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ACRL de 04-06-2020
Violência doméstica. Declarações para memória futura. Vítimas especialmente vulneráveis
I - No caso de crime de violência doméstica, a audição da vitima em declarações para memória futura poderá ocorrer a requerimento do Ministério Público ou da própria vitima. Estabeleceu assim a lei um regime mais favorável nas situações de violência doméstica, concedendo legitimidade à vítima para requerer a sua própria audição antecipada, reforçando assim a sua protecção e evitando as, situações de revitimação.
II - Sendo o crime de violência doméstica punível com pena de prisão de máximo igual a cinco anos integra a noção de criminalidade violenta definida no art.°- 1.°, alínea j), do C.P.P. Então haverá que considerar a ofendida uma vítima especialmente vulnerável, e, isto, sem necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na alínea b) do n° 1 do art.° 67.°-A do ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade.
III - A par do direito de audição em declarações para memória futura das vítimas especialmente vulneráveis, reconhecido pela Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro — diploma aplicável a qualquer vítima de criminalidade mostra-se também legalmente reconhecido o direito de audição em declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, nos termos constantes do referido artº 33.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro. Acresce que o art.° 67.°-A do C.P.P., no qual se considera, como dissemos, vítimas especialmente vulneráveis, para além do mais, as vítimas de criminalidade violenta, foi introduzido precisamente pela referida Lei n. 130/2015, de 04 de Setembro.
Proc. 382/19.0PASXL-A.L1 9ª Secção
Desembargadores: Leonor Botelho - Maria do Carmo Ferreira - -
Sumário elaborado por Susana Leandro
_______ Proc. N° 382/19.0PASXL-A.L1
CONCLUSÃO - 04-06-2020
(Termo eletrcinico elaborado por Escrivão de Direito Celeste Simões)
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Acordam, em conferência, na 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa:
— RELATÓRIO
1. 1. — Decisão Recorrida
No processo de inquérito com o n.° …/19.0 PASXL do. Juizo de Instrução Criminal do Seixal do Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, foi em .31.01 2020, proferido despacho que indeferiu o pedido do Ministério Público de audição da ofendida em declarações para memória futura.
1. 2. — Recurso
1.2.1. - Inconformado com essa decisão, dela recorreu o Ministério Público, defendendo que a revogação daquele despacho e a sua substituição, por outro que designe da para audição a requerida audição da ofendida em declarações para memória futura:
Finaliza a sua motivação com as seguintes conclusões:
(1) A Lei n° 112/2009, de 16/09, veio alargar .o âmbito da aplicação do
Art. 271° do C.P.P., designadamente, no seu Art. 33°, prevendo um regime formalmente autónomo para a prestação de 'declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica,
2) O referido Art. 33° estipula como requisito único a apresentação de um requerimento pela vitima ou pelo Ministério Público, dispensando a verificação de quaisquer outros requisitos. Apresentado o pedido, o Juiz pode (deve no nosso .entendimento) proceder à inquirição da vítima no decurso do inquérito, num ambiente informal e reservado, com vista a garantir a espontaneidade e sinceridade das respostas.
3)Segundo entendemos a interpretação do texto da Lei não se pode prescindir de uma visão integrada e abrangente à luz do conjunto da ordem jurídica em vigor.
4) Por isso entendemos que a norma prevista no Art. 33° não pode ser desligada do regime geral estabelecido para a protecção de testemunhas - Lei 17° 93/99, de 14/07 na sua actual redacção - (lembremos o Art. 20.°, n.° 6, do mesmo diploma), nem de outras disposições da lei em que se insere, que visam assegurar as condições de prestação do depoimento e das declarações em casos de violência doméstica - cfr. Arts 16.0, n.° 2, 20.°, n.° 3, 22.O, 23. e 32.° da Lei n° 112/2009.
5) Também a Lei n° 130/2015, de 04/09, no âmbito do estatuto da vítima especialmente vulnerável, veio alargar o âmbito de aplicação das declarações para memória futura às testemunhas especialmente vulneráveis, independentemente do tipo de crime, podendo essa condição resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social - Art. 67° A, n° 1, alínea b) do C.P.P. (na redacção resultante da Lei 130/2015, de 04/09).
6) Neste contexto, o n 3 do Art. 67° A, por efeito da remissão do Art. I,
1, alínea i) é peremptório ao afirmar que as vitimas do crime de violência doméstica
são sempre vítimas especialmente vulneráveis.
7) Estamos certas quo o legislador ao estabelecer o regime especial previsto no Art.º 33°, da aludida Lei ,112/2009 (ao prever que as vítimas de crime de violência doméstica podem ser inquiridas para memória futura no decurso do inquérito) mostrou-se sensível ao facto de a violência doméstica ser uma forma de criminalidade particularmente suscetível de causar graves e duradouras consequências para as suas vítimas.
8) A tomada de declarações para memória das vítimas de violência doméstica deverá assim ser enquadrada como sendo uma das medidas de proteção destas vítimas no âmbito do processo penal, as quais op legis configuram sempre vítimas especialmente vulneráveis.
9) No caso sob apreciação entende o Ministério Público, titular da acção penal; ser necessário ouvir a vitima DIM..., tendo em consideração, não apenas a natureza do crime em causa, a especial vulnerabilidade da ofendida enquanto vítima de violência doméstica mas sobretudo a sua fragilidade tendo em consideração a influência que o arguido vinha ao longo dos anos exercendo sobre a mesma conforme resulta patente dos presentes autos.
1Q) O indeferimento do pedido formulado pelo Ministério Público da realização de declarações para memória futura impediu que a vítima exercesse o seu direito a prestar antecipadamente declarações e de evitar a sua revitimização.
11) Tratando-se em si mesmos de factos grandemente traumáticos, importa necessariamente minimizar o trauma associado. Tal só seria prosseguido se à vítima fosse permitido prestar declarações uma única vez perante o J1C, permitindo, desde cedo e com pleno efeito para o decurso do processo o apuramento da factualidade em toda a sua abrangência.
12) De acordo com o tudo o exposto, entende-se que o Mm° JIC não apreciou correctamente o peticionado, especialmente tendo em consideração que o mesmo a fls. 11 do seu despacho fundamenta o indeferimento na ausência de fUndamentação justificativa que permitam concluir pela presença de uma vítima especialmente vulnerável, quando, reafirma-se, nos termos do n° 3 do Art. 67° A do C.P.P. todas as vítimas de violência doméstica são vítimas especialmente vulneráveis.
13) Durante o inquérito o Ministério Público é livre, salvaguardados os actos da competência reservada do Mm° Juiz e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou promover as diligências que entender necessárias com vista a fundamentar uma decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, sendo que tendo em consideração o interesse da vítima, o Ministério Público conclui pela necessidade de ouvir a vítima, entendendo que tal diligência deveria ser realizada preferencialmente uma única vez, em declarações para memória futura.
14) Deverá o despacho do Mm° JIC que indeferiu o requerimento de declarações para memória futura ser revogado e substituído por outro que designe data para inquirição da vítima LSA..., em diligência de declarações para memória finura.
15) Violou o Mm° JIC o disposto no Art 33° da Lei 112/2009 de 16 de Setembro, conjugado com os Art 24° da Lei n° 130/2015, de 04/09 e Art. 67° A 11°. 1, alínea b) e n° 3 do C.P.P.
No entanto, V.as Ex.as, Venerandos Desembargadores, decidirão conforme for de Justiça».
1.2.2. - O arguido respondeu, pugnando pela improcedência do recurso e
manutenção da decisão recorrida, apresentando as seguintes conclusões:
Assim, o despacho recorrido não padece dos erros alegados pelo MP;
B. O requerimento do MP foi insuficientemente fundamentado, recheado de conclusões, razões e conceitos indeterminados;
C Conclusões e razões, que careciam de ser concretizadas por factos, como natureza do crime, 'fragilidade da testemunha, MP tem razões para crer, mas não concretiza as razões, etc;
D. Da Lei 112/2009, de 16 de setembro no artigo 33° surge uma possibilidade, um poder, não um dever de o Juiz ordenar a inquirição para memória futura da alegada vitima.
E. E um poder que tem que ser muito bem exercido, porque ao ser ordenado vai preterir automaticamente os princípios previstos para o processo penal, como a publicidade, espontaneidade, principio da imediação e os direitos do próprio arguido.
F. O que significa que apenas excecionalmente e para efeitos de essencial proteção da vítima, deve ser ordenado.
G. Para tal o requerente da diligência, antes de mais, deve .fimdamentar o seu pedido com factos consistentes, que criem no juiz a real convicção da necessidade de tal diligência em detrimento dos direitos e princípios referidos,
H. O que o MP não logrou fazer.
I. A possibilidade de declarações para memória Mura encontra-se igualmente prevista no artigo 21° n° 2 alínea d) e artigo 24° da Lei 130/2015, como medida especial de proteção.
