inquérito.
No caso em apreço, o inquérito ainda está em curso e dos autos não consta que, até ao momento, os arguidos tenham sido interrogados.
Deste modo, o facto de os arguidos não terem sido logo interrogados, aquando da sua constituição de arguido, não integra qualquer vício tipificado no CPP, designadamente, uma nulidade como é defendido pelos requerentes.
Improcede, quanto a este segmento, o vício invocado pelos arguidos.
Da análise dos requerimentos supra referidos verifica-se que os arguidos em causa invocaram, também, outro vício decorrente da violação do direito à informação. Ambos os arguidos alegam que no acto de constituição como arguido não lhes foram comunicados os factos que lhes são imputados e nem os meios de prova que sustentam essa imputação.
Como se diz no acórdão da Relação de Lisboa de 15-4-2010, relatado por Fátima Mata-Mouros: «O direito de informação decorre também do estatuto de arguido. Embora não esteja contemplado numa previsão genérica, encontra várias expressões ao longo do CPP, e, desde logo, uma dupla contemplação no elenco de direitos e deveres estabelecido no art. 61.° do CPP: o direito de ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade (al. c) do n.° 1), mas também o direito de ser informado, pela autoridade judiciária ou pelo órgão de polícia criminal perante os quais seja obrigado a comparecer, dos direitos que lhe assistem (al. h) do n.° 1). Trata-se de um direito que concretiza exigências decorrentes do processo equitativo e da possibilidade de defesa efectiva».
Quanto à comunicação dos factos, refere acórdão n° 416/2003 do Tribunal Constitucional que: «Na comunicação dos factos, não se pode partir da presunção da culpabilidade do arguido, mas antes da presunção da sua inocência (artigo 32.2, n.° 2, da CRP). Assim, o critério orientador nesta matéria deve ser o seguinte: a comunicação dos factos deve ser feita com a concretização necessária a que um inocente possa ficar ciente dos comportamentos materiais que lhe são imputados e da sua relevância jurídico-criminal, por forma a que lhe seja dada oportunidade de defesa (artigo 28.9, n.° 1, da CRP)».
Quanto ao arguido MBC... consta do auto de constituição como arguido, fls. 2081, na parte relativa aos factos imputados, o seguinte: «..foi-lhe comunicado que está em causa a sua actuação na qualidade de Director da D…, nomeadamente os despachos da D…, relativos à matéria da passagem dos CAE para os CMEC, bem como a sua intervenção na venda da empresa HE… à E… e o circunstancialismo que rodeou esse negócio. Tais factos consubstanciam a prática de crimes de corrupção activa e passiva, tráfico de influências e participação económica em negócio».
Do auto em causa não consta que ao arguido tenham sido comunicados meios de prova.
Por sua vez, quanto ao arguido MAG..., o auto de fls. 2091, refere o seguinte: «...tendo-lhe sido comunicados os direitos e deveres constantes do art. 61 e feita a comunicação verbal dos factos e dos crimes que lhe são imputados no âmbito do NUIPC 184/12.5TELSB». Do mesmo auto consta que, instado pelo defensor do arguido, a Sra. Inspectora da PJ informou « o arguido que os crimes em investigação seriam o de corrupção activa e passiva e participação económica em negócio e que os factos teriam a ver com a celebração dos chamados C… e CM… tendo sido exibido ao arguido mandados de busca em que seriam visados a E…, AM…, PR…, JM… e JN…, bem como a R…, JC…, RC…, PF… e TB…». «Perguntado pelo mandatário do arguido que factos eram imputados ao arguido a Sr Inspectora informou que tais factos teriam a ver com os referidos C… e CM… e ainda as circunstâncias de ter ido dar aulas para a UC…, o que poderia estar relacionado com a prática dos crimes supra referidos, informando que nada mais poderia esclarecer até porque a diligência não se destinaria ainda à tomada de declarações do arguido».
Do auto não consta que lhe tenham sido comunicados os meios de prova.
