Procuradoria-Geral Distrital de Lisboa
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    Jurisprudência da Relação Criminal
Assunto    Área   Frase
Processo   Sec.                     Ver todos
 - ACRL de 08-10-2019   Audição via skipe. Silêncio. Declarações do arguido. Co-arguido. Usura.
1 - Em casos urgentes, (e face à evidente desnecessidade de aplicação obrigatória do nº 6 do artº 318º do CPP com intervenção de (…) funcionário judicial do tribunal ou juízo onde o depoimento é prestado (…)”, dado ser processo de arguidos presos, com prazos de produção de prova e haver grave dificuldade de contacto com o ofendido, que a sua tomada de declarações pudesse sê-lo em domicílio ou equivalente, por critério discricionário do presidente do tribunal e sem recurso a carta rogatória, com os consabidos inconvenientes de demora e tradução de actos que isso implicaria.
2 - A jurisprudência dos tribunais superiores, nomeadamente do S.T.J., tem entendido que não há qualquer impedimento do arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um arguido contra os seus co-arguidos, interpretação que o Tribunal Constitucional já considerou não ser inconstitucional.
3 - Porém, a valoração probatória dessas declarações tem uma limitação, a de não poderem valer como meio de prova as declarações de um arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações subtraídas ao contraditório.
4 - Na origem do artigo 345.º, n.º4, aditado pela Lei n.º 48/2007, de 29 de Agosto – “Não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.ºs 1 e 2” – esteve a jurisprudência do Tribunal Constitucional, expressa no Acórdão n.º 524/97, de 14.07.1997.
5 - Para as declarações do arguido poderem valer contra o co-arguido, este tem de ter a possibilidade efectiva de o poder contraditar ou contra-instar em audiência de julgamento. Tem de lhe ser assegurado o exercício de um contraditório pela prova.
6 - A situação não é diversa se estiver em causa a leitura em audiência de julgamento de declarações prestadas por um arguido em fase processual anterior, feita ao abrigo do citado artigo 357.º, n.º1, al. a): enquanto incriminadoras de co-arguido, a sua valoração dependerá da oportunidade de questionar sobre as mesmas o arguido cujo depoimento é lido/reproduzido, oportunidade que não se verifica quando o arguido, que prestou em fase processual anterior as declarações que foram lidas/reproduzidas em audiência de julgamento, exerce nesta o direito ao silêncio.
7 - Pode proceder-se em audiência de julgamento à reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo, mesmo que este se remeta ao silêncio, desde que essas declarações tenham sido feitas perante autoridade judiciária, com assistência de defensor, e aquele tenha sido informado, quando as prestou, de que não exercendo o direito ao silêncio, as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova.
Proc. 920/17.3S6LSB.L1 5ª Secção
Desembargadores:  Agostinho Torres - João Carrola - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
_______
Recurso penal [5a Secção penal]
Relator: Agostinho Torres
Proc.° NUIPC 920/17.3 S6LSB.L1
Tribunal recorrido: Lisboa- Central Criminal de Lisboa- Juiz 13
Recorrente (s):Arguidos GGG..., YYY..., BBB..., SSS... ,HHH...
Sumário: Associação criminosa, usura, sequestro;
Validade das declarações prestadas no primeiro interrogatório judicial não lidas ou reproduzidas na
audiência de julgamento quando neste o arguido não preste declarações.
Da validade das declarações prestadas por co-arguido, em 1° interrogatório, em prejuízo de outros co
arguidos, os quais não prestaram declarações em audiência.
Vícios resultantes do texto da decisão recorrida, nos termos do art°410° n°2 do CPP: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
Violação do princípio in dubio pro reo preceituado no art° 32° da C.R.P
Da não verificação dos elementos do tipo do crime de usura.
Da medida da pena: proporcionalidade;
ACORDAM EM CONFERÊNCIA OS JUÍZES NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE LISBOA — 5ª SECÇÃO (PENAL)
I-RELATÓRIO
1.1- Nos presentes autos vieram 5 dos 6 arguidos recorrer do acórdão final publicado a 21.12.2018 e a arguida YYY... manter interesse na apreciação do recurso intercalar que interpusera da decisão em audiência de 19711/2018 que ordenara a inquirição da testemunha LLL... por Skype.
Os restantes recursos foram interpostos do acórdão final pelos arguidos
GGG.... YYY... e BBB… em conjunto e cada um por si os arguidos SSS… e HHH….
Os arguidos recorrentes foram condenados :
-Pela prática, como co-autores, do crime de associação criminosa p. e p. no artigo 299º n 1, 2, 3 e 5 do Código Penal, em 4 anos de prisão para os arguidos GGG... e YYY... e 2 anos de prisão para os arguidos BBB..., SSS... , HHH... e AAA...;
-Pela prática, como co-autores do crime de sequestro p. e p. no artigo 158 n° 1 do Código Penal, em 2 anos de prisão, para os arguidos GGG... e YYY... e 18 meses de prisão para os arguidos BBB..., SSS... ..., HHH... e 2 anos e 3 meses para a arguida AAA...;
- Pela prática, como co-autores do crime de sequestro p. e p. no artigo 158' n° 1 do Código Penal, em 2 anos de prisão, para os arguidos GGG... e YYY... e 18 meses de prisão para os arguidos BBB..., SSS... ..., HHH... e 2 anos e 3 meses para a arguida AAA...;
- Em cúmulo jurídico — artigo 78° do Código Penal - na pena de: 6 anos de prisão os arguidos GGG... e YYY…;
- 3 anos de prisão os arguidos BBB..., SSS... ..., HHH... e AAA...;
Foi ainda decidido suspender a execução de tal pena à arguida AAA... por igual período, ficando sujeita a regime de prova — artigos 50º, 51º e 54° n° 1 do Código Penal;
(…)”
1.2- No decurso da audiência de 19.11.2018 foi determinada a inquirição do ofendido LLL... por vídeo conferência, tendo-se a tal oposto a defesa da arguida YYY..., alegando terem sido preteridas as normas internacionais do acordo de auxílio judiciário em vigor entre Portugal e a República Popular da China.
1.3 — Foram considerados provados os factos a seguir transcritos e com a seguinte fundamentação:
I- Relatório:
O Digno Magistrado do Ministério Público acusou, em processo comum, com intervenção do Tribunal Colectivo:
1. GGG…. filho de G… e de C…, natural da China, onde nasceu em …, casado, cozinheiro, residente na R…, Lisboa;
2. YYY..., filha de B… e de W…, natural da China, onde nasceu em …, casada, empregada de mesa, residente na Rua … Lisboa;
4. BBB.... filho de B… e de L…, natural da China, onde nasceu em …, casado, cozinheiro, residente na R…;
5. SSS... , filho de G… e de B…, natural
da China, onde nasceu em …, casado, trabalhador indiferenciado, residente na R…, Lisboa;
6. HHH…, filho de R…. e de G…, natural da China, onde nasceu em …, divorciado, guia turístico, residente na R… Moscavide;
7. AAA…, filha de … e de …., natural da China, onde nasceu em …, casada, empregada comercial, residente na R… Lisboa;
8. ( • • • )

9.
10. Determinou-se a elaboração de relatório social.
11. Realizou-se a audiência de julgamento, com observância do legal formalismo.
12. Foi comunicada à defesa alteração substancial de factos, não aceite, bem como
13. subsequente alteração da qualificação jurídica.
(• • .)
II— Factos Provados:
1. Os arguidos GGG... e YYY... são casados entre si e residem em Portugal pelo menos desde o ano de 2006, não sendo conhecida a GGG… actividade profissional estável e regular.
2. Em período de tempo não apurado, mas durante o ano de 2017, os arguidos GGG... e YYY... concederam empréstimos monetários, a uma taxa de juro de 5/prct. ao dia, a frequentadores do Casino de Lisboa, que ali se deslocavam para jogar os jogos lá disponibilizados.
3. Os arguidos GGG... e YYY... criaram uma estrutura organizada de bens e pessoas de modo a garantir a liquidez necessária à concessão dos empréstimos e o seu posterior reembolso, acrescido dos juros estipulados, nos termos por eles definidos, se necessário com recurso à violência contra pessoas.
4. Os arguidos BBB..., SSS... ..., AAA... e HHH…, movidos também por um escopo lucrativo, aderiram ao plano delineado pelos arguidos GGG... e YYY..., assumindo funções subalternas no âmbito da estrutura por estes montada e que, assim, passaram a integrar.
5. Os arguidos GGG... e YYY... assumiam posições de chefia sobre os arguidos BBB..., SSS... ..., AAA... e HHH…, que actuavam sob as suas ordens, instruções e comandos.
À arguida YYY... competia efectuar a gestão da actividade financeira da estrutura, ocupando-se da negociação, concessão e cobrança dos empréstimos e respectivos jurosaos jogadores do Casino de Lisboa que necessitassem de liquidez imediata.
7. Por seu turno, o arguido GGG... acompanhava aquela gestão e coordenava os procedimentos de cobrança de tais empréstimos e juros, sempre que os mesmos não eram reembolsados nos termos previamente acordados, por meio de actuação violenta e intimidatória sobre os devedores.
8. Em execução do plano delineado e no exercício das funções que lhes competiam no âmbito da estrutura montada, os arguidos GGG... e YYY... deslocavam-se ao Casino de Lisboa, permanecendo no seu interior durante o respectivo período de funcionamento, acompanhados pelos demais arguidos e por outros indivíduos, com o propósito exclusivo e alcançado de conceder empréstimos a jogadores que, por motivo das perdas que iam sofrendo, deixavam de ter liquidez para continuar a jogar.
9. Tais empréstimos eram concedidos aos jogadores que a eles recorriam, por meio da disponibilização de fichas do Casino de Lisboa, que os arguidos GGG... e YYY... previamente adquiriam, por si e por intermédio dos demais arguidos e mantinham na sua posse, com essa finalidade.
10. Na concessão dos empréstimos, os arguidos GGG... e YYY... exigiam o pagamento antecipado dos juros correspondentes ao primeiro dia de empréstimo, que cobravam de imediato, por meio da retenção, no valor emprestado, da quantia correspondente a esse juro, calculado à taxa de 5/prct..
12. Por seu turno, aos arguidos BBB.... SSS... ..., AAA... e HHH.... competia exercer funções de vigilância e acompanhamento dos devedores dos empréstimos concedidos por GGG... e YYY..., de modo a certificarem-se que o seu pagamento voluntário era efectuado nos termos acordados ou, se necessário, a efectuarem a sua cobrança forçada, com recurso à violência. Para tanto, os arguidos BBB..., SSS... .... AAA... e HHH... vigiavam os jogadores no interior do casino, inteirando-se dos seus ganhos e das suas perdas e, quando os mesmos acabavam de jogar, acompanhavam-nos às respectivas residências, ali permanecendo até que aqueles efectuassem o reembolso dos empréstimos concedidos, por meio de transferências bancárias, para uma conta bancária indicada pela arguida YYY.... domiciliada na República Popular da China.
13. O arguido BBB... era responsável pelas cobranças, quando os devedores não liquidavam as suas dívidas voluntária e atempadamente.
14. No âmbito da estrutura assim montada e organizada, a partir do início do ano de 2017 e até à data em que foram detidos nos presentes autos, os arguidos GGG... e YYY... concederam diversos empréstimos, naqueles moldes, ao ofendido LLL... que, tendo tomado conhecimento da actividade a que se dedicavam, a eles recorreu sempre que necessitou de financiamento para o jogo de Bacará.
15. Entre Julho e Agosto de 2017, o ofendido LLL.... já familiarizado com o funcionamento da estrutura acima descrita, abordou várias vezes os arguidos YYY... e GGG..., ou os outros arguidos, agido sob as ordens deste, solicitando-lhes o empréstimo de quantias monetárias, em fichas do casino, para continuar a jogar Bacará.
16. Como condição para a concessão de tais empréstimos, era exigido ao ofendido que procedesse ao pagamento prévio, por meio da realização de uma transferência bancária.
18. Para tanto, os referidos indivíduos acompanhavam o ofendido à sua residência, sita na R…, em Lisboa, local onde este efectuava uma transferência bancária, para uma conta bancária domiciliada na República Popular da China, titulada pela arguida YYY.... Em execução dos acordos assim celebrado entre ambos, a arguida YYY… entregou ao ofendido fichas do casino, correspondente aos juros devidos à taxa de 5/prct. ao dia, pela totalidade dos empréstimos concedidos ao ofendido em cada dia.
19. Na posse das fichas que lhe foram disponibilizadas pela arguida YYY..., o ofendido LLL... retomava o jogo de Bacará, vindo a perder a totalidade das quantias que lhe foram emprestadas.
20. No dia 13 de Junho de 2017, por volta das 18h00, o ofendido LLL... deslocou-se ao Casino de Lisboa, acompanhado por ZZZ..., local onde permaneceu a jogar Bacará, até às 3h00 do dia 14 de Junho de 2017, tendo ganho a quantia monetária global de € 28.000,00 (vinte e oito mil euros).
21. Por volta das 03h00, na posse da quantia ganha, o ofendido LLL... deslocou-se para a sua residência, no veículo automóvel de marca Mercedes, modelo SLK 200, de cor cinzenta, com a matrícula ..., que lhe fora emprestado por AAR..., seu amigo e proprietário do referido veículo.
22. Naquelas circunstâncias de tempo e lugar, também se encontravam no Casino de Lisboa, os arguidos YYY...,GGG..., BBB..., SIIENG LI ... e HHH....
23. Ali chegados, logo que o ofendido LLL... entrou na garagem da residência e parqueou a sua viatura, cinco indivíduos, com os rostos parcialmente cobertos por lenços, aproximaram-se dele e, apontaram-lhe o que lhe pareceu ser uma pistola preta, ao mesmo tempo que lhe ordenaram, em voz alta, em mandarim, que ficasse quieto.
De seguida, esses indivíduos desferiram diversos socos pela cabeça e pelo corpo do ofendido LLL.... fazendo-o cair no chão.
25. Enquanto o ofendido LLL... se encontrava prostrado no chão, ataram-lhe os pulsos e os tornozelos com braçadeiras em plástico e com os atacadores das sapatilhas que calçava e que previamente retiraram, assim o tendo conseguido imobilizar.