J. Contudo, requer que se trate de vítima especialmente vulnerável, com a atribuição de tal estatuto nos autos (artigo 20º do mesmo regime),
K. E após uma avaliação individual das vítimas especialmente vulneráveis, a fim de determinar se devem beneficiar de medidas excecionais de proteção, e não para toda e qualquer alegada vítima de violência doméstica.
L. Mesmo no âmbito do regime que regula o estatuto e proteção da vítima, nem sequer toda e qualquer vítima com o estatuto de vítima especialmente vulnerável deve efetivamente gozar dessa medida de proteção especial, devendo ser submetida a avaliação individual se há que gozar de tal medida e de outras.
M Devendo, mesmo nestes casos, o juiz sopesar de forma sensata tudo e todos os interesses em causa nos autos antes de ordenar tal diligência.
N. Requer-se, portanto, um carácter de excecionalidade, muito bem .fundamentado da ponto de vista táctico do caso concreto, para que o Tribunal realmente ordene tal diligência em detrimento de outros direitos e princípios processuais.
O. Factos que o MP não conseguiu concretizar, acabando na sua motivação por usar do raciocínio que todas as vítimas de violência doméstica são de especial vulnerabilidade, e, portanto a vítima nestes autos também o é, devendo ser ordenada a diligência para proteção desta.
P. Portanto, :muito francamente, não se vislumbra que a alegada vitima nos autos preencha, pelo menos por hora, os requisitos para gozar dessa medida de proteção,.
Q. Indo o Tribunal muito bem na sua decisão de indeferimento da diligência de declarações pela Queixosa para memória futura,
R. Devendo, portanto, ser mantido o despacho recorrido.
Termos em que, com ó douto suprimento de V Exas. deverá ser negado provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público, mantendo-se e confirmando-se o douto despacho nos presentes autos, de indeferimento do pedido para declarações pela Queixosa para memória futura.
Assim se fazendo a costumada Justiça!».
1.2.3. - Subidos os autos a este Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que se reporta o art.° 416.° do. C.P.P., aderindo às alegações de recurso apresentadas pelo Ministério Público, apresentou parecer com o seguinte teor:
«1. Interpõe o Ministério Público recurso do despacho proferido a 31 de Janeiro de 2020.
Visa o indeferimento das requeridas declarações para memória futura -eu vítima DIM....
Afirma-se a final no despacho recorrido sopesando os interesses da vítima, da investigação, os interesses do arguido, os princípios da mediação em que se alicerça o processo penal e a excepcionalidade do instituto, indefere-se a diligência de tomada de declarações para memória futura requeridas pelo Ministério Público, por se entender que não se mostram reunidas circunstâncias de excepcionalidade para a realização da diligência, não decorrendo dos autos, na opinião do tribunal, nenhuma das circunstâncias factuais que o determinariam .
É, pois, objeto do recurso saber o critério a seguir na decisão para a tomada de declarações para memória futura.
2.Aderimos à fundada e boa argumentação constante da motivação da Sr. a Magistrada do Ministério Público junto da Iª instância, que se subscrevem.
Salienta-se e adita-se ainda o seguinte:
2.1. Vítimas especialmente vulneráveis - Estatuto da Vítima e Regime Jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas.
A Lei n° 130/2015, de 4 de setembro procede a alterações o Código de Processo Penal e aprova o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do
Esta lei aditou ao Código Processo Penal o art. 67°-A, que no n° 1, b) define como vítimas especialmente vulneráveis a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.
O seu n° 3 estabelece que As vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.° I.
Ou seja, o legislador atribui a classificaçãa de: vítimas especialmente vulneráveis às vítimas de criminalidade violenta.
Ora, o art. 1°, j), do Código ProCesso Penal define Como criminalidade violenta as condutas que dolosamente se dirigem contra a vida, a integridade fisica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos (alteração introduzida pela Lei 26/2010, de 22 de julho). Aqui se integra o crime de violência doméstica, cuja moldura penal abstrata máxima é igual a 5 anos de prisão - art. 152º, n° 1, do Código Penal.
Não restam, pois, dúvidas que às vítimas de violência doméstica foi atribuída a classificação vítimas especialmente vulneráveis, de acordo com as disposições legais acima referidas. As vítimas de violência doméstica têm o estatuto de vítimas especialmente vulneráveis.
Assim sendo, por imposição legal, a ofendida DIM... é uma vítima especialmente vulnerável.
(Não precisava de recorrer a outros elementos como nomeadamente a idade, proximidade física e ascendente do arguido sobre a vítima, para aferir da necessidade de cuidados especiais e daí concluir erradamente que não se tratava de uma vítima especialmente vulnerável).
Acresce que, a Lei n° 130/2015, de 4 de setembro - Estatuto da Vítima -prevê no art. 1° o princípio da igualdade, dispondo que toda a vítima goza dos direitos fundamentais inerentes à dignidade da pessoa humana, sendo-lhe assegurada a igualdade de oportunidades para viver sem violência e preservar a sua saúde .fisica e psíquica.
Têm direito as vítimas especialmente vulneráveis, como uma das medidas especiais de proteção, a prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.° - art. 21°, 17° 2;
O seu art. 24°, n°1 prevê que O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.° do Código de. Processo Penal.
Também a Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas, prevê no art. 5°, o princípio da igualdade numa redação igual à do art. 1°, da Lei n° 130/2015.
Quando apresentada a denúncia da, prática do crime de, violência doméstica; não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima; para todos os efeito legais, o estatuto de vítima - art. 14°, n° I.
A vítima e as autoridades competentes estão obrigadas a um dever especial de cooperação, devendo agir sob os ditames da boa fé art. 14°, nº I.
Beneficia a vítima do direito à proteção - art. 20°.
Ora, o dever especial de cooperação e o direito à proteção da vítima também se impõem e se materializam na realização das requeridas declarações para meritória futura pelo Juiz a quo.
À semelhança do art. 24°, n° 1, acima referido também no art. 33°, /1° 1, da Lei n° 112/2009 se prevê que o juiz a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde fisica ou psíquica de pessoa que o deva prestar - n° 7.
2.2. A vitimização secundária, o trauma
Importa relembrar que o direito de audição antecipada, que se materializa nas declarações para memória futura, visa evitar a vitimização secundária e repetida e ainda quaisquer formas de intimidação e de retaliação.
Mas visa ainda mais, visa evitar que as repercussões decorrentes do trauma se reflitam negativamente na aquisição da prova. Que prejudiquem também o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
Como se pode ler no e-book do CEJ Violência Doméstica, implicações sociológicas, psicológicas e jurídicas do fenómeno, manual pluridisciplinar, abril 2016, pág. 40, As situações de violência continuada resultam numa diversidade de consequências e danos físicos, psicológicos, relacionais, etc, que, nos casos mais graves, poderão conduzir à incapacitação, temporária ou permanente, da vítima ou, mesmo, à sua morte.
Algumas das consequências traumáticas mais comuns em vítimas de VD/VC são:
• danos físicos, corporais e cerebrais, por vezes, irreversíveis (e.g, fraturas nas mandíbulas, perda de dentes, lesões óculo-visuais, perturbações da capacidade auditiva, fraturas de costelas, lesões abdominais, infertilidade na sequência de sucessivas infeções e/ou lesões vaginais e uterinas, entre muitas outras; algumas mulheres desenvolvem uma perturbação equivalente à dos lutadores de boxe, em virtude dos danos neurológicos provocadoS pelas pancadas sucessivas na zona do crânio e face - algo similar, nos seus efeitos, à doença de Parkinson)
•.alterações dos padrões de sono e perturbações alimentares
• alterações da imagem corporal e disfunções sexuais
• distúrbios cognitivos e de memória (e.g., flashbacks de ataques violentos, pensamentos e memórias intrusivos, dificuldades de concentração; confusão cognitiva, perturbações de pensamento - não é raro as vítimas afirmarem que estão .a enlouquecer, dado que a sua vida se torna ingerível e incompreensível).
• distúrbios de ansiedade, hipervigilância, medos, fobias, ataques de pânico
• sentimentos de medo, vergonha, culpa
• níveis reduzidos de autoestima e um autoconceito negativo
• vulnerabilidade- ou dependência emocional, passividade; desânimo aprendido”
• isolamento social ou evitamento (resultantes, frequentemente; dos sentimentos de vergonha, auto-culpabilização, desvalorização pessoal, falta de confiança que as vítimas sentem)
• comportamentos depressivos, por vezes com tentativa de suicídio ou suicídio consumado.
Muitas vítimas apresentam um quadro de Perturbação de Stress Pós-Traumático (PTSD).
É sabido que quanto mais tardiamente são prestadas as declarações pelas vítimas, mais se intensificam as perturbações da memória fruto do trauma.
Daí a necessidade da prestação de declarações para a memória futura em situações como a dos autos, em que na avaliação de risco foi atribuído o grau de RISCO ELEVADO.
2.3. O recurso
No despacho recorrido cita e segue. o acórdão do TRL de 11 de janeiro de
2012, proferido no proC. 689/11.5PBPDL, da 3ª secção, in www.pgdlisboa.pt. .
Contudo, não é este o sentido da jurisprudência mais recente deste Tribunal da Relação de Lisboa.