Tendo em conta o teor dos autos de constituição de arguido acima referidos conclui-se, desde já, que o que consta dos mesmos, quanto à informação dos factos que lhes são imputados, é manifestamente insuficiente para a concretização prática do direito de informação, na medida em que o que lhes foi comunicado, atento o carácter vago e abstracto, não é susceptível de ser qualificado como preenchendo os elementos de um crime, nomeadamente dos crimes referidos. Na verdade, aquela comunicação, traduz-se numa não comunicação aos arguido dos factos concretos que lhes eram imputados e não permite assegurar a sua oportunidade de defesa em relação às causas que determinaram a sua constituição como arguidos. É evidente que não é exigível uma indicação exaustiva dos factos, como na acusação, mas é indispensável que aos arguidos seja dado conhecimento das circunstâncias essenciais que levaram à sua constituição coo arguidos para que, a partir desse momento, possam estar em condições de exercer a sua defesa.
Como consta dos autos de constituição de arguido, aos arguidos não foram tomadas declarações.
O direito de ser informado consta na al. c) do n° 1 do artigo 60° do CPP o qual diz o seguinte: «ser informado dos factos que lhe são imputados antes de prestar declarações perante qualquer entidade».
Daqui decorre que a concretização do direito à informação quanto aos factos e aos meios de prova apenas deve ter lugar no momento em que o arguido for chamado a prestar declarações. É o que resulta, também, do art. 141.° do CPP, designadamente quando no n.° 4/c) e d) se estabelece a obrigatoriedade de comunicação ao arguido dos concretos factos que lhe são imputados e dos elementos de prova que os indiciam (desde que essa revelação não ponha em causa a investigação, nem criar outros perigos, como o de risco para a vida de alguém), aplicável a outros interrogatórios por força do disposto no artigo 144° n° 2 do CPP.
Mas, para além do direito à informação, o arguido tem, ainda, o direito a intervir no inquérito e na instrução oferecendo provas e requerendo diligências que se lhe se afigurarem necessárias (al g) do n° 1 do artigo 60° do CPP. Ora, como é evidente, o exercício deste direito só poderá ser concretizado por quem tiver conhecimento do objecto do processo, ou seja, dos factos pelos quais assume a qualidade de arguido.
Como é referido por Fátima Mata-Mouros no Acórdão supra referido: «Essencial é que a constituição de arguido obedeça à já acima referida lógica nuclear de chamada a juízo de alguém contra quem se mostram reunidos pressupostos que a colocam numa posição que demanda pelo menos a possibilidade do exercício de defesa. Como logo de início se referiu, de acordo com as previsões identificadas na lei, os casos previstos nos arts. 57.° a 59.° do CPP».
Tendo em conta os autos de constituição de arguido, verifica-se que os requerentes foram constituídos arguidos pelo OPC, por determinação do Mº P° e mais resulta que essa constituição teve lugar fora das situações previstas nos artigos 57°, 58° e 59º do CPP, na medida em que a situação em causa não configura qualquer das situações tipificadas na lei como de constituição obrigatória de arguido.
Com efeito, contra os visados não foi deduzida acusação nem requerida instrução (art. 57.9 do CPP). Os requerentes também não foram chamados a prestar declarações nos autos, não foi proposta contra os mesmo a aplicação de qualquer medida de coacção, não foram detidos ou houve necessidade de lhes comunicar o teor de auto de notícia (art. 58.°/1 a), b), c) e d) do CPP). Por último, não se verificou qualquer inquirição dos requerentes (art. 59.2/1 do CPP).
Verifica-se, também, que os requerentes não requereram a sua constituição como arguido.
Deste modo, a questão que se coloca neste momento é a de saber se durante o inquérito poderá haver constituição de arguido fora das situações de constituição obrigatória acima referidas, ou seja, se a constituição como arguido está apenas dependente do critério do Ministério Público.
Das normas supra referidas, conclui-se que a constituição como arguido, atenta a relevância que assume, não poderá estar sujeita a critérios de discricionariedade.