26. Assim o mantendo imobilizado, os indivíduos retiraram do interior do veículo automóvel utilizado pelo ofendido LLL.... os seguintes bens, que lhe pertenciam:
a) A quantia monetária de E 28.000,00 (vinte e oito mil euros);
b) Uma mala de marca Gucci, de cor cinzenta, com o valor declarado de € 2.000,00 (dois mil euros);
c) O passaporte ofendido e oito cartões de crédito de instituições bancárias chinesas emitidos em seu nome.
27. Depois, retiraram do bolso das calças do ofendido a chave da sua residência do ofendido e, por meio da sua utilização, abriram a porta e entraram no seu interior, de onde retiraram e levaram consigo, os seguintes bens, pertencentes ao ofendido:
a) Um relógio, de marca Patek Philippe, modelo 5159G001, com o valor declarado
de 89.000,00 (oitenta e nove mil euros);
b) Diversas peças de vestuário, de várias marcas, com o valor declarado de € 15.000,00 (quinze mil euros);
c) Um computador, de marca Apple, modelo MacBook, de cor dourada, com o valor declarado de € 1.300,00 (mil e trezentos euros).
29. 28. Na posse de tais bens e valores, com o valor global declarado de € 135.300,00 (cento e trinta e cinco mil e trezentos euros), abandonaram o local, tendo deixado o ofendido amarrado no interior da garagem, nos termos acima descritos, de modo a evitar que o mesmo pudesse obter qualquer auxílio ou que pudesse alertar, de imediato, as autoridades policiais. Em consequência, o ofendido permaneceu imobilizado e amarrado daquela forma por cerca de 2 horas, período durante o qual foi raspando as braçadeiras que o amarravam pelos punhos contra uma parede, até as conseguir quebrar e, em seguida, libertou-se das amarras dos pés, retomando, assim, a sua liberdade de movimentos.
30. O ofendido continuou a frequentar o Casino de Lisboa após estes acontecimentos.
31. Na madrugada do dia 2 de Agosto de 2017, por volta das 03h00, o ofendido LLL... dirigiu-se aos arguidos YYY..., SSS... e HHH..., que permaneciam no Casino de Lisboa, como habitualmente, e comunicou-lhes que tinha perdido tudo, pelo que, posteriormente faria o reembolso da quantia de 100.000,00 (cem mil euros), correspondente ao valor total dos empréstimos concedidos, por meio de transferências para a conta bancária da arguida YYY....
32. A arguida YYY... não aceitou que o reembolso dos empréstimos fosse adiado e exigiu ao ofendido LLL... que efectuasse, de imediato, uma transferência bancária, naquele valor, para a sua conta domiciliada na China.
33. Para tanto, a arguida YYY... ordenou aos arguidos SSS... e HHH.... que conduzissem o ofendido LLL... à sua residência e que permanecessem junto dele até que o mesmo efectuasse a transferência da quantia € 100.000,00 (cem mil euros) para a sua conta bancária, o que estes acataram.
34. Em execução do que lhes fora determinado pela arguida YYY..., os arguidos SSS... ... e a HHH... impediram o ofendido LLL... de entrar no seu veículo automóvel e forçaram-no a entrar no veículo automóvel, de marca Nissan Terrano II, de cor verde, com a matrícula ..., pertencente a este último e, conduzindo-o, em seguida, até à sua residência.
35. Lá chegados os arguidos SSS... ... e HHH... ordenaram ao ofendido LLL... que efectuasse a transferência da quantia de € 100.000,00 (cem mil euros) para a conta bancária da arguida YYY..., domiciliada na China.
36. Não tendo tal quantia na sua disponibilidade e depois de ter tentado contactar, sem sucesso, um amigo que o poderia ajudar, o ofendido disse LLL... aos arguidos SSS... ... e HHH... que só conseguiria fazer a transferência bancária no dia 4 de Agosto de 2017, data em que teria a sua conta aprovisionada para o efeito.
37. Em face desta situação, através da aplicação de conversação online WeChat, o arguido SSS... ... informou a arguida YYY... da falta de meios do ofendido para efectuar o pagamento imediato da dívida, o que esta se recusou a aceitar, tendo-lhe ordenado que não saíssem da casa do ofendido até que este procedesse ao pagamento total da dívida.
38. Em cumprimento das instruções recebidas da arguida YYY..., o arguido SSS... ... advertiu o ofendido LLL..., que não sairia de sua casa enquanto não fizesse o pagamento, nem que isso demorasse horas, dias ou o tempo que fosse necessário, e que se não liquidasse a dívida teria de o matar, se não tinha dinheiro para pagar; teria de pagar com o seu próprio sangue'
40. Temendo pela sua vida e integridade física, o ofendido LLL... continuou a efectuar tentativas de contacto com amigos que o pudessem ajudar e, aproveitando o facto de ter o seu telemóvel na mão, alertando por esse meio a Polícia Judiciária pedindo ajuda pois que se encontrava raptado em casa, pelo grupo da YYY..., correndo sérios riscos de vida. A dada altura, os arguidos levaram o ofendido LLL... para o interior do seu quarto e trancaram-no no seu interior, proibindo-o de sair dali.
41. Por volta das 09h00, do dia 2 de Agosto de 2017, os arguidos SSS... ... e HHH... foram rendidos pelo arguido BBB..., que ali se deslocou a fim de os substituir na tarefa de vigiar e forçar o ofendido LLL... a efectuar o pagamento da dívida nos termos exigidos pela arguida YYY....
42. O ofendido veio a ser libertado do cativeiro em que se encontrava pela Polícia Judiciária que se deslocou à sua residência na sequência do pedido de socorro por ele enviado ao Inspector RRR....
43. À chegada dos inspectores da Polícia Judiciária à residência do arguido, a porta foi-lhes aberta pelo arguido BBB..., que foi detido de imediato.
44. Mais tarde, por volta das 12h30, os arguidos YYY... e GGG... fazendo-se transportar na viatura de marca BMW, de cor preta, de matrícula ... e os arguidos SSS... ... e AAA..., fazendo-se 'transportar num táxi, dirigiram-se à residência do ofendido, a fim de o forçarem a efectuar o pagamento da dívida, ocasião em que vieram também a ser detidos pela Polícia Judiciária.
45. Ao actuar do modo descrito, os arguidos GGG... e YYY... fundaram e dirigiram a associação estruturada nos termos acima descritos com o propósito alcançado de obterem avultadas vantagens patrimoniais que bem sabiam não lhes serem devidas, por meio da concessão de empréstimos a pessoas em especial situação de vulnerabilidade decorrente do seu vício de jogo a taxas de juro desproporcionadas, actividade que bem sabiam ser proibida por lei.
46. De modo a garantirem o funcionamento regular desta associação e a alcançarem os objectivos que que estiveram na base da sua criação, os GGG... e YYY... associaram um grupo de indivíduos a quem confiaram tarefas de vigilância dos devedores e cobrança das dívidas, sempre que necessário, com recurso à violência.
47. Todos esses indivíduos estavam cientes da actividade da associação, sendoconhecedores da sua missão, objectivos, modo de actuação, elementos que a integravam e funções individuais que a cada um deles estavam confiadas pelos líderes GGG... e YYY.... que, de resto, reconheciam como tal.
48. Os arguidos BBB..., SSS... .... AAA... e HHH... quiseram e vieram a integrar tal associação, tendo aceitado exercer as funções que lhes foram confiadas pelos arguidos GGG... e YYY... movidos também por um escopo lucrativo e cientes de que as actividades dessa associação, mormente no que concerne à concessão dos empréstimos, às taxas de juro praticados e aos procedimentos utilizados nas cobranças eram proibidas por lei.
49. Ao actuar do modo descrito, os arguidos quiseram e conseguiram explorar em seu beneficio as fragilidades dos frequentadores do Casino de Lisboa, viciados no jogo, e em especial do ofendido LLL..., por meio da concessão de empréstimos de quantias monetárias avultadas, a uma taxa de juro de 5/prct. ao dia, assim auferindo vantagens pecuniárias indevidas, bem sabendo que se estavam a aproveitar de uma situação de debilidade da vítima.
50. Ao actuarem do modo descrito, os arguidos quiseram e conseguiram forçar o ofendido LLL... a entrar num veículo automóvel contra sua vontade, que conduziram até sua casa, onde o obrigaram a permanecer, trancado e vigiado, com concomitante verbalização de o matarem, caso não procedesse ao pagamento das quantias monetárias em dívida.
51. Os arguidos sabiam que desta forma privavam o ofendido da sua liberdade e
autodeterminação, lhe causavam medo pela sua integridade física, constrangendo-o a realizar o pagamento em falta, resultado que pretendiam alcançar.
52. Os arguidos agiram sempre em execução de plano previamente traçado pelos arguidos GGG... e YYY..., ao qual os demais arguidos aderiram, actuando em comunhão de esforços e com divisão de tarefas nos termos supra descritos para mais facilmente alcançarem os seus intentos.
53. Os arguidos agiram, em todos os momentos, de modo livre, deliberado e consciente, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. YYY... tem o 9º ano de escolaridade. Trabalha algumas horas por semana como empregada de limpeza em casa particular e aufere € 300,00 mensais. Paga € 300,00 de renda de casa. Reside com o marido, o co-arguido GGG... e duas filhas.
54. GGG... tem o 8 ano de escolaridade. Declara vender antiguidades na intemet. Suporta despesas domésticas (empréstimo bancário, propinas do colégio, alimentação, electricidade, no valor de € 1700,00. Vive com a co-arguida YYY... e duas filhas.
55. SSS... ... tem o 6º ano de escolaridade. Vive com HHH... e o agregado familiar deste. Não exerce actividade laboral remunerada.
56. BBB... completou um curso profissional de contabilidade. Vive com a esposa e uma filha. Não exerce actividade remunerada. A cônjuge trabalha como balconista num estabelecimento comercial.
57. HHH... tem o 10' ano de escolaridade. Trabalha ocasionalmente desde Maio de 2017como guia turístico, actividade por que chega a auferir cerca de € 700,00 mensais. Vive com a companheira e a filha desta, de 19 anos. Paga € 300,00 de renda.
59. AAA... tem o 1° ano de escolaridade. Trabalhou até 2017 como empregada de loja. Vive com o marido e dois filhos. O agregado não possui actualmente rendimentos do trabalho, subsistindo, de acordo com declarações da arguida, das respectivas poupanças.
60. BBB..., SSS... ..., AAA... e HHH... não possuem antecedentes criminais.
61. YYY... foi condenado por decisão transitada a 9-02-2009, pela prática do crime de condução sem habilitação legal, p. e p. no artigo 3º do Decreto-Lei nº 2/98, de 3 de Janeiro, em pena de multa.
ZZZ... foi condenada por decisão transitada a 13-11-2014, pela prática do crime de falsificação p. e p. no artigo 256 nº 1 al- a) e d) e n° 3 do Código Penal, em pena de multa. (...)
1V— Fundamentação da decisão de facto:
GGG... e YYY... assumem relação marital entre si, que é do conhecimento dos restantes arguidos, conforme resulta das declarações prestadas em primeiro interrogatório.
A situação laboral do casal decorre da documentação e relatório constante do Apenso C, que conclui (fls. 331 e ss.), que não revela actividade profissional de GGG... após o ano de 2012.
Porém, YYY... declara rendimentos da categoria A e B em todos e cada um dos exercícios fiscais do intervalo temporal considerado (2012-2016).
O plano e os empréstimos concedidos ao ofendido:
Em primeiro interrogatório, os arguidos GGG... , YYY... negam toda a factualidade que lhes está imputada. AAA... nega qualquer conhecimento e envolvimentonos mesmos.
HHH..., BBB... e SSS... ... assumem a existência de empréstimos a jogadores, negando apenas a organização subjacente.
O arguido HHH... declarou (em primeiro interrogatório), que os arguidos ZZZ... e GGG...(que nomeia e refere como casal) se dedicavam, no casino de Lisboa, a emprestar dinheiro a juros altos. Refere que agiam acompanhados de outros, entre os quais nomeia SSS... ... e BBB....
Refere que também jogava e que tempos atrás, também ele pediu dinheiro emprestado aos arguidos — pedi mil e recebi setecentos e cinquenta — descreve as mesmas regras negociais mencionadas pelo ofendido — a taxa de juro, diária, era de imediato retida e descontada no valor entregue.
BBB... não reconhece qualquer sistematização na concessão de empréstimos, reconhecendo apenas que os factos ocorridos com LLL... se relacionam com dinheiro que este teria pedido emprestado —para jogar no Casino Lisboa— a SSS... .... SSS... ... assume que todos os arguidos eram frequentadores habituais do Casino Lisboa e emprestavam dinheiro a jogadores, sem remuneração, o que caracteriza como hábito e bom-tom entre membros da comunidade chinesa, entre amigos e conhecidos.
O ofendido, por seu turno, oferece uma descrição detalhada e circunstanciada da actividade dos arguidos, conhecidos por concederem empréstimos a outros jogadores no Casino Lisboa, de forma sistemática e organizada.
Recorreu aos seus serviços por saber já que se dedicavam a tal actividade. As quantias — pagas em fichas de jogo — eram cedidas pelo prazo de 1 dia, com a remuneração de 5/prct. pelo mesmo período de tempo, retido à cabeça.
Ou seja, o valor recebido pelos jogadores vinha já deduzido do montante cedido a título de empréstimo.
O ofendido identifica YYY... como a pessoa a quem se dirigia para pedir quantias em dinheiro e que os autorizava, ou não. Já GGG… acompanhava-o a casa - Com SSS…, BBB... e HHH… — garantindo que a transferência — online e entre Bancos Chineses — era concretizada tempestivavente.
De acordo com o ofendido, GGG… dirigia e coordenava a vigilância, acompanhamento e constrangimento do devedor para realizar o pagamento de imediato — era acompanhado ao interior de sua casa, e a operação de netbanking observada passo a passo, até se mostrar concretizada
O recurso à violência — imobilização do ofendido e confinamento a casa deste, com vigilância e ameaçado de morte, ocorreu logo que manifestou não poder saldar uma dívida de imediato.