Com efeito, o acórdão do TRL de 5 de março de 2020; relator Almeida Cabral, proferido no proc. recurso n° 779/19.6PARGR-A.LI-9, in www.dgsi.pt decidiu, Sendo certo que o art. 33° da citada Lei n° 112/2009 deixa nas mãos do juiz o poder de proceder à recolha das declarações da vítima para memória futura ainda na fase de inquérito, não é o mesmo um arbitrário ou que possa ser levianamente exercido, pois que a crescente gravidade dos factos neste, também, cada vez mais repetido tipo de crime exige de todos os operadores judiciários empenho e unia acção prática efectiva e proveitosa ... neste que é conferido ao juiz está implícito o «dever»> de, à luz das elementares regras do bom sensu e dos respectivos juízos de oportunidade, tudo fazer no sentido de precaver a recolha e conservação de uma prova que é fundamental, tão fundamental que, muitas vezes, até acaba por ser a única. Concordamos, de todo, com a posição tomada neste acórdão, devendo o art. 33° em causa ser interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova, contrariamente ao aqui entendido pelo Mmº° Juiz a quo, cuja regra já parece ser a do indeferimento, excepto quando haja «razões especiais», no caso concreto, para deferir a realização da mesma diligência. Conforme se lê no mesmo acórdão atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do «dever de proteção», á mesma vítima consagrado no art. 20°, n° 2 da Lei n° 112/2009, só em casos excepcionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento.
Deste modo, se a vítima ou o Ministério Público requerem a tomada de declarações para memória futura é porque nisso vêem interesse, sendo este, também, necessária e consequentemente, o interesse da comunidade, os quais, afinal, todos passam pela descoberta da verdade e pela efectiva realização da justiça.
Igualmente neste sentido se decidiu no acórdão do TRL de 30 de abril de 2014, relator Maria do Carmo Ferreira, no proc. n° 14/20.4PBRGR-A. L1.
Deve também assim ser, em nosso entender, no caso do recurso em apreço.
Pois, a tomada de declarações para memória futura da vítima em situações de violência doméstica, nos termos do art. 33°, n° 1, da Lei 112/2009, de 16 de setembro é a regra, só devendo ser indeferida em situações excecionais, ao invés do entendimento seguido despacho recorrido.
E, nenhuma circunstância excecional releva para o indeferimento pelo Mm° Juiz a quo.
Bem pelo contrário.
Na verdade, e em suma, DIM... é vítima de violência doméstica e por decorrência é uma pessoa especialmente vulnerável, foi-lhe atribuído o grau de risco elevado, ao longo dos anos o arguido exerceu uma ascendente influência sobre a mesma, intimidando-a, desde o início do relacionamento entre ambos, em 2011, foi sujeita a comportamentos de extrema agressividade, em casa e na via pública, até na presença dos filhos menores da vitima, comportamentos estes descritos no auto de interrogatório do arguido, de 23 de janeiro de 2020, sob os números 1 a 56, tendo em 2019 sido alvo de graves agressões físicas e ameaças de morte.
O arguido violou a medida de coação de proibição de contactos, o que determinou a substituição pela medida de coação de prisão preventiva.
Naturalmente que razões de proteção à vítima, e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça, considerando, desde logo, o flagelo e proliferação da violência doméstica, impõem a realização das declarações para memória futura.
Emite-se, pois, parecer no sentido da revogação do despacho recorrido e pugna-se pela procedência do recurso.».
1.2.4. - Cumprido o disposto no art.' 417.°, n.° 2, do C.P.P., respondeu o arguido, reafirmando o por si já alegado na resposta ao recurso e sustentando ainda que a ofendida goza, nos presentes autos de violência doméstica, do estatuto de vítima e não do estatuto de vítima especialmente vulnerável, não gozando automaticamente do beneficio de prestar declarações para memória futura, instituto que tem um carácter de excepcionalidade, devendo ser muito bem fundamentado do ponto de vista Táctico para que o Tribunal realmente ordene tal diligência em detrimento de outros direitos e princípios processuais, concluindo que, no caso, a vitima não preenche, pelo menos por hora, os requisitos para gozar dessa medida de protecção.
1.2.5. - Procedeu-se a exame preliminar, após o que, colhidos os vistos, foram Os autos a conferência, de harmonia com o preceituado no art.° 419.°, n.° 3, do C.P.P..
II — FUNDAMENTAÇÃO
2. 1. — Objecto do Recurso
Dispôe o art.° 412.°, n.° I, do C.P.P, que a motivação enuncia
especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões
deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
E no n.° 2 do mesmo dispositivo legal determina-Se também qué versando
matéria de direito, as conclusões indicam ainda:
a) As normas jurídicas violadas;
b) O sentido em que, no entendimento do recorrente, o tribunal recorrido' interpretou cada norma ou COM que a aplicou e o sentido em. que ela devia ter sido. interpretada ou com que devia ter sido aplicada; e
c) Em caso de erro na determinação da norma aplicável, a norma Jurídica que, no entendimento do recorrente, deve ser aplicada.
Constitui entendimentO pacífico que o âmbito dos recursos é definido pelas conclusões extraídas pelo recorrente da reSpectiVa motivação, que delimitam as questões que o tribunal ad quem tem de apreciar, sem prejuízo das que forem de conhecimento oficioso (cfr. Germano Marques da Silva in Curso de Processo Penal; vol. 111, 2Q ed., pág. 335, Simas Santos e Leal Henriques, in Recursos em Processo Penal, 6° ed., 2007, pág. 1.03, e, entre muitos outros., o Ac. do S,T.J.. de 05.12.2007, Proc° 3178/07, 3' Secção, in www.stj..pi).
Atentas as conclusões apresentadas, que traduzem as razões de divergência com a decisão impugnada, a questão a examinar e decidir prende-se com saber se se mostram reunidas as circunstâncias de que a lei faz depender a audição da vítima em declarações para memória futura.
2. 2. - Da Decisão Recorrida
É o seguinte o teor da decisão recorrida: «Declarações para memória futura (fls. 25)
Veio o MP requerer a audição da queixosa/vitima DIM... em declarações para memória futura, alegando para o efeito que:
Se investigam nos autos factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica p.p pelo art.° 152°, 11.01 al b) e n.°2, do Código Penal e;
A fragilidade da testemunha face à influência que sobre ela exerce o arguido para que possa tal depoimento ser tomado em conta na fase do julgamento.
Por fim conclui que a diligência deverá ter lugar, atento ainda o preceituado no art.° 33°,11°1 da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro.
Vejamos.
O solicitado pelo MP ancora-se essencialmente em Três ordens de razão, a saber:
O tipo criminal.
A fragilidade/vulnerabilidade da vítima.
A possibilidade de tal depoimento ser tomado em consideração em
audiência de julgamento
Do regime do art.º) 271° do C.P.P
Sobre a- diligência requerida dispõe o art.º) 271º n.ºs 1 e 2 do Cód. Proc.
Penal que:
1 – No caso de doença grave ou de deslocação para o-estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser- ouvida em julgamento, bem como nos casos de vitimas de crimes sexuais, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim: de que o depoimento possa, se-necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo-crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vitima não seja ainda maior.
3 Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento, para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
A este propósito refere-se igualmente no art.º 67-A, alínea b) do mesmo diploma legal que se considera vítima especialmente vulnerável a vítima (..) cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no.seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social.
Regime jurídico de protecção de testemunhas
Relativamente ao regime jurídico de Protecção das Testemunhas, aprovado pela Lei n.° 93/99, de 14 de Julho, na redacção dada pela Lei 42/2010, de 03.09 estatui no seu art. ° I° sob a epígrafe objecto que:
1 - A presente lei regula a aplicação de medidas para protecção de testemunhas em processo penal quando a sua vida, integridade fisica ou psíquica, liberdade ou bens patrimoniais de valor consideravelmente elevado sejam postos em perigo por causa do seu contributo para a prova dos factos que constituem objecto do processo.
2 - As medidas a que se refere o número anterior podem abranger Os familiares das testemunhas, as pessoas que com elas vivam em condições análogas às dos cônjuges e outras pessoas que lhes sejam próximas.
3 - São também previstas medidas que se destinam a obter, nas melhores condições possíveis, depoimentos ou declarações de pessoas especialmente vulneráveis, nomeadamente em razão da idade, mesmo que se não verifique o perigo referido no n. ° 1.
4 - As medidas previstas na presente lei têm natureza excepcional e só podem ser aplicadas se, em concreto, se mostrarem necessárias e adequadas à protecção das pessoas e a realização das finalidades do processo.
5 - É assegurada a realização do contraditório que garanta o justo equilíbrio entre as necessidades de combate ao crime e o direito de defesa.
Ainda no art.° 26 do mesmo diploma, sob a epígrafe testemunhas especialmente vulneráveis que:
1 - Quando num determinado acto processual deva participar testemunha especialmente vulnerável, a autoridade judiciária competente providenciará para que, independentemente da aplicação de outras medidas previstas neste diploma, tal acto decorra nas melhores condições possíveis, com vista a garantir a espontaneidade e a sinceridade das respostas.