Neste sentido veja-se (Código de Processo Penal anotado por Magistrados do MP do Distrito Judicial do Porto, Coimbra Editora, em anotação ao art. 59.°.): «O CPP procura determinar com rigor o momento e o modo de obtenção do estatuto de arguido, já que se trata de um acto essencial, cujo retardamento poderá significar a frustração de direitos de defesa, que a lei pretende assegurar (aliás em consonância com o exigido pela Lei de Autorização (Lei n.º 43/86, de 26-09) no seu art. 2.Q, n.° 2, al. g) — definição rigorosa do momento e do modo de obtenção do estatuto de arguido. O acto de constituição de arguido não está assim na disponibilidade ou na vontade da autoridade judiciária praticar ou não praticar, pois que tal como considerado no Parecer do CC da Procuradoria-Geral da República, de 14-11-1996, o juízo (complexo) sobre a utilidade das declarações não está na discricionariedade da autoridade judiciária; esta sempre que a investigação seja dirigida contra alguma pessoa e o acto se revele processualmente necessário, deve constituí-la arguida e convocá-la a declarações, dando-lhe assim a oportunidade de esclarecer ou não os factos e, se pretender prestar declarações, tomar sobre os factos a posição que entender. (...) Esta questão está directamente relacionada com as alterações introduzidas pela Lei n.° 48/2007, de 29-08, designadamente com a actual redacção do art. 58.º, n.° 1, al. a), do CPP que, contrariamente ao que antes sucedia, prevê como obrigatória a constituição de arguido sempre que correndo inquérito contra pessoa em, relação à qual haja suspeita fundada da prática de crime, esta prestar declarações (...). Com efeito, parece-nos ter sido intenção do legislador restringir o acto processual de constituição de arguido às situações em que exista fundada suspeita».
Em face do exposto, conclui-se que no momento em que os requerentes foram constituídos arguidos não havia nenhuma justificação legal que impusesse uma tal constituição. Deste modo, uma vez que tal acto não tem cobertura legal faz com que o mesmo sofra de ilegalidade.
Em termos de tipologia legal, os vícios dos actos processuais podem padecer, como já dissemos acima, de um de três vícios: nulidade insanável; nulidade sanável; irregularidade. Dispõe o artigo 118°, n.°1 do CPP, sob epígrafe princípio da legalidade, que a violação ou a inobservância das disposições da lei do processo penal só determina a nulidade do acto quando esta for expressamente cominada na lei.
Tendo em conta a natureza do vício em causa e o disposto no artigo 118° do CPP, verifica-se que a lei comina o mesmo como constituindo uma irregularidade a qual deve ser arguida pelos interessados nos termos do artigo 123° do CPP.
Uma vez que os requerentes invocaram a irregularidade no próprio e acto e dado que nunca foram notificados do despacho de validação da constituição como arguido, verifica-se que a pretensão em causa é tempestiva.
Nos termos do artigo 123° n° 1 do CP qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar (art. 123.º/1 do CPP).
No caso em apreço, como consequência da constituição dos requerentes como arguidos estes prestaram TIR. Deste modo, a invalidade do acto de constituição de arguido determina, necessariamente, a invalidade do TIR prestado.
Em face desta conclusão, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas pelo arguido MBC....
Em face do exposto, julgo verifica a irregularidade do acto de constituição como arguido quanto aos requerentes MBC... e MAG... que fica, deste modo, sem efeito e, em consequência declaro também a ilegalidade e extinção do TIR prestado.
Notifique.
(• • •)
2.3. O âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo Recorrente na respectiva motivação, sendo as conclusões que ali formula que irão habilitar o Tribunal superior a conhecer dos motivos que levam o Recorrente a discordar da decisão recorrida, quer no campo dos factos, quer no plano do direito,
As conclusões constituem, pois, a forma de indicação explícita e clara da fundamentação das questões equacionadas pelo Recorrente.
2.4. As questões a decidir, objecto do recurso, consubstanciam-se no seguinte: 2.4.1.Competência do Senhor Juiz de Instrução Criminal para conhecer das questões que lha foram suscitadas.
2.4.2. Acaso se conclua por deter essa competência, conhecimento das invocadas irregularidades.
3. APRECIAÇÃO
Através da decisão recorrido o Senhor Juiz de Instrução Criminal retirou o estatuto de arguidos a MAG... e MBC... por entender existirem irregularidades insanáveis na sua constituição.
Entende o Recorrente que essa decisão é inválida — invalidade que caracteriza como juridicamente inexistente ou, subsidiariamente, nulidade — porquanto, e no essencial, o poder para conhecer das nulidades/irregularidades invocadas cabia ao Ministério Público, que não ao Juiz de Instrução Criminal.
Vejamos.
MAG... e MBC... foram constituídos arguidos e, como tal, foi-lhes tomado termo de identidade e residência.
Nesse acto, ocorrido perante a Polícia Judiciária, os Ilustres Mandatários dos então arguidos suscitaram invalidades sendo que, como decorre do auto de constituição de arguido de MAG..., expressamente foi consignado que a presente arguição deve ser decidida pelo Ministério Púbico titular dos autos, uma vez que nos parece que esta matéria, nesta fase processual, não é da competência do Juiz de Instrução Criminal. No entanto, caso assim não seja entendido, devem os autos ser remetidos ao JIC, para os devidos efeitos.