A forma de actuar dos arguidos, ilustrada nas imagens captadas por câmara de vigilância no interior do Casino de Lisboa cujo suporte informático se encontra juntos aos autos e foi visionado, é organizada, coordenada e eficaz.
Observa-se que os arguidos (HHH..., ZZZ..., SSS... S, GGG... se posicionam relativamente ao ofendido, na mesa de bacará, ora guardando distância relativa e assumindo postura casual, ora circundando a mesa de jogo, vigiando os lances realizados.
HHH... foi claro no depoimento prestado, no sentido que ZZZ... e BBB... lhe pediram para vigiar os movimentos de LLL... — se ganhava ou perdia, o que fazia — porque jogava muito no casino e lhe emprestavam dinheiro.
Sendo que HHH... e LLL... foram unânimes no sentido de que o casal emprestava sistematicamente dinheiro a jogadores, no casino Lisboa, é cristalino ser este o procedimento habitual.
Tal é notório na forma — descrita supra — como os arguidos se movimentam e posicionam em redor do jogador-alvo.
Os arguidos interagem entre si, em grupos ou pares, de composição variada. Quando acompanhada, é notório que ZZZ... assume posição central, no posicionamento e interlocução, dos arguidos entre si e perante terceiros.
Concretamente, é a ZZZ... que o ofendido LLL... se dirige, interpela e troca palavras, na presença dos demais, sendo visível que a arguida consulta o telemóvel no decurso da conversa.
A identidade de grupo dos co-arguidos é até estética e visível... todos usam pulseiras de marfim, idênticas, no pulso, o que se pode observar nas imagens colhidas.
HHH... confirma que a pulseira apreendida em sua casa lhe foi ofertada por GGG.... Não explica o significado, nem o simbolismo da sua ostentação por todos os co-arguidos. A continuidade da actividade de empréstimos e organização correlativa encontram-se bem ilustrados nas mensagens trocadas entre os arguidos, traduzidas no apenso D.
A fls. 5, 6, ZZZ... e SSS... ... reportam-se continuamente (mensagens datadas de Julho e Agosto de 2017) transferências de terceiros, citando vários nomes (AC, JL, JC).
São trocados números de conta e exibidas capturas de écran de instituições bancárias chinesas. Os valores objecto de transacção são relativamente elevados: € 30.000,00. € 10.000,00,...)
É igualmente notório que ZZZ... possui ascendente e liderança sobre SSS..., a quem determina acções (Mandas o teu filho para ir levantar).
BBB... e ZZZ... (fls. 7 e ss. do apenso D) falam expressamente em saldos devedores continuados/conta corrente e pagamento de juros. São ainda expressamente mencionados levantamentos de dinheiro, respectivo porte para o Casino e troca por fichas.
Mais uma vez, é claro que ZHG... e ZZZ... transmitem ordens aos restantes membros da organização: O ZHG... quer que venhas para o espaço de jogos; Tu aí, troquem cada um 20.000 por fichas...; XW que venha buscar-me de carro, vou para aí agora....
ZZZ... mantém a mesma sorte de diálogo com HHH..., determinando acções e pagamentos e pedindo esclarecimentos (fls. 9 e ss. do Apenso D).
ZZZ... dá igualmente ordens a SSS... e BBB..., relativamente a contagem de dinheiro (não contes nota a nota, conta maço a maço) e concessão ou não de empréstimos a terceiros (fls. 14 e ss. do apenso D)
Indicativo de que os arguidos se dedicavam de forma sistemática a esta actividade são também os objectos encontrados com ZZZ..., quando revistada, concretamente panfleto do Casino Lisboa, fichas de jogo do Casino Lisboa, códigos de barra dos casinos de Lisboa e Estoril, talões com o IBAN da arguida, que traziam também aposto o seu nome (auto a fls. 157, 158).
É de referir como indiciário o facto de os ofendidos possuírem meios incompatíveis com a actividade profissional que se lhes conhece.
Concretamente, YYY... é dona do veículo Mercedes de matrícula ... (registo a fls. 104 e reportagem fotográfica a fls. 710 e ss.), portadora de factura de restaurante no valor de € 1.589,00 e trazia consigo, na carteira, € 1.470,00 em notas de banco (auto de apreensão a fls. 158). A mesma arguida trazia consigo uma mala em pele, marca Chiara Ferragni, um Iphone, e um telemóvel marca Samsung S6.
Sendo certo que o Tribunal apenas pode valorar o depoimento de um ofendido, de dentre os usuários do casino e clientes da organização, tudo indica que o procedimento correspondia a um modo de actuar, organizado e generalizável:
- As condições e modo de concessão dos empréstimos são comuns ao ofendido e HHH..., ambos enquanto clientes da organização, sendo que o segundo passou a colaborador da mesma;
- as mensagens a que já se fez referência traduzem um procedimento contínuo, repetido, esquematizado e de procedimento vinculado, na concessão e termos dos empréstimos concedidos;
- A reacção à falta de pagamento de LLL… foi organizada e imediata: o ofendido foi conduzido a casa, manietado e sujeito a ameaças - acompanhado com render de vigilância —até intervenção policial;
No que concerne à vulnerabilidade do ofendido e em geral, destinatários da actividade organizada dos arguidos, cumpre reportar, em primeira linha, o caso concreto do ofendido LLL....
AR…, amigo do ofendido há cerca de dois anos, declara que este jogava bacará e frequentava o Casino de Lisboa todos os dias, desde a hora de abertura, até à hora de fecho. De acordo com a mesma testemunha, o ofendido despendia quantias muito elevadas: por muito abastado que seja, desbaratou pelo menos uma parte considerável da fortuna.
Não hesita mesmo em fazer o paralelo consigo, jogador compulsivo, interdito de frequentar casinos a pedido do próprio.
ZZZ... confirma que LLL... estava no Casino Lisboa sempre que o próprio lá se deslocava, jogava muito e gastava, por jogada, largas centenas de euros. O aproveitamento da especial vulnerabilidade dos sujeitos a quem os empréstimos se destinavam decorre ainda do modo de agir, situação e condições em que eram concedidos:
- os arguidos situavam-se no Casino Lisboa, junto às mesas de jogo e concediam empréstimos em fichas: os quantitativos eram cedidos em ambiente de jogo, a jogadores e para jogar;
- o curto prazo e juros elevados eram direccionados ao jogador que pretendia continuar a jogar de imediato, e aceitáveis para quem não podia deixar de jogar de imediato. Ninguém que não sujeito a uma forte compulsão de jogo sentiria como necessidade pedir e aceitar cedência de valores monetários em fichas de jogo, deduzidos de imediatos de 5/prct..
- Os valores emprestados eram elevados: LLL… assume que o último empréstimo o deixou devedor de pelo menos € 80.000,00 e HHH... declara que aferia € 800,00, mas assume ter pedido, de uma vez, € 1.000,00, dos quais recebeu apenas € 750,00;
A amostra padrão dos jogadores/clientes: (HHH... e LLL...) evidencia claramente a sua vinculação ao jogo: ambos negam qualquer vício, justificando a prática como entretenimento. LLL... diz que não tinha nada para fazer em Portugal (e portanto jogava) — justifica mesmo a necessidade do empréstimo com os limites à exportação de capitais impostos pela República da China.
Porém, LLL... apenas pede emprestado para jogar. No Casino. Naquele momento. Até à centena de milhar de euros. Em fichas de jogo. Por menos de um dia. Ainda quando sabe que não tem dinheiro para pagar.
LLL... acredita que os arguidos o manietaram, espancaram e roubaram na garagem do prédio onde reside, dias antes, na sua pessoa e no seu apartamento — os seus bens e o dinheiro que ganhara (cfr. infra, a fundamentação dos factos não provados). Ainda assim, volta a pedir empréstimo às mesmas pessoas, no dia imediato.
O ofendido ultrapassa, portanto, a fronteira entre a aceitação de condições extraordinárias de cedência de capital — para jogo — e o medo pela sua integridade física, patrimonial e sobrevivência — para continuar a jogar, sem parar.
De notar que o ofendido apercebe, envergonha-se e disfarça a fraqueza da sua compulsão: depois do assalto só jogava dia sim, dia não. O ofendido sabe que não conseguia parar. E tenta escondê-lo. AR… (que pediu a sua interdição de entrar em casinos) é peremptório: o ofendido estava no Casino diariamente, desde a abertura até ao fecho). Jogava muito e alto. Independentemente da sua condição financeira, desbaratou uma fortuna.
O Tribunal conclui assim, que os arguidos se organizavam para realizar operações financeiras no Casino Lisboa, vigilância e constrangimento, tendentes à cedência de empréstimos a jogadores, que compelidos pelo vício, aceitassem juros altos, retidos na fonte, para manter o hábito de jogo, conhecendo e aproveitando condições de vício e dependência desta actividade.
O ofendido refere ter solicitado dezenas de empréstimos aos arguidos, em quantias variáveis, na ordem das dezenas de milhar de euros.
O modo e rotina dos empréstimos foi igualmente descrito pelo ofendido nos exactos termos dados como provados e já mencionados supra.
O ofendido assume que na noite de 2 de Agosto, pediu e ficou em dívida de € 80.000,00 aos arguidos, não descartando a possibilidade de o total — empréstimos anteriores — somar cerca de € 100.000.
Do teor das mensagens trocadas entre os arguidos, já citadas (cfr. fls. 26 do apenso A), resulta que este consideravam em dívida e exigiam do ofendido o total de € 100.000,00.
A frequência e quantitativos emprestados estão documentados no apenso A, que verte perícia e tradução das comunicações entre o ofendido e YYY....
O assalto ao ofendido:
Os factos provados reflectem as declarações do ofendido, quando à respectiva dinâmica, modo das agressões, quantitativos monetários e objectos subtraídos e valor dos mesmos. Corroboram as agressões sofridas pelo ofendido as fotos a fls. 162 e ss., tiradas pela Polícia
Judiciária a 14-07-2017, onde são visíveis hematomas no rosto de LLL..., um dente partido, sangue seco em ferimentos na testa e nos lábios, sangue na blusa que o ofendido envergava, vergões vermelhos nos pulsos — causados pela aposição de braçadeiras de plásticos, usadas para o manietar, uma nota de € 50,00 ensanguentada, que LLL... trazia consigo, e um porta-chaves mercedes partido.
ZZZ... declara que acompanhou o ofendido numa noite no Verão de 2017, não sabendo precisar a data. Confirma no entanto, que foi contactado por este e o acompanhou à esquadra de PSP nessa mesma noite, na sequência do ataque de que LLL... foi alvo. O auto de notícia a fls. 4 data de 14-07-2017, e faz constar como hora da ocorrência as 3h15m. ZZZ... consta como testemunha no mesmo auto.
O Tribunal levou em linha de conta o auto de apreensão a fls. 7, de onde constam as braçadeiras(fotografadas a fls. 68, 69) e cordões de sapatilhas (fotografados a fls. 71) usados para imobilizar o ofendido.
O cativeiro do ofendido e detenção dos arguidos:
A dinâmica e sucessão dos factos provados correspondem à descrição feita pelo ofendido em audiência de discussão e julgamento.
O ofendido foi expresso de que lhe foi sugerido se se fizesse transportar até sua casa no veículo conduzido por HHH..., a despeito de ter — como sempre — veículo próprio no local — e apercebendo-se, pela forma como foi rodeado e acompanhado pelos arguidos, que não tinha alternativa senão aceitar.
Refere que aquando da chegada da polícia os arguidos o tinham deixado no quarto, com a porta destrancada — que o próprio fechou — e na posse no seu telemóvel.
Tal não invalida nem contraria as declarações de HHH..., em como encerrou (trancou) o ofendido no seu quarto até ao momento — pelas 9h00 — em que foi rendido por BBB....
HHH... confirma que levou o arguido no seu carro até à casa deste, acompanhados
por SSS... ..., que se sentou ao lado do ofendido, no banco de trás.
HHH... começou por enquadrar o seu envolvimento numa actividade de transporte de jogadores, que usaria para complementar o seu rendimento.
Não explica porque é que o ofendido não fez uso da sua própria viatura. Por outro lado, acaba por admitir que vigiava LLL... no casino, a pedido dos co-arguidos GGG... e YYY..., o que não é compaginável com os citados transportes que faria regularmente no Casino.
Expressa que LLL... lhe pediu para o levar a casa. Refere depois que YYY... lhe determinou que, juntamente com SSS..., acompanhassem o ofendido a casa deste, porque ele tinha ficado a dever € 100.00,00 naquela noite e deviam garantir que a transferência era realizada.
O arguido chega mesmo a afirmar, que devia só levar LLL... a casa, mas que YYY... lhe ordenou que subisse a casa do ofendido, de molde a pressioná-lo a fazer o pagamento.
Ouviu a SSS... a expressão que lhe é imputada na pronúncia e confirma que era esse o propósito de YYY... e GGG... ao deter LLL....
Sem nunca se assumir como parte integrante da organização dos co-arguidos — malgrado as contradições em que foi incorrendo — refere que permaneceu em casa de LLL... toda a noite, até às 8h00, quando foi rendido por BBB....
RRR..., agente da Polícia Judiciária, confirma a intervenção desta força policial no dia em referência.
Declara que lhe chegou notícia de que LLL… estaria cativo dos arguidos c cm risco de vida, por intermédio de terceira pessoa — por sua vez contactado pelo ofendido - que não identifica.
No mais, confirma que BBB... abriu a porta da residência; o ofendido foi encontrado no seu quarto, sentado na cama, com marcas de ter sido sujeito a ataduras nos pulsos e tornozelos.
Relata igualmente, como consta dos factos provados, que aguardaram em casa do ofendido, que os restantes arguidos chegassem ao prédio, tocassem à campainha do apartamento onde se encontravam e chegassem a casa de LLL....
O Tribunal atentou à reportagem fotográfica a fls. 120 e ss., onde consta a configuração
da casa do ofendido, designadamente a posição relativa do quarto onde este se encontrava aquando da entrada das forças policiais.
Foram igualmente visionadas as imagens documentadas fls. 258 e ss., de onde constam os movimentos dos arguidos, a entrar e a sair do prédio de residência do ofendido, entre as 2h50m e as 13h00 do dia 2-08-2017, qual seja, a data cm que LLL... foi encontrado cm sua casa, retido pelos arguidos. Tais imagens corroboram o depoimento da testemunha acima citada.