2 - A especial vulnerabilidade da testemunha pode resultar, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de ter de depor ou prestar declarações contra pessoa da própria família ou de grupo social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação ou dependência.
Por fim consagra-se no art.° 28° deste diploma, sob a epígrafe intervenção no inquérito que:
1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar, o mais brevemente possível após a ocorrência do crime.
2 - Sempre que possíVel, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.9 do Código de Processo Penal.
Estatuto da vítima
Por sua vez a Lei n.° 130/2015, de 04/09 que se reporta ao Estatuto de vitima estatui no seu art.° 21°, sobre a epígrafe de direitos das vitimas especialmente vulneráveis vem privilegiar o recurso à prestação de declarações para memória futura de vitimas que se encontrem nestas circunstancias, submetendo tal realidade à disciplina do art.° 271° do C.P.P (art.' 21°, 11.°1, n. °2 al d) e 24° deste diploma legal).
Prevenção da violência doméstica.
Por último a lei n° 112/2009, de 16/09, que consagrou o Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência dás suas Vitimas, dispõe no art.° 16°, ii° 2, que:
As autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.
Estatuindo-se ainda no art.' 33°, sob a epígrafe Declarações para memória futura, que:
O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser, tomado em conta no julgamento.
Prevê-se ainda no art° 32 deste diploma que as vítimas podem ser inquiridas com recurso à videoconferência ou teleconferência sempre que tal se revele necessário para garantir a prestação de declarações ou de depoimento sem constrangimentos.
Revisitados os regimes legais que temos por pertinentes sobre estas matérias, verificamos que estamos perante diligências que podem ocorrer, nos termos a que alude o art.° 271° do CP.P, em três situações concertas, a saber:
Doença grave que previsivelmente impeça a testemunha (assistente, parte Civil, perito ou consultor técnico) de ser inquirida em julgamento;
Deslocação para o estrangeiro que previsivelmente impeça a testemunha (assistente, parte civil, perito ou consultor técnico) de ser inquirida em julgamento;
E por fim quando esteja», em causa crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e tráfico de pessoas.
No tocante ao diploma felativo à protecção das testemunhas, é igualmente. permitido o depoimento não presencial da testemunha COm ocultação da sua imagem ou -distorção de. voz, ou ambas, e reporta-se ao momento anterior à prestação de tal depoimente.
Traia-se de regime que assume natureza excepcional ea sua aplicação varia em função de determinadas realidades objectivas.
Por seu turno o art,°- 26°, que versa sobre testemunhas especialmente vulneráveis estabelece que tal vulnerabilidade dependerá, entre. outras circunstâncias, da diminuta ou avançada idade da testemunha, do seu- estado de saúde ou do facto de ter de depor contra pessoa da própria família ou de grupo.- social fechado em que esteja inserida numa condição de subordinação :ou de dependência.
Por ultimo no que concerne ao diploma relativo ao crime de violência doméstica conforme decorre da exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 248/X/4a, que esteve na base da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro: Sendo a prevenção da vitimização secundária uni aspecto axial das políticas hodiernas de protecção da vítima, estabelece-se, sempre que tal se justifique, a possibilidade de inquirição da vítima no decurso do inquérito a fim de que o depoimento seja tomado em-conta no julgamento, ou ainda, no caso da vítima se encontrar impossibilitada de comparecer em audiência, a possibilidade de o tribunal ordenar, oficiosamente, Ou a requerimento, que lhe sejam tomadas declarações no lugar em que se encontra em dia e hora que lhe comunicara (vide DR II série A, n.° 58./X/4, de 22-1-2009, págs.. 30-53, sublinhado nosso).
O legislador veio, assim, estabelecer um regime de antecipação de prova diferenciado do previsto no art.° 271° do CP. P, desde logo porque confere: legitimidade para a vitima requerer a sua tomada de declarações, trata-se, assim, de um regime mais favorável e que visou reforçar a tutela judicial da vítima, como se refere no art.°. 3°. al a) do diploma em causa, visa-se uma protecção célere e eficaz da vítima de molde a prevenir a sua vitimização secundária a sujeição a pressões desnecessárias.
Ressalta, contudo, à evidência que em qualquer das situações encimadas estamos perante realidades sujeitas a regimes legais de natureza excepcional, apresentam, contudo, como escopo comum a protecção das vítimas e testemunhas assentes essencialmente na sua vulnerabilidade.
Debruçando-nos agora apenas sobre a temática da tomada de declarações para memória futura refere o Exm° Sr° Conselheiro Cruz. Bucho, num estudo intitulado de Declarações para memória futura de 02.04.2012, consultável em www.trg.pt/ficheiros/estudos/declaracoes para memoria_futura.pdf, que estamos perante uma diligência de caracter excepcional que consagra uma excepção ao princípio da mediação e que, nessa medida, não permite o exercício de um contraditório com igual plenitude ao que decorre da audiência de discussão e julgamento, constituindo, por isso, uma diligência delimitativa dos direitos de defesa do arguido. Na realidade, esclarece o ilustre Conselheiro a este propósito que:
O legislador não contém (..) nenhuma norma a determinar que a tomada de declarações para memória futura se processa com observância das formalidades estabelecidas para a audiência (cfr. artigos 318.°, n.° 4, 319.°, n. °3 e 320.0), limitando-se a determinar que na parte respeitante à produção da prova antecipada (..), o reenvio geral para a disciplina da audiência de julgamento, estatuindo que é correspondentemente aplicável o disposto nos. artigo 352.0, 356.0,363.° e 364.° (artigo 271.0, n.° 6).
E se é certo que procurou configurar a produção antecipada de prova como uma antecipação parcial da audiência de julgamento, (..) existem importantes desvios às regras que imperam em audiência, desde logo porque exclui a publicidade e a possibilidade de inquirição ao nível do interrogatório que é sempre feito pelo juiz (.)
Acresce que, contrariamente ao que sucede na audiência de julgamento (.) em que a testemunha é inquirida por quem a indicou, sendo depois sujeita a contra-interrogatório (artigo 348°), a inquirição das testemunhas é sempre feita pelo juiz, com ressalva das perguntas adicionais que são formuladas directamente pelo Ministério Público, advogados do assistente e das partes civis e do defensor (artigo 371°, n.°5).
Por fim, enquanto factor limitativo dos direitos de defesa, refere o Ilustre Ilustre Conselheiro que (...) os próprios poderes do juiz de instrução são muito distintos dos de julgamento, uma vez que (..) em sede de inquérito e no âmbito da prova antecipada o juiz de instrução não tem, porém, o poder dever de ordenar oficiosamente a produção de meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e da boa decisão da causa (artigo 340.,.
Adentro deste contexto de excepcionalidade esclarece também o ilustre Conselheiro que não subscreve a posição daqueles que entendem que a delimitação do objecto da diligência não se impõe nestas situações, sufragando entendimento que estamos perante um requerimento e que, como tal, apesar de não existir um artigo no C..P.P que regule os requisitos do requerimento antecipado de prova, tal como previstos nos n.°s 419 e 420 do actual C.P.C, nada impede, por via do elemento histórico, e até no âmbito do direito comparado que tal requerimento deva conter (...) as indicaçõeS indispensáveis para que o juiz possa, motivadamente aeolhê-lo ou rejeitá-lo (...), assumindo (..) as exigências constantes do Código de Processo Civil um carácter instrumental impostas pela mais elementar lógica (..), mais esclarece que tendo ainda por base que (.). no âmbito da tomada de declarações para memória futuro (..) os poderes do juiz de instrução são substancialmente distintos dos do juiz de julgamento (..), fazendo apelo à finalidade e fundamentos do instituto e aos ensinamentos de José Alberto dos Reis, conclui que no requerimento de prova antecipada o requerente deve:
(..)- indicara prova a produzir, identificando as pessoas que devem ser ouvidas e indicar em que condição o deverão ser;
- mencionar os factos sobre os quais deve recair a produção antecipada de prova (em regra por referência ao auto de notícia, ou à acusação pública ou particular, caso já tenham sido deduzidas) e as razões da sua importância para a decisão da causa;
- indicar as razões por que se mostra relevante a audição de tais pessoas (v.g. por haverem presenciado os factos, por neles terem participado, etc);
- justificar sumariamente a necessidade da antecipação, nos casos previstos no n.° 1 do artigo 271.° do C.P.P e quanto a esta ultima, citando José Alberto dos. Reis, in Código de Processo Civil Anotado, vol.III, 3ª ed, cit., pág. 336, refere que a justificação sumária da necessidade da antecipação deve consistir na alegação de factos e circunstâncias conducentes a mostrar que há justo receio de que venha a tornar-se impossível ou muito difícil a produção em audiência, da prova cuja antecipação se pretende obter!