Como consta do despacho recorrido, o Ministério Público nunca se pronunciou expressamente sobre as nulidades/irregularidades invocadas por MAG....
Na verdade, o despacho proferido foi do seguinte teor:
Valida-se, nos termos do disposto pelo art. 58° n°s 2 e 3 do CPP, a constituição como arguido dos suspeitos MAG..., realizada a 03.07.2017, e de MBC..., realizada a 07.07.2017, por haver fundada suspeita da prática dos crimes que lhe foram expressamente comunicados, e tais atos processuais terem sido comunicados atempadamente ao MP (no prazo de 10 dias), e uma vez que da análise da documentação presente resulta que foram respeitados todos os pressupostos formais e substanciais processualmente impostos para a realização de tais atos processais.
Nunca se poderá considerar, como pretende o Recorrente, que a mera validação da constituição como arguido represente pronúncia relativamente às questões invocadas.
Na verdade, isso representaria uma espécie de indeferimento implícito que a lei não prevê e ao qual faltaria, em todo caso, a devida fundamentação.
Já no que se refere ao invocado, igualmente nos autos de constituição como arguido de MBC... — 7 de Julho de 2017 -, e novamente em 4 de Setembro de 2017, o Ministério Público pronunciou-se expressamente no sentido da inexistência de nulidade/irregularidades, ao mesmo tempo que determinou a notificação do despacho que validou a sua constituição como arguido.
É então que ambos os então arguidos apresentam requerimento ao Senhor Juiz de Instrução Criminal, o qual proferiu o despacho recorrido.
Parece não existirem dúvidas, independentemente da natureza do acto, de que há obrigação de decidir que, manifestamente, no caso de MAG..., não foi observada.
A questão seguinte a colocar é, pois, se o Senhor Juiz de Instrução Criminal tinha, por isso, competência para decidir as questões suscitadas e, no caso de MBC..., mesmo em sentido oposto ao do Ministério Público.
Entende o Senhor Juiz de Instrução Criminal, sucintamente, embora reconhecendo que o termo de identidade e residência não exige os requisitos gerais do artigo 204.º do Código de Processo Penal, restringe direitos fundamentais, designadamente na sua vertente do direito à liberdade e do
direito de deslocação previstos nos artigos 27.º e 44.º da Constituição da República Portuguesa, respectivamente.
Temos que discordar.
Vejamos com que fundamentos.
O artigo 196.º do Código de Processo Penal estabelece para o arguido, a obrigação de não mudar de residência nem dela se ausentar por mais de cinco dias sem comunicar a nova residência ou lugar onde possa ser encontrado – nº 3 alínea b) e, em caso de condenação, só se extingue com a extinção da pena — n9 3, alínea e).
Daqui resulta que não existe qualquer restrição relevante ao ponto de se considerar afectado um direito fundamental. Veja-se que o arguido não fica impossibilitado de se deslocar, mesmo que do país, e de mudar de residência, como parece transparecer do despacho recorrido.
Essa limitação seria decorrente de outra medida de coacção, não imposta, qual seja a proibição e imposição de condutas, prevista do artigo 200.º, n.° 1, alíneas b) e c) do Código de Processo Penal, a qual exige a intervenção do juiz.
E assim é uma vez que o arguido apenas fica obrigado a comunicar a nova residência ou lugar onde possa ser encontrado, o que é diferente de ficar impedido de mudar de residência, não representando, de todo, qualquer limitação no direito ou liberdade de se deslocar.
Invoca-se, na decisão recorrida, o disposto no artigo 27.9 da Constituição da República Portuguesa para se concluir que, com a prestação de termo de identidade e residência, fica restringido o direito constitucional à liberdade.
Ora, a norma constitucional prevê, no seu n°. 1, que todos têm direito à liberdade (...) para, em seguida, elencar os casos em que esse direito pode ser limitado, sendo que ali não consta a prestação da medida de coacção aqui imposta, mas antes o cumprimento de pena de prisão, a detenção em flagrante delito, ou a aplicação da medida de coacção de prisão preventiva ou outra detentiva.