A participação do arguido HHH... decorre do depoimento do ofendido, que o situa entre aqueles que o transportaram até ao seu apartamento e aí o retiveram, logo após ter deixado o casino. As declarações do ofendido são corroboradas por vestígios lofoscópicos encontrados no local, tal como reporta o relatório de exame pericial de fls. 404 a 405, 409 a 424 e 730 a 752 e fls. 773 a 776.
III - Factos não provados:
Os depoimentos prestados e a prova documental oferecida não alcançaram provar a factualidade em análise.
Em particular, não se prova cada uma das operações concretas de empréstimo referidas na acusação, no que às datas, horas e quantitativos mencionados respeita.
Assim é, porque o depoimento do ofendido em audiência não alcançou tal precisão e as comunicações captadas e traduzidas no apenso A, muito embora evidenciem montantes, horas e números de transferência, não se encontram datadas em caracteres ocidentais (são visíveis apenas caracteres chineses no écran).
O ofendido não identificou qualquer dos indivíduos que o agrediram e subtraíram os seus bens, por terem o rosto coberto por máscaras.
Sustenta apenas que falavam mandarim, um deles com sotaque regional que não logra fazer corresponder, com certeza, a nenhum dos arguidos; sustenta que apenas os arguidos sabiam onde vivia e que não lhe foi perguntado qual era o seu apartamento, mas apenas subtraída a respectiva chave, ao que os assaltantes se dirigiram, sem mais, para sua casa.
Muito embora a convicção do ofendido de que os arguidos foram autores do espancamento e assalto de que foi alvo, o seu depoimento — que nenhum outro meio de prova logra suportar — não permite imputar aos arguidos a autoria de tais factos.
O ofendido recorda que, na posse do seu telemóvel — cedido pelos arguidos para que realizasse online as transferências bancárias exigidas - contactou com amigos e pediu ajuda. Não recorda se contactou directamente com a polícia, embora afirmasse que dispunha de contacto telefónico para o efeito.
Refere ainda que enquanto esteve cativo em sua casa no quarto — após a verbalizNão de SSS..., testemunhada por HHH... - lhe foi repetido, apenas, que caso não pagasse iria ter problemas de segurança.
(- • • )
1.3- A arguida YYY... interpusera recurso intercalar da decisão em audiência de 19/11/2018 que ordenara a inquirição da testemunha LLL... por Skype, dizendo em conclusões da sua motivação:
1. A testemunha LLL..., cidadão chines e residente neste pais, foi inquirida via Skype;
2. Contudo, nos termos das disposições conjugadas nos artigos 318°, n°8 e no acordo de Auxilio Judiciário em Matéria Penal entre a República Portuguesa e a República Popular da China assinado em Lisboa em 9 de dezembro de 2005 (resolução da Assembleia da República n°23/2009), que dispõe no artigo 1°, n°2, al. b) sobre A solicitação de interrogatórios e inquirições;, era mister a existência de um pedido prévio às autoridades chinesas, através da Procuradoria-Geral da República Portuguesa;
3. Este pedido de auxilio está sujeito a determinados requisitos de deferimento pela autoridade requerida, sendo que, no caso concreto, foram completamente violados;
4. Anote-se que, numa inquirição sem um controlo da autoridade requerida os arguidos não têm um mínimo de segurança de controlo da transparência do referido depoimento. Com efeito, os arguidos desconhecem se essa testemunha estava a ler as respostas às perguntas formuladas, se tinha algum ponto a fornecer-lhe as respostas e mesmo se a testemunha estava ou não de alguma forma condicionada;
5. Por outro lado, sempre se dirá que um depoimento sem o controlo da autoridade do pais onde o depoimento é prestado permitiria que essa testemunha pudesse, no limite, violar segredos de estado.
Violaram-se as disposições acima citadas.
Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento e, em consequência, declarar-se nulo o aludido depoimento.
1.4- Da referida decisão final recorreram, rematando em conclusões de motivação, os arguidos:
A) GGG..., YYY... e BBB...
1. A arguida YYY... mantém interesse no seu recurso intercalar, assim dando cumprimento ao estatuído no artigo 412°, n°5 do CPP;
2. Resulta da fundamentação do acórdão que a convicção do Tribunal estribou-se, além do mais, nas declarações prestadas pelo arguido HHH..., em sede de 1° interrogatório j udicial;
3. O arguido HHH..., em sede de audiência e julgamento, remeteu-se ao silêncio conforme decorre da respectiva acta de 20.09.18.
4. O arguido no exerceu do seu direito ao silêncio impediu que os co-argui-dos, incriminados pelas suas declarações prestadas em sede de 1° interrogatório, pudessem contraditá-las. Foram, pois, impedidos de exercerem o contraditório, direito constitucionalmente garantido, conforme resulta do artigo 32° da CRP e consagrado também na lei adjectiva, artigo 345°, n°4 do CPP;
5. Resulta que o Tribunal não podia ter valorado as declarações deste arguido;
6. Uma interpretação da norma extraída com referência aos artigos 133°, 343° e 345° do CPP, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um coarguido, em prejuízo de outro coarguido quando, no exercício de um direito, esse arguido (que as prestou) se remeta ao silêncio enfermam de inconstitucionalidade material por viola¬rem o artigo 32°, n°1 e 5 da CRP;
7. Os factos dados como provados nos pontos 2 a 14 assumem natureza genérica e conclusiva. Estes factos dados como provados são insusceptíveis de serem contraditados;
8. Calcorreando a matéria de facto dada como provada encontramos apenas uma situação concretizada, ou seja, o acórdão deu como provado, de forma concretizada no espaço, tempo e modo, uma situação que ocorreu no dia 2.8.2017, cujos factos foram dados como provados nos pontos 31 a 44;
9. Ora, como parece claro, este conjunto de factos, que se reportam a uma determinada e concreta situação de empréstimo, de modo algum cumpre os requisitos do crime de associação criminosa;
10. O acórdão não deu como provado que a divida do LLL... para com os recorrentes incluísse juros de 5/prct.;
11. Resulta que se deve presumir que a divida respeitava apenas ao capital;
12. Neste sentido, a divida de capital não preenche os elementos do tipo do crime de usura;
13. Neste momento, os grandes prejudicados são os recorrentes. Na verdade, devendo o LLL... aos recorrentes a referida quantia — com ou sem juros, pois para o caso é indiferente — impunha-se, pelo menos, a aplicação do disposto no artigo 226°, n°5, al. a) e b) do CPP a atenuação especial da pena;
13. O recorrente impugna os factos dados como provados no ponto 49 do acórdão (que de seguida transcreve) e todos os que com ele estiverem em oposição:
Ao actuar do modo descrito, os arguidos quiseram e conseguiram explorar em seu beneficio as fragilidades dos frequentadores do casino de Lisboa, viciados no jogo, e em especial do ofendido LLL..., por meio da concessão de empréstimos de quantias monetárias avultadas, a uma taxa de juro de 5/prct. ao dia, assim auferindo vantagens pecuniárias indevidas, bem sabendo que se estavam a aproveitar de uma situação de debilidade da vítima.
14. Com efeito, resulta da fundamentação da decisão de facto que apenas o LLL... foi ouvido sobre empréstimos contraídos, não existindo, nem sendo identificados, outros indivíduos que tenham contraído empréstimos aos recorrentes;
15. de resto a expressão utilizada ... tudo indica... é bem a imagem da incerteza e dúvida do acórdão quanto a este ponto, devendo, em consequência, aplicar o principio in dúbio pro reo;
16. Acresce que o LLL... não era viciado no jogo como resulta do seu depoimento: 20181119112920 19549033 2871050.wma 1:22:40 a 1:25:50;
17. Sempre se dirá que o acórdão não pode dar como provado que outros jogadores do casino eram viciados quando nenhum deles esclareceu esta característica/vício que dificilmente poderia ter sido esclarecida de outro modo;
18. Por outro lado, o poder económico do LLL... era elevadíssimo como resulta da fundamentação do acórdão e se alcança do seu depoimento: 20181119112420 19549033 2871050.wma 48:20 a 52:04;
19. Em consequência devia de ter sido dado como provado que: O LLL... é detentor de elevada capacidade económica e tinha meios alternativos para contrair o empréstimo designadamente transferindo quantias monetárias de que dispunha no banco na China.
20. É que a prova deste facto era muito importante para a defesa dos re¬correntes, e também para ponderar do enquadramento jurídico dos factos;
21. O recorte normativo explorando uma situação de necessidade não se mostra preenchido uma vez que o mutuário não tinha nenhuma necessidade de pedir dinheiro emprestado aos recorrentes;
22. Com efeito, o mutuário para além de possuir uma enorme fortuna dispunha de elevadíssimas quantias monetárias no banco;
23. É este o entendimento da doutrina;
24. Ainda que por mero raciocínio académico se considere como boa toda a matéria de facto dada como provada, entendemos que os elementos do tipo do crime de usura não se mostram preenchidos;
25. A questão que importa dirimir é se o vício do jogo integra o recorte normativo ... explorando situação de necessidade...
26. Fazendo nossas as palavras de Américo Taipa de Carvalho9, O que já releva, nomeadamente em caso de empréstimo em dinheiro, é o destino, ou seja, a necessidade que a prestação visa satisfazer. Por exemplo a necessidade de dinheiro para ir ao casino ou a uma sala de bingo não configura a situação de necessidade pressuposta pelo crime de usura, não podendo o credor usurário ser considerado como autor do crime de usura.
Também é este o sentido propugnado por Castela Rio e Miguel Garcia apesar de o exemplo ser em tudo semelhante, A necessidade de dinheiro para ir ao futebol não configura uma situação de necessidade relevante.;
27. Uma interpretação da norma constante do artigo 226° segundo a qual se protejam interesses lúdicos ou vícios de jogo, como enquadrando a exploração de situação de necessidade, viola o disposto nos artigos 18° e 32° da CRP;
28. Sempre se dirá que tendo sido apenas dado como provado uma situação de empréstimo não se mostra preenchido a agravante do crime de usura;
Não resulta que os recorrentes tivessem como modo de vida, por um período considerável, a concessão de empréstimos a juros desproporcionados;
30. Acresce que, em última análise, estão em causa empréstimos contraídos de livre vontade;
31. Por outro lado, o objectivo desses empréstimos tinham por objectivo a satisfação de um vício que não merece dignidade penal;
32. Refira-se, ainda, que, neste momento, são os recorrentes que estão seriamente prejudicados, pois, o LLL... ficou a dever mais de 80.000,00 euros;
33. A tudo isto, a primariedade e a inserção social dos recorrentes impunha, de resto, uma pena no limite mínimo e sempre suspensa na sua execução.
Violaram-se as disposições que foram sendo mencionadas ao longo da motivação de recurso.
Nestes termos e demais de direito deverá o presente recurso obter provimento e em consequência decidir-se em conformidade.
B) SSS... ...
a) A prova produzida não autoriza as conclusões vertidas no acórdão recorrido; ora recorrente
devia ser absolvido dos crimes de usura e associação criminosa.
b) O texto do acórdão recorrido resulta a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a que alude a alínea a) do n.° 2 do artigo 410.° C.P.P., manifestando assim uma contradição insanável entre os factos e a decisão a que alude o artigo 410.°, n.° 2, alínea b) do C.P.P.;
c) O reconente não deverá ser condenado por todos factos que foi acusado e condenado;
d) Existem contradições notórias quanto á prova ente aquilo que é dado com provado em Julgamento de Primeira. Instância;
e) A decisão do tribunal a quo baseowk essencialmente em convicções subjetivas, sobre a matéria de facto provada e o depoimento das testemunhas e assistente, ao invés dos factos concretos;
No que parece claro, este conjunto de factos, que se reportam a uma determinada e concreta situação de empréstimo, muito menos configura um crime de usura e de modo algum cumpre os requisitos do crime de associação criminosa;
g) O tribunal a quo violou de forma ostensiva o princípio da verdade material, como sendo um ver:ladeio destrato norteador do Processo Penal Português;
h) Decrete a nulidade do douto Acórdão agora recorrido de 21-12-2019, nos termos do disposto no artigo 120.° n° 1 do C.P.P.;
i) Pelo exposto o tribunal a quo violou, ainda, o disposto no n.° 5 do artigo 32.° da C.R.P.;
j) Atendo ao explanado a ser condenado o recorrente, que seja a uma pena suspensa na sua execução;
1) Na aplicação da medida da pena o tribunal a quo violou os seguintes princípios: da Proporcionalidade e da Adequação artigo 18.° C.RP. e garantia do efetivo Direito de Defesa do reconente artigo 32.° n. 1 do C.R.P.;
m) Pois, a pena aplicada é excessiva, pelo que a pena deve ser reformulada e substancialmente reduzida — suspensa na sua execução; pois o tribunal a quo e não levou em conta, a personalidade do recorrente a sua situação socioeconómica e familiar, assim como o relatório social;
n) O que protagoniza os artigos 71.° e 72.° do Código Penal, no que diz respeito á ponderação de fatores concretos para aplicação da pena em concreto;
o) Os Artigos 72° e 73° do CP e 410°-2. b) do CPP, pelo que o mesmo deve ser revogado na parte em que condena o recorrente em prisão efectiva, que deve, assim, ser suspensa na sua execução.
p) A prevenção geral e especial não serão posta em causa pela aplicação ao arguido de uma pena suspensa na sua exciissão, e desta forma a ressocialização será certamente mais fácil e eficaz, preenchendo, assim o pressuposto norteadores das doutrinas da ressocializaçâo das medidas das penas;
q) Pretende ser a partir desta data o recorrente ser cidadão responsável que assumiu o erro e no futuro não voltar a errar,
r) Resulta da fundamentação do acórdão que a convicção do Tribunal estribou-se, além do mais, nas declarações prestadas pelo arguido HHH..., em sede de 12 interrogatório judicial;
s) O co-arguido HHH..., em sede de audiência e julgamento, remeteu-se ao silêncio conforme decorre da respectiva acta de 20.09.18. O arguido no exercício do seu direito ao silêncio impediu que os co-arguidos, incriminados pelas suas declarações prestadas em sede de rinterrogatório, pudessem contraditá-las. Foram, pois, impedidos de exercerem o contraditório, direito constitucionalmente garantido, conforme resulta do artigo 32º da CRP e consagrado também na Lei adjectiva, artigo 345º, nº4 do CPP;
t) Resulta que o Tribunal a quo não podia ter valorado as declarações deste arguido;
u) Uma interpretação da norma extraída com referência aos artigos 133º, 343º e 345º do CPP, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, no exercício de um direito, esse arguido (que as prestou) se remeta ao silêncio enfermam de inconstitucionalidade material por violarem o artigo 32º, nº1 e 5 da CRP;
Impõe a modificação da decisão do Tribunal a quo sobre a interpretação e entendimento dos artigos 40°, n° 1, 50°, 51° e 52°, do Código Penal a qual se impugna.