Quanto a este aspecto defende que poderá haver convite ao aperfeiçoamento e que o juiz não deve ser muito exigente no critério de admissibilidade do requerimento, contudo, diremos nós, ainda que se entenda que não é necessária a descrição de factos que se visa apurar com a diligencia em causa, o que quanto a nós nos parece lógico uma vez que de acordo com o regime legal a própria vítima em crimes de violência doméstica pode formular tal pedido aos autos, não se podendo exigir desta um grau de rigor desta ordem de grandeza, o requerimento não poderá deixar, pelo menos, de indicar, como salienta também o ilustre Conselheiro, a pessoa ou pessoas a inquirir, a que titulo as pretende inquirir, as razões da relevância de tal inquirição e a premência da diligência de produção antecipada de prova.
Estamos, portanto, perante;
Uma diligência que constitui um desvio ao princípio da mediação e da publicidade da audiência.
A sua realização depende da verificação de doença grave ou deslocação para o estrangeiro que previsivelmente impeça a prestação de depoimento ou de declarações em audiência ou quando estejam em causa crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual e tráfico de pessoas (art.° 271°, n°1 e n.°2 do C.P.P).
Afora daquelas circunstâncias, pode igualmente ter lugar quando esteja em causa crime de violência doméstica e se pretenda obter uma protecção célere e eficaz da vítima, de molde a prevenir a sua vitimização secundária e a sujeição a pressões desnecessárias (art.° 3°, al b) e 33°, ambos da. Lei 112/2009, de 16 de Setembro, na redacção da Lei 24/2017, de 24 de Maio e art. °s 21°, n.°1, n.°2 al d) e 24° Lei 130/2015, de 04/09).
Em todas as situações de produção antecipada de prova, com excepcção dos crimes de catálogo, em que a diligencia se impõe, deverá o requerente, pelo menos, indicar a pessoa ou pessoas a inquirir, a que' titulo as pretende inquirir, as razões da relevância de tal inquirição e a premência da diligência de produção antecipada de prova, alegação que constituirá o substrato orientador do juiz para avaliar da pertinência e necessidade da diligência.
No tipo criminal de violência doméstica, atendendo ao caracter excepcional do instituto e porque não decorre directamente da lei a obrigatoriedade da diligência, como acontece com as vítimas de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, em que a tomada de declarações para memória Mura é obrigatória, como resulta do n° 2, do artigo 271º, do CPP, e conforme também se depreende da exposição de motivos da Proposta de Lei n.° 248/X/4a, que esteve na base da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro a mesma deverá ter lugar sempre que tal se justifique.
Acresce que a própria lei de Protecção de Testemunhas acima mencionada prevê no art. 28°, n.° 2, a inquirição da testemunha vulnerável pela investigação (preferencialmente sem repetição) e que a tal inquirição poderá acrescer a tomada de declarações para memória futura se a protecção da vítima o exigir, o que resulta da utilização da expressão podendo ainda
A questão que se coloca, pois, é a de saber qual o critério para decidir pela tomada de declarações para memória futura da vítima de maus tratos ou violência doméstica.
Relativamente ao critério que deve nortear o juiz na admissão ou rejeição da prova antecipada em matéria de violência doméstica, cita igualmente o autor no mencionado estudo o Ac. da Rel. De Lisboa de 11-1-2012, proferido no âmbito do proc. n.° 689/11.5P13PDL, 3° Secção, em que foi Relator o Exm° Desembargador Carlos Almeida, disponível em www.pgdlisboa.pt., onde se concluiu, além do mais, que:
XI Admitindo o artigo 33.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, que a vítima de violência doméstica possa prestar declarações para memória futura e não se estabelecendo a obrigatoriedade da prática desse acto, importa procurar na lei um critério que permita determinar os casos em que ele deve ter lugar.
XII A nosso ver, esse critério há-de resultar de uma ponderação entre o Miei-esse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das.finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça.
XIII. Seja como for, a decisão sobre a tomada de declarações pára memória futura não pode ser vista COMO um meio de evitar ou de propiciar que a vítima exerça o direito que o código lhe atribui [artigo 134.°, n. ° 1, alínea a» de se recusar a depor. Ela tem esse direito em qualquer momento em que deva depor.
Revertendo agora para o requerido, segundo o MP a investigação de factos susceptíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica p.p pelo art.° 152°, n.°1 al b) e n.02, do Código Penal, a fragilidade da testemunha face à influência que sobre ela exerce o arguido e para que tais declarações possam ser tidas em julgamento, justificam, de per si, a diligência de produção antecipada de prova,
Relativamente a este ultimo argumento entendemos que o mesmo não constitui verdadeiramente um motivo antecipatório da prova, na realidade como se refere no mencionado acórdão, não se pode justificar a produção antecipada da prova por se prever que a lesada irá, no futuro, caso o processo prossiga para julgamento, usar da prerrogativa legal a que alude o art.º 134° do C.P.P, trata-se de um direito que lhe assiste e do qual não pode ser coartada, pelo menos enquanto a lei assim o dispuser e que, nessa medida, pode utilizar a qualquer momento, poderá fazê-lo em audiência de julgamento ou até na fase instrutória se esta tiver lugar.
Quanto ao demais, como já se referiu, não se trata de diligencia obrigatória e a sua realização depende da alegação das razões da relevância de tal inquirição e a premência da diligência de produção antecipada de prova, ora, nada disso é alegado, perscrutando contudo os autos em busca de algum critério orientador, e que nos dizeres do ultimo dos mencionados acórdãos há-de resultar de uma ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça, verificamos que:
A vítima nasceu em 1989;
Exerce-actividade remunerada por conta de outrem;
Reside e trabalha em Portugal continental:
Goza de respaldo familiar, residindo com o pai e tem apoio da sua entidade patronal, cujas os nomes indicou para testemunhar nos autos.
A relação com o arguido, segundo as declarações por si prestadas e parcialmente corroboradas pelo arguido, teve inicio em Peniche, entre meados de 2012 a 2013/2014; Reataram ao fim de cinco anos (Abril de 2019)
Relação que perdurou até meados de Novembro de 2019 (altura em que o arguido é detido e sujeito a medidas coactivas, que veio a violar).
O arguido, realidade que este admitiu, teve, ou ainda tem, segundo a queixosa, um problema aditivo com álcool e drogas, tendo estado numa comunidade terapêutica entre-Abril de 2019 e meados de junho/Agosto de 2019;
E nesta sequência que se dá o reatamento;
separação, como se disse, ocorre em Novembro de 2019.
A vítima apresentou múltiplas queixas; aquando da relação que tinha terminado há cerca de cinco anos atrás em P... e cujos autos, segundo se depreende do CRC do arguido, não terão prosseguido ou as decisões terão sido absolutórias.
Volvidos cerca de cinco/seis meses de vivência em comum, apresentou queixa em Novembro de 2019 e o arguido foi detido.
Uma vez que o arguido violou as obrigações impostas, e dado O quadro de ameaças deste para com a vítima, foi sujeito a medida coativa de prisão preventiva na semana transacta, em 23 de Janeiro de 2020.
A lesada facultou nos autos as mensagens ameaçadoras e comunicou sempre, e em tempo oportuno; nos autos as violações das medidas coactivas do argüido, solicitando teleassistência.
Foi ouvida em Novembro de 2019 e ulteriormente, por duas vezes, a indicação do M.P, de Curso deste mês de janeiro, no dia 8 junto do OPC e dia 13 junto dos serviços do M.P perante técnico de justiça adjunto daqueles serviços.
Face ao exposto e descurando a ausência de fundamentação justificativa da diligência no requerimento antecedente, o certo é que não se tolhe dos autos motivos que justifiquem a sua realização, mormente ao nível da idade da vítima, seu estado de saúde, dependência económica desta relativamente ao suposto agressor, incapacidade de se expressar e de se dirigir às autoridades competentes, estado de degradação psicológica, perigo de perda de génuinidade do depoimento por via do ascendente do suposto agressor sobre esta, no fundo tudo circunstancias que permitiriam concluir pela presença de uma vítima especialmente vulnerável nos termos a que alude o art.° 67°-A 11. °I al b) do C.P.P e ctrt.s art. ° 21°, n.°1, n.°2 al d) e 24° da Lei n.° 130/2015, de 04/09.
Salienta-se ainda, em reforço, do já exposto; que o processo já se encontra numa fase bastante avançada da investigação, o arguido encontra-se detido, esbatendo-se, por essa via, um eventual ascendente que este tivesse sobre a vítima (que também não descortinamos de todo verificar-se na presente situação), e por último, como já se enfatizou e decorre do art.° 3° al a) da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, na redacção da Lei 24/2017, visou-se estabelecer um regime mais favorável que visou reforçar a tutela judicial da vítima, através de uma protecção célere e eficaz de molde a prevenir a sua vitimização secundária e a sujeição a pressões desnecessárias, ora neste conspecto não podemos deixar de constatar que o próprio titular do inquérito não viu, como realidade suscetível de se enquadrar num quadro de pressão desnecessária, a audição da vitima, o que determinou por duas vezes no mesmo mês, num espaço temporal de pouco mais de três dias entre cada depoimento.