Igualmente se chama à colação no despacho recorrido o disposto no artigo 44.º do texto fundamental o qual, sob epígrafe Direito de deslocação e de emigração estabelece que a todos os cidadãos é garantido o direito de se deslocarem e fixarem livremente em qualquer parte do território nacional — n° 1— e a todos é garantido o direito de emigrar ou de sair do território nacional e o direito de regressar.
Ora, como se viu, em nenhum caso fica beliscado qualquer um destes direitos pela mera prestação de termo de identidade e residência o qual, aliás, é obrigatório com a constituição de arguido, como decorre do disposto no artigo 58.° do Código de Processo Penal.
Veja-se que, precisamente por não traduzir afectação de um direito fundamental, o termo de identidade e residência é a única medida de coacção que pode ser aplicada por autoridade judiciária ou o órgão de polícia criminal sem intervenção judicial.
Como refere Paulo Dá Mesquita O processo penal português organiza-se em três momentos, o inquérito, presidido pelo Ministério Público, a fase facultativa (requerida pelo arguido ou pelo assistente) de instrução dirigida pelo juiz de instrução e (existindo acusação ou pronúncia) o julgamento presidido por um juiz
Dúvidas não existem de que, tratando-se de acto praticado em fase de inquérito, cabia ao Ministério Público, que o dirige — vd. artigos 53.°, n.° 2, alínea b) e 263.°, n.° 1, ambos do Código de Processo Penal -, pronunciar-se sobre as invocadas invalidades/nulidades.
Embora que balizado pelo princípio da legalidade, a que igualmente estão circunscritos os juízes e os órgãos de polícia criminal, o Ministério Público goza de autonomia que lhe é conferida pelo disposto no artigo 219.°, n.° 2 da Constituição da República Portuguesa.
Daqui resulta que, em sede de inquérito, salvo tratando-se de actos em que haja reserva de juiz — e sê-lo-ão os previstos no artigo 268.° e seguintes do Código de Processo Penal -, a competência para conhecer de nulidades ou invalidades é da competência de quem dirige essa fase processual.
Naturalmente que sempre sem prejuízo de poderem vir a ser apreciadas em diferente fase processual por um juiz, em sede de instrução ou de julgamento. Esse, aliás, parece ter sido também o entendimento do Ilustre Mandatário do então arguido MAG..., assim o deixando consignado.
Há, no entanto, outra questão que cumpre apreciar.
E quando, como foi o caso de MAG..., o Ministério Público não decidir? Ficará justificada a intervenção do Senhor Juiz de Instrução Criminal?
A resposta não pode deixar de ser negativa.
Embora reiterando aqui a obrigatoriedade de decisão, o Juiz de Instrução Criminal não pode ser encarado como instância de reserva em caso de omissão de pronúncia do Ministério Público, e muito menos de recurso. Aliás, o Senhor Juiz também não o afirma, antes entendendo que a sua competência decisória decorre da violação de direitos fundamentais, de liberdade e de deslocação, o que, como se viu, não foi o caso.
A lei aponta um caminho: a magistratura do Ministério Público, embora que responsável, é hierarquizada, como decorre do disposto no artigo 219.º, n.° 4 da Constituição da República Portuguesa pelo que os interessados podiam ter reclamado hierarquicamente ou, não o pretendendo, suscitarem as questões que invocaram na altura em que foram constituídos arguidos, mas em fase de instrução ou de julgamento.
O Senhor Juiz de Instrução Criminal proferiu, nestes termos, decisão sobre matéria que lhe estava subtraída, violando o disposto nos artigos 219.º, n.° 1 da Constituição da República Portuguesa, 17º, 53º, nº 2, al. b), e 269 n° 1 al. f) do Código de Processo Penal.
Daqui decorre que o acto, não sendo inexistente — um acto proferido com violação de regras de competência não é, por isso, inexistente — é nulo, nos termos em que o dispõe o artigo 11.º, alínea e) do Código de Processo Penal, nulidade essa que é insanável.
Atenta a conclusão a que chegamos, fica prejudicado o conhecimento das restantes questões.
4. DECISÃO
Pelo exposto, acordam os juízes que integram este tribunal em julgar provido o recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, declarar nulo o despacho recorrido.
Sem custas.
Lisboa, 27 de Junho de 2019
(Processado e revisto pela relatora que assina e rubrica as restantes folhas - artigo 94º do Código de Processo Penal).
(Anabela Cabral Ferreira — Relatora)
(Cristina Santana — Adjunta)