C) HHH...
Exactamente as mesmas conclusões do co-arguido SSS..., ipsis verbis
e, ainda:
C (...)As declarações do recorrente prestadas no primeiro interrogatório judicial
não podem ser valoradas como meio de prova em razão de não terem sido lidas ou reproduzidas na audiência de julgamento, artigo 3 5 7.°, n.° 1, alínea b), do CPP é inconstitucional quando interpretado no sentido de que as declarações prestadas em primeiro interrogatório judicial pelo arguido, após ter sido advertido do disposto no art.° 141.° 4 b) CPP, porque integradas no processo, consideram se examinadas em audiência e não têm de ser ali lidas para serem valoradas pelo tribunal na decisão final, por violação do artigo 32°, n° 5, da Constituição. (...)
1.4 - Em resposta disse o M°P°, em síntese, aos recursos da decisão final:
(...)o douto acórdão recorrido não merece qualquer censura porque fez correta aplicação do direito à matéria de facto provada, nem violou qualquer disposição legal, designadamente as indicadas pelos recorrentes, optou pela aplicação aos arguidos/recorrentes de penas que se mostram adequadas, atentas as circunstâncias que se verificam no caso
concreto, seguindo os critérios legais, pelo que deve ser mantido nos seus precisos termos.
1.4- Admitidos os recursos e remetidos a esta Relação, o M°P° emitiu parecer no sentido da improcedência.
1.5- Após exame preliminar e vistos legais foram remetidos os autos à Conferência, cumprindo agora decidir.
II- CONHECENDO
2.1-0 âmbito dos recursos encontra-se delimitado em função das questões sumariadas pelo recorrente nas conclusões extraídas da respectiva motivação, sem prejuízo do dever de conhecimento oficioso de certos vícios ou nulidades, designadamente dos vícios indicados no art. 410°, n.°2 do CPP sendo que elas visam permitir ou habilitar o tribunal ad quem a conhecer as razões de discordância da decisão recorrida.
2.2 - Estão em discussão para apreciação e, em síntese, as seguintes questões, enunciadas por ordem de prioridade:
A) Recurso interlocutório interposto pela arguido YYY... do despacho que em audiência autorizou a audição do ofendido LLL... por skype:
-Sua admissibilidade ou impossibilidade de execução senão por via da Convenção AJM P entre Portugal e a R.P. da China?
B) Recursos do acórdão final (ndicação dos itens em discussão por ordem de prioridade e de prejudicialidade)
• Da validade das declarações prestadas no primeiro interrogatório judicial não lidas ou reproduzidas na audiência de julgamento.
Da validade das declarações prestadas por co-arguido, em 1° interrogatório, em prejuízo de outros co-arguidos, os quais não prestaram declarações.
• Vícios resultantes do texto da decisão recorrida, nos termos do art°410° n°2 do CPP: insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
• Violação do princípio in dubio pro reo preceituado no art° 32° da
C.R.P
Da não verificação dos elementos do tipo do crime de usura.
Da medida da pena.
2.3 - A POSIÇÃO DESTE TRIBUNAL ad quem.
2.3.1- Recurso interlocutório interposto pela arguido YYY... do despacho que em audiência autorizou a audição do ofendido LLL... por skype.
Coloca-se a problemática da sua (in)admissibilidade ou (im)possibilidade de execução senão por via da Convenção AJMMP entre Portugal e a R.P. da China?
Em audiência de 19.11.2018 foi determinado que a testemunha LLL..., cidadão chinês fosse inquirida via Skype.
A defesa opôs-se alegando que, nos termos das disposições conjugadas nos artigos 318°, n°8 e no acordo de Auxilio Judiciário em Matéria Penal entre a República Por¬tuguesa e a República Popular da China assinado em Lisboa em 9 de dezembro de 2005 (resolução da Assembleia da República n°23/2009), que dispõe no artigo 1°, n°2, al. b) sobre A solicitação de interrogatórios e inquirições; , era mister a existência de um pedido prévio às autoridades chinesas, através da Procuradoria-Geral da República Portuguesa e que este pedido de auxilio está sujeito a determinados requisitos de deferimento pela autoridade requerida, sendo que, no caso concreto, foram completamente violados.
Mais alegou que:
«numa inquirição sem um controlo da autoridade requerida os arguidos não têm um mínimo de segurança de controlo da transparência do referido depoimento. Com efeito, os arguidos desconhecem se essa testemunha estava a ler as respostas às perguntas formuladas, se tinha algum ponto a fornecer-lhe as respostas e mesmo se a testemunha estava ou não de alguma forma condicionada;
Por outro lado, sempre se dirá que um depoimento sem o controlo da autoridade do pais onde o depoimento é prestado permitiria que essa testemunha pudesse, no limite, violar segredos de estado.»
O colectivo de juízes proferiu então o seguinte despacho:
(...) «As normas citadas descrevem o procedimento a adoptar quando requerida a inquirição de testemunha por carta rogatória, não consubstanciam uma autorização para a prestação de depoimento de qualquer testemunha ou uma conformação do conteúdo desse depoimento por qualquer autoridade estatal.
Assim sendo, aliás, estaria prejudicada a validade do meio de prova, por interferência, da liberdade, espontaneidade do depoimento prestado.--
O meio técnico utilizado é de imediatização no contacto com a testemunha e alternativo à carta rogatória cujo procedimento está descrito na conveção internacional referido pela defesa.--
A testemunha é visível bem como o seu meio circundante sendo viável ao Tribunal aferir em tempo real se lê um depoimento ou é instruída nos exactos termos em que o seria por videoconferência. A videoconferência através de Skype não é meio de prova proibido e de utilização frequente e assumida nos nossos tribunais.--
Resta acrecentar que a testemunha exibiu para o ecrã o seu passaporte e cartão de identificação, de que foi colhido printscreen e que deverá constar nos autos junto à acta da diligência.
Pelo exposto indefere-se o requerido e determina-se o prosseguimento dos autos.
Colhe-se da diligência em questão que foi pressuposto da impugnação que a testemunha estivesse a ser ouvida com localização na República Popular da China. Esse pressuposto, porém, não é sequer adquirido. Ouvida a gravação e consultada a acta não resulta em momento algum que o ofendido estivesse localizado nesse país. O mesmo não forneceu nem lhe foi perguntada a residência. Como havia dificuldades de contacto para notificação e comparência em audiência, foi contactado através de telefone e endereço de skype que forneceu ao processo através da sra intérprete.
Desconhece-se, pois, onde estava localizada a testemunha a ser ouvida mas esta foi-o através de meios que disponibilizou de livre vontade ao tribunal e em local por si domiciliado.
Foi devidamente identificado pelo passaporte que exibiu, tendo-se extraído print screen.
Em nenhum momento do seu depoimento manifestou ou dele se extraiu que estivesse porventura a ser alvo de pressão, chantagem ou coacção por terceiros.
Não se tratava de matéria ligada a questões de segredo de Estado.
Mesmo admitindo por hipótese que o mesmo estivesse no seu país de origem (RPC) a prestar declarações via skype, a CAJMMP celebrada entre Portugal e a China (2) não era accionável porquanto não foi pedida carta rogatória para a sua inquirição.
Não resulta da referida Convenção o impedimento expresso da inquirição pela via utilizada (4° n°1 e 5° n°2, a contrario).
A expressão usada no art° 318° n°8 do CPP Sem prejuízo do disposto em instrumentos internacionais ou europeus...) deve ser entendida apenas como devendo não haver prejuízo desses instrumentos internacionais se houver pedido de auxílio por via dos mesmos, já que tal não impõe que o seu uso seja obrigatório.
Na verdade, dispõe o art° 318° do CPP:
1 - Excecionalmente, a tomada de declarações ao assistente, às partes civis, às testemunhas, a peritos
ou a consultores técnicos pode, oficiosamente ou a requerimento, não ser prestada presencialmente, podendo ser solicitada ao juiz de outro tribunal ou juízo, por meio adequado de comunicação, nos termos do artigo 111.0, se:
a) Aquelas pessoas residirem fora do município onde se situa o tribunal ou juízo da causa;
b) Não houver razões para crer que a sua presença na audiência é essencial à descoberta da verdade; e
c) Forem previsíveis graves dificuldades ou inconvenientes, funcionais ou pessoais, na sua deslocação.
2 - A solicitação é de imediato comunicada ao Ministério Público, bem como aos representantes do arguido, do assistente e das partes civis.
3 - Quem tiver requerido a tomada de declarações informa, no mesmo acto, quais os factos ou as circunstâncias sobre que aquelas devem versar.
4 - A tomada de declarações processa-se com observância das formalidades estabelecidas para a audiência.
5 - A tomada de declarações realiza-se em simultâneo com a audiência de julgamento, com recurso a equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real.
6 - Nos casos previstos no número anterior, observam-se as disposições aplicáveis à tomada de declarações em audiência de julgamento. No dia da inquirição, a pessoa identifica-se perante o funcionário judicial do tribunal ou juízo onde o depoimento é prestado, mas a partir desse momento a inquirição é efetuada perante o juiz da causa e os mandatários das partes, através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sem necessidade de intervenção do juiz do local onde o depoimento é prestado.
7 - Fora dos casos previstos no n.° 5, o conteúdo das declarações é reduzido a auto, sendo aquelas reproduzidas integralmente ou por súmula, conforme o juiz determinar, tendo em atenção os meios disponíveis de registo e transcrição, nos termos do artigo 101.°
8 - Sem prejuízo do disposto em instrumentos internacionais ou europeus, o assistente, partes civis ou testemunhas residentes no estrangeiro são inquiridos através de equipamento tecnológico que permita a comunicação, por meio visual e sonoro, em tempo real, sempre que no local da sua residência existam os meios tecnológicos necessários.
Por sua vez, o art° 319° do CPP:
(Tomada de declarações no domicílio)
1 - Se, por fundadas razões, o assistente, uma parte civil, uma testemunha, um perito ou um consultor técnico se encontrarem impossibilitados de comparecer na audiência, pode o presidente ordenar, oficiosamente ou a requerimento, que lhes sejam tomadas declarações no lugar em que se encontrarem, em dia e hora que lhes comunicará.
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2, 3 e 7 do artigo anterior.
3 - A tomada de declarações processa-se com observância das formalidades estabelecidas para a audiência, salvo no que respeita à publicidade
E também o art° 320° do CPP:
«1 - O presidente, oficiosamente ou a requerimento, procede à realização dos actos urgentes ou cuja demora possa acarretar perigo para a aquisição ou a conservação da prova, ou para a descoberta da verdade, nomeadamente à tomada de declarações nos casos e às pessoas referidas nos artigos 271.° e 294.°
2 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 2, 3, 4 e 7 do artigo 318.° »
Da conjugação de todas estas normas entre si resulta pois, sobretudo em casos urgentes, como foi o caso (e face à evidente desnecessidade de aplicação obrigatória do n° 6 do art° 318° do CPP com intervenção de (...)funcionário judicial do tribunal ou juízo onde o depoimento é prestado(...),dado ser processo de arguidos presos, com prazos de produção de prova e haver grave dificuldade de contacto com o ofendido, que a sua tomada de declarações pudesse sê-lo em domicílio ou equivalente, por critério discricionário do presidente do tribunal e sem recurso a carta rogatória, com os consabidos inconvenientes de demora e tradução de actos que isso implicaria.
Tendo em conta as cautelas tomadas pelo tribunal sobre as condições e circunstâncias da tomada do seu depoimento, a salvaguarda da imediatização do mesmo e a liberdade de acção que o enformou, não vemos motivos para o considerar nulo e sem efeito.
Improcede pois o recurso nesta parte.
2.3.2- Recursos do acórdão final
2.3.2.1- Da validade das declarações prestadas no primeiro interrogatório judicial não lidas ou reproduzidas na audiência de julgamento. Da validade das declarações prestadas por co-arguido, em 1° interrogatório, em prejuízo de outros co-arguidos, os quais não prestaram declarações em julgamento.
Os arguidos prestaram declarações em 1° interrogatório com as legais advertências do art° 141°n°4 ala b) do CPP --(...) De que não exercendo o direito ao silêncio as
declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova;.)
Alega-se que as declarações prestadas pelos arguidos e, sobretudo, pelo arguido HHH..., em sede de 1° interrogatório judicial, não podem valer como prova pois, em sede de audiência de julgamento, remeteram-se ao silêncio, tendo isso impedido que os co-argui-dos, incriminados pelas suas declarações prestadas em sede de 1° interrogatório, pudessem contraditá-las.
A valoração das declarações do co-arguido tem sido objecto de inúmera jurisprudência sendo que, no caso concreto, todos eles prestaram declarações em 1° interrogatório, nos termos do art.° 141.0, n°4, ala b) e nenhum se remeteu nessa fase ao silêncio. Apenas não o quiseram fazer em julgamento.
Já se defendeu na jurisprudência que, para as declarações incriminatórias do co-arguido poderem valer, contra o arguido, em julgamento, tem este de ter a efectiva possibilidade de o poder contraditar em audiência, de exercer um contraditório pela prova, e não apenas um contraditório sobre a prova.( enre outros, vide o Ac. TRE de 17-03-2015);
Mas isto não invalida agora que as declarações prestadas em 1° interrogatório não valham como tal, pelo menos para consigo mesmo, ao abrigo do princípio da livre apreciação.