Face ao exposto, sopesando os interesses da vitima, os interesses da investigação, os interesses do arguido, os princípios da mediação em que.se alicerça .o processo penal e a excepcionalidade do instituto, indefere-se a diligencia de tomada de declarações para memória futura requeridas pelo Ministério Público,. por se entender que. não se mostram reunidas as circunstancias de excepcionalidade para a realização da diligência, não decorrendo dos autos, na opinião do tribunal, nenhuma das circunstancias factuais que a determinariam.»
2.3. - Apreciando e decidindo
Alega o Ministério Público que, enquanto titular da acção penal, considera
ser necessário ouvira vítima, ponderando, não apenas a natureza do crime em causa, -a especial vulnerabilidade da ofendida enquanto vítima de violência doméstica, mas sobretudo a sua fragilidade tendo em consideração a influência que o arguido vinha ao longo dos anos exercendo sobre a mesma, conforme resulta patente dos autos, concluindo que o indeferimento do pedido de tomada de declarações para Memória futura impediu que a vítima exercesse o seu direito a prestar antecipadamente deClarações e de evitar a sua revitimação, sendo que, estando em causa factos altamente traumáticos, sé impunha minimizar o trauma associado, o que apenas seria. prosseguido se à vitima fosse permitido preStar declarações uma úniCa vez, perante o JIC; permitindo, desde Cedo e coro pleno efeito para o decurso do prOCesso o apuramento da factualidade cm toda a sua-abrangência.
Em face disse, afirma que o Mm.º JIC não apreciou correctamente o peticionado, especialmente tendo em consideração que fundamenta o indeferimento na ausência de fundamentação justificativa ,que permita concluir pela presença de uma vítima especialmente vulnerável, quando nos termos do n° 3 do Art. °. 67.°- A do C.P.P. todas as vítimas de violência doméstica São vítimas especialniente vulneráveis, acrescentando ainda que, durante o inquérito, o Ministério Público é livre, salvaguardados os actos da competência reservada ao Juiz e as exigências decorrentes do princípio da legalidade, de levar a cabo ou promover as diligências que entender necessárias com vista a fundamentar urna decisão de acusar ou de arquivar o inquérito, sendo que, tendo em consideração o interesse da vítima, o Ministério Público conclui pela necessidade de ouvir a vítima, entendendo que tal diligência deveria ser realizada preferencialmente urna única vez, cm declarações para memória futura..
Conclui que o despach0 recorrido deve ser revogado e substituído por outro que designe_data para inquirição dá vítima em declarações para memória futura.
Na sua resposta, pronunciou-se o arguido no sentido da manutenção da decisão recorrida, considerando bem ter andado. o Tribunal a quo, atento o carácter excepcional das declarações para memória futura e a falta de alegação de factos que evidenciem estar em causa uma vítima especialmente vulnerável, sustentando que a Ofendida gOza, nos presentes autos de violência doméstica, do estatuto de vítima e não do estatuto de. vítima especialmente vulnerável, não gozando automaticamente do beneficio de prestar declarações para memória futura, instituto que tem. um carácter de
excepcionalidade, devendo ser devidamente fundamentado do ponto de vista fáctico para que .o Tribunal realmente ordene tal diligência em detrimento de outros direitos e princípios proce:s-suais, concluindo que, no caso, a vítima não preenche, pelo menos por hora, os requisitos para gozar dessa medida de protecção.
Vejamos.
Quanto às declarações para memória futura, determina-se no art.° 271.0 do C.P.P.:
«1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento dó Ministério Público, dó arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder á sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e. o. local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
4 - Nos casos previstos, no n,° 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito.
- A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
6 - É correspondentemente. aplicável o disposto nos artigos 352.0, 356.°, 363.° e 364.°
7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a. acareações.
.8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores, não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possivel e não puser em causa a saude física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»
(sublinhados nossos)
Assim, pára além das situações de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, circunstâncias estas que podem determinar a audição da testemunha em declarações para memória futura, também no caso de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, pode o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
E no caso de crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, terá sempre lugar a audição em declarações para memória futura, durante o inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior.
No que respeita ao crime de violência doméstica — situação em investigaçãO nestes autos -, importa atentar na Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, que estabelece o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência às suas Vítimas, e, no que sobre a matéria a mesma estipula.
De facto, sob a epígrafe Declarações para memória futura, determina-se no art.° 33.° da mesma Lei:
«1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor.
3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do acto processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal.
4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais.
5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352. 356.0, 363.0 e 364. do Codigo de Processo Penal.
6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações.
7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.»
(sublinhados nossos)
Também aqui, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode o juiz proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Assim, quer nas situações de crimes de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual (art.° 271.° do C.P.P.), quer nas de crime de violência doméstica (art. 33.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro), pode o juiz de instrução proceder à inquirição das vítimas de tais crimes, no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
Nos crimes previstos no n.° 1 do art.° 271.° do C.P.P. tal pedido poderá ser formulado pelo Ministério Público, pelo arguido, pelo assistente ou pelas partes civis, sendo que, no caso de crime de violência doméstica, a audição da vitima em declarações para memória futura poderá ocorrer a requerimento do Ministério Público ou da própria vitima.
Estabeleceu assim a lei um regime mais favorável nas situações de violência doméstica, concedendo legitimidade à vítima para requerer a sua própria audição antecipada, reforçando assim a sua protecção e evitando as, situações de revitimação, estabelecendo-se mesmo no n.° 2 do .art.° 16.° da mencionada Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, que as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal.
Porém, num e noutro caso, cabe ao juiz de instrução decidir se procede ao ou não à requerida audição em declarações para memória futura, apreciando o caso concreto, não impondo a lei a observância de quaisquer concretos pressupostos ou requisitos: para o deferimento do pedido.
Caberá assim ao juiz de instrução, analisando o caso concreto, verificar da utilidade/necessidade de tal audição, sempre norteado pelo princípio da descoberta da verdade material, procurando prevenir ainda as situações de vitimização secundária.
Como se diz no art.º 17.º n.° 1, da Lei 130/2015, de 04 de Setembro,
diploma que: aprovou o Estatuto da Vítima, a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização.secundária e para evitar que sofra pressões.
Vendo a decisão recorrida, afirma a dado passo o Mm° Juiz a quo:
«Em todas as situações de produção antecipada de proVa com excepcção dos crimes de catálogo, em que a diligencia se impõe, deverá o requerente, pelo menos, indicar a pessoa ou pessoas a inquirir, a que titulo as pretende. inquirir, das razões- da relevância de tal inquirição e a premência da diligência de produção antecipada de prova, alegação que constituirá o substrato orientador do juiz para avaliar da pertinência e necessidade da diligência.)
E continua mais à frente:
«Revertendo agora para o requerido, segundo o M.P a investigação de freios susceptíveis de integrar a prática de um crime de violência doméstica p.p pelo art.° 152°, n.°1 al b) e n.2, do Código Penal, a fragilidade da testemunha. face à influência que sobre ela exerce o arguido e para que tais declarações possam ser tidas cio julgamento, justfficam, de per si, a diligência de produção antecipada de prova.
Relativamente a este último argumento entendemos que o mesmo não constitui verdadeiramente um motivo antecipatório da prova, na realidade como se refere no mencionado acórdão, não se pode justificar a produção antecipada da prova por se prever que a lesada irá, no futuro, caso o processo prossiga para julgamento, usar da prerrogativa legal a que alude o art.° 134° do CP.P, trata-se de um direito que assiste e do qual não pode ser coartada, pelo menos enquanto a lei assim o dispuser e que, nessa medida, pode utilizar a qualquer momento, poderá fazê-lo em audiência de julgamento ou até na fase instrutória se esta tiver lugar.
Quanto ao demais, corno já se referiu, não se trata de diligencia obrigatória e a sua realização depende da alegação das razões da relevância de tal inquirição e a premência da diligência de produção antecipada de prova, ora, nada disso é alegado, perscrutando contudo os autos em busca de algum critério orientador, e que nos dizeres do ultimo dos mencionados acórdãos há-de resultar de urna ponderação entre o interesse da vítima de não ser inquirida senão na medida do estritamente indispensável à consecução das finalidades do processo e o interesse da comunidade na descoberta da verdade e na realização da justiça, verificamos que:
A vítima nasceu em 1989;
Exerce actividade remunerada por conta de outrem;
Reside e trabalha em Portugal continental.
Goza de respaldo familiar, residindo com o pai e tem apoio da sua entidade
patronal, cujos nomes indicou para testemunhar nos autos.
A relação com o arguido, segundo as declarações por si prestadas e parcialmente corroboradas pelo arguido, teve início em P..., entre meados de 2012 a 2013/2014; Reataram ao fim de cinco anos (Abril de 2019).
Relação que perdurou até meados de Novembro de 2019 (altura em que o arguido e detido e sujeito a medidas coactivas, que veio a violar).
O arguido, realidade que este admitiu, teve, ou ainda tem, segundo a queixosa, um problema aditivo com álcool e drogas, tendo estado numa comunidade terapêutica entre Abril de 2019 e meados de Junho/Agosto de 2019;
É nesta sequência que se dá o reatamento;
A separação, como se disse, ocorre em Novembro de 2019.