Na formulação exarada no Ac. STJ de 12-03-2008, as declarações de co-arguido, sendo um meio de prova legal, cuja admissibilidade se inscreve no art.° 125.° do CPP, (...)podem e devem ser valoradas no processo.
Questão diversa é a da credibilidade desses depoimentos, mas essa análise só em concreto, e face às circunstâncias em que os mesmos são produzidos, pode ser realizada. (...)Por isso, dizer em abstracto e genericamente que o depoimento do co-arguido só é válido se for acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras da produção de prova, sem qualquer apoio na letra ou espírito da LLL....
A admissibilidade como meio de prova do depoimento de co-arguido, em relação aos demais co-arguidos, não colide minimamente com o catálogo de direitos que integram o estatuto inerente àquela situação, mostrando-se adequada à prossecução de legítimos e relevantes objectivos de política criminal, nomeadamente no que toca à luta contra a criminalidade organizada.
(...)A credibilidade do depoimento incriminatório do co-arguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva, o que, na maioria dos casos, se reconduz à inexistência de motivos espúrios e à existência de uma auto-inculpação.
Porém, o TC e o STJ já se pronunciaram no sentido de estar vedado ao tribunal valorar as declarações de um co-arguido, proferidas em prejuízo de outro, quando, a instâncias deste, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio (cf. Acs. do TC n.° 524/97, de 14-07-1997 , DR II, de 27¬11-1997, e do STJ de 25-02-1999, CJSTJ, VII, tomo 1, pág. 229).
E é exactamente esse o sentido da alteração introduzida pelo n.° 4 do art. 345.° do CPP quando proíbe a utilização, como meio de prova, das declarações de um co-arguido em prejuízo de outro nos casos em que aquele se recusar a responder às perguntas que lhe forem feitas pelo juiz ou jurados ou pelo presidente do tribunal a instâncias do Ministério Público, do advogado do assistente ou do defensor oficioso.
Mutatis mutandis, o direito ao silêncio do próprio declarante incriminador exprime uma verdadeira recusa de resposta a questões que em exercício do contraditório os visados incriminados lhe queiram fazer.
Referiu o Ac. STJ de 15-04-2015 : que
I - Não há qualquer impedimento do co-arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um co-arguido contra os seus co-arguidos. Porém, com uma limitação, constante do n.° 4 do art. 345.° do CPP,
de acordo com o qual não podem valer corno meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações totalmente subtraídas ao contraditório.
É verdade que em julgamento não foi feita expressamente qualquer instância de co-arguidos incriminadores por outros por eles incriminados em 1° interrogatório porquanto, certamente pela razão de se terem se remetido ao silêncio, entenderam os interessados que não valia a pena perguntarem fosse o que fosse face ao uso do direito ao silêncio. Presumindo-se que não responderiam, o certo é que as suas declarações em 1° interrogatório valem por si, contra si mesmos, de acordo com o principio da livre apreciação daquelas declarações, mas já não contra os co-arguidos incriminados por elas pois nunca foram passíveis ou objecto de contraditório inicial nem em julgamento.
Nos tennos do Ac. TRG de 9-02-2009, CJ, 2009, T1, pag.311:
« I. O sentido da alteração introduzida pela Reforma de 2007 no n°4 do art° 345° do Código de Processo Penal é vedar ao tribunal a valoração das declarações de um co-arguido em prejuízo de outro, quando depois, a instâncias deste aquele se recusa a responder.»
As declarações incriminadoras de co-arguido valem, quer o outro co-arguido (o incriminado) exerça o direito ao silêncio, quer esteja ausente. O silêncio ou ausência do arguido não afectam o direito ao contraditório, pois o mesmo realiza-se e é exercido pelo seu defensor.
No sentido de que o depoimento do co-arguido deve ser valorado tal qual como os outros meios de prova, em conformidade com os princípios da legalidade da prova e da sua livre apreciação, desde que esta seja devidamente fundamentada e objectivada, a partir da sua razão de ciência e credibilidade, são pois citados ou citáveis os seguintes arestos: Ac. STJ de 21-03-2008, in CJ (STJ), T1, pág.255; de 7-12-2007, CJ (STJ), T3, pág.224, de 20-06-2001, CJ (STJ), T2, pág.230, Ac. STJ de 3-05-2000, CJ (STJ), T2, pág,180; Ac. STJ de 27-11-2007 ; Ac. STJ de 8-11-2007 ; Ac. STJ de 21-03-2007 ; Ac. STJ de 8-02¬2007 .
Ou, como se referiu no Ac. TRE de 14-07-2015 :
«As declarações do co-arguido podem ser suficientes para incriminar o outro arguido, desde que sejam credíveis (por inexistir, nas relações entre arguidos, ressentimento, inimizade ou tentativa de exculpação do declarante), sejam verosímeis (havendo corroborações através de factos objetivos), sejam persistentes e idênticas (ao longo do processo), e se apresentem sem ambiguidades ou contradições.»
Em sentido concordante, ainda, vide Ac. STJ de 12-03-2008; e - Ac. STJ de 3-09-2008 .
Ora, é porém consabido que com as alterações introduzidas pela Lei n° 20/2013, de 21. de Fevereiro , o art° 141° n°4, al. b), do CPP, passou a prever-se que, não exercendo o direito ao silêncio, as declarações que o arguido ( e não de arguido) prestar, poderão ser utilizadas no processo mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova.
A Lei também não impõe agora que tais declarações devam ser lidas em audiência para poderem ser valoradas.
Neste sentido se pronunciou já o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14.09.2016, proferido no processo 2087/14.0JAPRT.P1 do qual transcrevemos a seguinte passagem:
Na verdade, com as alterações introduzidas pela Lei n.° 20/2013, de 21 de fevereiro, o artigo 141.°, n.° 4, alínea b), do Cód. Proc. Penal [primeiro interrogatório judicial de arguido detido], passou a prever que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que [o arguido] prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova. No caso dos autos, o arguido foi expressamente informado dessa possibilidade. Por outro lado, nada na lei obriga a que tais declarações devam ser lidas em audiência para poderem ser valoradas pelo tribunal. O artigo 355.°, do Cód. Proc. Penal, estabelece:
1 - Não valem em julgamento, nomeadamente para o efeito de formação da convicção do tribunal, quaisquer provas que não tiverem sido produzidas ou examinadas em audiência.
2 - Ressalvam-se do disposto no número anterior as provas contidas em actos processuais cuja leitura, visualização ou audição em audiência sejam permitidas, nos termos dos artigos seguintes.
7. Por seu lado, o artigo 357.°, prevê:
1 - A reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.° 4 do artigo 141.°
2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.°
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 a 9 do artigo anterior. (...)
8. Resulta claro destas disposições que, desde que se trate de caso em que a leitura não seja proibida, a prova produzida em momento anterior à audiência de julgamento e integrada no processo (p. ex., documentos, declarações para memória futura e declarações do arguido no 1° interrogatório judicial) não têm de ser lidos em audiência de julgamento. considerando-se os mesmos examinados. Em nenhum momento a lei obriga a que tais provas produzidas sejam lidas em audiência para poderem ser valoradas pelo tribunal. O que se compreende: a prova foi produzida com respeito pelo princípio do contraditório, as exigências de imediação e de oralidade não são satisfeitas pelo facto de se proceder à leitura de uma prova já constituída e o respeito pelo princípio da publicidade em nada sai afetado dada a natureza pública do processo e das provas constituídas.
9. Mal se compreenderia que uma prova produzida e realizada ao abrigo da Lei com a observância plena do contraditório, integrada nos autos, indicada pela acusação em momento próprio e cuja leitura não é proibida visse, posteriormente, a sua valoração pelo tribunal condicionada à realização de um ato formal de leitura na audiência. É esse, parece-nos, o sentido útil da alteração legislativa protagonizada pela Lei n.° 20/2013, de 21 de fevereiro, que deu nova redação ao artigo 141.0, n.° 4, alínea b), do Cód. Proc. Penal.
Contudo, se no caso concreto, a convicção do tribunal não assentou exclusivamente nessa base probatória incriminadora de co-arguidos, ela foi parcialmente decisiva para a formação de convicção de parte de factos em que alguns dos arguidos incriminados por outros em 1° interrogatório ficaram envolvidos.
Ora, entendemos que, sem prejuízo de melhor aprofundamento futuro dogmático e jurisprudencial desta questão, as declarações feitas por arguidos em sede de primeiro interrogatório judicial a que foram sujeitos na fase de inquérito, obtidas com observância daquelas formalidades (art.° 141° 4 b) CPP) apenas podem ser utilizadas pelo tribunal na formação da sua convicção em relação aos
co-arguidos incriminados, desde que estes tenham possibilidade de contraditório de tais declarações em julgamento (contra, vide o ac. RP 12/10/2016 e de 12-09-2018)
Uma vez que os arguidos incriminadores usaram do seu direito ao silêncio em julgamento, não sendo de presumir que os co-arguidos visados tivessem obrigatoriamente de exercer antes da audiência o direito ao contraditório e nela pudessem ter de supor que não pudessem exercer então o seu direito a fazer perguntas por causa do silencio daqueles, concluímos que, tendo aqueles ficado em silêncio, isso equivale a uma verdadeira recusa a responder a quaisquer perguntas. Logo, as incriminações de co-arguidos não podem valer, nessa circunstância silente, como meio de prova contra estes.
Como já o aludimos, o Ac. Tribunal Constitucional n°133/2010 , DR, II Série de 18-05-2010 considerou não julgar inconstitucional a norma do artigo 345.°, n.° 4, do Código de Processo Penal, conjugada com os artigos 133.°, 126.° e 344.°, quando interpretados no sentido de permitir a valoração das declarações de um arguido em desfavor do co-arguido que entenda não prestar declarações sobre o objecto do processo.
Nele se refere que:
(...) submetidas a estas exigências de exame crítico e fundamentação acrescidas, as declarações do co-arguido são meio probatório idóneo de um processo penal de uma sociedade democrática. O processo penal destina-se à realização da justiça penal e seria comunitariamente insuportável negar valor probatório a declarações provindas de quem tem com os factos em discussão maior proximidade apenas pela circunstância de ser seu autor um dos arguidos quando essas declarações são emitidas livremente e, num escrutínio particularmente exigente, se conclui não haver razão para duvidar da sua correspondência à realidade.
Decisivo é que o arguido contra quem tais declarações sejam feitas valer não tenha sido impedido de submetê-las ao contraditório, como resulta do acórdão n.° 194/97
(• • .)
Com efeito, como se referiu no citado acórdão n.° 304/2004, no âmbito do artigo 32.°, n.° 8 da CRP, só está compreendida a nulidade de determinados meios de obtenção de prova, ali especificados (tortura, coacção, ofensa da integridade física ou moral da pessoa, abusiva intromissão na visa privada, no domicílio, na correspondência ou nas comunicações).
Ora, em nenhum destes casos se pode integrar a prestação de declarações por um arguido quando outro ou outros se remeteram ao silêncio e a correspondente valoração dessa declaração como meio de prova dos factos em discussão. O recorrente exerceu, como livremente entendeu, o seu direito ao silêncio. O facto de essa sua estratégia de defesa sair debilitada ou, porventura, não surtir o mesmo efeito que teria se o arguido que prestou declarações tivesse igualmente optado pelo silêncio sobre os factos deixa intacta aquela livre opção do recorrente por não prestar declarações. O arguido tem o direito a não se auto-incriminar; não a que não seja produzida prova contra si ou que os demais arguidos conjuguem com a sua a estratégia de defesa deles. A prestação de declarações pelo seu co-arguido e a sua valoração como demonstração da realidade dos factos que a acusação imputou ao recorrente será um acontecimento desagradável para si, mas não constitui ameaça de um mal dirigido a demovê-lo da atitude que escolheu assumir.
Finalmente, é manifestamente destituído de fundamento afirmar que a interpretação normativa questionada viole o princípio da independência dos tribunais. É afirmação que os recorrentes não desenvolvem e que, num plano de argumentação racional, é absolutamente estranho à questão que se discute. A circunstância de deverem valorar determinado meio de prova não torna os juízes mais ou menos livres perante quaisquer ordens ou instruções de quaisquer autoridades, nem melindra qualquer dos factores componentes dessa independência. (...)
Perante esta jurisprudência que se mantém válida, podemos retirar porém duas conclusões.
A primeira, será a de que o co-arguido incriminado que se remete ao silêncio não pode tornar inaproveitadas as declarações de outro arguido que o incriminou só porque optou por se remeter ao silêncio.
A segunda, contudo, é a de que não se afasta a proibição de valoração das declarações incriminatórias de arguido contra outro arguido quando o incriminado não pode exercer o contraditório. E tal acontece quando o incriminador se reca prestar declarações remetendo-se ao silêncio, impedindo o outro de o confrontar.
É como nos parece resultar da Leitura do citado Ac do TC n° 133/2010 quando, a dado passo, afirma:
CL No acórdão n.° 524/97, disponível, como os demais citados em www.tribunalconstitucional.pt, o Tribunal julgou inconstitucional, por violação do artigo 32.°, n.° 5, da Constituição da República, a norma extraída com referência aos artigos 133.°, 343.° e 345.° do Código de Processo Penal, no sentido em que confere valor de prova às declarações proferidas por um co-arguido, em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias destoutro co-arguido, o primeiro se recusa a responder, no exercício do direito ao silêncio.
Não se negou valor probatório às declarações do co-arguido. O que motivou o julgamento de inconstitucionalidade foi a violação do contraditório, não a falta ou deficiência de aptidão probatória de tais declarações. Apenas se afastaram em função do seu modo de produção, considerando-se contrário às garantias do arguido em processo penal que o arguido não possa contraditar toda a prova contra si produzida, como sucede quando o co-arguido se recusa a responder, no exercício do seu direito ao silêncio, às perguntas que a defesa do arguido prejudicado pelas suas declarações anteriores entende colocar-lhe. Note-se que a redacção do n.° 4 do artigo 345.° do Código, introduzido pela Lei n.° 48/2007, reflecte já este julgamento e foi este que foi aplicado ao caso.
Embora essa não fosse a questão directamente colocada, está pressuposta na resposta dada no acórdão n.° 524/97 a possibilidade de valoração das declarações do co-arguido, desde que respeitado o contraditório. Ora, a hipótese que no presente recurso se aprecia distancia-se daquela, precisamente, quanto ao aspecto que motivou o julgamento de inconstitucionalidade. Não integra a dimensão normativa em apreciação que o co-arguido que prestou as declarações desfavoráveis se tenha recusado a responder às perguntas formuladas pelo defensor do arguido prejudicado. (...)
No caso dos autos, foi o que aconteceu, como já referimos. Nenhum dos arguidos em julgamento quis prestar declarações, remetendo-se ao silêncio. Dito isto, aos arguidos incriminados por declarações prestadas em 1° interrogatório judicial com a cominação do art° 141° n° 4, ala b) do CPP, de co-arguidos, não podem ser opostas tais declarações, ainda que elas estejam sujeitas à livre apreciação, só podendo sê-lo na parte em que os declarantes se autoincriminam. Só podem ser usadas contra os outros co-arguidos incriminados por via delas se os silentes incriminadores falassem respondendo a perguntas dos intervenientes processuais, em pleno exercício do direito ao contraditório.
Ou seja, as declarações valem como prova ampla em livre apreciação ex vi do art° 141, n° 4, com a restrição do art° 345° n° 4 do CPP.
Alinhamos deste modo na posição jurisprudencial que nos parece maioritária e mais consensual até ao momento.
Remetemos ainda para a brilhante síntese expositiva da evolução dos vários
entendimentos contida no Ac TRL de 12-10-2016 (REc. N.° 79/15.0JAPDLL1) e que vai no
mesmo sentido da proibição da valoração os termos supra indicados.
(...)
A possibilidade de valoração em julgamento de declarações do arguido prestadas em inquérito é excepcional, como ocorre, aliás, em termos gerais, com a valoração de declarações e depoimentos prestados em fase processual anterior ao julgamento, dependente de estarem reunidos os pressupostos dos artigo 356.° e 357.° do C.P.P.
Até às alterações do C.P.P. introduzidas pela lei n.° 20/2013, de 21 de Fevereiro, as declarações do arguido prestadas perante o M.P. na fase de inquérito, ainda que com a assistência de defensor, não podiam ser valoradas em julgamento, a não ser a solicitação do próprio arguido [artigo 357.°, n.º1, al. a)].
Mesmo as declarações prestadas em interrogatório judicial, na fase de inquérito, só podiam ser lidas e valoradas em julgamento, fora do caso de solicitação do próprio arguido que as prestou, na situação em que houvesse contradições ou discrepâncias entre elas e as feitas em audiência. O exercício do direito ao silêncio por parte do arguido, em sede de julgamento, inviabilizava tal possibilidade.
Quer isto dizer que, face ao regime processual anterior, as declarações em causa, prestadas em inquérito pela arguida CCC..., perante o M.P. e com assistência de defensor, não podiam ser lidas/reproduzidas, nem valoradas, em sede de julgamento, a menos que a própria solicitasse a sua leitura.
O quadro legal foi alterado com a Lei n.° 20/2013.
Estabelece, agora, o artigo 357.°:
«Reprodução ou Leitura permitidas de declarações do arguido
1 - A reprodução ou Leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo só
é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido
prestadas; ou
b) Quando tenham sido feitas perante autoridade judiciária com assistência de defensor e o arguido tenha sido informado nos termos e para os efeitos do disposto na alínea b) do n.° 4 do artigo 141.°
2 - As declarações anteriormente prestadas pelo arguido reproduzidas ou lidas em audiência não valem como confissão nos termos e para os efeitos do artigo 344.°
3 - É correspondentemente aplicável o disposto nos n.°s 7 a 9 do artigo anterior.»
Por seu turno, preceitua o artigo 141.°, n.°4:
«Primeiro interrogatório judicial de arguido detido
(• • .)
4 - Seguidamente, o juiz informa o arguido:
(• • •);
b) De que não exercendo o direito ao silêncio as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência, ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova;
(• • •)•>>
Finalmente, estabelece o artigo 144.°:
«Outros interrogatórios
1 - Os subsequentes interrogatórios de arguido preso e os interrogatórios de arguido em liberdade são feitos no inquérito pelo Ministério Público e na instrução e em julgamento pelo respectivo juiz, obedecendo, em tudo quanto for aplicável, às disposições deste capítulo.
2 - No inquérito, os interrogatórios referidos no número anterior podem ser feitos por órgão de polícia criminal no qual o Ministério Público tenha delegado a sua realização, obedecendo, em tudo o que for aplicável, às disposições deste capítulo, exceto quanto ao disposto nas alíneas b) e e) do n.° 4 do artigo 141.°
3 - Os interrogatórios de arguido preso são sempre feitos com assistência do defensor.
4 - A entidade que proceder ao interrogatório de arguido em liberdade informa-o previamente de que tem o direito de ser assistido por advogado.»
A nosso ver, da articulação dos artigos 141.°, n.°4, al. b) e 144.°, n.°1, do C.P.P., com o artigo 357.°, n.°s 1, ai. b), 2 e 3, do mesmo código (na redacção introduzida pela Lei n.° 20/2013), resulta claro que a valoração das declarações prestadas pelo arguido devidamente informado nos termos do mencionado artigo 141.°, n.°4, alínea b), passa pela reprodução ou leitura das mesmas em audiência de julgamento, precedida de despacho, para cumprimento do contraditório e, embora de algum modo limitado, dos princípios da imediação e da oralidade (veja-se, por exemplo, o Código de Processo Penal Comentado por diversos Juízes Conselheiros do S.T.J., Almedina, 2014, p. 1122 e seguintes, e o Acórdão da Relação de Coimbra, de 4.02.2015, processo 212/11.1GACLB.C1).
Perante o exercício, em julgamento, do direito ao silêncio por parte da arguida CCC..., o M.P. requereu a leitura das declarações que esta havia prestado em inquérito, o que foi deferido, conforme se alcança da leitura da acta — cfr. fls. 1647.
Perante as mencionadas disposições legais, não oferece dúvidas que o tribunal recorrido podia valorar, em relação à arguida CCC..., as declarações por esta prestadas perante o M.P. em fase de inquérito e que foram lidas/reproduzidas em audiência de julgamento.
A questão está em saber se o podia fazer na parte em que tais declarações serviram para incriminar o arguido T....
Desde logo, a lógica que preside ao aprofundamento do direito de advertência e esclarecimento sobre o direito ao silêncio e efeitos da renúncia, constante do referido artigo 141.0, n.°4, alínea b), na redacção introduzida pela Lei n.° 20/2013, de 21 de Fevereiro, parece ser a de que tudo o que o arguido disser, uma vez devidamente informado, pode ser utilizado contra si (à semelhança, porventura, da tão conhecida advertência you have the right to remain silent; anything you say canprobably will be used against you at your trial). O artigo 357.° do C.P.P. refere-se às declarações do arguido e não de arguido, pelo que será duvidoso que abranja o co-arguido.
Lê-se no acórdão da Relação de Évora, de 17-03-2015, proferido no processo 117/08.3 GBRMZ.E1 :
«(...) a leitura permitida de declarações do arguido encontra-se regulada no art. 357° do CPP, norma que se refere, desde a sua versão originária, a declarações processuais em cuja produção não exista registo de nenhuma violação dos deveres das instâncias formais de controlo na produção de prova que seja especificamente sancionada como proibição de prova (Dá Mesquita, A Utilização processual probatória das declarações processuais anteriores de arguido e a revisão de 2013 do CPP, As Alterações ao CPP de 2013, uma reforma cirúrgica, Org. Lamas Leite, p. 138).
O art. 357°, que trata da leitura de declarações do arguido, relaciona-se com a protecção do seu direito ao silêncio (consagrado nos artigos 61°, n°1, al. d), 132°, n° 2, 141°, n° 4, a), e 343°, n. 1, do CPP e considerado como também como direito de tutela constitucional implícita) - que é o direito de não prestar declarações e não se confunde com um direito de apagar anteriores declarações validamente prestadas (Dá Mesquita, loc. cit., p. 146).
Relaciona-se também com o privilégio da não auto-incriminação.
Já o co-arguido, que é sujeito diverso do assistente, parte civil ou testemunha, não é também arguido, no sentido que releva aqui, pois ele ocupa a posição de terceiro relativamente ao arguido, e de um terceiro especial.
Não cumpre aqui decidir se o art. 356° do CPP (norma pensada para a prova em geral e que não inclui o arguido) poderá abranger, em determinadas circunstâncias, a leitura de declarações prestadas em inquérito por co-arguido falecido, quando haja acordo de todos e essas declarações beneficiem o arguido, pois esta não é a situação sub judice e a hipótese extravasaria sempre o objecto do recurso.
As declarações em observação são declarações de co-arguido, incriminatórias do arguido.
Elas não se enquadram na previsão do art. 357° do CPP, desde logo porque a norma se ocupa das declarações do arguido (e, não, de arguido, não abrangendo claramente o co-arguido) nem tão pouco ocorreria o condicionalismo previsto nas suas duas alíneas: não foram prestadas perante autoridade judiciária e o falecido nunca poderia consentir numa leitura.
Também não se incluiriam facilmente na previsão do art. 356° do CPP, norma pensada para todas as outras declarações e depoimentos que não as declarações do arguido, como se disse, e que não se refere nunca ao co-arguido. (...).»
Por outro lado, ultrapassada que seja essa dúvida, a utilizabilidade probatória dessas declarações em relação a co-arguidos, no sentido de contribuir para a sua condenação, nunca poderá postergar os direitos de defesa e o contraditório.
De harmonia com o princípio do contraditório (artigo 327.° do C.P.P.), com tutela constitucional expressa para o julgamento (artigo 32.°, n.°5, da Constituição da República), os meios de prova apresentados no decurso da audiência são submetidos ao contraditório e a contraditoriedade abrange tanto a produção como a valoração de todas as provas. Acusação e defesa podem oferecer as suas provas, controlar as provas contra si oferecidas e discutir o valor e o resultado de todas elas na audiência de julgamento.
O direito, reconhecido ao acusado, de interrogar ou fazer interrogar as testemunhas de acusação e obter a convocação e o interrogatório das testemunhas de defesa nas mesmas condições que as testemunhas de acusação integra também o direito a um processo equitativo, previsto no artigo 6.° [n.° 3, alínea d)] da Convenção Europeia dos Direitos do Homem (CEDH).
Como refere Damião da Cunha, importa salvaguardar a observância de um contraditório pela (para a) prova e não apenas de um contraditório sobre a prova, ao afirmar: «Ponto decisivo num processo de estrutura acusatória é que na audiência de julgamento se concretize um contraditório pela prova» (O regime processual de leitura de declarações, RPCC, ano 7, 3.°, p. 412).
Tem-se entendido que não existe qualquer impedimento do arguido a depor nessa qualidade contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, nada obsta à valoração da prova feita por um arguido contra os seus co-arguidos.
Não temos, entre nós, qualquer regra legal que regule especialmente a valoração probatória das declarações de um co-arguido na parte relativa aos factos imputados a outro arguido — excepto a do artigo 345, n.°4, do C.P.P. -, pelo que tais declarações são valoradas nos termos gerais do artigo 127.°, quer dizer, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.
Como disse o S.T.J., em acórdão de 12 de Março de 2008 (Processo 08P694):
«O eixo do posicionamento jurisprudencial do Supremo Tribunal de Justiça radica na ideia de que, fundamentalmente, o que está em causa é a posição interessada do arguido, que, assumido o seu impedimento para depor como testemunha, não obsta a que preste declarações, nomeadamente para esclarecer o tribunal sobre a sua responsabilidade criminal numa postura de colaboração na procura da verdade material. Sendo um meio de prova legal cuja admissibilidade se inscreve no artigo 125 do Código de Processo Penal as declarações do co-arguido podem, e devem, ser valoradas no processo.»
E mais adiante:
«(...) a questão que se coloca é tão só, e singelamente, saber se é válida processualmente a admissibilidade do depoimento do arguido que incrimina os restantes coarguidos. A resposta é, quanto a nós, frontalmente afirmativa e dimana desde logo da regra do artigo 125 do Código Penal que dispõe que são admitidas as provas que não forem proibidas por lei; por outro lado não se sente qualquer apoio numa interpretação rebuscada da Constituição que aponte a inconstitucionalidade de uma tal interpretação.
Bem pelo contrário, a consideração de que o depoimento do arguido que é, antes do mais, um cidadão no pleno uso dos seus direitos, reveste à partida de uma capitis diminutio só pelo facto de ser arguido ofende o princípio da igualdade dos cidadãos. Portanto a questão que se coloca neste caso é, como em relação a todos os meios de prova, uma questão de credibilidade do depoimento do coarguido.
Esta credibilidade, como adiante precisaremos, só pode ser apreciada em concreto face às circunstâncias em que é produzida. O que não é admissível é a criação de regras abstractas de apreciação da credibilidade retornando ao sistema da prova tarifada, opção desejada pelo sistema inquisitorial. Assim, dizer em abstracto e genericamente que o depoimento do coarguido só é válido se for acompanhado de outro meio de prova é uma subversão das regras da produção de prova sem qualquer apoio na letra ou no espírito da lei.
(• • -)
Não se trata de à partida criar, em termos abstractos, uma exigência adicional ao depoimento do coarguido incriminatório dos restantes arguidos em termos de admissibilidade como meio de prova, entrando, como já se afirmou, num zona de uma inadmissível prova tarifada, mas sim de uma questão de credibilidade daquele depoimento em concreto. Não se pode deixar de referir que numa posição de menor exigência se situa Viegas Torres quando, em relação ao sistema judicial espanhol, refere que o valor probatório da declaração incriminatória de um coimputado tem sido discutido alegando-se que estes testemunhos são, em geral interessados e pouco ou nada objectivos. Frente a tais afirmações, afirma, a jurisprudência afirmou, com carácter geral a validade probatória das declarações de coimputados. A jurisprudência parece considerar que não é regra geral a presença de factores que tirem a necessária objectividade ao testemunho do coimputado pelo que não há razões para negar valor probatório ao dito testemunho. A excepcional concorrência de circunstâncias que podem afectar a fiabilidade da declaração incriminatória de um coimputado terá de apreciar-se caso por caso O depoimento do coarguido pode destruir a presunção de inocência dos restantes desde que o tribunal se convença de que o mesmo é credível.