A vítima apresentou múltiplas queixas, aquando da relação que tinha terminado há cerca de cinco anos atrás em P... e cujos autos, segundo se depreende do CRC do arguido, não terão prosseguido ou as decisões terão sido absolutórias.
Volvidos cerca de cinco/seis meses de vivência em comum, apresentou queixa em Novembro de 2019 e o arguido foi detido.
Uma vez que o arguido violou as obrigações impostas, e dado o quadro de ameaças deste para com a vítima, foi sujeito a medida coativa de prisão preventiva na semana transacta, em 23 de Janeiro de 2020.
A lesada facultou nos autos as mensagens ameaçadoras e comunicou sempre, e em tempo oportuno, nos autos as violações das medidas coactivas do arguido, solicitando teleassistência.
Foi ouvida em Novembro de 2019 e ulteriormente, por duas vezes, a indicação do M. P, no decurso deste mês de janeiro, no dia 8 junto do OPC e dia 13 junto dos serviços do MP perante técnico de justiça adjunto daqueles serviços.
Face ao exposto e descurando a ausência de fundamentação justificativa da diligência no requerimento antecedente, o certo é que não se tolhe dos autos motivos que justifiquem a sua realização, mormente ao nível da idade da vitima, seu estado de saúde, dependência económica desta relativamente ao suposto agressor, incapacidade de sé expressar e de se dirigir as autoridades competentes, estado de degradação psicológica, perigo de perda de genuinidade do depoimento por via do ascendente do suposto agressor sobre esta, no fundo tudo circunstancias que permitiriam concluir pela presença de uma vítima especialmente vulnerável nos termos a que alude o art. 67°-A n.°1 al b) do C.P.P e art.'s art.° 21'°, n.°1, n.°2 al d) e 24° da Lei n. 130/2015, de 04/09.
Salienta-se ainda, em reforço, do já exposto, que o processo já se encontra numa fase bastante avançada da investigação, o arguido encontra-se detido, esbatendo-se, por essa via, -um eventual ascendente que este tivesse sobre a vitima (que também não descortinamos de todo verificar-se na presente situação), e por último, como já se enfatizou e decorre do art.' 3° al a) da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, na redacção da Lei 24/2017, visou-se estabelecer um regime mais favorável que visou reforçar a tutela judicial da vítima através de uma protecção célere e eficaz de molde a prevenir a sua vitimização secundária. e a sujeição a pressões desneceSsárias, ora neste conspecto não podemos deixar de constatar que o próprio titular do inquérito não viu,-corno realidade suscetível de se enquadrar num quadro de pressão desnecessária a audição da vitima, o que determinou por duas vezes no mesmo mês, num espaço temporal de pouco mais de três dias entre cada depoimento.
Face ao exposto, sopesando Os interesses da vitima, os interesses da. investigação, os interesses do arguido, os princípios da mediação em- que se alicerça ° processo penal e a- excepcionalidade do instituto,. indefere-se a diligencia de tomada de declarações para memória futura requeridas pelo Ministério Público, por se entender que não se mostram reunidas as circunstancias de -excepcionalidade para a realização da diligéncia, não decorrendO dos autos, na opinião do tribunal, nenhuma das circunstancias factuais que a determinariam.»
No fundo, resulta do excerto transcrito que o Mm° JIC indeferiu a requerida produção antecipada de prova por não resultarem dos autos elementos que permitissem considerar a ofendida uma vítima especialmente vulnerável nos termos a que alude o art.° 67°-A n.°1 al b) do C.P.P e art.ºs 21°, n.°1, n.°2 al d) e 24° da Lei n.° 130/2015, de 04/09, bem como na circunstância de resultar dos autos que o próprio titular do inquérito não viu, como realidade susceptível de se enquadrar num quadro de pressão desnecessária, a audição da vítima, o que determinou por duas vezes no mesmo mês, num espaço temporal de pouco mais de três dias entre cada depoimento.
Pensamos que não lhe assiste razão.
Com efeito, nos termos previstos na alínea h) do n.° 1 do art.° 67.°-A do C.P.P., considera-se «vítima especialmente vulnerável'', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social», determinando-se no n.° 3 do mesmo art.° 67.°-A do C.P.P. que «as vítimas de criminalidade violenta e de criminalidade especialmente violenta são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n. 1.»
Ora, estando em causa nos 'autos um crime de violência doméstica, previsto no art.° 152.°, n.° 1, do C. Penal e punido com pena de prisão de um a cinco anos de prisão, impõe-se concluir que tal crime integra a noção de criminalidade violenta, definida no art.°- 1.°, alínea j), do C.P.P. nos seguintes termos:
«Para efeitos do disposto. neste Código considera-se criminalidade violenta -.as condutas que dolosamente- se dirigirem contra a vida, a integridade fisica, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos. Assim, sendo o crime de violência doméstica punível com pena de prisão de máximo igual a cinco anos, então haverá que considerar a ofendida destes autos uma vítima especialmente vulnerável, e, isto, sem necessidade de averiguar se a mesma preenche algum dos critérios indicados na citada alínea b) do n° 1 do art.° 67.°-A do ou outros que igualmente evidenciem tal especial vulnerabilidade.
A qualidade de vítima especialmente vulnerável reconhecida por lei decorre assim e desde logo da natureza do crime e das especiais características deste ilícito criminal que, na maioria dos casos, evidencia uma situação de grande fragilidade da vítima, decorrente da dependência emocional e/ou outra relativamente ao seu agressor e da gravidade e duração das agressões, de diversa ordem, com consequências muito gravosas para a saúde fisiea e psicológica da vítima, agressões que são, muitas vezes., escondidas de terceiros pela própria vítima ao longo da situação de agressão.
Mas mesmo que assim não fosse, isto é, mesmo que se entendesse qUe a ofendida destes autos não deveria ser considerada uma vítima especialMente vulnerável, tal não impedia a sua audição antecipada nos termos requeridos pelo Ministério Público.
É que, contrariamente ao que parece resultar da decisão recorrida, a lei não prevê as declarações para memória futura apenas para as situações de vítimas especialmente vulneráveis.
Com efeito, para além do art.° 24.° pela Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro - diploma que aprovou o Estatuto da Vítima - que prevê as declarações para memória futura a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público (0 juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos lermos e
para os efeitos previstos no artigo 271.° do Código de Processo Penal.) — a produção antecipada de prova mostra-se igualmente prevista na Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, diploma legal que, como dissemos, aprovou o Regime Jurídico aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Protecção e Assistência às suas Vítimas, concretamente no seu art.° 33.° - a que acima já se aludiu -, no qual, sob a epígrafe Declarações para memória futura, se determina que o juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.
E, no art.° 2.° da mesma Lei n.° 112/2009, distingue o Legislador entre vítima e Vítima especialmente vulnerável, definindo a primeira como «a pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade fisica ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, directamente causada por acção ou omissão, no âmbito do crime de violência doméstica previsto no artigo 152. ° do Código Penal» e a segunda como «a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua diminuta ou avançada idade, do seu estado de saúde ou do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões CQM consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social».
Assim, apesar de a referida Lei n.° 112/2009 distinguir entre vítima e vítima especialmente vulnerável, quando, no seu art.° 33.°, prevê a possibilidade de produção antecipada de prova, não exige qualquer especial vulnerabilidade da vítima para que seja possível ouvi-la em declarações para memória futura, impondo apenas que se trate de vítima de crime de violência doméstica.
Tal direito da vítima de violência doméstica existia já quando foi aprovado o Estatuto da Vítima pela Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro, salvaguardando esta, no seu art.° 2.° que o presente Estatuto não prejudica os direitos, e deveres processuais da vítima consagrados no Código de Processo Penal, nem o regime de protecção de testemunhas consagrado na- Lei n.° 93/99, de 14 de Julho, alterado pelas. Leis. n. °s 29/2008, dê 4 de-Julho, e 42/2010, de 3 de Setembro, não prejudicando também os regimes especiais deprotecção de vítimas de determinados crimes.
De tudo resulta que, a par do direito de audição em declarações para memória futura das vítimas especialmente vulneráveis, reconhecido pela Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro — diploma aplicável a qualquer vítima de criminalidade mostra-se também legalmente reconhecido o direito de audição em declarações para memória futura das vítimas de violência doméstica, nos termos constantes do referido art 33.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro.
Acresce que o art.° 67.:°-A do C.P.P., no qual se considera, como dissemos, vítimas especialmente vulneráveis, para além do mais, as vítimas de criminalidade violenta, foi introduzido precisamente pela referida Lei n. 130/2015, de 04 de Setembro.
Entendemos, assim, que, no caso em análise, a objecção levantada pelo Mm° a quo para o deferimento do requerido não tem fundamento, sendo que, como vimos, e para além do mais, as vítimas de violência doméstica são consideradas por lei especialmente vulneráveis.
Para além disso, mesmo que tal não fosse considerado, sempre poderia ouvir-se a vítima destes autos ao abrigo do disposto no .art.° 33.° da Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro.