Será, pois, a nível de valoração em concreto do depoimento produzido que se coloca a questão da relevância do depoimento do arguido. Como refere Carlos Clement Duran a imputação que um coacusado realiza contra outro coacusado tem o grande atractivo de que a faz quem aparece como um directo conhecedor do facto em juízo e incluso nada perde ou ganha ao incriminar o coacusado porque, assim, está a assumir a sua própria responsabilidade penal. Porém pelo seu próprio peso específico já que as possibilidades defensivas do incriminado são reduzidas importa um juízo crítico rigoroso sobre o valor de tal imputação e que permita concluir que a incriminação que a mesma contem não corresponde a um interesse espúrio. Compreende-se, assim, a importância que se atribui ao facto de tais manifestações incriminatórias estarem acompanhadas de algum dado ou elemento de carácter objectivo que lhes dê credibilidade e devam ser uniformes e reiteradas, evidenciando a credibilidade do acusado que as realiza.
Na esteira do Autor citado entendemos que a credibilidade do depoimento incriminatório do coarguido está na razão directa da ausência de motivos de incredibilidade subjectiva o que, na maioria dos casos, se reconduz á inexistência de motivos espúrios e à existência de uma auto inculpação. Igualmente assume uma real importância a concorrência de corroborações periféricas objectivas que demonstrem a verosimilhança da incriminação.»
Nesta linha de raciocínio, a jurisprudência dos tribunais superiores, nomeadamente do S.T.J., tem entendido que não há qualquer impedimento do arguido a, nessa qualidade, prestar declarações contra os co-arguidos no mesmo processo e, consequentemente, de valoração da prova feita por um arguido contra os seus co-arguidos, sendo que o Tribunal Constitucional, no Acórdão n.° 133/2010, publicado no Diário da República, 2.' série, N.° 96, de 18 de Maio de 2010, não julgou inconstitucional «a norma do artigo 345.°, n.° 4, conjugada com os artigos 133.°, 126.° e 344.°, quando interpretados no sentido de permitir a valoração das declarações dc um arguido cm desfavor do co-arguido que entenda não prestar declarações sobre o objecto do processo».
Porém, a valoração probatória dessas declarações tem uma limitação, constante do n.° 4 do citado artigo 345.° do C.P.P., de acordo com o qual não podem valer como meio de prova as declarações de um arguido em prejuízo de outro co-arguido quando, a instâncias deste outro co-arguido, o primeiro se recusar a responder no exercício do direito ao silêncio. Do que se trata, aqui, é de retirar valor probatório a declarações subtraídas ao contraditório.
Na origem do artigo 345.°, n.°4, aditado pela Lei n.° 48/2007, de 29 de Agosto — Não podem valer como meio de prova as declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando o declarante se recusar a responder às perguntas formuladas nos termos dos n.°s 1 e 2 —esteve a jurisprudência do Tribunal Constitucional, expressa no Acórdão n.° 524/97, de 14.07.1997 (D.R., II série, de 27.11.1997).
Proíbe-se, assim, a utilização como meio de prova das declarações de um co-arguido em prejuízo de outro co-arguido quando aquele declarante se recusar a responder às perguntas que lhe forem feitas pelos juízes ou jurados, ou pelo presidente do tribunal a instâncias dos outros sujeitos processuais.
Daqui se extrai que, para as declarações do arguido poderem valer contra o co--arguido, este tem de ter a possibilidade efectiva de o poder contraditar ou contra-instar em audiência de julgamento. Tem de lhe ser assegurado o exercício de um contraditório pela prova.
Por imperativo legal, a ausência de resposta às perguntas do tribunal e/ou a solicitação do Ministério Público e da defesa, ao abrigo do disposto no artigo 345.°, n.°4, do C.P.P., neutraliza em absoluto quaisquer efeitos da declaração incriminatória de co-arguido (cfr. o supra referido acórdão da Relação de Évora, de 17-03-2015).
A nosso ver, a situação não é diversa se estiver em causa a leitura em audiência de julgamento de declarações prestadas por um arguido em fase processual anterior, feita ao abrigo do citado artigo 357.°, n.°1, al. a): enquanto incriminadoras de co-arguido, a sua valoração dependerá da oportunidade de questionar sobre as mesmas o arguido cujo depoimento é lido/reproduzido.
Tal oportunidade não se verifica quando o arguido, que prestou em fase processual anterior as declarações que foram lidas/reproduzidas em audiência de julgamento, exerce nesta o direito ao silêncio.
O já referido princípio do contraditório, consagrado no artigo 32.°, n.°5, da Constituição da República, significa que nenhuma prova deve ser aceite na audiência de julgamento ou na instrução, nem nenhuma decisão deve ser tomada pelo juiz sem que previamente tenha sido dada ampla e efectiva possibilidade ao sujeito processual contra quem é dirigida de a discutir, de a contestar e de a valorizar.
Como já se disse, na actualidade pode proceder-se em audiência de julgamento à reprodução ou leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido no processo, mesmo que este se remeta ao silêncio, desde que essas declarações tenham sido feitas perante autoridade judiciária, com assistência de defensor, e aquele tenha sido informado, quando as prestou, de que não exercendo o direito ao silêncio, as declarações que prestar poderão ser utilizadas no processo, mesmo que seja julgado na ausência ou não preste declarações em audiência de julgamento, estando sujeitas à livre apreciação da prova.
Tais alterações no regime processual penal, introduzidas pela Lei n.° 20/2013, não alteraram a estrutura do processo penal, em especial a estrutura acusatória integrada por um princípio de
investigação da verdade material, nem colocaram em causa princípios processuais penais como o do contraditório, da igualdade de armas, da imediação e da oralidade.
Mesmo nas situações em que, antes da Lei n.° 20/2013, se admitia a leitura em julgamento de declarações prestadas por um arguido em inquérito, a seu pedido, ao abrigo do artigo 357.°, n.°1 (na redacção então vigente), não temos dúvidas de que, se essas declarações fossem incriminatórias de co-arguido, não poderiam ser valoradas contra este se lhe fosse vedada a possibilidade de questionar em audiência de julgamento o arguido cujas declarações tivessem sido lidas.
Seria incompreensível que o arguido estivesse perante as declarações prestadas em inquérito por co-arguido em situação mais vulnerável do que estaria se tais declarações fossem prestadas em julgamento e o declarante, após as produzir, exercesse o direito de a nada mais responder, situação que determinaria, sem margem para quaisquer dúvidas, não poderem valer como prova em relação ao co-arguido por elas incriminado.
No caso em apreço, a arguida C...exerceu em julgamento o direito ao silêncio, nos termos dos artigos 61.°, n.°1, al. d) e 343.°, n.°1, do C.P.P., sendo o próprio acórdão recorrido a reconhecer que a arguida C... não se dispôs a responder às perguntas do Tribunal (tendo o arguido T... deixado expresso que pretendia fazê-lo) .
Contrapõe o acórdão recorrido que no caso, a arguida C... não se recusou a responder às perguntas formuladas pelo Tribunal nos termos do art. 345° n°s 1 e 2 do CPP, para o qual remete a segunda parte do n° 4 do mesmo artigo, normas estas que assentam no pressuposto de que o arguido pretendeu prestar declarações e, a dada altura, manifestou a vontade de recusar responder a algumas ou a todas as perguntas. Mas, no caso, nada disto se passou pois a arguida, simplesmente, exerceu o seu direito ao silêncio (o que equivale a afirmar que não se dispôs a prestar declarações).
Com o devido respeito, é contraditório dizer-se, por um lado, que a arguida C... não se dispôs a responder às perguntas do Tribunal e, por outro, que não se recusou a responder às perguntas formuladas pelo Tribunal e simplesmente, exerceu o seu direito ao silêncio: não há como harmonizar tais afirmações.
A decisão recorrida estriba-se no acórdão da Relação de Coimbra, de 18/11/2015, proferido no processo 535/13.5JACBR.0 1, onde se utiliza a mesma linha de argumentação do tribunal a quo, podendo ler-se nesse aresto:
«Ninguém se recusou a responder a perguntas.
O tribunal também não recusou o exercício de qualquer direito de defesa aos co-arguidos recorrentes afectados pelo depoimento do co-arguido A...
O arguido remeteu-se sim ao silêncio, como aliás o fez o arguido C...
Nestes termos, o depoimento do co-arguido A... não pode ser considerado um meio proibido de prova, podendo o tribunal fazer uso do mesmo segundo o princípio da livre apreciação da prova, dado que a leitura das suas declarações observaram o disposto nos art. 357.°, n.° 1, al. b) e 2 e 141.0, n.° 4, al. b), CPP.
O regime legal é este, do qual os arguidos tinham conhecimento, sendo certo que A... não se recusou a prestar declarações a quem quer que fosse e não se furtou a ser interrogado pela defesa.
Se os co-arguidos não questionaram o funcionamento do contraditório, foi porque não o quiseram fazer.
Os co-arguidos estavam presentes e nada requereram uma vez cumpridas as formalidades da leitura do depoimento.
O contraditório não é um direito abstracto, mas uma faculdade de concretamente ser exercido e só é legítimo falar de preterição do contraditório se o arguido foi impedido de o exercer, o que não foi manifestamente o caso.»
Não seguimos esta linha de raciocínio.
De harmonia com o disposto no artigo 345.°, n.°1, do C.P.P., constitui pressuposto para que sejam feitas ao arguido perguntas sobre os factos e formulados pedidos de esclarecimento sobre as declarações prestadas que este se disponha a prestar declarações — Se o arguido se dispuser a prestar declarações (...).
Se a arguida C...., no exercício do seu direito ao silêncio, não se dispôs a prestar declarações, não podia o tribunal questioná-la sobre os factos, nem solicitar-lhe esclarecimentos, por sua iniciativa ou a pedido do Ministério Público e da defesa.
Por conseguinte, a contraposição entre o exercício do direito ao silêncio (que se verificou) e a alegada não recusa a responder a perguntas, carece, a nosso ver, salvo melhor opinião, de razão de ser.
Uma possível objecção ao que temos vindo a expor consistirá em dizer-se que o domínio da co-arguição, em rigor, verifica-se no quadro do tráfico de estupefacientes, em que a arguida C... veio a ser condenada como cúmplice, e não quanto ao mais que apenas é imputado ao arguido/recorrente T....
Porém, as declarações que a arguida prestou em inquérito e foram lidas/reproduzidas em audiência foram prestadas como arguida, sendo artificioso descortinar no seu seio uma fronteira.
A arguida prestou declarações apenas nessa qualidade e não numa eventual dupla qualidade de arguida e testemunha, estando os factos em causa imbricados uns nos outros. Enquanto arguida, não podia depor como testemunha no mesmo processo, ainda que sobre factos imputados a um co-arguido em exclusivo [artigo 133.°, n.°1, al. a), do C.P.P.]. Aliás, se prestadas tivessem sido na qualidade de testemunha — e não foram -, nem sequer estariam reunidos os pressupostos para a sua reprodução ou leitura em audiência, sendo certo que é a sua condição de arguida que lhe faculta o direito a não se dispor a prestar declarações em julgamento.
Em suma, mesmo no pressuposto de que o artigo 357.°, n.°1, al. b), do C.P.P., abrange as declarações de co-arguido, entendemos que as declarações prestadas em inquérito, perante o M.P., pela arguida C, lidas em audiência ao abrigo do disposto no artigo 357.°, n.°1, al. b), do C.P.P., não poderiam influir na definição da factualidade provada quanto ao arguido/recorrente (ou ao arguido T, acrescente-se), porquanto a dita arguida, em audiência de julgamento, exerceu o direito de não pretender prestar declarações. A valoração de tais declarações contra o recorrente traduziu-se, assim, numa violação da garantia do contraditório, em desrespeito do disposto no artigo 345.°, n.° 4, do C.P.P., fundando-se numa interpretação normativa deste preceito legal e do citado artigo 357.°, n.°1, al. b), que, a nosso ver, contraria o artigo 32.°, n.°5, da Constituição da República e o artigo 6.° da Convenção Europeia dos Direitos do Homem.
De tudo resulta que se impõe apartar esta prova do conjunto das restantes valoradas no acórdão contra o arguido/recorrente, havendo que declarar a nulidade parcial do acórdão recorrido, por utilização, na sua fundamentação da matéria de facto, de prova proibida de valorar contra o arguido-recorrente, impondo-se a prolação de novo acórdão que exclua como meio de prova contra aquele as declarações prestadas pela arguida C... perante o Ministério Público durante o inquérito e que, consequentemente e em conformidade, reconfigure a matéria de facto e respectiva matéria de direito. (...)
Consequentemente, o tribunal a quo deve, por cautela, reabrir a audiência reconfirmando se os arguidos se mantêm ou não no uso do seu direito ao silêncio ou se dispõem a responder a perguntas do tribunal ou dos outros co-arguidos especificamente sobre as suas declarações prestadas em 1° interrogatório.
Mantendo-se em silêncio ou em recusa de resposta, o tribunal deve reformular a fixação da matéria de facto, expurgando da sua fonte de convicção as declarações incriminatórias de co-arguidos que estes não confirmassem nas suas próprias declarações em 1° interrogatório e apenas com base na restante prova produzida e nas declarações autoincriminatórias dos próprios arguidos, formar então a sua convicção e explicar os fundamentos da mesma, decidindo depois de direito em conformidade.
Fica assim prejudicada a apreciação dos restantes itens dos recursos.
III- DECISÃO
3.1 - Pelo exposto, julgam-se os recursos parcialmente procedentes, anulando-se parcialmente o julgamento e reabrindo-se a audiência nos termos e apenas com o âmbito e finalidades aludidos.
Comunique desde já à 1a instância independentemente do trânsito em julgado.
Lisboa, 8 de Outubro de 2019
Os Juízes Desembargadores
(texto elaborado em suporte informático , revisto e
rubricado pelo relator — (art° 94° do CPP)
Agostinho Torres
João Carrola