E o argumentó igualmente apresentado pelo Mmo Juiz a quo no sentido de que nem o Ministério Público entendeu que deveria proteger a vitima, evitando a sua repetida 'audição, afirmando expressamente «não podemos deixar de constatar que o próprio titular do inquérito não viu, como realidade suscetível de se enquadrar num quadro de pressão desnecessária, a audição da vítima, o que determinou por duas vezes no mesmo mês, num espaço temporal de pouco mais de três dias entre cada depoimento», afigura-se sem qualquer razoabilidade, sendo certo que cabe ao Tribunal a quo cumprir o disposto no n.° 2 do art.º 16.° da referida Lei n.° 112/2009, de 16 de Setembro, que determina que as autoridades apenas devem inquirir a vítima na medida do necessário para os fins do processo penal, bem como o preceituado no art.° I7.°, n.° 1, da Lei n.° 130/2015, de 04 de Setembro, quê estabelece que a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões, sendo que a circunstância de tais normativos terem sido eventualmente desrespeitados pelo Ministério Público não legitima qualquer sua violação por parte do Tribunal, a quem cabe também proteger a vítima, de forma célere e eficaz, evitando as situações de revitimação.
Pelo contrário, entendendo o Tribunal que o Ministério Público não dera
adequado cumprimento aos dispositivos legais em causa, caber-lhe-ia então decidir de forma a não agravar a situação da ofendida, já que, nos termos, previstos no n.° 4 do art.° 67.°-A do C.P.P., assistem à vitima os direitos de inlbrmação, de assistência, de protecção e de participação activa 110 processo penal, previstos neste Código e no Estatuto da Vítima, e que, de harmonia com o disposto no n.° 4 do art. 20.° da Lei n.° 112/2009, cabe também ao juiz assegurar o direito à protecção reconhecido à vítima.
Acresce que, no caso concreto, perante a factualidade imputada ao arguido. constante do auto interrogatório judicial de arguido detido 'de fls. 223 e ss., é manifesta a fragilidade da testemunha face à influência que sobre ela exerce o arguido, conforme alegado pelo Ministério Público, sendo que não é a circunstância de a ofendida ter sido capaz de apresentar queixa e de juntar aos autos elementos de prova, ou de exercer actividade remunerada por conta de outrem, e de ter apoio familiar e da sua entidade patronal, que afasta a sua fragilidade, designadamente emocional, ou qualquer possibilidade de pressão Ou influênCia pOr parte dO arguido.
A violência fisica e psicológica perpetrada pelo arguido na peSsoa da ofendida, inclusive com ameaças de morte, mostra-se descrita naquele auto, no qual podemos ainda verificar que o arguido não se coibiu de agredir, física e verbalmente, quem tentava proteger a ofendida, como aconteceu com o pai desta numa das ocasiões e com os agentes da PSP que, em 24.11.2019, se deslocaram a casa da ofendida.
Como bem refere a Exma. PGA no parecer que emitiu, «DC… é vítima de violência doméstica e por decorrência é uma pessoa especialmente vulnerável, foi-lhe atribuído o grau de risco elevado, ao longo dos anos o arguido exerceu uma ascendente influência sobre a mesma, intimidandO-a, desde o início do relacionamento .entre ambos, em 2011, foi sujeita a comportamentos de extrema agressividade, em casa e na via pública, até na presença ~filhos menores da vítima, comportamentos -estes descritos no auto dê- interrogatório do arguido, de 23 de janeiro de- 2020, sob os números 1 a 56, tendo em 2019 sido alvo de graves agressões físicas e ameaças de morte.»
Para além diSso, o arguido violou a medida de coacção de proibição de contactos a que -estava sujeito desde 25.11.2019, o que determinou a sua substituição pela medida de coacção de prisão preventiva, que lhe foi aplicada cm 23.01.2020, viOlaçõeS que se verificaram repetidamente entre 14.12.2019 e a data da sua detenção em 23.01.2020, período durante o qual o arguido sujeitou a ofendida a variadas ameaças, inclusive de morte, e a diversas: agressões físicas, verbais e psicológicas, num clima- de intimidação e medo inaceitável.
Aliás, é o próprio Tribunal que, muito embora não aludindo às concretas agressões de que a ofendida tem sido vítima por parte do arguido, descritas do auto de interrogatório judicial, apesar de tudo refere, na decisão recorrida, que a relação da ofendida com o arguido teve início em P…P..., entre meados de 2012 .0 2013/2014, tendo reatado ao fim de cinco anos (Abril de 2019), que o arguido, teve, ou ainda tem, um problenia aditivo com álcool e drogas, tendo estado numa comunidade terapêutica entre Abril de 2019 e meados de Junho/AgostO de 2019, sendo nesse contexto que Se deu o reatamento, que a vítima apresentou múltiplas queixas, aquando da relação que tinha terminado há cerca de cinco anos atrás em P... situação esta, concluímos nós, que afinal não impediu o reatamento da relação verificado em Abril de 2019 - que o arguido violou as obrigações impostas no âmbito destes autos, tendo sido sujeito a prisão preventiva dado o quadro das suas ameaças para com a vítima, e ainda que a lesada facultou nos autos as mensagens ameaçadoras e comunicou as violações das medidas- coactivas do arguido,, solicitando teleassistência.
Neste quadro, resultam evidentes as pressões do arguido sobre a ofendida, bem como O receio desta, que solicitou teleassistência, não se Compreendendo Como não logrou o Tribunal vislumbrar a vulnerabilidade daquela, nem a necessidade de evitar pressões desnecessárias e vitimizações secundárias.
No caso em apreço, resulta evidente que se impunha o deferimento do pedido de audição da ofendida em declarações: para memória. futura, dada a Manifesta vulnerabilidade da vitima e a necessidade da sua protecção, bem como o interesse da comunidade na desCoberta da verdade material.
Sobre situação semelhante se pronunciou o acórdão desta Relação de Lisboa, proferido em 05.03.2020, no Proc.° 779/19.6PARGRA.L1-9, relatado por Almeida Cabral, no qual podemos ler:
«Deste modo, estando os direitos e interesses das vítimas de violência doméstica tutelados, agora, pela Lei n.° 112/2009, neste, poder que é conferido ao juiz está implícito o dever de, à luz das elementares - regras do bom senso e dos respectivos juízos de oportimidade, tudo fazer no sentido de precaver a recolha e a conservação de uma prova que é fundamental, tão fundamental que, muitas vezes, até acaba por ser -a Única.
Diz o Mm.° Juiz a quo que, na perspectiva do recorrente Ministério Público, a tomada de declarações para memória futura em situações de alegada violência doméstica acaba por se tornar automática.
Dir-seá, porém, que, não sendo rigorosamente assim, é muito assim
Efectivamente, casos há de crimes de violência doméstica em que; nada, manifestamente, justifica este tipo de, preocupação na recolha antecipada de prova. Por isso se -compreende. o poder de decisão que o já citado art.° .33.° confere ao juiz, analisando o caso concreto e aferindo do interessee-e oportunidade na realização da diligência.
Porém, na nossa perspectiva, o art.° 33.° em causa haVerá de ser-interpretado no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a pretensão dos requerentes, só assim não decidindo quando, objectiva e manifestamente, se revele total desnecessidade na recolha antecipada de prova, contrariamente ao aqui entendido pelo Mm.° Juiz a quo, cuja- regra já parece ser a do indeferimento, excepto quando haja razões especiais, no caso concreto, para deferir a realização da mesma diligência.
Assim, como se disse, atenta a superior relevância dos-interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do dever de protecção à mesma vítima consagrado no art.° n.° 2 da Lei n.° .112/2009, só em casos excepcionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento.
Deste modo, se a vítima ou o Ministério Público requerem a tomada de declarações para memória futura é porque nisso vêem interesse, sendo este, também, necessária e consequentemente, o interesse da comunidade, os quais, afinal, todos passam pela descoberta da verdade e pela efectiva realização da justiça.»
Concorda-se inteiramente com o entendimento perfilhado.
E concorda-se igualmente, e de novo, com a Exma. PGA quando também sustenta que razões de protecção da vítima, o interesse da -comunidade na descoberta da verdade e na realização dá justiça e o flagelo e proliferação da violência doméstica impõem a realização das declarações para memória futura.
Nestes termos, considerando que se mostram reunidas as condições: necessárias ao deferimento do pedido de audição dá ofendida em declarações para memória futura, impõe-se revogar o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe dia para audição daquela nos termos referidos.
Procede, pois, o recurso interposto pelo Ministério Público.
III — DECISÃO
Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os Juízes da 9ª Secção do Tribunal da Relação de Lisboa em julgar procedente o recurso interposto pelo Ministério Público, revogando-se, consequentemente, o despacho recorrido, o qual deve ser substituído por outro que designe dia para audição da ofendida em declarações para memória futura.
Sem custas.
Elaborado cm computador e integralmente revisto pela relatora (art.° 94.°, n.º 2, do C.P.P.)
Lisboa, 04.06.2020
(assinado electronicamente)
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